O terreno
estava coberto de agulhas de pinheiro e folhas sopradas pelo vento,
um tapete de verde e marrom ainda úmido das chuvas recentes.
Esguichava água por baixo dos pés do grupo.
Enormes
carvalhos de ramos nus, altas sentinelas e tropas de pinheiros
marciais erguiam-se por toda a volta. Numa colina acima deles,
erguia-se outra torre redonda, antiga e vazia, com um espesso musgo
verde escalando o seu lado quase até o cume.
- Quem
construiu aquilo, assim, tudo em pedra? - perguntou-lhe Ygritte. -
Algum rei?
- Não.
Foram só os homens que viviam aqui.
- O que
aconteceu com eles?
-
Morreram ou foram embora. - A Dádiva de Brandon tinha sido cultivada
durante milhares de anos, mas, conforme a Patrulha ia minguando, o
número de mãos para arar os campos, cuidar das abelhas e plantar os
pomares diminui, e assim a natureza reclamou o controle de muitos
campos de cultivo e salões. Na Nova Dádiva houve aldeias e castros,
cujos impostos, entregues em bens e trabalho, ajudavam a alimentar e
vestir os irmãos negros. Mas essas também tinham desaparecido em
grande parte.
- Foram
tolos por deixar um castelo como este - disse Ygritte.
- E só
uma casa-torre. Um pequeno fidalgo qualquer viveu aí um dia, com a
família e alguns homens juramentados a ele. Quando chegavam
assaltantes, acendia um farol no telhado. Winterfell tem torres três
vezes maiores do que estas.
Ela
olhou-o como se julgasse que Jon estava inventando aquilo.
- Como é
possível que os homens construam tão alto, sem gigantes para
levantar as pedras?
Segundo
as lendas, Brandon, o Construtor, tinha usado gigantes para ajudar a
erguer Winterfell, mas Jon não quis confundir as coisas.
- Os
homens conseguem construir a alturas muito maiores do que esta. Em
Vilavelha há uma torre mais alta do que a Muralha. - Percebeu que
ela não acreditou no que ele dizia.. Se pudesse lhe mostrar
Winterfell... dar uma flor apanhada nos jardins de vidro,
banqueteá-la no Grande Salão e mostrar os reis de pedra em seus
tronos. Poderíamos tomar banho nas lagoas quentes e fazer amor à
sombra da árvore-coração enquanto os deuses antigos nos vigiavam.
O sonho
era agradável.,, mas Winterfell nunca seria seu para mostrar.
Pertencia ao seu irmão, o Rei no Norte. Ele era um Snow, não um
Stark. Bastardo, perjuro e vira-casaca...
- Talvez,
depois a gente possa voltar para cá e viver naquela torre - disse
ela. - Você gostaria, Jon Snow? Depois?
Depois. A
palavra era uma estocada de lança. Depois da guerra. Depois da
conquista. Depois de os selvagens abrirem uma brecha na Muralha...
Um dia, o
senhor seu pai havia falado em fazer novos senhores e instalá-los
nos castros abandonados como escudo contra os selvagens. O plano
exigiria que a Patrulha cedesse uma grande parte da Dádiva, mas o
tio Benjen acreditava que o Senhor Comandante podia ser persuadido a
fazer isso, desde que os novos fidalgos pagassem impostos a Castelo
Negro, e não a Winterfell.
- Mas é
um sonho para a primavera - tinha dito Lorde Eddard. - Com o inverno
chegando, nem mesmo a promessa de terras atrairia homens ao norte.
Se o
inverno tivesse chegado e partido mais depressa e a primavera tivesse
seguido seu curso, eu poderia ter sido escolhido para ocupar uma
destas torres em nome de meu pai Mas Lorde Eddard estava morto e seu
irmão Benjen, desaparecido; o escudo que tinham sonhado juntos nunca
seria forjado.
- Esta
terra pertence à Patrulha - disse Jon.
As
narinas dela dilataram-se.
- Ninguém
vive aqui.
- Os seus
corsários afugentaram-nos.
- Então
eram covardes. Se queriam a terra, deviam ter ficado e lutado.
- Talvez
estivessem cansados de lutar. Cansados de barrar as portas todas as
noites, imaginando se Camisa de Chocalho ou alguém como ele as
arrombaria para raptar suas mulheres. Fartos de verem as colheitas
roubadas, juntamente com qualquer coisa de valor que possuíssem. E
mais fácil ir viver fora do alcance de assaltantes. - Mas, se a
Muralha cair, todo o Norte ficará ao alcance deles.
- Você
não sabe nada, Jon Snow. São as filhas que são levadas, não as
mulheres. São vocês que roubam. Roubaram o mundo inteiro e
construíram a Muralha pra manter o povo livre fora dele.
- Ah, é?
- às vezes, Jon se esquecia de quão selvagem ela era, e então
Ygritte o lembrava disso. - Como foi que isso aconteceu?
- Os
deuses fizeram a terra pra todos os homens partilharem. Mas aí os
reis chegaram com suas coroas e espadas de aço e disseram que a
terra era toda deles. "As árvores são minhas", disseram,
"não podem comer as maçãs", "O riacho é meu, não
podem pescar aqui. A floresta é minha, não podem caçar. A minha
terra, a minha água, o meu castelo, a minha filha, mantenham as mãos
longe, senão eu as corto, mas se vocês se ajoelharem, deixo vocês
cheirarem." Chamam-nos de ladrões, mas ao menos um ladrão tem
que ser corajoso, esperto e rápido. O tipo que ajoelha só tem que
ajoelhar.
- Harma e
Saco de Ossos não fazem incursões em busca de peixe e maçãs.
Roubam espadas e machados. Especiarias, sedas e peles. Arrecadam
todas as moedas, anéis e taças incrustadas de joias que conseguem
encontrar, barris de vinho no verão e barris de carne no inverno, e
roubam mulheres em todas as estações e levam-nas para lá da
Muralha.
- E daí
se fazem isso? Cá pra mim, é melhor ser raptada por um homem forte
do que ser dada a algum fracote pelo meu pai.
- É o
que você diz, mas como é que sabe? E se fosse raptada por alguém
que detestasse?
- Ele
teria de ser rápido, astuto e bravo pra me raptar. Assim, nossos
filhos também seriam fortes e espertos. Por que é que eu ia
detestar um homem assim?
- Pode
ser que ele nunca se lave, e cheire tão mal como um urso.
- Nesse
caso, eu o empurraria pra dentro de um riacho ou atiraria um balde
d'água nele. Seja como for, os homens não devem cheirar bem como
flores.
- O que
as flores têm de errado?
- Nada,
pra uma abelha. Pra cama, eu quero um destes. - Ygritte tentou
agarrar a parte da frente dos calções de Jon.
Este
agarrou o pulso dela.
- E se o
homem que a raptasse bebesse demais? - insistiu. - E se fosse brutal
ou cruel? - Apertou com mais força, para dar peso ao argumento. - E
se fosse mais forte do que você e gostasse de espancá-la até
deixá-la em carne viva?
- Cortava
a goela dele quando estivesse dormindo. Você não sabe nada, Jon
Snow. - Ygritte retorceu-se como uma enguia e libertou-se dele.
Sei uma
coisa. Sei que você é selvagem até os ossos. As vezes era fácil
se esquecer disso, quando estavam rindo juntos, ou beijando-se. Mas
então um deles diria alguma coisa ou faria algo, e ele subitamente
se lembraria da muralha que se erguia entre seus mundos.
- Um
homem pode ser dono de uma mulher ou pode ser dono de uma faca -
disse-lhe Ygritte - mas nenhum homem pode ser dono das duas coisas.
Todas as meninas aprendem isso com as mães. - Ergueu o queixo em
desafio e sacudiu os espessos cabelos ruivos. - E os homens não
podem ser donos da terra, como não podem ser donos do mar ou do céu.
Vocês, os ajoelhadores, pensam que são, mas o Mance vai mostrar
outra coisa a vocês.
Era uma
vangloria bela e corajosa, mas soava vazia. Jon deu um olhar de
relance para trás, a fim de se certificar de que o Magnar não
pudesse ouvi-lo. Errok, o Grande Furúnculo, e o Dan de Cânhamo
caminhavam alguns metros atrás deles, mas não estavam prestando
atenção na discussão. O Grande Furúnculo se queixava do traseiro.
- Ygritte
- disse em voz baixa - Mance não pode ganhar esta guerra.
- Claro
que pode! - insistiu ela. - Você não sabe nada, Jon Snow. Nunca viu
o povo livre lutar!
Os
selvagens lutavam como heróis ou demônios, dependendo de quem
contava a história, mas no fim das contas acabava dando no mesmo.
Eles lutam com uma coragem intrépida, com todos os homens em busca
de glória.
- Não
duvido de que sejam todos muito corajosos, mas quando chega a hora da
batalha, a disciplina sempre vence o valor. No fim, Mance falhará,
como todos os Reis-para-lá-da-Muralha antes dele. E quando isso
acontecer, morrerão. Todos vocês.
Ygritte
pareceu tão zangada que Jon pensou que ela fosse bater nele.
- Todos
nós - disse. - Você também. Agora já não é um corvo, Jon Snow.
Eu jurei que não era, portanto é melhor não ser. - Empurrou-o
contra o tronco de uma árvore e beijou-o em cheio nos lábios, bem
ali, no meio da coluna desordenada. Jon ouviu Grigg, o Bode,
dizer-lhe para continuar andando. Outra pessoa soltou uma gargalhada.
Ele devolveu o beijo, apesar de tudo. Quando enfim se separaram,
Ygritte estava corada. - É meu - sussurrou. - Meu, como eu sou sua.
E se morrermos, morremos. Todos os homens têm de morrer, Jon Snow.
Mas, primeiro, vivemos.
- Sim - A
voz de Jon estava pesada - Primeiro vivemos.
Ela
sorriu ao ouvir aquilo, mostrando-lhe os dentes tortos que ele, sem
saber como, acabara amando. Selvagem até o osso, pensou de novo, com
uma sensação doentia e triste na boca do estômago. Dobrou os dedos
da mão da espada e perguntou a si mesmo o que Ygritte faria se
soubesse o que se passava em seu coração. Ela o trairia caso se
sentasse com ela e lhe dissesse que ainda era filho de Ned Stark e um
homem da Patrulha da Noite? Esperava que não, mas não se atrevia a
correr esse risco. Vidas demais dependiam de sua capacidade para
chegar a Castelo Negro antes do Magnar... partindo do princípio de
que encontraria uma oportunidade de fugir dos selvagens.
Tinham
descido a face sul da Muralha em Guardagris, um castelo abandonado
havia duzentos anos. Uma seção dos enormes degraus de pedra tinha
ruído havia um século, mesmo assim a descida foi bastante mais
fácil do que a subida. Dali, Styr levou-os para o interior profundo
da Dádiva, para evitar as habituais patrulhas dos homens de negro,
Grigg, o Bode, guiou-os ao redor do punhado de aldeias habitadas que
restavam naquelas terras. Além de umas poucas torres redondas que se
projetavam para o céu como dedos de pedra, não viram sinal de
homens.
Marcharam
por colinas úmidas e planícies ventosas, sem serem vigiados, sem
serem vistos. Não pode se recusar, não importa o que lhe seja
solicitado, tinha dito o Meia-Mão. Cavalgue com eles, coma com eles,
lute com eles, durante o tempo que for preciso. E ele cavalgara, ao
longo de muitas léguas, e caminhara mais ainda, partilhara o pão e
o sal deles e também as mantas de Ygritte, mas ainda assim não
confiavam nele. Os Thenn observavam-no noite e dia, alertas a
qualquer sinal de traição. Não conseguia se afastar, e logo seria
tarde demais.
Lute com
eles, disse Qhorin, antes de entregar a vida à Garralonga... mas
ainda não havia chegado a esse ponto. Assim que derramar o sangue de
um irmão, estou perdido. Então atravesso a Muralha para sempre, e
não há caminho de volta.
Após a
marcha de cada dia, o Magnar chamava-o para fazer perguntas astutas e
perspicazes sobre Castelo Negro, sua guarnição e suas defesas. Jon
mentia naquilo que se atrevia e às vezes fingia ignorância, mas
Grigg, o Bode, e Errok também estavam ouvindo e eles sabiam o
suficiente para deixar Jon cauteloso. Uma mentira evidente demais
poderia traí-lo. Mas a verdade era terrível. Castelo Negro não
tinha defesas além da própria Muralha. Nem sequer possuía
paliçadas de madeira ou diques de terra. O "castelo" nada
mais era do que um aglomerado de torres e fortalezas, dois terços
das quais estavam quase em ruínas. Quanto à guarnição, o Velho
Urso levara duzentos homens em sua incursão. Teria algum regressado?
Jon não tinha como saber. Talvez restassem quatrocentos no castelo,
mas a maior parte desses homens era de construtores ou intendentes,
não patrulheiros.
Os Thenns
eram guerreiros tarimbados, e mais disciplinados do que um selvagem
comum; fora sem dúvida por isso que Mance os escolhera. Os
defensores de Castelo Negro incluiriam o cego Meistre Aemon e seu
intendente meio cego Clydas, o Donal Noye, que não tinha um braço,
o bêbado do Septão Cellador, Dick Surdo Follard, o cozinheiro Hobb
Três-Dedos, o velho Sor Wynton Stout, bem como Halder, Sapo, Pyp,
Albett e o resto dos rapazes que tinham treinado com Jon, E no
comando deles estaria Bowen Marsh, com seu rosto vermelho, o
rechonchudo Senhor Intendente que fora nomeado castelão na ausência
de Lorde Mormont. Às vezes, Edd Doloroso chamava Marsh de “Velha
Romã” o que se adequava a ele tão bem quanto "Velho Urso"
se ajustava a Mormont.
- Ele é
o homem que você quer na liderança quando os inimigos estão em
campo - dizia Edd com sua habitual voz severa. - Ele vai contá-los
direitinho por você. É um autêntico demônio para as contas, esse.
Se o
Magnar pegar Castelo Negro tão desprevenido, será um massacre
sangrento, com rapazes assassinados em suas camas antes mesmo de
saberem que estão sob ataque, Jon tinha de preveni-los, mas como?
Nunca era mandado para forragear ou caçar, nem lhe era permitido
ficar sozinho de vigia. E também temia por Ygritte. Não podia
levá-la, mas, se a deixasse, será que o Magnar iria fazê-la
responder por sua traição? Dois corações que batem como um só...
Todas as
noites dividiam as mesmas peles de dormir, e ele adormecia com a
cabeça dela sobre o seu peito e os cabelos ruivos fazendo cócegas
em seu queixo. O cheiro dela tinha se tornado uma parte de Jon. Seus
dentes tortos, a textura de seu seio quando ele o segurava, o sabor
de sua boca... eram o seu júbilo e o seu desespero. Muitas noites
ficava acordado, com Ygritte quente ao seu lado, perguntando a si
mesmo se o senhor seu pai teria se sentido assim tão confuso com a
sua mãe, quem quer que ela tivesse sido. Ygritte montou a armadilha,
e Mance Rayder empurrou-me para dentro dela.
Cada dia
passado entre os selvagens tornava mais difícil aquilo que tinha de
fazer. Teria de arranjar alguma maneira de trair aqueles homens e,
quando o fizesse, eles morreriam. Não desejara a sua amizade, tal
como não desejara o amor de Ygritte. E no entanto ... Os Thenns
expressavam-se no Idioma Antigo e raramente falavam com ele, mas era
diferente com os homens de Jarl, com os homens que tinham escalado a
Muralha. Jon começava a conhecê-los, apesar de não querer: o magro
e calmo Errok, o sociável Grigg, o Bode, os rapazes Quort e Bodger,
o Dan de Cânhamo, o cordoeiro. O pior de todos era Del, um jovem com
cara de cavalo e quase da mesma idade de Jon, que costumava falar em
tom sonhador da garota selvagem que pretendia raptar.
- Ela é
sortuda, como a sua Ygritte. E beijada pelo fogo.
Jon tinha
de morder a língua. Não queria saber nada a respeito da garota de
Del ou da mãe de Bodger, do lugar junto ao mar de onde Henk, o Elmo,
tinha vindo, de como Grigg ansiava por visitar os homens verdes na
Ilha das Caras, ou daquela ocasião em que um alce obrigou Dedo-do-Pé
a subir em uma árvore. Não queria ouvir falar do furúnculo no
traseiro do Grande Furúnculo, nem da quantidade de cerveja que
Polegares de Pedra conseguia beber ou da forma como o irmão mais
novo de Quort havia lhe implorado que não partisse com Jarl. Quort
não podia ter mais de catorze anos, embora já tivesse raptado uma
mulher e tivesse um filho a caminho.
- Pode
ser que ele nasça num castelo qualquer - vangloriava-se o rapaz. -
Nascido num castelo, como um senhor! - Estava muito arrebatado pelos
"castelos" que tinham visto, designando por essa palavra as
torres de vigia.
Jon
interrogava-se sobre onde estaria agora o Fantasma. Teria ido para
Castelo Negro, ou andaria vagueando pelos bosques com alguma
alcateia? Não tinha qualquer percepção do lobo gigante, nem mesmo
em sonhos. Isso fazia-o sentir como se parte de si mesmo tivesse sido
cortada. Até com Ygritte dormindo ao seu lado sentia-se só. Não
queria morrer sozinho.
Nessa
tarde, as árvores começaram a se tornar mais esparsas, e o grupo
marchou para leste, sobre planícies suavemente onduladas. Em volta
deles, a grama erguia-se à altura da cintura, e plantações de
milho selvagem oscilavam lentamente quando o vento soprava, mas a
maior parte do dia foi quente e ensolarado. No entanto, à medida que
o pôr do sol se aproximava, nuvens começaram a se acumular,
ameaçadoras, a ocidente. Em pouco tempo, engoliram o sol laranja, e
Lenn previu que uma tempestade violenta se aproximava. A mãe dele
era uma bruxa dos bosques, por isso todos concordavam que o homem
possuía um dom para prever o tempo.
- Há uma
aldeia aqui perto - disse Grigg o Bode, ao Magnar. - A quatro ou
cinco quilômetros. Poderíamos arranjar abrigo lá. - Styr concordou
de imediato.
Foi já
bem depois de escurecer e de a tempestade eclodir que chegaram ao
lugar. A aldeia encontrava-se junto a um lago e estava abandonada
havia tanto tempo que a maior parte das casas tinha ruído. Até a
pequena estalagem de madeira que um dia devia ter sido uma visão
bem-vinda para os viajantes estava meio derrubada e sem teto. Aqui,
pouco abrigo encontraremos, pensou Jon sombriamente. Sempre que o
relâmpago caía, via uma torre circular de pedra que se erguia de
uma ilha no meio do lago, mas, sem barcos, não tinham como chegar
lá.
Errok e
Del avançaram cautelosamente para explorar as ruínas, mas Del
retornou quase de imediato. Styr fez a coluna parar e mandou uma
dúzia de seus Thenns em frente, a trote, de lanças nas mãos. Então
Jon também já tinha visto: o clarão de uma fogueira, avermelhando
a chaminé da estalagem. Não estamos sozinhos. O temor enrolou-se em
seu interior como uma serpente. Ouviu um cavalo relinchar, e depois
gritos. Cavalgue com eles, coma com eles, lute com eles, tinha dito
Qhorin.
Mas a
luta tinha terminado.
- Era só
um homem - disse Errok quando voltou. - Um velho com um cavalo.
O Magnar
gritou ordens no Idioma Antigo e uma vintena de seus Thenns
espalhou-se para estabelecer um perímetro em volta da aldeia,
enquanto outros rondaram por entre as casas, a fim de se certificarem
de que ninguém mais estava escondido entre o mato e as pedras
caídas. Os outros aglomeraram-se na estalagem sem teto,
empurrando-se uns aos outros para se aproximarem da lareira. Os
galhos partidos que o velho estivera queimando pareciam gerar mais
fumaça do que calor, mas qualquer calor era bem-vindo numa noite
selvagem e chuvosa como aquela. Dois dos Thenns tinham jogado o homem
ao chão e estavam revistando suas coisas. Outro segurava seu cavalo,
enquanto outros três saqueavam seus alforjes.
Jon
afastou-se. Uma maçã apodrecida estourou sob seu calcanhar. Styr
vai matá-lo. O Magnar havia dito isso em Guardagris; quaisquer
ajoelhadores que encontrassem seriam mortos de imediato, para terem
certeza de que não dariam o alarme. Cavalgue com eles, coma com
eles, lute com eles. Será que isso queria dizer que devia ficar mudo
e impotente enquanto abriam a garganta de um velho?
Perto do
limite da aldeia, Jon viu-se cara a cara com um dos guardas que Styr
colocara. O Thenn rosnou qualquer coisa no Idioma Antigo e apontou
com a lança para a estalagem. Volte para o lugar a que pertence,
adivinhou Jon. Mas que lugar é esse?
Caminhou
na direção da água e descobriu um local quase seco sob a parede
inclinada de taipa de uma choupana em ruínas que tinha desabado
quase por completo. Foi ali que Ygritte o encontrou, sentado, fitando
o lago açoitado pela chuva.
- Eu
conheço este lugar - disse-lhe quando ela se sentou ao seu lado. -
Aquela torre... olhe para o topo da próxima vez que o relâmpago
cair e diga-me o que vê.
- Tá
bem, se quiser - disse ela, e depois: - Alguns dos Thenns tão
dizendo que ouviram barulho ali. Gritos, dizem eles.
-
Trovões.
- Eles
dizem que são gritos. Podem ser fantasmas.
A
fortaleza realmente tinha um aspecto sombrio e assustador, ali
erguida, negra, no topo de sua ilha rochosa, com a tempestade
vergastando o lago em volta.
-
Podíamos dar uma olhada - sugeriu ele. - Duvido que possamos ficar
muito mais molhados do que já estamos.
- Nadar?
No meio da tempestade? - ela riu da idéia. - Isso é algum truque
pra tirar minha roupa, Jon Snow?
- Ainda
preciso de um truque para isso? - brincou ele. - Ou será que não
sabe nadar? - Jon era um bom nadador, tendo aprendido a arte quando
garoto, no grande fosso de Winterfell.
Ygritte
esmurrou o braço dele.
- Você
não sabe nada, Jon Snow. Eu sou meio peixe, vou lhe mostrar.
- Meio
peixe, meio cabra, meio cavalo... há muitas metades em você,
Ygritte. - Balançou a cabeça. - Se este lugar é o que eu penso,
não teríamos de nadar. Poderíamos ir a pé.
Ela
recostou-se e olhou-o.
-
Caminhar na água? Que feitiçaria sulista é essa?
- Não é
feit... - começou ele no momento em que um enorme relâmpago se
precipitou do céu e tocou a superfície do lago. Durante meio
segundo o mundo foi brilhante como ao meio-dia. O trovão soou tão
alto que Ygritte se assustou e cobriu as orelhas.
- Viu? -
perguntou Jon enquanto o som rolava para longe e a noite ficava negra
novamente. - Percebeu?
- Amarelo
- disse ela. - E isso o que quer dizer? Algumas daquelas pedras em pé
lá em cima são amarelas.
-
Chamamos de merlões. Foram pintadas de dourado há muito tempo. Isto
é Coroa-da-rainha.
Do outro
lado do lago, a torre estava negra novamente, uma silhueta tênue,
tenuemente entrevista.
- Uma
rainha vivia aqui? - perguntou Ygritte.
- Uma
rainha passou uma noite aqui. - Foi a Velha Ama que tinha lhe contado
a história, mas Meistre Luwin confirmou a maior parte dela. -
Alysanne, a esposa do Rei Jaehaerys, o Conciliador. Ele é chamado de
Velho Rei por ter reinado durante muito tempo, mas era jovem quando
subiu ao Trono de Ferro. Naquela época, era seu costume viajar por
todo o reino. Quando veio a Winterfell, trouxe a sua rainha, seis
dragões e metade da corte. O rei tinha assuntos a discutir com o seu
Protetor do Norte, e Alysanne ficou entediada, por isso montou em seu
dragão Asaprata e voou para o norte, a fim de ver a Muralha. Esta
aldeia foi um dos lugares onde parou. Mais tarde, o povo pintou o
topo de sua fortaleza para se parecer com a coroa de ouro que ela
usava quando tinha passado a noite entre eles.
- Nunca
vi um dragão.
- Ninguém
viu. Os últimos dragões morreram há cem anos ou mais. Mas isso foi
há mais tempo.
- A
Rainha Alysanne, você diz?
- A Boa
Rainha Alysanne, como a chamaram mais tarde. Um dos castelos da
Muralha também foi batizado em sua honra. Portão da Rainha. Antes
de sua visita, chamavam-no de Portão da Neve.
- Se era
assim tão boa, devia ter derrubado aquela Muralha.
Não,
pensou ele. A Muralha protege o reino. Dos Outros... e também de
você e dos seus, querida.
- Tive
outro amigo que também sonhava com dragões. Um anão. Ele disse...
- JON
SNOW! - um dos Thenns encontrava-se em pé junto deles, de testa
franzida. - Magnar quer. - Jon achou que podia ser o mesmo homem que
o encontrara na porta da gruta na noite anterior à escalada da
Muralha, mas não tinha certeza. Ficou em pé. Ygritte veio com ele,
o que sempre fazia Styr franzir a testa, mas toda vez que tentava
mandá-la embora, ela lembrava-lhe que era uma mulher livre, não uma
ajoelhadora. Ia e vinha conforme lhe apetecia.
Foram
encontrar o Magnar em pé, embaixo da árvore que crescia no chão da
sala comum da estalagem. Seu prisioneiro estava ajoelhado diante da
lareira, cercado por lanças de madeira e espadas de bronze. Observou
a aproximação de Jon, mas nada disse. A chuva corria pelas paredes
e tamborilava nas poucas folhas que ainda se prendiam à árvore,
enquanto a fumaça subia rodopiando, densa, da fogueira.
- Ele tem
de morrer - disse Styr, o Magnar, - Trate disso, corvo.
O velho
não proferiu uma palavra. Limitou-se a olhar para Jon, que estava
entre os selvagens. Por entre a chuva e a fumaça, iluminado apenas
pelo fogo, não podia ter visto que Jon estava todo vestido de negro
exceto pelo manto de pele de ovelha. Ou podia?
Jon tirou
Garralonga da bainha. A chuva lavou o aço e a luz da fogueira traçou
uma lúgubre linha alaranjada ao longo do gume. Uma fogueira tão
pequena para custar a vida de um homem. Recordou o que Qhorin
Meia-Mão havia dito quando avistaram a fogueira no Passo dos
Guinchos. O fogo é vida aqui em cima, disse-lhes, mas também pode
ser morte. Mas aquilo fora nas alturas das Presas de Gelo, nas
regiões bravias e sem lei para lá da Muralha. Isso era a Dádiva,
protegida pela Patrulha da Noite e pelo poderio de Winterfell. Um
homem devia ser livre para acender ali uma fogueira sem morrer por
isso.
- Por que
hesita? - disse Styr - Mate-o e acabou.
Mesmo
então, o cativo não falou. Podia ter dito "Misericórdia",
ou "Roubou-me o cavalo, o dinheiro, a comida, deixe-me ficar com
a vida", ou "Não, por favor, não lhe fiz nenhum mal".
Podia ter dito mil coisas, ou chorado, ou apelado aos seus deuses.
Mas nenhuma palavra poderia salvá-lo agora. Ele talvez soubesse
disso. Portanto, manteve a língua sob controle e olhou para Jon, com
acusação e súplica no olhar.
Não pode
se recusar, não importa o que lhe seja solicitado. Cavalgue com
eles, coma com eles, lute com eles... Mas esse velho não tinha
oferecido resistência. Teve azar, nada mais. Quem era, de onde
viera, onde queria chegar em seu pobre cavalo de dorso muito curvo...
nada disso importava.
Ele é um
velho, disse Jon a si mesmo. Tem cinquenta anos, talvez sessenta.
Viveu uma vida mais longa do que a maioria dos homens. Os Thenns
acabarão matando-o de qualquer forma, nada do que eu diga ou faça
poderá salvá-lo. Garralonga parecia mais pesada do que chumbo em
sua mão, pesada demais para erguer. O homem não parava de
encará-lo, com olhos grandes e negros como poços. Vou cair naqueles
olhos e me afogar. O Magnar também estava a olhá-lo, e Jon quase
conseguia sentir o gosto de sua desconfiança. O homem está morto.
Que importa que seja a minha mão a matá-lo? Um golpe resolveria o
assunto, rápida e limpamente, Garralonga tinha sido forjada com aço
valiriano. Tal como Gelo.
Jon
recordou outra morte; o desertor de joelhos, com a cabeça rolando, o
tom vivo do sangue na neve... a espada do pai, as palavras do pai, o
rosto do pai...
- Vá,
Jon Snow - insistiu Ygritte. - Precisa matá-lo. Pra provar que não
é um corvo, e sim um membro do povo livre.
- Um
velho sentado junto a uma fogueira?
- O Orei
também tava sentado junto a uma fogueira. E você o matou bem
depressa. - O olhar que ela lhe lançou então foi duro. - E também
queria me matar até ver que eu era uma mulher. E eu tava dormindo.
- Isso
foi diferente. Vocês eram soldados... sentinelas.
- Sim, e
os corvos não queriam ser vistos. É como a gente agora. E a mesma
coisa. Mate-o.
Jon deu
as costas ao homem.
-Não.
O Magnar
aproximou-se, alto, frio, perigoso.
- Eu
disse que sim. Sou eu quem comanda aqui.
- Você
comanda os Thenns - disse-lhe Jon - não o povo livre.
- Não
vejo povo livre nenhum. Vejo um corvo e uma mulher de corvo.
- Eu não
sou mulher de corvo coisa nenhuma! - Ygritte arrancou a faca de
dentro da bainha. Três passos rápidos e puxou pelos cabelos a
cabeça do velho para trás e abriu sua garganta de orelha a orelha.
Nem mesmo na morte o homem gritou. - Você não sabe nada, Jon Snow -
gritou-lhe e atirou a faca ensanguentada aos pés dele.
O Magnar
disse qualquer coisa no Idioma Antigo. Podia estar mandando os Thenns
matarem Jon ali mesmo, mas ele nunca saberia se isso era verdade. Um
relâmpago tombou do céu, um imenso raio azul-esbranquiçado que
atingiu o topo da torre do lago. Conseguiram cheirar sua fúria, e
quando o trovão chegou, pareceu sacudir a noite. E a morte saltou
para o meio deles.
O
relâmpago tinha ofuscado a visão de Jon, mas ele conseguiu
vislumbrar a sombra que se movia a grande velocidade meio segundo
antes de ouvir o guincho. O primeiro Thenn morreu como o velho, com
sangue jorrando de sua garganta rasgada. Então a luz desapareceu e a
silhueta estava de novo girando, rosnando, e outro homem caiu na
escuridão. Houve imprecações, gritos, uivos de dor. Jon viu Grande
Furúnculo tropeçar e cair para trás, derrubando três homens.
Fantasma,
pensou, durante um louco instante. O Fantasma saltou a Muralha. Então
o relâmpago transformou a noite em dia, e viu o lobo que estava em
pé sobre o peito de Del, com sangue escorrendo, negro, de suas
mandíbulas. Cinza. Ele é cinza.
A
escuridão caiu com o trovão. Os Thenns estavam dando estocadas com
as lanças enquanto o lobo voava entre eles. A égua do velho
empinou-se, enlouquecida pelo cheiro do massacre e atacou
furiosamente com os cascos. Garralonga continuava em sua mão. E, de
repente, Jon Snow percebeu que nunca teria uma oportunidade melhor.
Abateu o
primeiro homem quando se virou para o lobo, passou por um segundo com
um empurrão, golpeou um terceiro. Em meio àquela loucura, ouviu
alguém chamar seu nome, mas se foi Ygritte ou o Magnar não soube
dizer. O Thenn que lutava para controlar o cavalo nem chegou a vê-lo.
Garralonga era leve como uma pena. Brandiu-a contra a barriga da
perna do homem e sentiu o aço enterrar-se até o osso. Quando o
selvagem caiu, a égua fugiu, mas, sem saber como, Jon conseguiu se
agarrar à crina com a mão esquerda e saltar para o dorso dela. Uma
mão fechou-se em volta de seu tornozelo, e ele deu um golpe para
baixo e viu o rosto de Bodger dissolver-se numa balbúrdia de sangue.
O cavalo empinou-se, escoiceando para a frente. Um dos cascos atingiu
o Thenn na têmpora, com um crunch.
E então
estavam a galope. Jon não fez qualquer esforço para guiar o cavalo.
Precisou de todas as suas forças para se manter em cima dele
enquanto mergulhavam através da lama, da chuva e dos trovões. Mato
úmido chicoteava seu rosto e uma lança passou voando junto à sua
orelha. Se o cavalo tropeça e quebra uma pata, apanham-me e
matam-me, pensou, mas os deuses antigos acompanharam-no e o cavalo
não tropeçou. O relâmpago estremeceu através da cúpula negra do
céu e o trovão rolou pelas planícies. Os gritos reduziram-se e
morreram atrás de Jon.
Longas
horas mais tarde, a chuva parou. Jon deu por si sozinho, num mar de
mato alto e negro. Havia uma profunda dor latejante em sua coxa
direita. Quando olhou para baixo, ficou surpreendido por ver uma
flecha espetada na parte de trás da coxa. Quando foi que isso
aconteceu? Agarrou a haste e deu um puxão, mas a ponta da flecha
estava profundamente enterrada na carne de sua perna, e a dor quando
a puxou foi insuportável. Tentou pensar na loucura na estalagem, mas
tudo que conseguiu recordar foi o animal, esguio, cinza e terrível.
Era grande demais para ser um lobo comum. Um lobo gigante, portanto.
Tinha de ser. Nunca tinha visto um animal mover-se tão depressa.
Como um vento cinzento... Poderia Robb ter retornado ao Norte?
Jon
sacudiu a cabeça. Não tinha respostas. Era difícil demais
pensar... sobre o lobo, o velho, Ygritte, tudo aquilo...
Desajeitadamente
deslizou de cima da égua. A perna ferida cedeu sob seu corpo, e ele
teve de engolir um grito. Isso vai ser uma agonia. Mas a flecha tinha
de sair, e esperar apenas pioraria a situação. Jon colocou a mão
em volta das penas, respirou fundo e empurrou a flecha para a frente.
Soltou um
grunhido e depois um xingamento. Doeu tanto que teve de parar. Estou
sangrando como um porco na matança, pensou, mas não havia nada a
fazer até que a flecha saísse. Fez uma careta e voltou a tentar...
e depressa voltou a parar, tremendo. Tentou novamente. Daquela vez
gritou, mas, quando terminou, a ponta da flecha espetava a parte da
frente da coxa. Jon comprimiu contra a perna os calções
ensanguentados a fim de conseguir pegar melhor na flecha, fez um
esgar e puxou lentamente a haste através da perna. Nunca soube como
conseguiu terminar aquilo sem desmaiar.
Depois
ficou deitado no chão, agarrado ao seu troféu e sangrando
calmamente, fraco demais para se mover. Algum tempo depois
compreendeu que, caso não se forçasse a se mover, provavelmente
sangraria até a morte. Jon rastejou na direção do riacho raso onde
a égua matava a sede, lavou a coxa na água fria e apertou-a bem com
uma faixa de tecido arrancada do manto.
Lavou
também a flecha, virando-a nas mãos. As penas eram cinzentas ou
brancas? Ygritte usava penas de ganso cinza-claras nas flechas. Terá
disparado uma flecha contra mim quando eu fugi? Jon não podia
culpá-la por isso. Perguntou a si mesmo se teria apontado para ele
ou para o cavalo. Se a égua tivesse caído, estaria condenado.
- Sorte
que a minha perna se pôs no caminho - murmurou.
Descansou
por algum tempo, para deixar a égua pastar. O animal não vagueou
até longe. Isso era bom. Coxo, com uma perna em mau estado, nunca
teria conseguido apanhá-la. Precisou de todas as suas forças para
se obrigar a ficar em pé e subir ao dorso do animal. Como foi que a
montei antes, sem sela nem estribos, e de espada na mão? Essa era
outra questão que não conseguia responder.
Um trovão
ribombou a distância, mas, por cima de sua cabeça, as nuvens
estavam se abrindo. Jon perscrutou o céu até encontrar o Dragão de
Gelo e depois virou a égua para o norte, na direção da Muralha e
de Castelo Negro. As pulsações de dor no músculo da coxa
fizeram-no estremecer quando bateu os calcanhares no cavalo do velho.
Vou para casa, disse a si mesmo. Mas se isso era verdade por que se
sentia tão vazio?
Cavalgou
até de madrugada, enquanto as estrelas olhavam para baixo como se
fossem olhos.
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