segunda-feira, 23 de setembro de 2013

41 - ALAYNE



Virou a argola de ferro e abriu a porta com um empurrão, só um pouco.
- Passarinho? - chamou. - Posso entrar?
- Tenha cuidado, senhora - avisou a velha Gretchel, apertando as mãos. - Sua senhoria atirou o penico no meistre.
- Então não tem penico para me atirar. Não há trabalho que devesse estar fazendo? E você também, Maddy... as janelas estão todas fechadas e as portas trancadas? A mobília já foi toda coberta?
- Toda, senhora - Maddy respondeu.
- É melhor ir se certificar - Alayne adentrou o quarto escurecido. - Sou só eu, passarinho.
Alguém fungou na escuridão.
- Está sozinha?
- Estou, senhor.
- Então se aproxime. Só você.
Alayne fechou firmemente a porta atrás de si. Era de carvalho sólido, com dez centímetros de espessura; Maddy e Gretchel podiam tentar escutar o que quisessem, e nada ouviriam. Ainda bem. Gretchel sabia controlar a língua, mas Maddy mexericava desavergonhadamente.
- Foi Meistre Colemon que mandou você aqui? - perguntou o garoto.
- Não - ela mentiu. - Ouvi dizer que meu passarinho estava aflito - depois de seu encontro com o penico, o meistre correra para Sor Lothor, e Brune viera ter com ela.
“Se a senhora conseguir convencê-lo a sair da cama, ótimo” o cavaleiro lhe disse, “não terei de arrancá-lo de lá”.
E não pode ser assim, disse a si mesma. Quando Robert era tratado com aspereza, costumava ter ataques de tremores.
- Está com fome, senhor? - perguntou ao pequeno lorde. - Quer que mande Maddy até lá embaixo para lhe trazer frutas com creme, ou um pouco de pão quente com manteiga? - tarde demais, lembrou-se de que não havia pão quente; as cozinhas estavam fechadas e os fornos, frios. Se isso tirar Robert da cama, poderá valer a pena o incômodo de acender um fogo, disse a si mesma.
- Não quero comida - disse o pequeno lorde, numa voz esganiçada e petulante. - Hoje vou ficar na cama. Podia ler para mim, se quisesse.
- Aqui está escuro demais para ler - as pesadas cortinas que cobriam as janelas torna-vam o quarto negro como a noite. - Meu passarinho se esqueceu de que dia é hoje?
- Não - ele respondeu - mas não vou. Quero ficar na cama. Podia ler histórias do Cavaleiro Alado para mim.
O Cavaleiro Alado era Sor Artys Arryn. A lenda rezava que expulsara os Primeiros Homens do Vale e voara até o topo da Lança do Gigante sobre o dorso de um enorme falcão para matar o Rei Grifo. Havia uma centena de histórias sobre suas aventuras. O pequeno Robert conhecia todas tão bem que poderia recitá-las de memória, mesmo assim gostava que as lessem para ele.
- Querido, temos que ir - ela disse ao garoto - mas, prometo, quando chegarmos aos Portões da Lua, lerei duas histórias do Cavaleiro Alado.
- Três - ele disse e imediato. Independente do que lhe era oferecido, Robert queria sempre mais.
- Três - ela concordou. -Posso deixar entrar um pouco de sol?
- Não. A luz machuca meus olhos. Venha para a cama, Alayne.
Ela foi até as janelas mesmo assim, desviando-se do penico quebrado. Conseguia cheirá-lo melhor do que o via.
- Não as abrirei muito. Só o suficiente para ver o rosto do meu passarinho.
Ele fungou.
- Se tem mesmo de ser assim.
As cortinas eram feitas de felpudo veludo azul. Puxou uma delas um dedo para trás e a prendeu. Partículas de poeira puseram-se a dançar num raio da luz pálida da manhã. As pequenas vidraças em forma de diamante da janela estavam obscurecidas por geada. Alayne esfregou uma com a palma da mão, o suficiente para vislumbrar um brilhante céu azul e um clarão branco vindo do flanco da montanha. O Ninho da Águia estava envolto num manto de gelo, e a Lança do Gigante, mais acima, enterrada em um metro de neve.
Quando se virou, Robert Arryn estava encostado à almofada, olhando-a. O Senhor do Ninho da Águia e Defensor do Vale. Uma manta de lã cobria-o abaixo da cintura. Acima dela estava nu, um garoto pálido com os cabelos tão longos como os de qualquer garota. Robert tinha membros alongados, um peito liso e côncavo e uma pequena barriga, e olhos que estavam sempre vermelhos e ramelosos. Ele não pode evitar ser como é. Nasceu pequeno e doente.
- Parece muito forte nesta manhã, senhor - ele adorava que lhe dissessem como era forte. - Quer que mande Maddy e Gretchel trazer água quente para seu banho? Maddy pode esfregar suas costas e lavar seus cabelos, para deixá-lo limpo e senhorial para a viagem. Não seria bom?
- Não. Odeio a Maddy. Tem uma verruga no olho, e esfrega com tanta força que machuca. A minha mamãe nunca me machucava ao esfregar.
- Eu digo a Maddy para não esfregar meu passarinho com tanta força. Você se sentirá melhor quando estiver limpo e fresco.
- Não quero banho, já disse, minha cabeça dói horrivelmente.
- Quer que traga um pano quente para sua testa? Ou uma taça de vinho de sonhos? Mas só uma pequena. Mya Stone está à espera lá embaixo, em Céu, e ficará magoada se adormecer. Sabe como ela gosta de você.
- Mas eu não gosto dela. É só a garota das mulas - Robert fungou. - Meistre Colemon colocou uma coisa nojenta qualquer no leite ontem à noite, senti o gosto. Disse a ele que queria leite doce, mas ele não quis trazer para mim. Nem sequer quando lhe ordenei. O senhor sou eu, ele devia fazer o que eu mando. Ninguém faz o que eu digo.
- Eu falo com ele - prometeu Alayne - mas só se sair da cama. Está um dia lindo lá fora, passarinho. O sol brilha, está um dia perfeito para descer a montanha. As mulas estão à espera em Céu, com Mya...
A boca dele estremeceu.
- Odeio essas mulas malcheirosas. Certa vez uma delas tentou me morder! Diga a essa Mya que vou ficar aqui - soava como se estivesse prestes a chorar. - Ninguém pode me fazer mal desde que eu fique aqui. O Ninho da Águia é inexpugnável.
- Quem quereria fazer mal ao meu passarinho? Seus senhores e cavaleiros o adoram, e o povo aclama seu nome - ele tem medo, pensou, e com bom motivo. Desde que a senhora sua mãe caíra, o garoto não queria sequer sair para a varanda, e o caminho que levava do Ninho da Águia aos Portões da Lua era suficientemente perigoso para assustar qualquer um. Alayne tinha ficado com o coração na garganta quando subiu com Senhora Lysa e Lorde Petyr, e todos concordavam que a descida era ainda mais aflitiva, já que se passava o tempo todo olhando para baixo. Mya podia falar de grandes senhores e ousados cavaleiros que tinham empalidecido e molhado a roupa de baixo na montanha. E nenhum deles tinha a doença dos tremores.
Mesmo assim, não podia ficar ali. No fundo do vale, o outono ainda se demorava, morno e dourado, mas o inverno fechara-se em volta dos picos das montanhas. Já tinham suportado três tempestades de neve e uma de gelo que transformara o castelo em cristal durante quinze dias. O Ninho da Águia podia ser inexpugnável, mas logo também seria inacessível, e a descida tornava-se dia a dia mais perigosa. A maioria dos criados e soldados do castelo já tinha feito a descida. Só uma dúzia ainda permanecia ali em cima, para servir Lorde Robert.
- Passarinho - ela disse com suavidade - a descida vai ser tão alegre, verá. Sor Lothor estará conosco, e Mya também. As mulas dela já subiram e desceram mil vezes esta velha montanha.
- Odeio mulas - ele insistiu. - Elas são más. Já lhe disse, uma tentou me morder quando eu era pequeno.
Alayne sabia que Robert nunca aprendera a montar como deveria. Mulas, cavalos, burros, não importava; para ele eram todos feras temíveis, tão aterrorizadoras como dragões ou grifos. Fora trazido para o Vale aos seis anos, com a cabeça aninhada entre os seios cheios de leite da mãe, e depois jamais deixou o Ninho da Águia.
Mesmo assim, tinham de ir, antes de o gelo se fechar de vez em volta do castelo. Não havia maneira de saber quantos dias mais o tempo se aguentaria.
- Mya evitará que as mulas mordam - Alayne também insistiu - e eu seguirei logo atrás de você. Sou só uma garota, não tão corajosa e forte como você. Se eu sou capaz de fazê-lo, sei que você também será, passarinho.
- Eu poderia fazê-lo - Lorde Robert respondeu - mas decidi que não farei - limpou o nariz ranhoso com as costas da mão. - Diga a Mya que vou ficar na cama. Talvez desça amanhã, se me sentir melhor. Hoje está muito frio lá fora, e minha cabeça dói. Você também pode beber um pouco de leite doce, e vou dizer a Gretchel para que nos traga favos de mel para comer. Vamos dormir, trocar beijos e jogar jogos, e você pode ler histórias sobre o Cavaleiro Alado para mim.
- Lerei. Três histórias, como prometi... Quando chegarmos aos Portões da Lua - Alayne estava perdendo a paciência. Temos que ir, recordou a si mesma, senão ainda estaremos na zona nevada quando o sol se puser. - Lorde Nestor preparou um banquete para lhe dar as boas-vindas, com sopa de cogumelos, carne de veado e bolos. Não quer desapontá-lo, quer?
- Haverá bolos de limão? - Lorde Robert adorava bolos de limão, talvez porque Alayne também gostasse.
- Bolos de limão, limãozinho, limãozão - assegurou-lhe - e poderá comer tantos quantos quiser.
- Cem? - ele quis saber. - Posso comer cem?
- Se lhe agradar - sentou-se na cama e alisou-lhe os longos cabelos finos. Ele tem cabelos bonitos. A própria Senhora Lysa os escovava todas as noites e os cortava quando era preciso. Depois de sua queda, Robert sofrera terríveis ataques de tremores sempre que alguém se aproximava dele com uma lâmina, de modo que Petyr ordenara que deixassem que seus cabelos crescessem. Alayne enrolou uma madeixa no dedo e disse: - Bom, sairá da cama e deixará que lhe vista?
- Quero cem bolos de limão e cinco histórias!
Gostaria de lhe dar cem palmadas e cinco bofetadas. Não se atreveria a se comportar assim se Petyr estivesse aqui. O pequeno senhor sentia um bom e saudável medo do padrasto. Alayne forçou-se a sorrir.
- Como meu senhor quiser. Mas nada até estar lavado, vestido e a caminho. Venha, antes que a manhã chegue ao fim - pegou firmemente na sua mão e o arrancou da cama. Mas, antes de ter tempo de chamar os criados, passarinho pôs os braços magros em volta de Alayne e a beijou. Foi um beijo de garotinho, e desajeitado. Tudo que Robert Arryn fazia era desajeitado. Se fechar os olhos, posso fingir que é o Cavaleiro das Flores, Sor Loras um dia dera uma rosa a Sansa Stark, mas nunca a beijara... E nenhum Tyrell alguma vez beijaria Alayne Stone. Por mais bonita que fosse, nascera do lado errado dos lençóis.
Quando os lábios do garoto tocaram os seus, deu por si lembrando-se de outro beijo. Ainda recordava a sensação de ter aquela cruel boca comprimida contra a sua. Viera ter com Sansa na escuridão, enquanto um fogo verde enchia o céu. Levou uma canção e um beijo, e não me deixou nada além de um manto ensanguentado.
Não importava. Esse dia terminara, e Sansa também.
Alayne afastou seu pequeno lorde.
- Basta. Pode voltar a me beijar quando chegarmos aos Portões, se cumprir sua promessa.
Maddy e Gretchel estavam à espera lá fora, com Meistre Colemon, que já tinha lavado os dejetos dos cabelos e mudado de vestes. Os escudeiros de Robert também tinham aparecido. Terrance e Gyles conseguiam sempre farejar problemas.
- Lorde Robert está se sentindo mais forte - disse Alayne às criadas. - Vão buscar água quente para o seu banho, mas procurem não escaldá-lo. E não lhe puxem os cabelos quando os desembaraçarem, ele detesta isso - um dos escudeiros abafou um risinho, e ela lhe disse: - Terrance, prepare a roupa de montar de sua senhoria e seu manto mais quente. Gyles, limpe aquele penico quebrado.
Gyles Grafton fez uma careta.
- Não sou nenhuma criada.
- Faça o que Senhora Alayne ordena, senão Lothor Brune saberá - Meistre Colemon falou, seguindo-a ao longo do corredor e pela escada em caracol. - Estou grato por sua intervenção, senhora. Tem jeito para lidar com ele - hesitou. - Observou algum tremor enquanto esteve com ele?
- Os dedos tremiam-lhe um pouco quando peguei sua mão, nada mais. Ele disse que o senhor colocou uma coisa nojenta qualquer em seu leite.
- Nojenta? - Colemon olhou-a, piscando, e o pomo de adão moveu-se para cima e para baixo. - Eu apenas... o nariz dele está sangrando?
- Não.
- Ótimo. Isso é bom - a corrente tilintou suavemente quando o meistre balançou a cabeça, empoleirada no topo de um pescoço ridiculamente longo e magro. - Essa descida... senhora, poderá ser mais seguro se eu der à sua senhoria um pouco de leite de papoula. Mya Stone podia prendê-lo à garupa de sua mula mais segura enquanto ele dormisse.
- O Senhor do Ninho da Águia não pode descer de sua montanha atado como uma saca de sementes de cevada - quanto a isso Alayne tinha certeza. O pai a avisara de que não se atreviam a permitir que a fragilidade e a covardia de Robert fossem conhecidas por muita gente. Gostaria que ele estivesse aqui. Teria sabido o que fazer.
Mas Petyr Baelish encontrava-se do outro lado do Vale, em uma visita a Lorde Lyonel Corbray por ocasião de seu casamento. Viúvo, com quarenta e tantos anos e sem filhos, Lorde Lyonel ia se casar com a robusta filha de dezesseis anos de um mercador rico de Vila Gaivotas. Tinha sido o próprio Petyr quem combinara a união. Dizia-se que o dote da noiva era assombroso; tinha de ser, já que ela de nascimento plebeu. Os vassalos de Corbray estariam presentes, bem como Lorde Waxley, Lorde Grafton, Lorde Lynderly e alguns pequenos senhores e cavaleiros com terras... e Lorde Belmore, que nos últimos tempos se reconciliara com o pai. Esperava-se que os outros Senhores Declarantes também comparecessem à boda, de modo que a presença de Petyr era essencial.
Alayne compreendia tudo aquilo bastante bem, mas a situação significava que o fardo de fazer que o passarinho descesse a montanha em segurança caíra sobre ela.
- Dê a sua senhoria uma taça de leite doce - disse ao meistre. - Isso evitará que ele trema na viagem para baixo.
- Ele bebeu uma taça ainda não faz três dias - Colemon objetou.
- E queria outra na noite passada, mas lhe recusou.
- Era cedo demais. Senhora, não compreende. Eu disse ao Senhor Protetor, uma pitada de sonodoce evita os tremores, mas não abandona o corpo, e com o tempo...
- O tempo não importará se sua senhoria tiver um ataque de tremores e cair da montanha. Se meu pai estivesse aqui, sei que lhe diria para manter Lorde Robert calmo a todo custo.
- Eu tento, senhora, mas seus ataques tornam-se cada vez mais violentos, e ele tem o sangue tão fino que já não me atrevo a sangrá-lo. O sonodoce... Tem certeza de que ele não sangrava do nariz?
- Estava fungando - admitiu Alayne - mas não vi nenhum sangue.
- Tenho de falar com o Senhor Protetor. Esse banquete... Pergunto a mim mesmo se será sensato, logo em seguida à tensão da descida.
- Não será um grande banquete - assegurou-lhe. - Não haverá mais de quarenta convidados. Lorde Nestor e seu pessoal, o Cavaleiro do Portão, alguns senhores menores e as respectivas comitivas...
- Lorde Robert não gosta de estranhos, sabe disso, e haverá bebidas, ruído... música. A música o assusta.
- A música o acalma - Alayne o corrigiu - especialmente a harpa vertical. O que ele não suporta são cantos, desde que Marillion matou sua mãe - Alayne dissera a mentira tantas vezes que já era mais frequente lembrar-se dos acontecimentos dessa maneira; a outra não parecia mais do que um pesadelo que por vezes lhe perturbava o sono. - Lorde Nestor não terá cantores no banquete, só flautas e rabecas para as danças - o que faria quando a música começasse a tocar? Era uma questão incômoda, à qual o coração e a cabeça davam respostas diferentes. Sansa adorava danças, mas Alayne... - Dê a Lorde Robert uma taça de leite doce antes de partirmos, e outra no banquete, e não deverá haver problemas.
- Muito bem - fizeram uma pausa na base da escada. - Mas essas deverão ser as últimas. Em meio ano, ou mais.
- É melhor levar este assunto ao Senhor Protetor - Alayne cruzou a porta e atravessou o pátio. Sabia que Colemon queria apenas o melhor para o garoto que estava sob sua responsabilidade, mas o que era melhor para Robert, o garoto, e o que era melhor para Lorde Arryn nem sempre eram a mesma coisa. Petyr assim falara, e era verdade. Mas Meistre Colemon só se preocupa com o garoto. O pai e eu temos preocupações maiores.
Neve velha cobria o pátio, e pingentes pendiam das varandas e das torres como lanças de cristal. O Ninho da Águia tinha sido construído com boa pedra branca, e o manto do inverno tornava-o ainda mais branco. Tão belo, pensou Alayne, tão inexpugnável. Não conseguia amar aquele lugar, por mais que tentasse. Mesmo antes de os guardas e criados terem descido, o castelo lhe parecera vazio como uma tumba, e ainda mais quando Petyr Baelish andava longe. Ali em cima, desde Marillion ninguém mais cantava. Nunca ninguém ria alto demais. Até os deuses eram silenciosos. O Ninho da Águia possuía um septo, mas não tinha septão; um bosque sagrado, mas sem árvore-coração. Aqui nenhuma prece é atendida, pensava com frequência, embora houvesse dias em que se sentia tão solitária que tinha de tentar. Só o vento lhe respondia, cantando sem cessar em volta das sete esguias torres brancas e fazendo chocalhar a Porta da Lua a cada rajada. Será ainda pior no inverno, compreendeu. No inverno, isto será uma fria prisão branca.
E, no entanto, a ideia de partir a assustava quase tanto quanto Robert. Ela apenas o escondia melhor. O pai dizia que não havia vergonha em ter medo, só em mostrá-lo.
“Todos os homens vivem com medo” dissera. Alayne não tinha certeza se acreditava. Nada assustava Petyr Baelish. Ele só disse aquilo para me dar coragem. Teria de mostrar coragem lá embaixo, onde a possibilidade de ser desmascarada era muito maior. Os amigos de Petyr na corte mandaram-lhe a notícia de que a rainha tinha homens em campo em busca do Duende e de Sansa Stark. Custará minha cabeça se for encontrada, lembrou a si mesma enquanto descia um lance de geladas escadas de pedra. Tenho de ser Alayne o tempo todo, por dentro e por fora.
Lothor Brune estava na sala do guincho, ajudando o carcereiro Mord e dois criados a carregar arcas de roupas e fardos de pano em seis enormes baldes de madeira de carvalho, cada um deles suficientemente grande para carregar três homens. Os grandes guinchos eram a maneira mais fácil de chegar a Céu, o castelo intermediário, cento e oitenta metros abaixo. Não fosse os guinchos, era preciso descer a chaminé natural de pedra que se abria na sub-câmara. Ou ir como Marillion, e Senhora Lysa antes dele.
- O garoto está fora da cama? - Sor Lothor perguntou.
- Estão lhe dando banho. Estará pronto dentro de uma hora.
- Contemos que esteja. Mya não esperará até depois do meio-dia - a sala do guincho não era aquecida, e a respiração dele condensava em névoa a cada palavra.
- Ela esperará - Alayne respondeu. - Tem de esperar.
- Não tenha tanta certeza, senhora. É meio mula, aquela. Acho que deixaria todos nós passando fome aqui antes de pôr aqueles animais em risco - Brune sorriu quando disse aquilo. Ele sorri sempre que fala de Mya Stone. Mya era muito mais nova do que Sor Lothor, mas quando o pai negociava o casamento entre Lorde Corbray e a filha do mercador, dissera-lhe que as garotas jovens eram sempre mais felizes com homens mais velhos.
“A inocência e a experiência dão um casamento perfeito” dissera.
Alayne perguntou a si mesma o que Mya pensaria de Sor Lothor. Com seu nariz esmagado, queixo quadrado, e cabelos macios e completamente grisalhos, Brune não podia ser chamado de bonito, mas também não era feio. É um rosto comum, mas honesto. Embora tivesse sido elevado ao grau de cavaleiro, o nascimento de Sor Lothor era muito baixo. Um a noite lhe contara que era aparentado com os Brune de Cova Castanha, uma velha família de cavaleiros da Ponta da Garra Rachada.
“Fui ter com eles quando meu pai morreu” ele confessou, “mas não me deram a mínima, e disseram que eu não era do seu sangue” Não quis falar do que aconteceu depois disso, exceto que aprendera tudo o que sabia sobre armas da maneira mais difícil. Sóbrio, era um homem calmo, mas forte. E Petyr diz que é leal. Não confia em ninguém mais do que nele. Brune seria um bom partido para uma garota bastarda como Mya Stone, pensou. Poderia ser diferente se o pai a tivesse reconhecido, mas ele não o fez. E Maddy diz que, além disso, ela não é donzela.
Mord pegou no chicote e o fez estalar, e o primeiro par de bois pôs-se a caminhar penosamente em círculo, virando o guincho. A corrente desenrolou-se, chocalhando ao raspar na pedra e fazendo oscilar o balde de carvalho que iniciava a longa descida até Céu. Pobres bois, Alayne pensou. Mord lhes cortaria a garganta antes de partir e deixá-los para os falcões. O que restasse quando o Ninho da Águia fosse reaberto seria assado para o banquete de primavera, se não estivesse estragado. Uma boa reserva de carne congelada e dura predizia um verão de abundância, segundo afirmava a velha Gretchel.
- Senhora - Sor Lothor a chamou - é melhor que saiba. Mya não subiu sozinha. Senhora Myranda a acompanha.
- Oh - por que subiria a montanha, apenas para voltar a descê-la? Myranda Royce era a filha de Lorde Nestor. Na única vez que Sansa visitara os Portões da Lua, a caminho do Ninho da Águia, com a tia Lysa e Lorde Petyr, ela não estava lá, mas Alayne ouvira os soldados do Ninho da Águia e as criadas falarem muito dela desde então. A mãe morrera havia muito, de modo que era a Senhora Myranda quem cuidava do castelo do pai; segundo os rumores, a corte era muito mais animada quando ela se encontrava presente do que quando estava longe.
“Mais cedo ou mais tarde terá de conhecer Myranda Royce” prevenira-a Petyr, “Quando isso acontecer, tenha cautela. Ela gosta de fazer o papel de tola alegre, mas é mais sagaz do que o pai. Cuidado com a língua perto dela.”
Terei, pensou, mas não sabia que teria de começar tão cedo.
- Robert ficará satisfeito - ele gostava de Myranda Royce. - Deve me perdoar, sor. Preciso terminar de fazer as malas - sozinha, subiu pela última vez os degraus que levavam ao seu quarto. As janelas haviam sido trancadas, as portas fechadas, e a mobília fora coberta. Parte de suas coisas já tinha sido levada, e o resto armazenado. Todas as sedas e os samitos da Senhora Lysa seriam deixados para trás. Seus linhos mais puros e veludos mais felpudos, os ricos bordados e a bela renda de Myr; tudo ficaria. Lá embaixo, Alayne tinha de se vestir modestamente, como era próprio de uma garota de modesto nascimento. Não importa, disse a si mesma. Nem aqui me atrevi a usar as melhores roupas.
Gretchel desfizera a cama e preparara o resto de suas roupas. Alayne já trazia meias de lã por baixo das saias, sobre uma dupla camada de roupa de baixo. Agora envergou uma túnica de lã de cordeiro e um manto de peles com capuz, apertando-o com o sabiá esmaltado, presente de Petyr. Também havia um cachecol e um par de luvas de couro forradas de peles, que combinavam com suas botas de montar. Depois de vestir tudo aquilo, sentiu-se tão gorda e peluda como uma cria de urso. Sentir-me-ei grata pela roupa na montanha, teve de recordar a si mesma. Olhou uma última vez para o quarto antes de sair. A qui estive em segurança, pensou, mas lá em baixo...
Quando Alayne regressou à sala do guincho, foi encontrar Mya Stone impaciente à espera com Lothor Brune e Mord. Deve ter subido no balde para saber o motivo da demora. Magra e vigorosa, Mya parecia tão dura como os velhos couros de montar que usava por baixo do gibão prateado. Tinha os cabelos tão negros como a asa de um corvo, tão curtos e desgrenhados que Alayne suspeitou que os cortava com um punhal. Os olhos de Mya eram seu melhor traço, grandes e azuis, Ela pod ia ser bonita, se se vestisse como uma garota. Alayne deu por si curiosa em saber se Sor Lothor gostaria mais dela vestida de ferro e couro, ou se sonhava em vê-la enfeitada de renda e seda. Mya gostava de dizer que o pai tinha sido um bode e a mãe, uma coruja, mas Alayne soube a verdadeira história por Maddy. Sim, pensou, olhando agora para ela, aqueles são os olhos dele, e também tem seus cabelos, os espessos cabelos pretos que partilhava com Renly.
- Onde está ele? - quis saber a garota bastarda.
- Sua senhoria está sendo banhado e vestido.
- Tem de se apressar. Está esfriando, não sente? Temos de estar abaixo de Neve antes de o sol se pôr.
- Como está o vento? - Alayne quis saber.
- Podia estar pior... e estará, depois de anoitecer - Mya afastou uma madeixa dos olhos. - Se ele levar muito mais tempo no banho, ficaremos encurralados aqui em cima o inverno todo, sem nada para comer além de nós.
Alayne não soube o que responder àquilo. Felizmente, foi poupada à resposta pela chegada de Robert Arryn. O pequeno senhor trazia veludo azul-celeste, um colar de ouro e safiras, e um manto branco de pele de urso. Cada um dos escudeiros segurava numa ponta, a fim de evitar que o manto se arrastasse pelo chão. Meistre Colemon os acompanhava, com um puído manto cinzento forrado de pele de esquilo. Gretchel e Maddy não vinham muito atrás.
Quando sentiu o vento frio no rosto, Robert titubeou, mas Terrance e Gyles estavam atrás dele, de modo que não pôde fugir.
- Senhor - disse Mya - acompanha-me até lá embaixo?
Brusca demais, Alayne pensou. Ela devia tê-lo saudado com um sorriso, e dito como parece forte e corajoso.
- Quero a Alayne - Lorde Robert respondeu. - Só irei com ela.
- O balde pode levar nós três.
- Só quero a Alayne. Você é toda fedorenta, como uma mula.
- Às suas ordens - o rosto de Mya não mostrou nenhuma emoção.
Algumas das correntes dos guinchos estavam presas a baldes de vime, outras a robustos baldes de carvalho. O maior destes últimos era mais alto do que Alayne, com arcos de ferro cingindo suas aduelas marrom-escuras. Mesmo assim, quando pegou na mão de Robert e o ajudou a entrar, tinha o coração na garganta. Depois de o alçapão ser fechado atrás deles, a madeira os rodeou por todos os lados. Só o topo estava aberto. É melhor assim, disse a si mesma, não podem os olhar para baixo. Abaixo deles havia apenas Céu e o céu. Cento e oitenta metros de céu. Por um momento, deu por si curiosa em saber quanto tempo sua tia teria levado para percorrer aquela distância, e qual teria sido seu último pensamento enquanto a montanha corria ao seu encontro. Não, não posso pensar nisso. Não posso!
- SOLTE! - soou o grito de Sor Lothor. Alguém empurrou o balde com força. Este oscilou e se inclinou, raspou no chão e então balançou, livre. Alayne ouviu o crac do chicote de Mord e o chocalhar da corrente. Começaram a descer, a princípio aos solavancos e sobressaltos, depois de uma forma mais regular. Robert tinha o rosto pálido e os olhos inchados, mas suas mãos estavam calmas. O Ninho da Águia encolheu por cima deles. As celas do céu dos andares inferiores faziam o castelo se parecer um pouco com uma colmeia quando visto de baixo. Uma colmeia feita de gelo, pensou Alayne, um castelo feito de neve. Ouvia o vento assobiar em volta do balde.
Trinta metros abaixo, uma súbita rajada os apanhou. O balde oscilou para o lado, girando no ar, e então colidiu com força contra a face da rocha atrás deles. Estilhaços de gelo e neve choveram sobre os dois, e o carvalho rangeu e se deformou. Robert arquejou e agarrou-se a Alayne, enterrando o rosto entre os seus seios.
- Meu senhor é corajoso - ela disse quando o sentiu tremer. - Estou tão assustada, que quase nem consigo falar, mas você não.
Sentiu que ele assentia.
- O Cavaleiro Alado era corajoso, e eu também sou - vangloriou-se o garoto para o seu corpete - Sou um Arryn.
- Meu passarinho me abraça com força? - ela perguntou, embora ele já a estivesse apertando tanto que quase não conseguia respirar.
- Se quiser - ele murmurou. E, fortemente abraçados um ao outro, continuaram a descer em direção a Céu.
Chamar isto de castelo é como chamar de lago uma poça no chão de uma latrina, Alayne pensou quando o balde foi aberto para desembarcarem no castelo intermediário. Céu não passava de uma muralha em forma de crescente, feita de pedra velha e sem argamassa, que cercava uma saliência rochosa e a abertura escancarada de uma caverna. Lá dentro havia armazéns e estábulos, um longo salão natural e os apoios entalhados que levavam ao Ninho da Águia. Lá fora, o terreno estava semeado de pedras e pedregulhos quebrados. Rampas de terra davam acesso à muralha. Cento e oitenta metros acima, o Ninho da Águia era tão pequeno que Alayne podia esconder o castelo com a mão, mas muito abaixo se estendia o Vale, verde e dourado.
Vinte mulas os esperavam dentro do castelo intermediário, com dois condutores de mulas e a Senhora Myranda Royce. A filha de Lorde Nestor revelou-se uma mulher baixa e carnuda, da mesma idade de Mya Stone, mas enquanto Mya era magra e vigorosa, Myranda tinha um corpo mole e de cheiro doce, largo de ancas, pesado de peito e extremamente roliço. Seus espessos cachos cor de avelã emolduravam bochechas redondas e rubras, uma boca pequena e um par de animados olhos castanhos. Quando Robert saiu cautelosamente do balde, ela ajoelhou-se numa mancha de neve para lhe beijar a mão e o rosto.
- Senhor - disse - ficou tão grande!
- Fiquei? - Robert perguntou, contente.
- Logo ficará mais alto do que eu - ela mentiu. Levantou-se e sacudiu a neve das saias. - E você deve ser a filha do Senhor Protetor - acrescentou, enquanto o balde iniciava, chocalhando, a viagem de regresso ao Ninho da Águia. - Já tinha ouvido dizer que era bela. Vejo que é verdade.
Alayne fez uma reverência.
- A senhora é bondosa por dizê-lo.
- Bondosa? - a garota mais velha soltou uma gargalhada. - Que tédio isso seria. Almejo ser malvada. Tem de me contar todos seus segredos na viagem para baixo. Posso chamá-la Alayne?
- Se quiser, senhora - mas de mim não arrancará segredos.
- Eu sou “senhora” nos Portões, mas aqui na montanha pode me chamar de Randa. Quantos anos tem, Alayne?
- Catorze, senhora - tinha decidido que Alayne Stone devia ser mais velha do que Sansa Stark.
- Randa. Parece que já se passaram cem anos desde que tive catorze. Como era inocente. Ainda é inocente, Alayne?
Alayne corou.
- Não devia... sim, claro.
- Está se guardando para Lorde Robert? - brincou Senhora Myranda. - Ou haverá algum ardente escudeiro sonhando com seus favores?
- Não - Alayne respondeu, ao mesmo tempo que Robert dizia:
- Ela é minha amiga. Terrance e Gyles não podem ficar com ela.
Àquela altura um segundo balde já chegava, batendo suavemente em um monte de neve gelada. Meistre Colemon saiu lá de dentro com os escudeiros Terrance e Gyles. O guincho seguinte trouxe Maddy e Gretchel, acompanhadas por Mya Stone. A garota bastarda não demorou a assumir o comando.
- Não queremos nos amontoar na montanha - disse aos outros condutores de mulas. - Eu levo Lorde Robert e seus companheiros. Ossy, você traz para baixo Sor Lothor e os outros, mas dê-me uma vantagem de uma hora. Carrot, você ficará responsável pelas arcas e caixas - virou-se para Robert Arryn, com os cabelos negros esvoaçando. - Que mula montará hoje, senhor?
- Elas são todas fedorentas. Fico com aquela cinzenta, que tem a orelha roída. Quero que Alayne venha comigo. E Myranda também.
- Onde o caminho for suficientemente largo. Venha, senhor, vamos colocá-lo em sua mula. Há um cheiro de neve no ar.
Passou-se mais meia hora antes de estarem prontos para partir. Quando todos montaram, Mya Stone deu uma ordem decidida, e dois dos homens de armas de Céu abriram os portões. Mya foi a primeira a sair, com Lorde Robert logo atrás, envolto em seu manto de pele de urso. Alayne e Myranda Royce os seguiam, depois vinham Gretchel e Maddy, e em seguida Terrance Lynderly e Gyles Grafton. Meistre Colemon fechava a retaguarda, trazendo pela correia uma segunda mula carregada com suas arcas de ervas e poções.
Além das muralhas, o vento aumentou rapidamente de intensidade. Ali estavam acima da linha das árvores, expostos aos elementos. Alayne sentiu-se grata por ter vestido roupa tão quente. O manto batia ruidosamente atrás dela, e uma súbita rajada arrancou-lhe o capuz da cabeça. Soltou uma gargalhada, mas, alguns metros mais à frente, Lorde Robert torceu-se e disse:
- Está frio demais. Devíamos voltar e esperar até o tempo ficar mais quente.
- No fundo do vale estará mais quente, senhor - Mya falou. - Verá quando chegarmos lá.
- Eu não quero ver - Robert rebateu, mas Mya não lhe prestou atenção.
A estrada era uma tortuosa série de degraus de pedra esculpidos no flanco da montanha, mas as mulas conheciam cada centímetro dela, o que deixou Alayne contente. Aqui e ali a pedra fora estilhaçada pela tensão causada por um sem-fim de estações, com seus gelos e degelos. Aglomerações de neve, de um branco que cegava, agarravam-se à rocha de ambos os lados do caminho. O sol brilhava, o céu estava azul e havia falcões aos círculos por cima do grupo, cavalgando o vento.
Ali em cima, onde a encosta era mais íngreme, os degraus ziguezagueavam de um lado para outro, em vez de mergulharem direto para baixo, Sansa Stark subiu a montanha, mas é Alayne Stone quem desce. Era um pensamento estranho. Lembrava-se de que, ao subir, Mya a avisara para manter os olhos no caminho que se estendia adiante.
“Olhe para cima, não para baixo” dissera... Mas isto não era possível na descida. Podia fechar os olhos. A mula conhece o caminho, não precisa de mim. Mas aquilo parecia algo que Sansa, aquela garota assustada, teria feito. Alayne era uma mulher mais velha, e tinha a coragem dos bastardos.
A princípio, seguiram em fila única, mas, mais abaixo, o caminho alargava-se o suficiente para dois cavaleiros seguirem lado a lado, e Myranda Royce aproximou-se de Alayne.
- Recebemos uma carta de seu pai - disse, com tal casualidade que era como se estivessem sentadas, bordando, com a septã. - Está a caminho de casa, ele diz, e espera ver sua querida filha em breve. Escreve que Lyonel Corbray parece muito contente com a noiva, e ainda mais com o seu dote. Espero que Lorde Lyonel se lembre de qual dos dois tem de levar para a cama. Senhora Waynwood apareceu no banquete nupcial com o Cavaleiro de Novestrelas, diz Lorde Petyr, para espanto de todos.
- Anya Waynwood? É mesmo? - dos seis Senhores Declarantes, restavam três, aparentemente. No dia em que partira da montanha, Petyr Baelish mostrara-se confiante em conquistar Symond Templeton para o seu lado, mas a Senhora Waynwood não. - Há mais alguma coisa? - perguntou. O Ninho da Águia era um lugar tão solitário, que estava ansiosa por qualquer migalha de novidades vinda do mundo lá fora, por trivial ou insignificante que fosse.
- De seu pai não, mas nos chegaram outras aves. A guerra prossegue, em todo lado, menos aqui. Correrrio rendeu-se, mas Pedra do Dragão e Ponta Tempestade ainda resistem pelo Lorde Stannis.
- Senhora Lysa foi tão sensata por nos manter longe da guerra.
Myranda deu um sorrisinho astuto.
- Sim, ela era a própria alma da sensatez, aquela boa senhora - mexeu-se na sela. - Por que as mulas são tão ossudas e temperamentais? Mya não as alimenta o suficiente. Uma boa mula gorda seria mais confortável de montar. Há um novo Alto Septão, sabia? Oh, e a Patrulha da Noite tem um rapaz como comandante, um filho bastardo qualquer de Eddard Stark.
- Jon Snow? - disse antes de pensar, espantada.
- Snow? Sim, deve ser Snow, suponho.
Havia séculos que não pensava em Jon. Era apenas seu meio-irmão, mesmo assim... Com Robb, Bran e Rickon mortos, Jon Snow era o único irmão que lhe restava. Agora também sou bastarda, como ele. Oh, seria tão bom voltar a vê-lo. Mas estava claro que isso nunca poderia acontecer. Alayne Stone não tinha irmãos, ilegítimos ou não.
- Nosso primo Bronze Yohn organizou um corpo a corpo em Pedrarruna - prosseguiu Myranda Royce, sem se dar conta de nada - um pequeno, só para escudeiros. Destinava-se a que Harry, o Herdeiro, ganhasse o título, e foi o que ele fez.
- Harry, o Herdeiro?
- O protegido da Senhora Waynwood. Harrold Hardyng, Suponho que agora tenhamos de chamá-lo Sor Harry. Bronze Yohn o armou cavaleiro.
- Oh - Alayne sentiu-se confusa. Por que o protegido da Senhora Waynwood haveria de ser seu herdeiro? Ela tinha filhos de seu sangue. Um deles era o Cavaleiro do Portão Sangrento, Sor Donnel. Mas não quis parecer estúpida, de modo que tudo que disse foi:
- Rezo para que prove ser um cavaleiro de mérito.
Senhora Myranda soltou uma fungadela.
- Eu rezo para que apanhe bexigas. Tem uma filha bastarda de uma plebeia qualquer, sabia? O senhor meu pai tinha a esperança de me casar com Harry, mas a Senhora Waynwood nem quis ouvir falar do assunto. Não sei se foi a mim que achou inadequada, ou só o meu dote - suspirou. - Realmente preciso de um novo marido. Tive um, outrora, mas o matei.
- Matou? - Alayne exclamou, chocada.
- Oh, sim. Ele morreu em cima de mim. Dentro de mim, para falar a verdade. Sabe o que acontece numa cama de casal, espero?
Alayne pensou em Tyrion, e no Cão de Caça, e no modo como ele a beijara, e confirmou com a cabeça.
- Isso deve ter sido terrível, senhora. Ele morrer. A i, quero eu dizer, enquanto... enquanto estava...
- ... a foder-me? - Senhora Myranda encolheu os ombros. - É decerto desconcertante. Para não falar da descortesia. Ele nem sequer teve a decência de plantar uma criança em mim. Os velhos têm a semente fraca. De modo que aqui estou eu, viúva, mas quase por usar. Harry podia ter se saído muito pior. E atrevo-me mesmo a dizer que sairá. O mais provável é a Senhora Waynwood casá-lo com uma de suas netas, ou com uma das de Bronze Yohn.
- Com certeza, senhora - Alayne lembrou-se do aviso de Petyr.
- Randa. Vá lá, consegue dizê-lo. Ran-Da.
- Randa.
- Muito melhor. Temo que tenha de lhe pedir perdão. Achará que sou uma terrível cabra, bem sei, mas deitei-me com aquele belo rapaz, Marillion. Não sabia que ele era um monstro. Cantava lindamente, e sabia fazer as coisas mais deliciosas com os dedos. Nunca o teria levado para a cama se soubesse que empurraria Senhora Lysa pela Porta da Lua. Por regra, não me deito com monstros - estudou o rosto e o peito de Alayne. - É mais bonita do que eu, mas meus seios são maiores. Os meistres dizem que seios grandes não produzem mais leite do que os pequenos, mas não acredito. Alguma vez conheceu uma ama de leite com mamas pequenas? As suas são grandes para uma garota da sua idade, mas como são seios bastardos não me preocuparei com eles - Myranda aproximou sua mula da dela. - Sabe que a nossa Mya não é donzela, espero?
Sabia. A gorda Maddy segredara-lhe essa informação, num dia que Mya trouxera para cima as suas provisões.
- Maddy me disse.
- Claro que disse. Tem a boca tão grande como os quadris, e os quadris são enormes. Foi Mychel Redfort. Ele era escudeiro de Lyn Corbray. Um escudeiro de verdade, ao contrário daquele rapaz desajeitado que Sor Lyn tem agora. Dizem que só aceitou este por dinheiro. Mychel era o melhor jovem espadachim do Vale, e também galante... Pelo menos foi o que a pobre Mya pensou, até que o homem se casou com uma das filhas de Bronze Yohn. Tenho certeza de que Lorde Horton não lhe deu escolha nesse assunto, mesmo assim foi uma coisa cruel de se fazer com Mya.
- Sor Lothor gosta dela - Alayne olhou de relance a garota das mulas, vinte passos mais abaixo. - Mais do que isso.
- Lothor Brune? - Myranda ergueu uma sobrancelha. - E ela sabe? - não esperou resposta. - Ele não tem chance, pobre homem. Meu pai tentou arranjar par para Mya, mas ela não quis nenhum deles. É mesmo meio mula, aquela.
Involuntariamente, Alayne deu por si simpatizando-se com a garota mais velha. Não tivera uma amiga com quem mexericar desde a pobre Jeyne Poole.
- Acha que Sor Lothor gosta dela como é, vestida de couro e cota de malha? - perguntou à garota mais velha, que tanta experiência do mundo parecia ter. - Ou será que sonha com ela envolta em sedas e veludos?
- Ele é um homem. Sonha com ela nua.
Está tentando me fazer corar outra vez.
Senhora Myranda deve ter ouvido seus pensamentos.
- Você realmente fica de um belo tom de rosa. Quando coro, fico igualzinha a uma maçã. Mas há anos que não coro - inclinou-se para mais perto. - Seu pai planeja voltar a se casar?
- Meu pai? - Alayne nunca pensara naquilo. Sem saber por que, a ideia a deixou desconfortável. Surpreendeu-se lembrando da expressão no rosto de Lysa Arryn quando caíra pela Porta da Lua.
- Todos sabemos como ele era dedicado à Senhora Lysa - Myranda voltou a falar - mas não pode ficar eternamente de luto. Precisa de um a esposa bonita e jovem para lhe lavar o desgosto. Imagino que podia escolher entre metade das nobres donzelas do Vale. Quem poderia ser melhor marido do que nosso ousado Senhor Protetor? Embora ele pudesse ter um nome melhor que Mindinho. Sabe se o dedo é assim tão mínimo?
- O dedo? - Alayne voltou a corar. - Eu não... nunca...
Senhora Myranda riu tanto que Mya Stone lançou um relance para trás.
- Não se incomode com isso, Alayne, tenho certeza de que é suficientemente grande.
Passaram por baixo de um arco esculpido pelo vento, onde longos pingentes pendiam da pedra clara, gotejando sobre eles. Do outro lado, o caminho estreitava e mergulhava bruscamente por trinta metros ou mais. Myranda foi forçada a deixar-se ficar para trás. Alayne afrouxou as rédeas da mula. A inclinação daquela parte da descida a obrigou a se agarrar bem à sela. Ali, os degraus tinham sido desgastados e alisados pelos cascos ferrados de todas as mulas que os tinham pisado, até se assemelharem a uma série de bacias de pedra pouco profundas. Água enchia o fundo das bacias, cintilando dourada ao sol da tarde. Agora é água, pensou Alayne, mas ao chegar a noite se transformará toda em gelo. Percebeu que prendia a respiração, e a soltou. Mya Stone e Lorde Robert tinham quase atingido a agulha de rocha onde o declive voltava a diminuir. Tentou olhar para eles, e só para eles. Não cairei, disse a si mesma. A mula de Mya me levará até o outro lado. O vento guinchava à sua volta, enquanto o animal ia avançando passo a passo, aos solavancos e raspando com as patas. Pareceu demorar uma vida.
Então, de repente, viu-se no fim da descida com Mya e seu pequeno senhor, aninhados por baixo de uma retorcida agulha rochosa. Em frente estendia-se uma depressão elevada, estreita e gelada, Alayne ouvia o vento gritar, e o sentia puxar seu manto. Lembrava-se daquele lugar, da subida. Então a assustara, e a assustava agora.
- É mais largo do que parece - Mya dizia a Lorde Robert em voz alegre. - Um metro de largura, e não tem mais de seis de comprimento, não é nada.
- Não é nada - disse Robert. Sua mão tremia.
Oh, não, pensou Alayne. Por favor. Aqui não. Não agora.
- É melhor levar as mulas pela correia - disse Mya. - Se aprouver ao senhor, eu levo a minha primeiro, e depois volto para vir buscar a sua - Lorde Robert não respondeu. Fitava a estreita depressão com seus olhos avermelhados. - Não demorarei, senhor - prometeu Mya, mas Alayne duvidava que o garoto sequer a ouvira.
Quando a garota bastarda tirou a mula de debaixo do abrigo da agulha, o vento a capturou em seus dentes. Seu manto se ergueu, torcendo-se e batendo no ar. Mya cambaleou, e durante meio segundo pareceu que seria arrastada para o precipício, mas de algum modo conseguiu recuperar o equilíbrio e avançou,
Alayne tomou a mão enluvada de Robert na sua, para tentar parar seu tremor.
- Passarinho - disse - estou assustada. Pegue na minha mão e ajude-me a atravessar. Sei que você não tem medo.
Ele a olhou, com pupilas que eram pequenas e escuras cabeças de alfinete em olhos tão grandes e brancos como ovos.
- Não tenho?
- Você, não. É o meu cavaleiro alado. Sor Passarinho.
- O Cavaleiro Alado podia voar - ele sussurrou.
- Mais alto do que as montanhas - e deu-lhe um apertão na mão.
Senhora Myranda juntara-se a eles na agulha.
- Podia - ecoou, quando viu o que estava acontecendo.
- Sor Passarinho - Lorde Robert disse, e Alayne compreendeu que não se atreveria a esperar pelo regresso de Mya. Ajudou o garoto a desmontar e, de mãos dadas, saíram para a depressão de rocha nua, com os mantos batendo e torcendo-se em suas costas. Ao redor havia ar e céu vazio, o chão caía abruptamente de ambos os lados. Havia gelo sob seus pés e pedras quebradas só à espera para torcerem um tornozelo, e o vento uivava ferozmente. Soa como um lobo, Sansa pensou. Um lobo fantasma, tão grande quanto as montanhas.
E então se viram do outro lado, e Mya Stone estava rindo e erguendo Robert para um abraço.
- Cuidado - Alayne a alertou. - Ele pode machucá-la se começar a bracejar. Não parece, mas pode - arranjaram um lugar para ele, uma fenda na rocha, para mantê-lo abrigado do vento frio. Alayne cuidou dele até os tremores passarem, enquanto Mya regressava para ajudar os outros a atravessar.
Mulas descansadas esperavam por eles em Neve, assim como uma refeição quente, constituída de ensopado de cabra com cebolas. Comeu com Mya e Myranda.
- Então, além de bela é corajosa - disse-lhe Myranda.
- Não - o elogio a fez corar. - Não sou. Estava muito assustada. Não me parece que conseguiria atravessar sem Lorde Robert - virou-se para Mya Stone. - Quase caiu.
- Está enganada. Eu nunca caio - os cabelos de Mya caíram-lhe sobre o rosto, escondendo um olho.
- Eu disse quase. Eu a vi. Não teve medo?
Mya balançou a cabeça.
- Lembro-me de um homem atirando-me ao ar quando era muito pequena. Ele é alto como o céu, e me atira tão alto que me sinto voando. Estamos os dois rindo, rindo tanto que quase não consigo respirar, e por fim rio com tanta força que me molho toda, mas isso só o faz rir ainda mais. Nunca tinha medo quando ele me atirava. Sabia que estaria sempre lá para me apanhar - empurrou os cabelos para trás. - E então houve um dia em que não estava. Os homens vão e vêm. Mentem, morrem ou nos abandonam. Mas uma montanha não é um homem, e uma pedra é filha da montanha. Eu confio no meu pai e nas minhas mulas. Não cairei - pousou a mão num esporão irregular de rocha e se pôs em pé. - É melhor terminar. Ainda temos um longo caminho a percorrer, e sinto cheiro de tempestade.
A neve começou a cair no momento em que saíam de Pedra, o maior e o mais baixo dos três castelos intermediários que defendiam a abordagem ao Ninho da Águia. Àquela altura, caía o ocaso. Senhora Myranda sugeriu que talvez pudessem voltar, passar a noite em Pedra e retomar a descida quando o sol nascesse, mas Mya não quis ouvir falar da ideia.
- Até lá a neve pode ter metro e meio de profundidade, e os degraus estarão traiçoeiros até para minhas mulas - ela disse. - É melhor continuarmos. Iremos devagar.
E foi o que fizeram. Abaixo de Pedra, os degraus eram mais largos e menos íngremes, ziguezagueando para dentro e para fora dos grandes pinheiros e das árvores-sentinela cinza-esverdeadas que cobriam as encostas inferiores da Lança do Gigante. As mulas de Mya, aparentemente, conheciam cada raiz e pedra da descida, e alguma que esquecessem era lembrada pela garota bastarda. Metade da noite se passou até avistarem as luzes dos Portões da Lua através da neve que caía. A última parte da viagem foi a mais pacífica. A neve não parou de cair, cobrindo o mundo de branco. Passarinho adormeceu na sela, oscilando de um lado para o outro com os movimentos da mula. Até Senhora Myranda se pôs a bocejar e a se queixar de cansaço.
- Temos aposentos preparados para todos vocês - disse a Alayne - mas, se quiser, pode partilhar minha cama esta noite. É grande o suficiente para quatro.
- Sentir-me-ia honrada, senhora.
- Randa. Sinta-se sortuda por eu estar tão cansada. Só tenho vontade de me enrolar e dormir. Normalmente, quando as senhoras partilham minha cama, têm de pagar um imposto de almofada e me contar tudo sobre as malvadezas que fizeram.
- E se não fizeram malvadezas?
- Ora, nesse caso têm de confessar todas as malvadezas que querem fazer. Você não, claro. Consigo ver como é virtuosa só de olhar para essas suas bochechas rosadas e esses grandes olhos azuis - voltou a bocejar. - Espero que tenha os pés quentes. Detesto companheiras de cama com pés frios.
Quando finalmente chegaram ao castelo do pai, Senhora Myranda também já cochilava, e Alayne sonhava com a cama. Será um colchão de penas, disse a si mesma. Macio, quente e grosso, debaixo de um monte de peles. Sonharei um sonho agradável, e quando acordar haverá cães latindo, mulheres fofocando junto ao poço, espadas ressoando no pátio. E mais tarde haverá um banquete, com música e danças. Após o silêncio mortal do Ninho da Águia, ansiava por gritos e risos.
Mas, quando os viajantes desciam das mulas, um dos guardas de Petyr surgiu vindo da fortaleza.
- Senhora Alayne - disse - Senhor Protetor está à sua espera.
- Ele voltou? - ela perguntou, sobressaltada.
- Voltou ao cair da noite. A senhora o encontrará na torre oeste.
A hora era mais próxima da alvorada do que do ocaso, e a maior parte do castelo encontrava-se adormecida, mas Petyr Baelish não. Alayne foi encontrá-lo sentado junto a uma crepitante lareira, bebendo vinho quente com especiarias na companhia de três homens que ela não conhecia. Todos se levantaram quando ela entrou, e Petyr dirigiu-lhe um sorriso caloroso.
- Alayne. Venha, dê um beijo em seu pai.
Alayne o abraçou obedientemente e lhe deu um beijo na face.
- Lamento incomodar, pai. Ninguém me disse que tinha companhia.
- Você nunca incomoda, querida. Estava agora mesmo contando a esses bons cavaleiros como minha filha é atenciosa.
- Atenciosa e bela - disse um jovem e elegante cavaleiro, cuja espessa cabeleira loira caía em cascata até bem depois dos ombros.
- Sim - disse o segundo cavaleiro, um indivíduo entroncado com uma espessa barba salpicada de branco, nariz vermelho, proeminente e com veias rebentadas, e mãos nodosas, grandes como presuntos. - Não mencionou essa parte, senhor.
- Eu faria o mesmo se ela fosse minha filha - disse o último cavaleiro, um homem baixo e seco, com um sorriso sardônico, nariz pontiagudo e hirsutos cabelos cor de laranja. - Especialmente perto de homens grosseiros como nós.
Alayne riu.
- São grosseiros? - disse, brincando. - Ora, e eu que os tomei por galantes cavaleiros.
- Cavaleiros são - Petyr interveio. - Quanto à galanteria, ainda está por ser demonstrada, mas podemos ter esperança. Permita-me que lhe apresente Sor Byron, Sor Morgarth e Sor Shadrich. Sores, Senhora Alayne, minha filha ilegítima e muito esperta... com a qual tenho de conferenciar, se fizerem a bondade de nos deixar a sós.
Os três cavaleiros fizeram reverências e se retiraram, embora o alto de cabelos loiros lhe tenha beijado a mão antes de sair.
- Cavaleiros andantes? - Alayne perguntou, quando a porta foi fechada.
- Cavaleiros famintos. Achei melhor termos mais algumas espadas à nossa volta. Os tempos tornam-se cada vez mais interessantes, minha querida, e quando os tempos assim são, nunca se pode ter espadas demais. O Rei Bacalhau regressou a Vila Gaivota, e o velho Oswell tinha algumas histórias para contar.
Alayne sabia não ser boa ideia perguntar que tipo de histórias. Se Petyr quisesse que ela soubesse, lhe teria dito.
- Não o esperava de volta tão cedo - disse. - Agrada-me que tenha vindo.
- Nunca teria percebido tal coisa pelo beijo que me deu - puxou-a para si, prendeu-lhe o rosto entre as mãos, e a beijou nos lábios durante muito tempo. - Este é o tipo de beijo que diz bem-vindo a casa. Trate de melhorar da próxima vez.
- Sim, pai - conseguia sentir-se corar.
Ele não lhe guardou rancor pelo beijo.
- Não acreditaria em metade do que está acontecendo em Porto Real, querida. Cersei cambaleia de idiotice em idiotice, ajudada por seu conselho de surdos, mudos e cegos. Sempre julguei que ela deixaria o reino falido e se destruiria, mas nunca esperei que o fizesse assim tão depressa. É bastante irritante. Esperava ter quatro ou cinco anos calmos para plantar certas sementes e deixar alguns frutos amadurecer, mas agora... Ainda bem que prospero no caos. A pouca paz e ordem que os cinco reis nos deixaram não sobreviverá por muito tempo às três rainhas, temo bem.
- Três rainhas? - não estava compreendendo.
E Petyr também não achou por bem explicar. Em vez disso, sorriu e disse:
- Trouxe um presente à minha querida menina.
Alayne ficou tão contente quanto surpresa.
- É um vestido? - tinha ouvido dizer que havia boas costureiras em Vila Gaivota, e estava farta de usar vestidos sem graça.
- Coisa melhor. Tente outra vez.
- Joias?
- Não há joias que possam esperar igualar os olhos da minha filha.
- Limões? Encontrou limões? - prometera bolo de limão a Passarinho, e para fazer bolo de limão eram precisos limões.
Petyr Baelish pegou-lhe na mão e a sentou em seu colo.
- Fiz um contrato de casamento para você.
- Um contrato... - sua garganta apertou-se. Não queria voltar a se casar, não agora, talvez nunca mais. - Eu não... não posso me casar. Pai, eu... - Alayne olhou para a porta, a fim de se assegurar de que estava fechada. - Eu sou casada - sussurrou. - Você sabe.
Petyr pôs-lhe um dedo nos lábios para silenciá-la.
- O anão casou com a filha de Ned Stark, não com a minha. Mas não importa. É só um noivado. O casamento terá de esperar até que Cersei esteja acabada e Sansa seguramente viúva. E você precisa conhecer o rapaz e conquistar sua aprovação. Senhora Waynwood não o obrigará a se casar contra sua vontade, é bastante firme quanto a isso.
- Senhora Waynwood? - Alayne quase não conseguia acreditar no que ouvia. - Por que haveria ela de casar um dos filhos com... com uma...
- ... bastarda? Para começar, você é a bastarda do Senhor Protetor, não se esqueça. Os Waynwood são muito antigos e muito orgulhosos, mas não tão ricos como se poderia pensar, como descobri quando comecei a comprar-lhes a dívida. Não que Senhora Anya alguma vez vendesse um filho por ouro. Mas um protegido... O jovem Harry é só um primo, e o dote que ofereci à sua senhoria é ainda maior do que aquele que Lyonel Corbray acabou de receber. Tinha de ser, para ela se arriscar à fúria de Bronze Yohn. Isso porá abaixo todos os planos dele. Está prometida a Harrold Hardyng, querida, desde que consiga conquistar seu coração de rapaz... O que para você não deverá ser difícil.
- Harry, o Herdeiro? - Alayne tentou se recordar do que Myranda lhe dissera sobre ele na montanha. - Ele acabou de ser armado cavaleiro. E tem uma filha bastarda de uma plebeia qualquer.
- E outra a caminho, de outra garota. Harry pode ser um sedutor, não há dúvida. Macios cabelos cor de areia, profundos olhos azuis e covinhas quando sorri. É muito galante, segundo ouvi dizer - provocou-a com um sorriso. - Bastarda ou não, querida, quando essa união for anunciada, será invejada por todas as donzelas bem-nascidas do Vale, e também por algumas das terras fluviais e da Campina.
- Por quê? - Alayne não compreendia. - Sor Harrold é... Como é que pode ser herdeiro da Senhora Waynwood? Ela não tem filhos de seu próprio sangue?
- Três - Petyr admitiu. Alayne sentia cheiro de vinho no hálito dele, cravo e noz-moscada. - E também filhas e netos.
- Eles não têm precedência sobre Harry? Não compreendo.
- Compreenderá. Escute - Petyr pegou-lhe na mão e esfregou-lhe levemente a palma com os dedos. - Lorde Jasper Arryn, comecemos por ele. Pai de Jon Arryn. Ele gerou três crianças, dois filhos e uma filha. Jon era o mais velho, de modo que o Ninho da Águia e a senhoria passaram para ele. A irmã Alys casou-se com Sor Elys Waynwood, tio da atual Senhora Waynwood - fez uma careta. - Elys e Alys, não é uma delícia? O filho mais novo de Lorde Jasper, Sor Ronnel Arryn, casou-se com uma garota Belmore, mas só lhe tocou o sino uma ou duas vezes antes de morrer de um mal de barriga. Elbert, o filho deles, nasceu numa cama no momento em que o pobre Ronnel morria noutra, ao fundo do corredor. Está prestando atenção, querida?
- Sim. Havia Jon, Alys e Ronnel, mas Ronnel morreu.
- Ótimo. Bom, Jon Arryn se casou três vezes, mas as duas primeiras esposas não lhe deram filhos, de modo que durante longos anos o sobrinho Elbert foi seu herdeiro. Entretanto, Elys arava Alys com bastante diligência, e ela paria uma vez por ano. Deu-lhe nove filhos, oito garotas e um precioso rapazinho, outro Jasper, após o que morreu, exausta. O jovem Jasper, sem mostrar consideração pelos heroicos esforços que tinham sido desenvolvidos para gerá-lo, arranjou maneira de ser escoiceado na cabeça por um cavalo aos três anos. Um surto de bexigas levou-lhe duas das irmãs pouco depois, deixando seis. A mais velha se casou com Sor Denys Arryn, um primo afastado dos Senhores do Ninho da Águia. Há vários ramos da Casa Arryn espalhados pelo Vale, todos tão orgulhosos quanto penuriosos, à exceção dos Arryn de Vila Gaivotas, que tiveram o raro bom-senso de se casar com mercadores. São ricos, mas não chegam a ser refinados, por isso ninguém fala deles. Sor Denys provinha de um dos ramos pobres e orgulhosos... Mas também era combatente de renome em justas, atraente e galante, e transbordante de cortesia. E possuía aquele mágico nome Arryn, o que o tornava ideal para a mais velha das garotas Waynwood. Seus filhos seriam Arryn, e os herdeiros seguintes do Vale, caso algo de mal acontecesse a Elbert. Bem, e calhou de acontecer a Elbert o Rei Louco Aerys. Conhece essa história?
Conhecia.
- O Rei Louco o assassinou.
- De fato. E, pouco depois, Sor Denys deixou sua esposa Waynwood grávida para partir para a guerra. Morreu durante a Batalha dos Sinos, de um excesso de galanteria e de um machado. Quando contaram sua morte à sua senhora, ela pereceu de desgosto, e o filho recém-nascido rapidamente a seguiu. Não importava. Jon Arryn arranjara uma jovem esposa durante a guerra, uma que tinha motivos para julgar fértil. Estava muito esperançoso, tenho certeza, mas ambos sabemos que tudo que obteve de Lysa foi natimortos, abortos, e o pobre Passarinho.
“O que nos traz de volta às restantes filhas de Elys e Alys. A mais velha foi deixada com terríveis cicatrizes pelas mesmas bexigas que mataram suas irmãs, de modo que se tornou septã. Outra foi seduzida por um mercenário. Sor Elys a expulsou, e ela se juntou às irmãs silenciosas depois de o bastardo morrer ainda bebê. A terceira se casou com o Senhor das Bossas, mas demonstrou ser estéril. A quarta estava a caminho das terras fluviais para se casar com um Bracken qualquer quando Homens Queimados a levaram. Sobrou a mais nova, que se casou com um cavaleiro com terras, juramentado aos Waynwood, e lhe deu um filho, a quem chamou Harrold, que faleceu - virou-lhe a mão e deu-lhe um leve beijo no pulso. - Portanto, diga-me, querida: por que é Harry, o Herdeiro?
Os olhos dela esbugalharam-se.
- Ele não é herdeiro da Senhora Waynwood. É herdeiro de Robert. Se Robert morrer...
Petyr arqueou uma sobrancelha.
- Quando Robert morrer. Nosso pobre e bravo Passarinho é um garoto tão doente que é apenas questão de tempo. Quando Robert morrer, Harry, o Herdeiro, se tornará Lorde Harrold, Defensor do Vale e Senhor do Ninho da Águia. Os vassalos de Jon Arryn nunca gostarão de mim, nem de nosso tolo e trêmulo Robert, mas gostarão de seu Jovem Falcão... E quando se reunirem para o seu casamento, e você sair com seus longos cabelos ruivos, vestida com um manto de donzela branco e cinza, com um lobo gigante desenhado na parte de trás... Ora, todos os cavaleiros do Vale oferecerão suas espadas para reconquistar o que é seu por direito de sangue. De modo que são estes os presentes que lhe dou, minha querida Sansa... Harry, o Ninho da Águia e Winterfell. Isto merece outro beijo, não acha?  

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