Virou a
argola de ferro e abriu a porta com um empurrão, só um pouco.
-
Passarinho? - chamou. - Posso entrar?
- Tenha
cuidado, senhora - avisou a velha Gretchel, apertando as mãos. - Sua
senhoria atirou o penico no meistre.
- Então
não tem penico para me atirar. Não há trabalho que devesse estar
fazendo? E você também, Maddy... as janelas estão todas fechadas e
as portas trancadas? A mobília já foi toda coberta?
- Toda,
senhora - Maddy respondeu.
- É
melhor ir se certificar - Alayne adentrou o quarto escurecido. - Sou
só eu, passarinho.
Alguém
fungou na escuridão.
- Está
sozinha?
- Estou,
senhor.
- Então
se aproxime. Só você.
Alayne
fechou firmemente a porta atrás de si. Era de carvalho sólido, com
dez centímetros de espessura; Maddy e Gretchel podiam tentar escutar
o que quisessem, e nada ouviriam. Ainda bem. Gretchel sabia controlar
a língua, mas Maddy mexericava desavergonhadamente.
- Foi
Meistre Colemon que mandou você aqui? - perguntou o garoto.
- Não -
ela mentiu. - Ouvi dizer que meu passarinho estava aflito - depois de
seu encontro com o penico, o meistre correra para Sor Lothor, e Brune
viera ter com ela.
“Se a
senhora conseguir convencê-lo a sair da cama, ótimo” o cavaleiro
lhe disse, “não terei de arrancá-lo de lá”.
E não
pode ser assim, disse a si mesma. Quando Robert era tratado com
aspereza, costumava ter ataques de tremores.
- Está
com fome, senhor? - perguntou ao pequeno lorde. - Quer que mande
Maddy até lá embaixo para lhe trazer frutas com creme, ou um pouco
de pão quente com manteiga? - tarde demais, lembrou-se de que não
havia pão quente; as cozinhas estavam fechadas e os fornos, frios.
Se isso tirar Robert da cama, poderá valer a pena o incômodo de
acender um fogo, disse a si mesma.
- Não
quero comida - disse o pequeno lorde, numa voz esganiçada e
petulante. - Hoje vou ficar na cama. Podia ler para mim, se quisesse.
- Aqui
está escuro demais para ler - as pesadas cortinas que cobriam as
janelas torna-vam o quarto negro como a noite. - Meu passarinho se
esqueceu de que dia é hoje?
- Não -
ele respondeu - mas não vou. Quero ficar na cama. Podia ler
histórias do Cavaleiro Alado para mim.
O
Cavaleiro Alado era Sor Artys Arryn. A lenda rezava que expulsara os
Primeiros Homens do Vale e voara até o topo da Lança do Gigante
sobre o dorso de um enorme falcão para matar o Rei Grifo. Havia uma
centena de histórias sobre suas aventuras. O pequeno Robert conhecia
todas tão bem que poderia recitá-las de memória, mesmo assim
gostava que as lessem para ele.
-
Querido, temos que ir - ela disse ao garoto - mas, prometo, quando
chegarmos aos Portões da Lua, lerei duas histórias do Cavaleiro
Alado.
- Três -
ele disse e imediato. Independente do que lhe era oferecido, Robert
queria sempre mais.
- Três -
ela concordou. -Posso deixar entrar um pouco de sol?
- Não. A
luz machuca meus olhos. Venha para a cama, Alayne.
Ela foi
até as janelas mesmo assim, desviando-se do penico quebrado.
Conseguia cheirá-lo melhor do que o via.
- Não as
abrirei muito. Só o suficiente para ver o rosto do meu passarinho.
Ele
fungou.
- Se tem
mesmo de ser assim.
As
cortinas eram feitas de felpudo veludo azul. Puxou uma delas um dedo
para trás e a prendeu. Partículas de poeira puseram-se a dançar
num raio da luz pálida da manhã. As pequenas vidraças em forma de
diamante da janela estavam obscurecidas por geada. Alayne esfregou
uma com a palma da mão, o suficiente para vislumbrar um brilhante
céu azul e um clarão branco vindo do flanco da montanha. O Ninho da
Águia estava envolto num manto de gelo, e a Lança do Gigante, mais
acima, enterrada em um metro de neve.
Quando se
virou, Robert Arryn estava encostado à almofada, olhando-a. O Senhor
do Ninho da Águia e Defensor do Vale. Uma manta de lã cobria-o
abaixo da cintura. Acima dela estava nu, um garoto pálido com os
cabelos tão longos como os de qualquer garota. Robert tinha membros
alongados, um peito liso e côncavo e uma pequena barriga, e olhos
que estavam sempre vermelhos e ramelosos. Ele não pode evitar ser
como é. Nasceu pequeno e doente.
- Parece
muito forte nesta manhã, senhor - ele adorava que lhe dissessem como
era forte. - Quer que mande Maddy e Gretchel trazer água quente para
seu banho? Maddy pode esfregar suas costas e lavar seus cabelos, para
deixá-lo limpo e senhorial para a viagem. Não seria bom?
- Não.
Odeio a Maddy. Tem uma verruga no olho, e esfrega com tanta força
que machuca. A minha mamãe nunca me machucava ao esfregar.
- Eu digo
a Maddy para não esfregar meu passarinho com tanta força. Você se
sentirá melhor quando estiver limpo e fresco.
- Não
quero banho, já disse, minha cabeça dói horrivelmente.
- Quer
que traga um pano quente para sua testa? Ou uma taça de vinho de
sonhos? Mas só uma pequena. Mya Stone está à espera lá embaixo,
em Céu, e ficará magoada se adormecer. Sabe como ela gosta de você.
- Mas eu
não gosto dela. É só a garota das mulas - Robert fungou. - Meistre
Colemon colocou uma coisa nojenta qualquer no leite ontem à noite,
senti o gosto. Disse a ele que queria leite doce, mas ele não quis
trazer para mim. Nem sequer quando lhe ordenei. O senhor sou eu, ele
devia fazer o que eu mando. Ninguém faz o que eu digo.
- Eu falo
com ele - prometeu Alayne - mas só se sair da cama. Está um dia
lindo lá fora, passarinho. O sol brilha, está um dia perfeito para
descer a montanha. As mulas estão à espera em Céu, com Mya...
A boca
dele estremeceu.
- Odeio
essas mulas malcheirosas. Certa vez uma delas tentou me morder! Diga
a essa Mya que vou ficar aqui - soava como se estivesse prestes a
chorar. - Ninguém pode me fazer mal desde que eu fique aqui. O Ninho
da Águia é inexpugnável.
- Quem
quereria fazer mal ao meu passarinho? Seus senhores e cavaleiros o
adoram, e o povo aclama seu nome - ele tem medo, pensou, e com bom
motivo. Desde que a senhora sua mãe caíra, o garoto não queria
sequer sair para a varanda, e o caminho que levava do Ninho da Águia
aos Portões da Lua era suficientemente perigoso para assustar
qualquer um. Alayne tinha ficado com o coração na garganta quando
subiu com Senhora Lysa e Lorde Petyr, e todos concordavam que a
descida era ainda mais aflitiva, já que se passava o tempo todo
olhando para baixo. Mya podia falar de grandes senhores e ousados
cavaleiros que tinham empalidecido e molhado a roupa de baixo na
montanha. E nenhum deles tinha a doença dos tremores.
Mesmo
assim, não podia ficar ali. No fundo do vale, o outono ainda se
demorava, morno e dourado, mas o inverno fechara-se em volta dos
picos das montanhas. Já tinham suportado três tempestades de neve e
uma de gelo que transformara o castelo em cristal durante quinze
dias. O Ninho da Águia podia ser inexpugnável, mas logo também
seria inacessível, e a descida tornava-se dia a dia mais perigosa. A
maioria dos criados e soldados do castelo já tinha feito a descida.
Só uma dúzia ainda permanecia ali em cima, para servir Lorde
Robert.
-
Passarinho - ela disse com suavidade - a descida vai ser tão alegre,
verá. Sor Lothor estará conosco, e Mya também. As mulas dela já
subiram e desceram mil vezes esta velha montanha.
- Odeio
mulas - ele insistiu. - Elas são más. Já lhe disse, uma tentou me
morder quando eu era pequeno.
Alayne
sabia que Robert nunca aprendera a montar como deveria. Mulas,
cavalos, burros, não importava; para ele eram todos feras temíveis,
tão aterrorizadoras como dragões ou grifos. Fora trazido para o
Vale aos seis anos, com a cabeça aninhada entre os seios cheios de
leite da mãe, e depois jamais deixou o Ninho da Águia.
Mesmo
assim, tinham de ir, antes de o gelo se fechar de vez em volta do
castelo. Não havia maneira de saber quantos dias mais o tempo se
aguentaria.
- Mya
evitará que as mulas mordam - Alayne também insistiu - e eu
seguirei logo atrás de você. Sou só uma garota, não tão corajosa
e forte como você. Se eu sou capaz de fazê-lo, sei que você também
será, passarinho.
- Eu
poderia fazê-lo - Lorde Robert respondeu - mas decidi que não farei
- limpou o nariz ranhoso com as costas da mão. - Diga a Mya que vou
ficar na cama. Talvez desça amanhã, se me sentir melhor. Hoje está
muito frio lá fora, e minha cabeça dói. Você também pode beber
um pouco de leite doce, e vou dizer a Gretchel para que nos traga
favos de mel para comer. Vamos dormir, trocar beijos e jogar jogos, e
você pode ler histórias sobre o Cavaleiro Alado para mim.
- Lerei.
Três histórias, como prometi... Quando chegarmos aos Portões da
Lua - Alayne estava perdendo a paciência. Temos que ir, recordou a
si mesma, senão ainda estaremos na zona nevada quando o sol se
puser. - Lorde Nestor preparou um banquete para lhe dar as
boas-vindas, com sopa de cogumelos, carne de veado e bolos. Não quer
desapontá-lo, quer?
- Haverá
bolos de limão? - Lorde Robert adorava bolos de limão, talvez
porque Alayne também gostasse.
- Bolos
de limão, limãozinho, limãozão - assegurou-lhe - e poderá comer
tantos quantos quiser.
- Cem? -
ele quis saber. - Posso comer cem?
- Se lhe
agradar - sentou-se na cama e alisou-lhe os longos cabelos finos. Ele
tem cabelos bonitos. A própria Senhora Lysa os escovava todas as
noites e os cortava quando era preciso. Depois de sua queda, Robert
sofrera terríveis ataques de tremores sempre que alguém se
aproximava dele com uma lâmina, de modo que Petyr ordenara que
deixassem que seus cabelos crescessem. Alayne enrolou uma madeixa no
dedo e disse: - Bom, sairá da cama e deixará que lhe vista?
- Quero
cem bolos de limão e cinco histórias!
Gostaria
de lhe dar cem palmadas e cinco bofetadas. Não se atreveria a se
comportar assim se Petyr estivesse aqui. O pequeno senhor sentia um
bom e saudável medo do padrasto. Alayne forçou-se a sorrir.
- Como
meu senhor quiser. Mas nada até estar lavado, vestido e a caminho.
Venha, antes que a manhã chegue ao fim - pegou firmemente na sua mão
e o arrancou da cama. Mas, antes de ter tempo de chamar os criados,
passarinho pôs os braços magros em volta de Alayne e a beijou. Foi
um beijo de garotinho, e desajeitado. Tudo que Robert Arryn fazia era
desajeitado. Se fechar os olhos, posso fingir que é o Cavaleiro das
Flores, Sor Loras um dia dera uma rosa a Sansa Stark, mas nunca a
beijara... E nenhum Tyrell alguma vez beijaria Alayne Stone. Por mais
bonita que fosse, nascera do lado errado dos lençóis.
Quando os
lábios do garoto tocaram os seus, deu por si lembrando-se de outro
beijo. Ainda recordava a sensação de ter aquela cruel boca
comprimida contra a sua. Viera ter com Sansa na escuridão, enquanto
um fogo verde enchia o céu. Levou uma canção e um beijo, e não me
deixou nada além de um manto ensanguentado.
Não
importava. Esse dia terminara, e Sansa também.
Alayne
afastou seu pequeno lorde.
- Basta.
Pode voltar a me beijar quando chegarmos aos Portões, se cumprir sua
promessa.
Maddy e
Gretchel estavam à espera lá fora, com Meistre Colemon, que já
tinha lavado os dejetos dos cabelos e mudado de vestes. Os escudeiros
de Robert também tinham aparecido. Terrance e Gyles conseguiam
sempre farejar problemas.
- Lorde
Robert está se sentindo mais forte - disse Alayne às criadas. - Vão
buscar água quente para o seu banho, mas procurem não escaldá-lo.
E não lhe puxem os cabelos quando os desembaraçarem, ele detesta
isso - um dos escudeiros abafou um risinho, e ela lhe disse: -
Terrance, prepare a roupa de montar de sua senhoria e seu manto mais
quente. Gyles, limpe aquele penico quebrado.
Gyles
Grafton fez uma careta.
- Não
sou nenhuma criada.
- Faça o
que Senhora Alayne ordena, senão Lothor Brune saberá - Meistre
Colemon falou, seguindo-a ao longo do corredor e pela escada em
caracol. - Estou grato por sua intervenção, senhora. Tem jeito para
lidar com ele - hesitou. - Observou algum tremor enquanto esteve com
ele?
- Os
dedos tremiam-lhe um pouco quando peguei sua mão, nada mais. Ele
disse que o senhor colocou uma coisa nojenta qualquer em seu leite.
-
Nojenta? - Colemon olhou-a, piscando, e o pomo de adão moveu-se para
cima e para baixo. - Eu apenas... o nariz dele está sangrando?
- Não.
- Ótimo.
Isso é bom - a corrente tilintou suavemente quando o meistre
balançou a cabeça, empoleirada no topo de um pescoço ridiculamente
longo e magro. - Essa descida... senhora, poderá ser mais seguro se
eu der à sua senhoria um pouco de leite de papoula. Mya Stone podia
prendê-lo à garupa de sua mula mais segura enquanto ele dormisse.
- O
Senhor do Ninho da Águia não pode descer de sua montanha atado como
uma saca de sementes de cevada - quanto a isso Alayne tinha certeza.
O pai a avisara de que não se atreviam a permitir que a fragilidade
e a covardia de Robert fossem conhecidas por muita gente. Gostaria
que ele estivesse aqui. Teria sabido o que fazer.
Mas Petyr
Baelish encontrava-se do outro lado do Vale, em uma visita a Lorde
Lyonel Corbray por ocasião de seu casamento. Viúvo, com quarenta e
tantos anos e sem filhos, Lorde Lyonel ia se casar com a robusta
filha de dezesseis anos de um mercador rico de Vila Gaivotas. Tinha
sido o próprio Petyr quem combinara a união. Dizia-se que o dote da
noiva era assombroso; tinha de ser, já que ela de nascimento plebeu.
Os vassalos de Corbray estariam presentes, bem como Lorde Waxley,
Lorde Grafton, Lorde Lynderly e alguns pequenos senhores e cavaleiros
com terras... e Lorde Belmore, que nos últimos tempos se
reconciliara com o pai. Esperava-se que os outros Senhores
Declarantes também comparecessem à boda, de modo que a presença de
Petyr era essencial.
Alayne
compreendia tudo aquilo bastante bem, mas a situação significava
que o fardo de fazer que o passarinho descesse a montanha em
segurança caíra sobre ela.
- Dê a
sua senhoria uma taça de leite doce - disse ao meistre. - Isso
evitará que ele trema na viagem para baixo.
- Ele
bebeu uma taça ainda não faz três dias - Colemon objetou.
- E
queria outra na noite passada, mas lhe recusou.
- Era
cedo demais. Senhora, não compreende. Eu disse ao Senhor Protetor,
uma pitada de sonodoce evita os tremores, mas não abandona o corpo,
e com o tempo...
- O tempo
não importará se sua senhoria tiver um ataque de tremores e cair da
montanha. Se meu pai estivesse aqui, sei que lhe diria para manter
Lorde Robert calmo a todo custo.
- Eu
tento, senhora, mas seus ataques tornam-se cada vez mais violentos, e
ele tem o sangue tão fino que já não me atrevo a sangrá-lo. O
sonodoce... Tem certeza de que ele não sangrava do nariz?
- Estava
fungando - admitiu Alayne - mas não vi nenhum sangue.
- Tenho
de falar com o Senhor Protetor. Esse banquete... Pergunto a mim mesmo
se será sensato, logo em seguida à tensão da descida.
- Não
será um grande banquete - assegurou-lhe. - Não haverá mais de
quarenta convidados. Lorde Nestor e seu pessoal, o Cavaleiro do
Portão, alguns senhores menores e as respectivas comitivas...
- Lorde
Robert não gosta de estranhos, sabe disso, e haverá bebidas,
ruído... música. A música o assusta.
- A
música o acalma - Alayne o corrigiu - especialmente a harpa
vertical. O que ele não suporta são cantos, desde que Marillion
matou sua mãe - Alayne dissera a mentira tantas vezes que já era
mais frequente lembrar-se dos acontecimentos dessa maneira; a outra
não parecia mais do que um pesadelo que por vezes lhe perturbava o
sono. - Lorde Nestor não terá cantores no banquete, só flautas e
rabecas para as danças - o que faria quando a música começasse a
tocar? Era uma questão incômoda, à qual o coração e a cabeça
davam respostas diferentes. Sansa adorava danças, mas Alayne... - Dê
a Lorde Robert uma taça de leite doce antes de partirmos, e outra no
banquete, e não deverá haver problemas.
- Muito
bem - fizeram uma pausa na base da escada. - Mas essas deverão ser
as últimas. Em meio ano, ou mais.
- É
melhor levar este assunto ao Senhor Protetor - Alayne cruzou a porta
e atravessou o pátio. Sabia que Colemon queria apenas o melhor para
o garoto que estava sob sua responsabilidade, mas o que era melhor
para Robert, o garoto, e o que era melhor para Lorde Arryn nem sempre
eram a mesma coisa. Petyr assim falara, e era verdade. Mas Meistre
Colemon só se preocupa com o garoto. O pai e eu temos preocupações
maiores.
Neve
velha cobria o pátio, e pingentes pendiam das varandas e das torres
como lanças de cristal. O Ninho da Águia tinha sido construído com
boa pedra branca, e o manto do inverno tornava-o ainda mais branco.
Tão belo, pensou Alayne, tão inexpugnável. Não conseguia amar
aquele lugar, por mais que tentasse. Mesmo antes de os guardas e
criados terem descido, o castelo lhe parecera vazio como uma tumba, e
ainda mais quando Petyr Baelish andava longe. Ali em cima, desde
Marillion ninguém mais cantava. Nunca ninguém ria alto demais. Até
os deuses eram silenciosos. O Ninho da Águia possuía um septo, mas
não tinha septão; um bosque sagrado, mas sem árvore-coração.
Aqui nenhuma prece é atendida, pensava com frequência, embora
houvesse dias em que se sentia tão solitária que tinha de tentar.
Só o vento lhe respondia, cantando sem cessar em volta das sete
esguias torres brancas e fazendo chocalhar a Porta da Lua a cada
rajada. Será ainda pior no inverno, compreendeu. No inverno, isto
será uma fria prisão branca.
E, no
entanto, a ideia de partir a assustava quase tanto quanto Robert. Ela
apenas o escondia melhor. O pai dizia que não havia vergonha em ter
medo, só em mostrá-lo.
“Todos
os homens vivem com medo” dissera. Alayne não tinha certeza se
acreditava. Nada assustava Petyr Baelish. Ele só disse aquilo para
me dar coragem. Teria de mostrar coragem lá embaixo, onde a
possibilidade de ser desmascarada era muito maior. Os amigos de Petyr
na corte mandaram-lhe a notícia de que a rainha tinha homens em
campo em busca do Duende e de Sansa Stark. Custará minha cabeça se
for encontrada, lembrou a si mesma enquanto descia um lance de
geladas escadas de pedra. Tenho de ser Alayne o tempo todo, por
dentro e por fora.
Lothor
Brune estava na sala do guincho, ajudando o carcereiro Mord e dois
criados a carregar arcas de roupas e fardos de pano em seis enormes
baldes de madeira de carvalho, cada um deles suficientemente grande
para carregar três homens. Os grandes guinchos eram a maneira mais
fácil de chegar a Céu, o castelo intermediário, cento e oitenta
metros abaixo. Não fosse os guinchos, era preciso descer a chaminé
natural de pedra que se abria na sub-câmara. Ou ir como Marillion, e
Senhora Lysa antes dele.
- O
garoto está fora da cama? - Sor Lothor perguntou.
- Estão
lhe dando banho. Estará pronto dentro de uma hora.
-
Contemos que esteja. Mya não esperará até depois do meio-dia - a
sala do guincho não era aquecida, e a respiração dele condensava
em névoa a cada palavra.
- Ela
esperará - Alayne respondeu. - Tem de esperar.
- Não
tenha tanta certeza, senhora. É meio mula, aquela. Acho que deixaria
todos nós passando fome aqui antes de pôr aqueles animais em risco
- Brune sorriu quando disse aquilo. Ele sorri sempre que fala de Mya
Stone. Mya era muito mais nova do que Sor Lothor, mas quando o pai
negociava o casamento entre Lorde Corbray e a filha do mercador,
dissera-lhe que as garotas jovens eram sempre mais felizes com homens
mais velhos.
“A
inocência e a experiência dão um casamento perfeito” dissera.
Alayne
perguntou a si mesma o que Mya pensaria de Sor Lothor. Com seu nariz
esmagado, queixo quadrado, e cabelos macios e completamente
grisalhos, Brune não podia ser chamado de bonito, mas também não
era feio. É um rosto comum, mas honesto. Embora tivesse sido elevado
ao grau de cavaleiro, o nascimento de Sor Lothor era muito baixo. Um
a noite lhe contara que era aparentado com os Brune de Cova Castanha,
uma velha família de cavaleiros da Ponta da Garra Rachada.
“Fui
ter com eles quando meu pai morreu” ele confessou, “mas não me
deram a mínima, e disseram que eu não era do seu sangue” Não
quis falar do que aconteceu depois disso, exceto que aprendera tudo o
que sabia sobre armas da maneira mais difícil. Sóbrio, era um homem
calmo, mas forte. E Petyr diz que é leal. Não confia em ninguém
mais do que nele. Brune seria um bom partido para uma garota bastarda
como Mya Stone, pensou. Poderia ser diferente se o pai a tivesse
reconhecido, mas ele não o fez. E Maddy diz que, além disso, ela
não é donzela.
Mord
pegou no chicote e o fez estalar, e o primeiro par de bois pôs-se a
caminhar penosamente em círculo, virando o guincho. A corrente
desenrolou-se, chocalhando ao raspar na pedra e fazendo oscilar o
balde de carvalho que iniciava a longa descida até Céu. Pobres
bois, Alayne pensou. Mord lhes cortaria a garganta antes de partir e
deixá-los para os falcões. O que restasse quando o Ninho da Águia
fosse reaberto seria assado para o banquete de primavera, se não
estivesse estragado. Uma boa reserva de carne congelada e dura
predizia um verão de abundância, segundo afirmava a velha Gretchel.
- Senhora
- Sor Lothor a chamou - é melhor que saiba. Mya não subiu sozinha.
Senhora Myranda a acompanha.
- Oh -
por que subiria a montanha, apenas para voltar a descê-la? Myranda
Royce era a filha de Lorde Nestor. Na única vez que Sansa visitara
os Portões da Lua, a caminho do Ninho da Águia, com a tia Lysa e
Lorde Petyr, ela não estava lá, mas Alayne ouvira os soldados do
Ninho da Águia e as criadas falarem muito dela desde então. A mãe
morrera havia muito, de modo que era a Senhora Myranda quem cuidava
do castelo do pai; segundo os rumores, a corte era muito mais animada
quando ela se encontrava presente do que quando estava longe.
“Mais
cedo ou mais tarde terá de conhecer Myranda Royce” prevenira-a
Petyr, “Quando isso acontecer, tenha cautela. Ela gosta de fazer o
papel de tola alegre, mas é mais sagaz do que o pai. Cuidado com a
língua perto dela.”
Terei,
pensou, mas não sabia que teria de começar tão cedo.
- Robert
ficará satisfeito - ele gostava de Myranda Royce. - Deve me perdoar,
sor. Preciso terminar de fazer as malas - sozinha, subiu pela última
vez os degraus que levavam ao seu quarto. As janelas haviam sido
trancadas, as portas fechadas, e a mobília fora coberta. Parte de
suas coisas já tinha sido levada, e o resto armazenado. Todas as
sedas e os samitos da Senhora Lysa seriam deixados para trás. Seus
linhos mais puros e veludos mais felpudos, os ricos bordados e a bela
renda de Myr; tudo ficaria. Lá embaixo, Alayne tinha de se vestir
modestamente, como era próprio de uma garota de modesto nascimento.
Não importa, disse a si mesma. Nem aqui me atrevi a usar as melhores
roupas.
Gretchel
desfizera a cama e preparara o resto de suas roupas. Alayne já
trazia meias de lã por baixo das saias, sobre uma dupla camada de
roupa de baixo. Agora envergou uma túnica de lã de cordeiro e um
manto de peles com capuz, apertando-o com o sabiá esmaltado,
presente de Petyr. Também havia um cachecol e um par de luvas de
couro forradas de peles, que combinavam com suas botas de montar.
Depois de vestir tudo aquilo, sentiu-se tão gorda e peluda como uma
cria de urso. Sentir-me-ei grata pela roupa na montanha, teve de
recordar a si mesma. Olhou uma última vez para o quarto antes de
sair. A qui estive em segurança, pensou, mas lá em baixo...
Quando
Alayne regressou à sala do guincho, foi encontrar Mya Stone
impaciente à espera com Lothor Brune e Mord. Deve ter subido no
balde para saber o motivo da demora. Magra e vigorosa, Mya parecia
tão dura como os velhos couros de montar que usava por baixo do
gibão prateado. Tinha os cabelos tão negros como a asa de um corvo,
tão curtos e desgrenhados que Alayne suspeitou que os cortava com um
punhal. Os olhos de Mya eram seu melhor traço, grandes e azuis, Ela
pod ia ser bonita, se se vestisse como uma garota. Alayne deu por si
curiosa em saber se Sor Lothor gostaria mais dela vestida de ferro e
couro, ou se sonhava em vê-la enfeitada de renda e seda. Mya gostava
de dizer que o pai tinha sido um bode e a mãe, uma coruja, mas
Alayne soube a verdadeira história por Maddy. Sim, pensou, olhando
agora para ela, aqueles são os olhos dele, e também tem seus
cabelos, os espessos cabelos pretos que partilhava com Renly.
- Onde
está ele? - quis saber a garota bastarda.
- Sua
senhoria está sendo banhado e vestido.
- Tem de
se apressar. Está esfriando, não sente? Temos de estar abaixo de
Neve antes de o sol se pôr.
- Como
está o vento? - Alayne quis saber.
- Podia
estar pior... e estará, depois de anoitecer - Mya afastou uma
madeixa dos olhos. - Se ele levar muito mais tempo no banho,
ficaremos encurralados aqui em cima o inverno todo, sem nada para
comer além de nós.
Alayne
não soube o que responder àquilo. Felizmente, foi poupada à
resposta pela chegada de Robert Arryn. O pequeno senhor trazia veludo
azul-celeste, um colar de ouro e safiras, e um manto branco de pele
de urso. Cada um dos escudeiros segurava numa ponta, a fim de evitar
que o manto se arrastasse pelo chão. Meistre Colemon os acompanhava,
com um puído manto cinzento forrado de pele de esquilo. Gretchel e
Maddy não vinham muito atrás.
Quando
sentiu o vento frio no rosto, Robert titubeou, mas Terrance e Gyles
estavam atrás dele, de modo que não pôde fugir.
- Senhor
- disse Mya - acompanha-me até lá embaixo?
Brusca
demais, Alayne pensou. Ela devia tê-lo saudado com um sorriso, e
dito como parece forte e corajoso.
- Quero a
Alayne - Lorde Robert respondeu. - Só irei com ela.
- O balde
pode levar nós três.
- Só
quero a Alayne. Você é toda fedorenta, como uma mula.
- Às
suas ordens - o rosto de Mya não mostrou nenhuma emoção.
Algumas
das correntes dos guinchos estavam presas a baldes de vime, outras a
robustos baldes de carvalho. O maior destes últimos era mais alto do
que Alayne, com arcos de ferro cingindo suas aduelas marrom-escuras.
Mesmo assim, quando pegou na mão de Robert e o ajudou a entrar,
tinha o coração na garganta. Depois de o alçapão ser fechado
atrás deles, a madeira os rodeou por todos os lados. Só o topo
estava aberto. É melhor assim, disse a si mesma, não podem os olhar
para baixo. Abaixo deles havia apenas Céu e o céu. Cento e oitenta
metros de céu. Por um momento, deu por si curiosa em saber quanto
tempo sua tia teria levado para percorrer aquela distância, e qual
teria sido seu último pensamento enquanto a montanha corria ao seu
encontro. Não, não posso pensar nisso. Não posso!
- SOLTE!
- soou o grito de Sor Lothor. Alguém empurrou o balde com força.
Este oscilou e se inclinou, raspou no chão e então balançou,
livre. Alayne ouviu o crac do chicote de Mord e o chocalhar da
corrente. Começaram a descer, a princípio aos solavancos e
sobressaltos, depois de uma forma mais regular. Robert tinha o rosto
pálido e os olhos inchados, mas suas mãos estavam calmas. O Ninho
da Águia encolheu por cima deles. As celas do céu dos andares
inferiores faziam o castelo se parecer um pouco com uma colmeia
quando visto de baixo. Uma colmeia feita de gelo, pensou Alayne, um
castelo feito de neve. Ouvia o vento assobiar em volta do balde.
Trinta
metros abaixo, uma súbita rajada os apanhou. O balde oscilou para o
lado, girando no ar, e então colidiu com força contra a face da
rocha atrás deles. Estilhaços de gelo e neve choveram sobre os
dois, e o carvalho rangeu e se deformou. Robert arquejou e agarrou-se
a Alayne, enterrando o rosto entre os seus seios.
- Meu
senhor é corajoso - ela disse quando o sentiu tremer. - Estou tão
assustada, que quase nem consigo falar, mas você não.
Sentiu
que ele assentia.
- O
Cavaleiro Alado era corajoso, e eu também sou - vangloriou-se o
garoto para o seu corpete - Sou um Arryn.
- Meu
passarinho me abraça com força? - ela perguntou, embora ele já a
estivesse apertando tanto que quase não conseguia respirar.
- Se
quiser - ele murmurou. E, fortemente abraçados um ao outro,
continuaram a descer em direção a Céu.
Chamar
isto de castelo é como chamar de lago uma poça no chão de uma
latrina, Alayne pensou quando o balde foi aberto para desembarcarem
no castelo intermediário. Céu não passava de uma muralha em forma
de crescente, feita de pedra velha e sem argamassa, que cercava uma
saliência rochosa e a abertura escancarada de uma caverna. Lá
dentro havia armazéns e estábulos, um longo salão natural e os
apoios entalhados que levavam ao Ninho da Águia. Lá fora, o terreno
estava semeado de pedras e pedregulhos quebrados. Rampas de terra
davam acesso à muralha. Cento e oitenta metros acima, o Ninho da
Águia era tão pequeno que Alayne podia esconder o castelo com a
mão, mas muito abaixo se estendia o Vale, verde e dourado.
Vinte
mulas os esperavam dentro do castelo intermediário, com dois
condutores de mulas e a Senhora Myranda Royce. A filha de Lorde
Nestor revelou-se uma mulher baixa e carnuda, da mesma idade de Mya
Stone, mas enquanto Mya era magra e vigorosa, Myranda tinha um corpo
mole e de cheiro doce, largo de ancas, pesado de peito e extremamente
roliço. Seus espessos cachos cor de avelã emolduravam bochechas
redondas e rubras, uma boca pequena e um par de animados olhos
castanhos. Quando Robert saiu cautelosamente do balde, ela
ajoelhou-se numa mancha de neve para lhe beijar a mão e o rosto.
- Senhor
- disse - ficou tão grande!
- Fiquei?
- Robert perguntou, contente.
- Logo
ficará mais alto do que eu - ela mentiu. Levantou-se e sacudiu a
neve das saias. - E você deve ser a filha do Senhor Protetor -
acrescentou, enquanto o balde iniciava, chocalhando, a viagem de
regresso ao Ninho da Águia. - Já tinha ouvido dizer que era bela.
Vejo que é verdade.
Alayne
fez uma reverência.
- A
senhora é bondosa por dizê-lo.
-
Bondosa? - a garota mais velha soltou uma gargalhada. - Que tédio
isso seria. Almejo ser malvada. Tem de me contar todos seus segredos
na viagem para baixo. Posso chamá-la Alayne?
- Se
quiser, senhora - mas de mim não arrancará segredos.
- Eu sou
“senhora” nos Portões, mas aqui na montanha pode me chamar de
Randa. Quantos anos tem, Alayne?
-
Catorze, senhora - tinha decidido que Alayne Stone devia ser mais
velha do que Sansa Stark.
- Randa.
Parece que já se passaram cem anos desde que tive catorze. Como era
inocente. Ainda é inocente, Alayne?
Alayne
corou.
- Não
devia... sim, claro.
- Está
se guardando para Lorde Robert? - brincou Senhora Myranda. - Ou
haverá algum ardente escudeiro sonhando com seus favores?
- Não -
Alayne respondeu, ao mesmo tempo que Robert dizia:
- Ela é
minha amiga. Terrance e Gyles não podem ficar com ela.
Àquela
altura um segundo balde já chegava, batendo suavemente em um monte
de neve gelada. Meistre Colemon saiu lá de dentro com os escudeiros
Terrance e Gyles. O guincho seguinte trouxe Maddy e Gretchel,
acompanhadas por Mya Stone. A garota bastarda não demorou a assumir
o comando.
- Não
queremos nos amontoar na montanha - disse aos outros condutores de
mulas. - Eu levo Lorde Robert e seus companheiros. Ossy, você traz
para baixo Sor Lothor e os outros, mas dê-me uma vantagem de uma
hora. Carrot, você ficará responsável pelas arcas e caixas -
virou-se para Robert Arryn, com os cabelos negros esvoaçando. - Que
mula montará hoje, senhor?
- Elas
são todas fedorentas. Fico com aquela cinzenta, que tem a orelha
roída. Quero que Alayne venha comigo. E Myranda também.
- Onde o
caminho for suficientemente largo. Venha, senhor, vamos colocá-lo em
sua mula. Há um cheiro de neve no ar.
Passou-se
mais meia hora antes de estarem prontos para partir. Quando todos
montaram, Mya Stone deu uma ordem decidida, e dois dos homens de
armas de Céu abriram os portões. Mya foi a primeira a sair, com
Lorde Robert logo atrás, envolto em seu manto de pele de urso.
Alayne e Myranda Royce os seguiam, depois vinham Gretchel e Maddy, e
em seguida Terrance Lynderly e Gyles Grafton. Meistre Colemon fechava
a retaguarda, trazendo pela correia uma segunda mula carregada com
suas arcas de ervas e poções.
Além das
muralhas, o vento aumentou rapidamente de intensidade. Ali estavam
acima da linha das árvores, expostos aos elementos. Alayne sentiu-se
grata por ter vestido roupa tão quente. O manto batia ruidosamente
atrás dela, e uma súbita rajada arrancou-lhe o capuz da cabeça.
Soltou uma gargalhada, mas, alguns metros mais à frente, Lorde
Robert torceu-se e disse:
- Está
frio demais. Devíamos voltar e esperar até o tempo ficar mais
quente.
- No
fundo do vale estará mais quente, senhor - Mya falou. - Verá quando
chegarmos lá.
- Eu não
quero ver - Robert rebateu, mas Mya não lhe prestou atenção.
A estrada
era uma tortuosa série de degraus de pedra esculpidos no flanco da
montanha, mas as mulas conheciam cada centímetro dela, o que deixou
Alayne contente. Aqui e ali a pedra fora estilhaçada pela tensão
causada por um sem-fim de estações, com seus gelos e degelos.
Aglomerações de neve, de um branco que cegava, agarravam-se à
rocha de ambos os lados do caminho. O sol brilhava, o céu estava
azul e havia falcões aos círculos por cima do grupo, cavalgando o
vento.
Ali em
cima, onde a encosta era mais íngreme, os degraus ziguezagueavam de
um lado para outro, em vez de mergulharem direto para baixo, Sansa
Stark subiu a montanha, mas é Alayne Stone quem desce. Era um
pensamento estranho. Lembrava-se de que, ao subir, Mya a avisara para
manter os olhos no caminho que se estendia adiante.
“Olhe
para cima, não para baixo” dissera... Mas isto não era possível
na descida. Podia fechar os olhos. A mula conhece o caminho, não
precisa de mim. Mas aquilo parecia algo que Sansa, aquela garota
assustada, teria feito. Alayne era uma mulher mais velha, e tinha a
coragem dos bastardos.
A
princípio, seguiram em fila única, mas, mais abaixo, o caminho
alargava-se o suficiente para dois cavaleiros seguirem lado a lado, e
Myranda Royce aproximou-se de Alayne.
-
Recebemos uma carta de seu pai - disse, com tal casualidade que era
como se estivessem sentadas, bordando, com a septã. - Está a
caminho de casa, ele diz, e espera ver sua querida filha em breve.
Escreve que Lyonel Corbray parece muito contente com a noiva, e ainda
mais com o seu dote. Espero que Lorde Lyonel se lembre de qual dos
dois tem de levar para a cama. Senhora Waynwood apareceu no banquete
nupcial com o Cavaleiro de Novestrelas, diz Lorde Petyr, para espanto
de todos.
- Anya
Waynwood? É mesmo? - dos seis Senhores Declarantes, restavam três,
aparentemente. No dia em que partira da montanha, Petyr Baelish
mostrara-se confiante em conquistar Symond Templeton para o seu lado,
mas a Senhora Waynwood não. - Há mais alguma coisa? - perguntou. O
Ninho da Águia era um lugar tão solitário, que estava ansiosa por
qualquer migalha de novidades vinda do mundo lá fora, por trivial ou
insignificante que fosse.
- De seu
pai não, mas nos chegaram outras aves. A guerra prossegue, em todo
lado, menos aqui. Correrrio rendeu-se, mas Pedra do Dragão e Ponta
Tempestade ainda resistem pelo Lorde Stannis.
- Senhora
Lysa foi tão sensata por nos manter longe da guerra.
Myranda
deu um sorrisinho astuto.
- Sim,
ela era a própria alma da sensatez, aquela boa senhora - mexeu-se na
sela. - Por que as mulas são tão ossudas e temperamentais? Mya não
as alimenta o suficiente. Uma boa mula gorda seria mais confortável
de montar. Há um novo Alto Septão, sabia? Oh, e a Patrulha da Noite
tem um rapaz como comandante, um filho bastardo qualquer de Eddard
Stark.
- Jon
Snow? - disse antes de pensar, espantada.
- Snow?
Sim, deve ser Snow, suponho.
Havia
séculos que não pensava em Jon. Era apenas seu meio-irmão, mesmo
assim... Com Robb, Bran e Rickon mortos, Jon Snow era o único irmão
que lhe restava. Agora também sou bastarda, como ele. Oh, seria tão
bom voltar a vê-lo. Mas estava claro que isso nunca poderia
acontecer. Alayne Stone não tinha irmãos, ilegítimos ou não.
- Nosso
primo Bronze Yohn organizou um corpo a corpo em Pedrarruna -
prosseguiu Myranda Royce, sem se dar conta de nada - um pequeno, só
para escudeiros. Destinava-se a que Harry, o Herdeiro, ganhasse o
título, e foi o que ele fez.
- Harry,
o Herdeiro?
- O
protegido da Senhora Waynwood. Harrold Hardyng, Suponho que agora
tenhamos de chamá-lo Sor Harry. Bronze Yohn o armou cavaleiro.
- Oh -
Alayne sentiu-se confusa. Por que o protegido da Senhora Waynwood
haveria de ser seu herdeiro? Ela tinha filhos de seu sangue. Um deles
era o Cavaleiro do Portão Sangrento, Sor Donnel. Mas não quis
parecer estúpida, de modo que tudo que disse foi:
- Rezo
para que prove ser um cavaleiro de mérito.
Senhora
Myranda soltou uma fungadela.
- Eu rezo
para que apanhe bexigas. Tem uma filha bastarda de uma plebeia
qualquer, sabia? O senhor meu pai tinha a esperança de me casar com
Harry, mas a Senhora Waynwood nem quis ouvir falar do assunto. Não
sei se foi a mim que achou inadequada, ou só o meu dote - suspirou.
- Realmente preciso de um novo marido. Tive um, outrora, mas o matei.
- Matou?
- Alayne exclamou, chocada.
- Oh,
sim. Ele morreu em cima de mim. Dentro de mim, para falar a verdade.
Sabe o que acontece numa cama de casal, espero?
Alayne
pensou em Tyrion, e no Cão de Caça, e no modo como ele a beijara, e
confirmou com a cabeça.
- Isso
deve ter sido terrível, senhora. Ele morrer. A i, quero eu dizer,
enquanto... enquanto estava...
- ... a
foder-me? - Senhora Myranda encolheu os ombros. - É decerto
desconcertante. Para não falar da descortesia. Ele nem sequer teve a
decência de plantar uma criança em mim. Os velhos têm a semente
fraca. De modo que aqui estou eu, viúva, mas quase por usar. Harry
podia ter se saído muito pior. E atrevo-me mesmo a dizer que sairá.
O mais provável é a Senhora Waynwood casá-lo com uma de suas
netas, ou com uma das de Bronze Yohn.
- Com
certeza, senhora - Alayne lembrou-se do aviso de Petyr.
- Randa.
Vá lá, consegue dizê-lo. Ran-Da.
- Randa.
- Muito
melhor. Temo que tenha de lhe pedir perdão. Achará que sou uma
terrível cabra, bem sei, mas deitei-me com aquele belo rapaz,
Marillion. Não sabia que ele era um monstro. Cantava lindamente, e
sabia fazer as coisas mais deliciosas com os dedos. Nunca o teria
levado para a cama se soubesse que empurraria Senhora Lysa pela Porta
da Lua. Por regra, não me deito com monstros - estudou o rosto e o
peito de Alayne. - É mais bonita do que eu, mas meus seios são
maiores. Os meistres dizem que seios grandes não produzem mais leite
do que os pequenos, mas não acredito. Alguma vez conheceu uma ama de
leite com mamas pequenas? As suas são grandes para uma garota da sua
idade, mas como são seios bastardos não me preocuparei com eles -
Myranda aproximou sua mula da dela. - Sabe que a nossa Mya não é
donzela, espero?
Sabia. A
gorda Maddy segredara-lhe essa informação, num dia que Mya trouxera
para cima as suas provisões.
- Maddy
me disse.
- Claro
que disse. Tem a boca tão grande como os quadris, e os quadris são
enormes. Foi Mychel Redfort. Ele era escudeiro de Lyn Corbray. Um
escudeiro de verdade, ao contrário daquele rapaz desajeitado que Sor
Lyn tem agora. Dizem que só aceitou este por dinheiro. Mychel era o
melhor jovem espadachim do Vale, e também galante... Pelo menos foi
o que a pobre Mya pensou, até que o homem se casou com uma das
filhas de Bronze Yohn. Tenho certeza de que Lorde Horton não lhe deu
escolha nesse assunto, mesmo assim foi uma coisa cruel de se fazer
com Mya.
- Sor
Lothor gosta dela - Alayne olhou de relance a garota das mulas, vinte
passos mais abaixo. - Mais do que isso.
- Lothor
Brune? - Myranda ergueu uma sobrancelha. - E ela sabe? - não esperou
resposta. - Ele não tem chance, pobre homem. Meu pai tentou arranjar
par para Mya, mas ela não quis nenhum deles. É mesmo meio mula,
aquela.
Involuntariamente,
Alayne deu por si simpatizando-se com a garota mais velha. Não
tivera uma amiga com quem mexericar desde a pobre Jeyne Poole.
- Acha
que Sor Lothor gosta dela como é, vestida de couro e cota de malha?
- perguntou à garota mais velha, que tanta experiência do mundo
parecia ter. - Ou será que sonha com ela envolta em sedas e veludos?
- Ele é
um homem. Sonha com ela nua.
Está
tentando me fazer corar outra vez.
Senhora
Myranda deve ter ouvido seus pensamentos.
- Você
realmente fica de um belo tom de rosa. Quando coro, fico igualzinha a
uma maçã. Mas há anos que não coro - inclinou-se para mais perto.
- Seu pai planeja voltar a se casar?
- Meu
pai? - Alayne nunca pensara naquilo. Sem saber por que, a ideia a
deixou desconfortável. Surpreendeu-se lembrando da expressão no
rosto de Lysa Arryn quando caíra pela Porta da Lua.
- Todos
sabemos como ele era dedicado à Senhora Lysa - Myranda voltou a
falar - mas não pode ficar eternamente de luto. Precisa de um a
esposa bonita e jovem para lhe lavar o desgosto. Imagino que podia
escolher entre metade das nobres donzelas do Vale. Quem poderia ser
melhor marido do que nosso ousado Senhor Protetor? Embora ele pudesse
ter um nome melhor que Mindinho. Sabe se o dedo é assim tão mínimo?
- O dedo?
- Alayne voltou a corar. - Eu não... nunca...
Senhora
Myranda riu tanto que Mya Stone lançou um relance para trás.
- Não se
incomode com isso, Alayne, tenho certeza de que é suficientemente
grande.
Passaram
por baixo de um arco esculpido pelo vento, onde longos pingentes
pendiam da pedra clara, gotejando sobre eles. Do outro lado, o
caminho estreitava e mergulhava bruscamente por trinta metros ou
mais. Myranda foi forçada a deixar-se ficar para trás. Alayne
afrouxou as rédeas da mula. A inclinação daquela parte da descida
a obrigou a se agarrar bem à sela. Ali, os degraus tinham sido
desgastados e alisados pelos cascos ferrados de todas as mulas que os
tinham pisado, até se assemelharem a uma série de bacias de pedra
pouco profundas. Água enchia o fundo das bacias, cintilando dourada
ao sol da tarde. Agora é água, pensou Alayne, mas ao chegar a noite
se transformará toda em gelo. Percebeu que prendia a respiração, e
a soltou. Mya Stone e Lorde Robert tinham quase atingido a agulha de
rocha onde o declive voltava a diminuir. Tentou olhar para eles, e só
para eles. Não cairei, disse a si mesma. A mula de Mya me levará
até o outro lado. O vento guinchava à sua volta, enquanto o animal
ia avançando passo a passo, aos solavancos e raspando com as patas.
Pareceu demorar uma vida.
Então,
de repente, viu-se no fim da descida com Mya e seu pequeno senhor,
aninhados por baixo de uma retorcida agulha rochosa. Em frente
estendia-se uma depressão elevada, estreita e gelada, Alayne ouvia o
vento gritar, e o sentia puxar seu manto. Lembrava-se daquele lugar,
da subida. Então a assustara, e a assustava agora.
- É mais
largo do que parece - Mya dizia a Lorde Robert em voz alegre. - Um
metro de largura, e não tem mais de seis de comprimento, não é
nada.
- Não é
nada - disse Robert. Sua mão tremia.
Oh, não,
pensou Alayne. Por favor. Aqui não. Não agora.
- É
melhor levar as mulas pela correia - disse Mya. - Se aprouver ao
senhor, eu levo a minha primeiro, e depois volto para vir buscar a
sua - Lorde Robert não respondeu. Fitava a estreita depressão com
seus olhos avermelhados. - Não demorarei, senhor - prometeu Mya, mas
Alayne duvidava que o garoto sequer a ouvira.
Quando a
garota bastarda tirou a mula de debaixo do abrigo da agulha, o vento
a capturou em seus dentes. Seu manto se ergueu, torcendo-se e batendo
no ar. Mya cambaleou, e durante meio segundo pareceu que seria
arrastada para o precipício, mas de algum modo conseguiu recuperar o
equilíbrio e avançou,
Alayne
tomou a mão enluvada de Robert na sua, para tentar parar seu tremor.
-
Passarinho - disse - estou assustada. Pegue na minha mão e ajude-me
a atravessar. Sei que você não tem medo.
Ele a
olhou, com pupilas que eram pequenas e escuras cabeças de alfinete
em olhos tão grandes e brancos como ovos.
- Não
tenho?
- Você,
não. É o meu cavaleiro alado. Sor Passarinho.
- O
Cavaleiro Alado podia voar - ele sussurrou.
- Mais
alto do que as montanhas - e deu-lhe um apertão na mão.
Senhora
Myranda juntara-se a eles na agulha.
- Podia -
ecoou, quando viu o que estava acontecendo.
- Sor
Passarinho - Lorde Robert disse, e Alayne compreendeu que não se
atreveria a esperar pelo regresso de Mya. Ajudou o garoto a desmontar
e, de mãos dadas, saíram para a depressão de rocha nua, com os
mantos batendo e torcendo-se em suas costas. Ao redor havia ar e céu
vazio, o chão caía abruptamente de ambos os lados. Havia gelo sob
seus pés e pedras quebradas só à espera para torcerem um
tornozelo, e o vento uivava ferozmente. Soa como um lobo, Sansa
pensou. Um lobo fantasma, tão grande quanto as montanhas.
E então
se viram do outro lado, e Mya Stone estava rindo e erguendo Robert
para um abraço.
- Cuidado
- Alayne a alertou. - Ele pode machucá-la se começar a bracejar.
Não parece, mas pode - arranjaram um lugar para ele, uma fenda na
rocha, para mantê-lo abrigado do vento frio. Alayne cuidou dele até
os tremores passarem, enquanto Mya regressava para ajudar os outros a
atravessar.
Mulas
descansadas esperavam por eles em Neve, assim como uma refeição
quente, constituída de ensopado de cabra com cebolas. Comeu com Mya
e Myranda.
- Então,
além de bela é corajosa - disse-lhe Myranda.
- Não -
o elogio a fez corar. - Não sou. Estava muito assustada. Não me
parece que conseguiria atravessar sem Lorde Robert - virou-se para
Mya Stone. - Quase caiu.
- Está
enganada. Eu nunca caio - os cabelos de Mya caíram-lhe sobre o
rosto, escondendo um olho.
- Eu
disse quase. Eu a vi. Não teve medo?
Mya
balançou a cabeça.
-
Lembro-me de um homem atirando-me ao ar quando era muito pequena. Ele
é alto como o céu, e me atira tão alto que me sinto voando.
Estamos os dois rindo, rindo tanto que quase não consigo respirar, e
por fim rio com tanta força que me molho toda, mas isso só o faz
rir ainda mais. Nunca tinha medo quando ele me atirava. Sabia que
estaria sempre lá para me apanhar - empurrou os cabelos para trás.
- E então houve um dia em que não estava. Os homens vão e vêm.
Mentem, morrem ou nos abandonam. Mas uma montanha não é um homem, e
uma pedra é filha da montanha. Eu confio no meu pai e nas minhas
mulas. Não cairei - pousou a mão num esporão irregular de rocha e
se pôs em pé. - É melhor terminar. Ainda temos um longo caminho a
percorrer, e sinto cheiro de tempestade.
A neve
começou a cair no momento em que saíam de Pedra, o maior e o mais
baixo dos três castelos intermediários que defendiam a abordagem ao
Ninho da Águia. Àquela altura, caía o ocaso. Senhora Myranda
sugeriu que talvez pudessem voltar, passar a noite em Pedra e retomar
a descida quando o sol nascesse, mas Mya não quis ouvir falar da
ideia.
- Até lá
a neve pode ter metro e meio de profundidade, e os degraus estarão
traiçoeiros até para minhas mulas - ela disse. - É melhor
continuarmos. Iremos devagar.
E foi o
que fizeram. Abaixo de Pedra, os degraus eram mais largos e menos
íngremes, ziguezagueando para dentro e para fora dos grandes
pinheiros e das árvores-sentinela cinza-esverdeadas que cobriam as
encostas inferiores da Lança do Gigante. As mulas de Mya,
aparentemente, conheciam cada raiz e pedra da descida, e alguma que
esquecessem era lembrada pela garota bastarda. Metade da noite se
passou até avistarem as luzes dos Portões da Lua através da neve
que caía. A última parte da viagem foi a mais pacífica. A neve não
parou de cair, cobrindo o mundo de branco. Passarinho adormeceu na
sela, oscilando de um lado para o outro com os movimentos da mula.
Até Senhora Myranda se pôs a bocejar e a se queixar de cansaço.
- Temos
aposentos preparados para todos vocês - disse a Alayne - mas, se
quiser, pode partilhar minha cama esta noite. É grande o suficiente
para quatro.
-
Sentir-me-ia honrada, senhora.
- Randa.
Sinta-se sortuda por eu estar tão cansada. Só tenho vontade de me
enrolar e dormir. Normalmente, quando as senhoras partilham minha
cama, têm de pagar um imposto de almofada e me contar tudo sobre as
malvadezas que fizeram.
- E se
não fizeram malvadezas?
- Ora,
nesse caso têm de confessar todas as malvadezas que querem fazer.
Você não, claro. Consigo ver como é virtuosa só de olhar para
essas suas bochechas rosadas e esses grandes olhos azuis - voltou a
bocejar. - Espero que tenha os pés quentes. Detesto companheiras de
cama com pés frios.
Quando
finalmente chegaram ao castelo do pai, Senhora Myranda também já
cochilava, e Alayne sonhava com a cama. Será um colchão de penas,
disse a si mesma. Macio, quente e grosso, debaixo de um monte de
peles. Sonharei um sonho agradável, e quando acordar haverá cães
latindo, mulheres fofocando junto ao poço, espadas ressoando no
pátio. E mais tarde haverá um banquete, com música e danças. Após
o silêncio mortal do Ninho da Águia, ansiava por gritos e risos.
Mas,
quando os viajantes desciam das mulas, um dos guardas de Petyr surgiu
vindo da fortaleza.
- Senhora
Alayne - disse - Senhor Protetor está à sua espera.
- Ele
voltou? - ela perguntou, sobressaltada.
- Voltou
ao cair da noite. A senhora o encontrará na torre oeste.
A hora
era mais próxima da alvorada do que do ocaso, e a maior parte do
castelo encontrava-se adormecida, mas Petyr Baelish não. Alayne foi
encontrá-lo sentado junto a uma crepitante lareira, bebendo vinho
quente com especiarias na companhia de três homens que ela não
conhecia. Todos se levantaram quando ela entrou, e Petyr dirigiu-lhe
um sorriso caloroso.
- Alayne.
Venha, dê um beijo em seu pai.
Alayne o
abraçou obedientemente e lhe deu um beijo na face.
- Lamento
incomodar, pai. Ninguém me disse que tinha companhia.
- Você
nunca incomoda, querida. Estava agora mesmo contando a esses bons
cavaleiros como minha filha é atenciosa.
-
Atenciosa e bela - disse um jovem e elegante cavaleiro, cuja espessa
cabeleira loira caía em cascata até bem depois dos ombros.
- Sim -
disse o segundo cavaleiro, um indivíduo entroncado com uma espessa
barba salpicada de branco, nariz vermelho, proeminente e com veias
rebentadas, e mãos nodosas, grandes como presuntos. - Não mencionou
essa parte, senhor.
- Eu
faria o mesmo se ela fosse minha filha - disse o último cavaleiro,
um homem baixo e seco, com um sorriso sardônico, nariz pontiagudo e
hirsutos cabelos cor de laranja. - Especialmente perto de homens
grosseiros como nós.
Alayne
riu.
- São
grosseiros? - disse, brincando. - Ora, e eu que os tomei por galantes
cavaleiros.
-
Cavaleiros são - Petyr interveio. - Quanto à galanteria, ainda está
por ser demonstrada, mas podemos ter esperança. Permita-me que lhe
apresente Sor Byron, Sor Morgarth e Sor Shadrich. Sores, Senhora
Alayne, minha filha ilegítima e muito esperta... com a qual tenho de
conferenciar, se fizerem a bondade de nos deixar a sós.
Os três
cavaleiros fizeram reverências e se retiraram, embora o alto de
cabelos loiros lhe tenha beijado a mão antes de sair.
-
Cavaleiros andantes? - Alayne perguntou, quando a porta foi fechada.
-
Cavaleiros famintos. Achei melhor termos mais algumas espadas à
nossa volta. Os tempos tornam-se cada vez mais interessantes, minha
querida, e quando os tempos assim são, nunca se pode ter espadas
demais. O Rei Bacalhau regressou a Vila Gaivota, e o velho Oswell
tinha algumas histórias para contar.
Alayne
sabia não ser boa ideia perguntar que tipo de histórias. Se Petyr
quisesse que ela soubesse, lhe teria dito.
- Não o
esperava de volta tão cedo - disse. - Agrada-me que tenha vindo.
- Nunca
teria percebido tal coisa pelo beijo que me deu - puxou-a para si,
prendeu-lhe o rosto entre as mãos, e a beijou nos lábios durante
muito tempo. - Este é o tipo de beijo que diz bem-vindo a casa.
Trate de melhorar da próxima vez.
- Sim,
pai - conseguia sentir-se corar.
Ele não
lhe guardou rancor pelo beijo.
- Não
acreditaria em metade do que está acontecendo em Porto Real,
querida. Cersei cambaleia de idiotice em idiotice, ajudada por seu
conselho de surdos, mudos e cegos. Sempre julguei que ela deixaria o
reino falido e se destruiria, mas nunca esperei que o fizesse assim
tão depressa. É bastante irritante. Esperava ter quatro ou cinco
anos calmos para plantar certas sementes e deixar alguns frutos
amadurecer, mas agora... Ainda bem que prospero no caos. A pouca paz
e ordem que os cinco reis nos deixaram não sobreviverá por muito
tempo às três rainhas, temo bem.
- Três
rainhas? - não estava compreendendo.
E Petyr
também não achou por bem explicar. Em vez disso, sorriu e disse:
- Trouxe
um presente à minha querida menina.
Alayne
ficou tão contente quanto surpresa.
- É um
vestido? - tinha ouvido dizer que havia boas costureiras em Vila
Gaivota, e estava farta de usar vestidos sem graça.
- Coisa
melhor. Tente outra vez.
- Joias?
- Não há
joias que possam esperar igualar os olhos da minha filha.
- Limões?
Encontrou limões? - prometera bolo de limão a Passarinho, e para
fazer bolo de limão eram precisos limões.
Petyr
Baelish pegou-lhe na mão e a sentou em seu colo.
- Fiz um
contrato de casamento para você.
- Um
contrato... - sua garganta apertou-se. Não queria voltar a se casar,
não agora, talvez nunca mais. - Eu não... não posso me casar. Pai,
eu... - Alayne olhou para a porta, a fim de se assegurar de que
estava fechada. - Eu sou casada - sussurrou. - Você sabe.
Petyr
pôs-lhe um dedo nos lábios para silenciá-la.
- O anão
casou com a filha de Ned Stark, não com a minha. Mas não importa. É
só um noivado. O casamento terá de esperar até que Cersei esteja
acabada e Sansa seguramente viúva. E você precisa conhecer o rapaz
e conquistar sua aprovação. Senhora Waynwood não o obrigará a se
casar contra sua vontade, é bastante firme quanto a isso.
- Senhora
Waynwood? - Alayne quase não conseguia acreditar no que ouvia. - Por
que haveria ela de casar um dos filhos com... com uma...
- ...
bastarda? Para começar, você é a bastarda do Senhor Protetor, não
se esqueça. Os Waynwood são muito antigos e muito orgulhosos, mas
não tão ricos como se poderia pensar, como descobri quando comecei
a comprar-lhes a dívida. Não que Senhora Anya alguma vez vendesse
um filho por ouro. Mas um protegido... O jovem Harry é só um primo,
e o dote que ofereci à sua senhoria é ainda maior do que aquele que
Lyonel Corbray acabou de receber. Tinha de ser, para ela se arriscar
à fúria de Bronze Yohn. Isso porá abaixo todos os planos dele.
Está prometida a Harrold Hardyng, querida, desde que consiga
conquistar seu coração de rapaz... O que para você não deverá
ser difícil.
- Harry,
o Herdeiro? - Alayne tentou se recordar do que Myranda lhe dissera
sobre ele na montanha. - Ele acabou de ser armado cavaleiro. E tem
uma filha bastarda de uma plebeia qualquer.
- E outra
a caminho, de outra garota. Harry pode ser um sedutor, não há
dúvida. Macios cabelos cor de areia, profundos olhos azuis e
covinhas quando sorri. É muito galante, segundo ouvi dizer -
provocou-a com um sorriso. - Bastarda ou não, querida, quando essa
união for anunciada, será invejada por todas as donzelas
bem-nascidas do Vale, e também por algumas das terras fluviais e da
Campina.
- Por
quê? - Alayne não compreendia. - Sor Harrold é... Como é que pode
ser herdeiro da Senhora Waynwood? Ela não tem filhos de seu próprio
sangue?
- Três -
Petyr admitiu. Alayne sentia cheiro de vinho no hálito dele, cravo e
noz-moscada. - E também filhas e netos.
- Eles
não têm precedência sobre Harry? Não compreendo.
-
Compreenderá. Escute - Petyr pegou-lhe na mão e esfregou-lhe
levemente a palma com os dedos. - Lorde Jasper Arryn, comecemos por
ele. Pai de Jon Arryn. Ele gerou três crianças, dois filhos e uma
filha. Jon era o mais velho, de modo que o Ninho da Águia e a
senhoria passaram para ele. A irmã Alys casou-se com Sor Elys
Waynwood, tio da atual Senhora Waynwood - fez uma careta. - Elys e
Alys, não é uma delícia? O filho mais novo de Lorde Jasper, Sor
Ronnel Arryn, casou-se com uma garota Belmore, mas só lhe tocou o
sino uma ou duas vezes antes de morrer de um mal de barriga. Elbert,
o filho deles, nasceu numa cama no momento em que o pobre Ronnel
morria noutra, ao fundo do corredor. Está prestando atenção,
querida?
- Sim.
Havia Jon, Alys e Ronnel, mas Ronnel morreu.
- Ótimo.
Bom, Jon Arryn se casou três vezes, mas as duas primeiras esposas
não lhe deram filhos, de modo que durante longos anos o sobrinho
Elbert foi seu herdeiro. Entretanto, Elys arava Alys com bastante
diligência, e ela paria uma vez por ano. Deu-lhe nove filhos, oito
garotas e um precioso rapazinho, outro Jasper, após o que morreu,
exausta. O jovem Jasper, sem mostrar consideração pelos heroicos
esforços que tinham sido desenvolvidos para gerá-lo, arranjou
maneira de ser escoiceado na cabeça por um cavalo aos três anos. Um
surto de bexigas levou-lhe duas das irmãs pouco depois, deixando
seis. A mais velha se casou com Sor Denys Arryn, um primo afastado
dos Senhores do Ninho da Águia. Há vários ramos da Casa Arryn
espalhados pelo Vale, todos tão orgulhosos quanto penuriosos, à
exceção dos Arryn de Vila Gaivotas, que tiveram o raro bom-senso de
se casar com mercadores. São ricos, mas não chegam a ser refinados,
por isso ninguém fala deles. Sor Denys provinha de um dos ramos
pobres e orgulhosos... Mas também era combatente de renome em
justas, atraente e galante, e transbordante de cortesia. E possuía
aquele mágico nome Arryn, o que o tornava ideal para a mais velha
das garotas Waynwood. Seus filhos seriam Arryn, e os herdeiros
seguintes do Vale, caso algo de mal acontecesse a Elbert. Bem, e
calhou de acontecer a Elbert o Rei Louco Aerys. Conhece essa
história?
Conhecia.
- O Rei
Louco o assassinou.
- De
fato. E, pouco depois, Sor Denys deixou sua esposa Waynwood grávida
para partir para a guerra. Morreu durante a Batalha dos Sinos, de um
excesso de galanteria e de um machado. Quando contaram sua morte à
sua senhora, ela pereceu de desgosto, e o filho recém-nascido
rapidamente a seguiu. Não importava. Jon Arryn arranjara uma jovem
esposa durante a guerra, uma que tinha motivos para julgar fértil.
Estava muito esperançoso, tenho certeza, mas ambos sabemos que tudo
que obteve de Lysa foi natimortos, abortos, e o pobre Passarinho.
“O que
nos traz de volta às restantes filhas de Elys e Alys. A mais velha
foi deixada com terríveis cicatrizes pelas mesmas bexigas que
mataram suas irmãs, de modo que se tornou septã. Outra foi seduzida
por um mercenário. Sor Elys a expulsou, e ela se juntou às irmãs
silenciosas depois de o bastardo morrer ainda bebê. A terceira se
casou com o Senhor das Bossas, mas demonstrou ser estéril. A quarta
estava a caminho das terras fluviais para se casar com um Bracken
qualquer quando Homens Queimados a levaram. Sobrou a mais nova, que
se casou com um cavaleiro com terras, juramentado aos Waynwood, e lhe
deu um filho, a quem chamou Harrold, que faleceu - virou-lhe a mão e
deu-lhe um leve beijo no pulso. - Portanto, diga-me, querida: por que
é Harry, o Herdeiro?
Os olhos
dela esbugalharam-se.
- Ele não
é herdeiro da Senhora Waynwood. É herdeiro de Robert. Se Robert
morrer...
Petyr
arqueou uma sobrancelha.
- Quando
Robert morrer. Nosso pobre e bravo Passarinho é um garoto tão
doente que é apenas questão de tempo. Quando Robert morrer, Harry,
o Herdeiro, se tornará Lorde Harrold, Defensor do Vale e Senhor do
Ninho da Águia. Os vassalos de Jon Arryn nunca gostarão de mim, nem
de nosso tolo e trêmulo Robert, mas gostarão de seu Jovem Falcão...
E quando se reunirem para o seu casamento, e você sair com seus
longos cabelos ruivos, vestida com um manto de donzela branco e
cinza, com um lobo gigante desenhado na parte de trás... Ora, todos
os cavaleiros do Vale oferecerão suas espadas para reconquistar o
que é seu por direito de sangue. De modo que são estes os presentes
que lhe dou, minha querida Sansa... Harry, o Ninho da Águia e
Winterfell. Isto merece outro beijo, não acha?
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