segunda-feira, 23 de setembro de 2013

45 - SAMWELL



A parte mais perigosa da viagem foi a última. Os Estreitos Redwyne estavam repletos de dracares, tal como os avisara em Tyrosh. Com o grosso da frota da Arvore do outro lado de Westeros, os homens de ferro tinham saqueado Porto Ryam e tomado Vilavinha e Porto da Estrela do Mar, usando-os como base para cair sobre a navegação com destino a Vilavelha.
Por três vezes foram avistados dracares do cesto da gávea. Porém, dois desses navios estavam muito longe, para trás, e Vento de Canela rapidamente se distanciou deles. O terceiro surgiu perto do pôr do sol, tentando cortar-lhes a entrada na Enseada dos Murmúrios. Quando viram seus remos subindo e descendo, flagelando as águas acobreadas, deixando-as brancas, Kojja Mo mandou seus arqueiros para os castelos de proa e popa, com seus grandes arcos de amagodouro, que eram capazes de enviar uma flecha mais longe e com mais precisão até do que o teixo de Dorne. Esperou o dracar chegar a uma distância de duzentos metros do navio cisne antes de dar a ordem de disparar. Sam disparou com os outros, e daquela vez lhe pareceu que sua flecha atingiu o navio. Um disparo bastou. O dracar virou de bordo para o sul, em busca de presa mais dócil.
Um profundo ocaso azul caía quando entraram na Enseada dos Murmúrios. Goiva pôs-se à proa com o bebê, fitando de boca aberta um castelo nos rochedos.
- Três Torres - disse-lhe Sam - a sede da Casa Costayne - delineado contra as estrelas do princípio da noite, com luz de archotes tremeluzindo em suas janelas, o castelo formava um magnífico quadro, mas vê-lo o entristecia. A viagem estava quase no fim.
- É muito alto - Goiva estava impressionada.
- Espere até ver a Torralta.
O bebê de Dalla começou a chorar. Goiva abriu a túnica e deu o seio ao garoto. Sorriu enquanto amamentava e afagou-lhe os macios cabelos castanhos. Ela acabou por amar este tanto quanto o que deixou para trás, Sam compreendeu. Esperava que os deuses fossem gentis para com ambas as crianças.
Os homens de ferro tinham penetrado até nas águas abrigadas da Enseada dos Murmúrios. Ao chegar a manhã, enquanto Vento de Canela continuava a avançar na direção de Vilavelha, começou a colidir com cadáveres que eram empurrados para o mar pela corrente. Alguns dos corpos transportavam tripulações de corvos, que se erguiam no ar protestando ruidosamente quando o navio cisne perturbava suas jangadas grotescamente inchadas. Campos carbonizados e aldeias queimadas surgiam nas margens, e os baixios e bancos de areia estavam semeados de navios desfeitos. Os mais comuns eram embarcações mercantes e barcos de pesca, mas também viram dracares abandonados e destroços de dois grandes dromones. Um tinha sido queimado até a linha de água, enquanto o outro tinha um buraco escancarado e estilhaçado no flanco, onde seu casco fora abalroado.
- Batalha aqui - disse Xhondo. - Não muito tempo atrás.
- Quem seria louco a ponto de atacar tão perto de Vilavelha?
Xhondo apontou para um dracar meio afundado nos baixios. De sua popa pendiam os restos de um estandarte, manchado pela fumaça e esfarrapado. Sam nunca tinha visto o símbolo: um olho vermelho com pupila negra sob uma coroa de ferro negra sustentada por dois corvos.
- De quem é aquele estandarte? - Sam quis saber. Xhondo limitou-se a encolher os ombros.
O dia seguinte chegou frio e brumoso. Quando Vento de Canela passou lentamente por outra aldeia de pescadores saqueada, uma galé de guerra surgiu deslizando pelo nevoeiro, batendo lentamente os remos em sua direção. Caçadora era o nome que ostentava, sob uma figura de proa que representava uma esguia donzela vestida de folhas brandindo uma lança. Um segundo mais tarde, duas galés menores apareceram de ambos os lados da maior, como um par de galgos seguindo o dono. Para alívio de Sam, mostravam o estandarte do veado e do leão de Tommen por cima da alva torre escalonada de Vilavelha, com sua coroa de chamas.
O capitão da Caçadora era um homem alto, com manto de um cinza-fumaça debruado de chamas vermelhas de cetim. Pôs sua galé ao lado do Vento de Canela, ergueu os remos e gritou que vinha a bordo. Enquanto seus besteiros e os arqueiros de Kojja Mo se observavam por cima da estreita extensão de água, ele atravessou com meia dúzia de cavaleiros, fez um aceno a Quhuru Mo e pediu para ver seus porões. Pai e filha conferenciaram brevemente e concordaram.
- As minhas desculpas - disse o capitão quando concluiu a inspeção. - Entristece-me que homens honestos tenham de aguentar tal descortesia, mas antes isso do que ter homens de ferro em Vilavelha. Apenas quinze dias atrás alguns desses malditos bastardos capturaram um navio mercante tyroshi nos estreitos. Mataram sua tripulação, vestiram suas roupas e usaram as tintas que encontraram para colorir os bigodes com meia centena de cores. Uma vez dentro das muralhas, tentaram incendiar o porto e abrir um portão lá de dentro, enquanto combatíamos o fogo. Podia ter resultado, mas deram de cara com o Senhora da Torre, e seu mestre dos remadores tem por esposa uma tyroshi. Quando viu todas as barbas verdes e purpúreas, saudou-os na língua de Tyrosh, e nenhum deles sabia as palavras para lhe responder à saudação.
Sam ficou estarrecido.
- Eles não podem querer atacar Vilavelha.
O capitão do Caçadora deitou-lhe um olhar curioso.
- Estes não são meros corsários. Os homens de ferro sempre atacaram onde puderam. Surgiam de repente, vindos do mar, levavam consigo algum ouro e garotas e zarpavam, mas raramente havia mais do que um ou dois dracares, e nunca mais de meia dúzia. Agora são centenas os navios deles que nos atormentam, que saem das Ilhas Escudo e de alguns dos rochedos que rodeiam a Árvore. Capturaram o Recife do Caranguejo de Pedra, a Ilha dos Porcos e o Palácio da Sereia, e têm outros ninhos no Rochedo da Ferradura e no Berço do Bastardo. Sem a frota de Lorde Redwyne, faltam-nos os navios necessários para lidar com eles.
- O que Lorde Hightower está fazendo? - Sam deixou escapar. - Meu pai sempre disse que era tão rico quanto os Lannister e podia reunir três vezes mais espadas do que qualquer outro dos vassalos de Jardim de Cima.
- Mais até, se varrer as calçadas - o capitão retrucou - mas espadas de nada servem contra os homens de ferro, a menos que aqueles que as manejem saibam caminhar sobre a água.
- Hightower tem de fazer alguma coisa.
- Com certeza. Lorde Leyton está trancado no topo de sua torre, com a Donzela Louca, consultando livros de feitiços. Pode ser que conjure um exército vindo das profundezas. Ou não. Baelor está construindo galés; Gunthor tem o porto a seu cargo; Garth treina novos recrutas; e Humfrey foi a Lys contratar navios mercenários. Se conseguir arrancar uma frota como deve ser da puta da irmã, podemos começar a pagar aos homens de ferro com alguma de sua própria moeda. Até lá, o melhor que podemos fazer é defender a enseada e esperar que a cadela da rainha em Porto Real solte a trela de Lorde Paxter.
A amargura nas palavras finais do capitão chocou tanto Sam quanto aquilo que ele disse. Se Porto Real perder Vilavelha e a Árvore, o reino inteiro poderá desmoronar, pensou, enquanto observava o Caçadora e as irmãs que se afastavam.
Perguntou-se se mesmo Monte Chifre estaria verdadeiramente a salvo. As terras Tarly ficavam no interior, entre colinas densamente arborizadas, cem léguas para nordeste de Vilavelha e a uma grande distância de qualquer costa. Deviam estar bem além do alcance de homens de ferro e dracares, mesmo com o senhor seu pai longe, combatendo nas terras fluviais, e o castelo fracamente defendido. O Jovem Lobo certamente pensara que o mesmo se aplicava a Winterfell, até o dia em que Theon Vira-Manto escalara suas muralhas. Sam não suportava a ideia de ter feito Goiva e o bebê percorrer toda aquela distância, para ficar longe do perigo, só para abandoná-los no meio de uma guerra.
Passou o resto da viagem lutando com suas dúvidas, sem saber o que fazer. Supunha que podia manter Goiva consigo em Vilavelha. As muralhas da cidade eram muito mais impressionantes do que as do castelo do pai, e tinham milhares de homens para defendê-las, contra o punhado que Lorde Randyll teria deixado em Monte Chifre quando marchara para Jardim de Cima a fim de obedecer à convocatória de seu suserano. Mas, se o fizesse, teria de arranjar algum modo de escondê-la; a Cidadela não permitia que seus noviços mantivessem esposas ou amantes, pelo menos não abertamente. Além disso, se ficar muito mais tempo com Goiva, como encontrarei forças para deixá-la? E tinha de deixá-la, caso contrário seria forçado a desertar. Eu proferi o juramento, lembrou Sam a si mesmo. Se desertar, isso me custará a cabeça. E, sendo assim, como isso ajudaria Goiva?
Pesou a ideia de suplicar a Kojja Mo e ao pai para levarem a garota selvagem consigo para as Ilhas do Verão. Mas esse rumo também tinha seus perigos. Quando Vento de Canela zarpasse de Vilavelha, teria de voltar a atravessar os Estreitos Redwyne, e dessa vez talvez não fosse tão afortunado. E se o vento morresse, e os ilhéus do verão dessem por si mergulhados numa calmaria? Se as histórias que ouvira fossem verdadeiras, Goiva seria levada como serva ou esposa de sal, e era provável que o bebê fosse lançado ao mar por ser um aborrecimento.
Temos de prosseguir até Monte Chifre, por fim Sam decidiu. Assim que chegarmos a Vilavelha, alugarei um a carroça e alguns cavalos e a levarei pessoalmente até lá. Assim poderia examinar o castelo e sua guarnição e, se alguma parte do que visse lhe levantasse dúvidas, podia simplesmente dar meia-volta e trazer Goiva de volta para Vilavelha.
Chegaram a Vilavelha numa manhã fria e úmida, coberta com um nevoeiro tão denso que o sinal luminoso da Torralta era a única parte visível da cidade. Um dique flutuante fechava o porto, ligando duas dúzias de cascos apodrecidos. Logo atrás encontrava-se uma fileira de navios de guerra, ancorados junto a três grandes dromones e ao enorme navio almirante de quatro cobertas de Lorde Hightower, o Honra de Vilavelha. Mais uma vez, Vento de Canela teve de se submeter à inspeção. Agora foi o filho de Lorde Leyton, Gunthor, quem veio a bordo, trajando um manto de pano prata e uma couraça de escamas cinzentas e esmaltadas. Sor Gunthor estudara durante vários anos na Cidadela e falava o idioma do verão, de modo que ele e Quhuru Mo se reuniram na cabine do capitão para conferenciar em privado.
Sam aproveitou o tempo para explicar seus planos a Goiva.
- Primeiro, a Cidadela, para entregar as cartas de Jon e lhes informar a morte de Meistre Aemon. Suponho que os arquimeistres mandem um carro para vir buscar seu corpo. Depois arranjarei cavalos e uma carroça para levá-la à minha mãe em Monte Chifre. Regressarei assim que conseguir, mas talvez não possa até amanhã de manhã.
- Amanhã de manhã - a garota repetiu, e lhe deu um beijo de boa sorte.
Passado algum tempo, Sor Gunthor reapareceu e fez sinal para que abrissem a corrente, a fim de que o Vento de Canela pudesse atravessar o dique e atracar. Sam juntou-se a Kojja Mo e a três de seus arqueiros, resplandecentes nos mantos de penas que só usavam em terra, junto da prancha de embarque enquanto o navio cisne era amarrado. Sentiu-se maltrapilho ao lado deles, com seus largos trajes negros, manto desbotado e botas manchadas pelo salitre.
- Quanto tempo permanecerão no porto?
- Dois dias, dez, quem poderá dizer? O tempo que demorar para esvaziar os porões e voltar a enchê-los - Kojja sorriu. - Meu pai também tem de visitar os meistres cinzentos. Tem livros para vender.
- Goiva pode ficar a bordo até o meu regresso?
- Goiva pode ficar tanto tempo quanto quiser - espetou um dedo na barriga de Sam. - Ela não come tanto como certas pessoas.
- Não sou tão gordo como era - Sam rebateu em sua defesa. A passagem para o sul servira para isso. Todos aqueles turnos de vigia, e nada para comer, exceto fruta e peixe. Os ilhéus do verão adoravam fruta e peixe.
Sam seguiu os arqueiros pela prancha, mas, uma vez em terra, separaram-se e seguiram cada um o seu caminho. Sam esperava ainda se lembrar do caminho para a Cidadela. Vilavelha era um labirinto, e não tinha tempo a perder.
O dia estava úmido, e as ruas de pedra estavam molhadas e escorregadias debaixo dos seus pés e as vielas mostravam-se cobertas de névoa e mistério. Sam evitou-as o melhor que pôde e permaneceu na estrada do rio, que serpenteava ao longo do Vinhomel através do coração da cidade antiga. Era bom ter de novo terreno sólido sob seus pés em vez de um convés oscilante, mas ainda assim a caminhada o deixou desconfortável. Sentia olhos postos em si, espreitando de varandas e janelas, observando-o de dentro de soleiras escurecidas. No Vento de Canela conhecia todos os rostos. Ali, não importa para onde se virasse, via um novo estranho. Ainda pior era a ideia de ser visto por alguém que o conhecesse. Lorde Randyll Tarly era conhecido em Vilavelha, mas pouco amado. Sam não sabia o que seria pior: ser reconhecido por um dos inimigos do senhor seu pai ou por um de seus amigos. Puxou o capuz para cima e acelerou o passo.
Os portões da Cidadela eram flanqueados por um par de esfinges verdes muito altas com corpo de leão, asas de águia e cauda de serpente. Uma tinha rosto de homem, e a outra, de mulher. Logo atrás ficava o Lar do Escriba, onde o povo de Vilavelha vinha procurar acólitos para lhes escrever os testamentos ou ler as cartas. Meia dúzia de escribas entediados estavam sentados em barracas abertas à espera de algum freguês. Em algumas delas havia livros sendo vendidos e comprados. Sam parou numa que oferecia mapas e examinou um da Cidadela, desenhado à mão, a fim de averiguar qual o caminho mais curto para a Residência do Senescal.
O caminho dividia-se onde a estátua do Rei Daeron Primeiro sentava-se em seu grande cavalo de pedra, de espada erguida na direção de Dorne. Uma gaivota encontrava-se empoleirada na cabeça do Jovem Dragão, e havia outras duas na espada. Sam seguiu pela rua da esquerda, que corria junto ao rio. Na Doca Gotejante, viu dois acólitos ajudando um velho a entrar num barco para uma curta viagem até a Ilha Sangrenta. Uma jovem mãe subiu atrás do velho, com um bebê, não muito mais velho do que o de Goiva, guinchando em seus braços. Por baixo da doca, alguns ajudantes de cozinha andavam pelos baixios apanhando rãs. Uma fila de noviços de faces rosadas passou correndo perto dele, rumo à septeria. Devia ter vindo para cá quando era da idade deles, Sam pensou. Se tivesse fugido e arranjado um nome falso, poderia ter desaparecido entre os outros noviços. Meu pai poderia ter fingido que Dickon era seu único filho. Duvido que tivesse se incomodado em me procurar, a menos que eu tivesse levado uma mula. Então teria me dado caça, mas só por causa da mula.
À porta da Residência do Senescal, os reitores prendiam um noviço mais velho no tronco.
- Roubou comida das cozinhas - explicou um deles aos acólitos que esperavam para atirar no prisioneiro uma saraivada de vegetais podres. Todos lançaram olhares curiosos a Sam quando passou por eles a passos largos, com o manto negro enfunando-se atrás de si como uma vela.
Para além das portas foi encontrar um salão de chão de pedra e altas janelas arqueadas. Na outra extremidade, um homem de rosto chupado encontrava-se sentado sobre um estrado alto arranhando um livro-mestre com uma pena. Embora ele trajasse uma veste de meistre, não havia corrente em volta do seu pescoço. Sam pigarreou.
- Bom-dia.
O homem ergueu os olhos e não pareceu aprovar aquilo que viu.
- Cheira a noviço.
- Espero vir a sê-lo em breve - Sam tirou do bolso as cartas que Jon lhe dera. - Vim da Muralha com Meistre Aemon, mas ele morreu durante a viagem. Se pudesse falar com o Senescal...
- Seu nome?
- Samwell. Samwell Tarly.
O homem escreveu o nome em seu livro-mestre e indicou com a pena um banco encostado à parede.
- Sente-se. Será chamado a seu tempo.
Sam sentou-se no banco.
Outros chegaram e partiram. Alguns entregaram mensagens e se retiraram. Alguns falaram com o homem no estrado e foram mandados entrar pela porta atrás e por uma escada em caracol. Alguns se juntaram a Sam nos bancos, à espera de que seus nomes fossem chamados. Tinha quase certeza de que alguns dos que foram convocados tinham chegado depois dele. Depois da quarta ou da quinta vez que isso aconteceu, ergueu-se e voltou a atravessar a sala.
- Quanto tempo ainda falta?
- O Senescal é um homem importante.
- Eu venho da Muralha.
- Então não terá dificuldade em andar um pouco mais. Até aquele banco ali, debaixo da janela.
Sam regressou ao banco. Passou mais uma hora. Outros entraram, falaram com o homem no estrado, esperaram uns momentos e foram mandados entrar. Durante todo esse tempo, o porteiro nem sequer olhou para Sam de relance. O nevoeiro lá fora foi se tornando menos denso à medida que o dia passava, e uma pálida luz do sol entrou em diagonal pelas janelas. Deu por si observando os grãos de poeira dançando na luz. Deixou escapar um bocejo, e depois outro. Remexeu numa bolha rebentada na palma da mão e depois encostou a cabeça para trás e fechou os olhos.
Devia ter adormecido. Quando deu por si, o homem no estrado chamava um nome. Sam pôs-se em pé de um salto, após o que se voltou a se sentar quando compreendeu que não era o seu.
- Tem de passar uma moeda a Lorcas, senão ficará esperando aqui três dias - disse uma voz atrás dele. - O que traz a Patrulha da Noite à Cidadela?
A voz era de um jovem magro, esbelto e de boa aparência, vestido com calções de pele de corça e uma brigantina verde ajustada ao corpo e tachonada de ferro. Tinha a pele de uma leve cor de cerveja castanha e uma coroa de densos cachos negros que se juntavam em bico por cima de seus grandes olhos negros.
- O Senhor Comandante está restaurando os castelos abandonados - Sam explicou. - Precisamos de mais meistres, para os corvos... Falou em moeda?
- Uma moeda servirá. Por um veado de prata, Lorcas carregaria você nas costas até o Senescal. Há cinquenta anos é acólito. Odeia noviços, especialmente os de nascimento nobre.
- Como sabe que sou de nascimento nobre?
- Da mesma maneira que você sabe que sou meio dornês - o rapaz falou, com um sorriso, num suave e arrastado dornês.
Sam procurou uma moeda:
- É um noviço?
- Acólito, Alleras, mas alguns me chamam de Esfinge.
O nome fez Sam dar um salto.
- A esfinge é a adivinha, não o adivinho - disse, sem pensar. - Sabe o que isso significa?
- Não. É um enigma?
- Bem que eu gostaria de saber. Sou Samwell Tarly. Sam.
- Prazer. E que negócios tem Samwell Tarly com o Arquimeistre Theobald?
- E ele o Senescal? - Sam perguntou, confuso. - Meistre Aemon dizia que seu nome era Norren.
- Nos últimos dois turnos não. Há um novo todos os anos. Ocupam o cargo com um dos arquimeistres, a maioria dos quais o vê como uma tarefa ingrata que os afasta de seu verdadeiro trabalho. Este ano, a pedra preta saiu para o Arquimeistre Walgrave, mas sua cabeça tende a vaguear, de modo que Theobald avançou e disse que serviria durante o mandato dele. É um homem duro, mas bom. Disse Meistre Aemon?
- Sim.
- Aemon Targaryen?
- Outrora, sim. A maioria das pessoas o chamava simplesmente Meistre Aemon. Morreu durante nossa viagem para o sul. Como é que sabe dele?
- Como não saber? Era mais do que o mais velho meistre vivo. Era o homem mais velho em Westeros, e sobreviveu a mais história do que Arquimeistre Perestan alguma vez aprendeu. Podia ter nos contado muitas coisas sobre o reinado do pai e do tio. Que idade tinha, você sabe?
- Cento e dois anos.
- O que ele fazia no mar na sua idade?
Sam remoeu a questão por um momento, perguntando-se quanto devia dizer. A esfinge é a adivinha, não o adivinho. Poderia Meistre Aemon ter se referido àquela Esfinge? Parecia pouco provável.
- O Senhor Comandante Snow o mandou embora para lhe salvar a vida - começou, hesitante. Falou desajeitadamente do Rei Stannis e de Melisandre de Asshai, pretendendo parar por aí, mas uma coisa levou a outra e deu por si falando de Mance Rayder e de seus selvagens, de sangue real e de dragões, e antes de se dar conta do que estava acontecendo, todo o resto jorrou-lhe da boca; as criaturas no Punho dos Primeiros Homens, o Outro em seu cavalo morto, o assassinato do Velho Urso na Fortaleza de Craster, Goiva e a fuga de ambos, Brancarbor e Paul Pequeno, Mãos-Frias e os corvos, Jon se tornando senhor comandante, Melro, Dareon, Bravos, os dragões que Xhondo vira em Qarth, o Vento de Canela e tudo que Meistre Aemon murmurou no fim da vida. Reteve apenas os segredos que jurara manter, sobre Bran Stark e os companheiros e os bebês que Jon Snow trocara. - Daenerys é a única esperança - concluiu. - Aemon disse que a Cidadela tinha de lhe enviar imediatamente um meistre para trazê-la para Westeros antes que seja tarde demais.
Alleras escutou com atenção. Pestanejou de tempos em tempos, mas nunca riu nem o interrompeu. Quando Sam terminou, tocou-lhe levemente no antebraço com uma esguia mão castanha e disse:
- Poupe sua moeda, Sam. Theobald não acreditará em metade dessa história, mas há quem talvez acredite. Quer vir comigo?
- Para onde?
- Falar com um arquimeistre.
Tem de lhes dizer, Sam, dissera Meistre Aemon. Tem de contar aos arquimeistres.
- Muito bem - poderia sempre voltar ao Senescal na manhã seguinte, com uma moeda na mão. - Temos de andar muito?
- Não muito. A Ilha dos Corvos.
Não precisaram de um barco para chegar; uma desgastada ponte levadiça de madeira ligava a ilha à margem oriental.
- A Corvoaria é o edifício mais velho da Cidadela - disse-lhe Alleras, enquanto atravessavam as águas lentas do Vinhomel. - Diz-se que na Era dos Heróis era o quartel-general de um senhor pirata que ficava aqui assaltando os navios que desciam o rio.
Sam viu que musgo e trepadeiras cobriam as paredes, e corvos patrulhavam as ameias no lugar dos arqueiros. Não havia memória de a ponte levadiça ter sido içada.
Dentro das muralhas do castelo era fresco e havia pouca luz. Um antigo represeiro enchia o pátio, como fizera desde que aquelas pedras tinham sido erguidas pela primeira vez. O rosto esculpido no tronco estava coberto pelo mesmo musgo purpúreo que pendia pesadamente dos galhos claros da árvore. Metade dos galhos pareciam mortos, mas nos outros algumas folhas vermelhas ainda farfalhavam, e era aí que os corvos gostavam de se empoleirar. A árvore estava cheia deles, e havia mais nas janelas arqueadas que se abriam mais acima, em volta de todo o pátio. O chão encontrava-se salpicado por seus excrementos. Enquanto cruzavam o pátio, um dos corvos esvoaçou por cima de suas cabeças, e Sam ouviu os outros crocitando uns com os outros.
- Arquimeistre Walgrave tem seus aposentos na torre ocidental, por baixo da colônia branca - disse-lhe Alleras. - Os corvos brancos e os pretos guerreiam como dorneses e gente da Marca, por isso os mantém separados.
- Arquimeistre Walgrave compreenderá o que eu lhe disser? - Sam quis saber. - Disse que a cabeça dele tende a vaguear.
- Ele tem bons e maus dias - Alleras respondeu - mas não é Walgrave que vamos visitar - abriu a porta da torre norte e começou a subir. Sam galgou os degraus atrás dele. Ouviam-se asas batendo e murmúrios vindos de cima, e aqui e ali um grito irritado, quando os corvos se queixavam por terem sido acordados.
No topo dos degraus, um jovem pálido e loiro, com quase a mesma idade de Sam, estava sentado junto a uma porta de carvalho e ferro, fitando intensamente a chama de uma vela com o olho direito. O esquerdo estava escondido atrás de uma madeixa de cabelos loiros muito claros.
- Está à procura de quê? Seu destino? Sua morte?
O jovem loiro afastou os olhos da vela, piscando.
- Mulheres nuas - respondeu. - Quem é este agora?
- Samwell. Um novo noviço. Veio ver o Mago.
- A Cidadela já não é o que era - o loiro protestou. - Aceitam qualquer coisa hoje em dia. Cães morenos e dorneses, criadores de porcos, aleijados, cretinos, e agora uma baleia vestida de preto. E eu que pensava que os leviatãs eram cinzentos - uma meia capa com listras verdes e douradas envolvia-lhe um ombro. Era muito bonito, embora tivesse olhos astutos e uma boca cruel.
Sam o conhecia.
- Leo Tyrell - a menção do nome o fez se sentir como se ainda fosse um garoto de sete anos, prestes a molhar a roupa de baixo. - Sou Sam, de Monte Chifre. Filho de Lorde Randyll Tarly.
- É mesmo? - Leo lançou-lhe outro olhar. - Suponho que seja. Seu pai disse a todos que estava morto. Ou será que só desejava que estivesse? - sorriu. - Ainda é um covarde?
- Não - Sam mentiu. Jon lhe dera uma ordem. - Estive além da Muralha e lutei em batalhas. Chamam-me Sam, o Matador - não sabia por que dissera aquilo. As palavras limitaram-se a jorrar para fora.
Leo deu risada, mas antes de ter tempo de responder, a porta atrás dele se abriu.
- Para dentro, Matador - resmungou o homem que surgiu na soleira. - E você também, Esfinge. Já.
- Sam - Alleras o chamou - este é o Arquimeistre Marwyn.
Marwyn usava uma corrente de muitos metais em torno do seu pescoço de touro. Fora isso, parecia-se mais com um criminoso das docas do que um meistre. Tinha uma cabeça grande demais para o corpo, e o modo como a projetava para a frente, junto com o queixo quadrado, fazia que parecesse prestes a arrancar a cabeça de alguém. Embora fosse baixo e atarracado, tinha peito e ombros pesados, e uma barriga de cerveja redonda, dura como pedra, que empurrava os atilhos do justilho de couro que usava em vez da veste tradicional. Hirsutos pelos brancos brotavam-lhe das orelhas e das narinas. A testa sobressaía-se, o nariz tinha sido quebrado mais de uma vez e folhamarga manchara-lhe os dentes de um vermelho mosqueado. Tinha as maiores mãos que Sam já vira.
Quando Sam hesitou, uma dessas mãos agarrou seu braço e o fez atravessar a porta com um puxão. A sala atrás da porta era grande e redonda. Havia livros e rolos por todo lado, espalhados nas mesas e amontoados no chão em pilhas com mais de um metro de altura. Tapeçarias desbotadas e mapas esfarrapados cobriam as paredes de pedra. Um fogo ardia na lareira, sob uma panela de cobre. O que quer que esta contivesse cheirava a queimado. Além da fogueira, a única luz que havia ali provinha de uma grande vela negra no centro da sala.
A vela era desagradavelmente brilhante. Havia algo de estranho nela. A chama não tremeluzia, nem mesmo quando Arquimeistre Marwyn fechou a porta com tanta força que papéis voaram de uma mesa próxima. A luz também fazia qualquer coisa estranha às cores. Os brancos eram brilhantes como a neve recém-caída, o amarelo cintilava como ouro, os vermelhos transformavam-se em chamas, mas as sombras eram tão negras que pareciam buracos abertos no mundo. Sam deu por si fitando-a. A vela propriamente dita tinha quase um metro de altura e era esguia como uma espada, com arestas e retorcida, de um negro reluzente.
- Isso é...?
- ... obsidiana - disse o outro homem que se encontrava presente no aposento, um indivíduo novo, pálido, carnudo e macilento, com ombros redondos, mãos delicadas, olhos juntos e manchas de comida nas vestes.
- Você chama isso de vidro de dragão - Arquimeistre Marwyn lançou um relance momentâneo à chama. - Arde mas não é consumido.
- O que alimenta a chama? - Sam quis saber.
- O que alimenta o fogo de um dragão? - Marwyn sentou-se num banco. - Toda a feitiçaria valiriana tem raízes no sangue ou no fogo. Os feiticeiros da Cidade Livre podiam ver além das montanhas, dos mares e dos desertos com uma dessas velas de vidro. Podiam entrar nos sonhos de um homem e dar-lhe visões, e falar uns com os outros a meio mundo de distância, sentados diante de suas velas. Acha que isso podia ser útil, Matador?
- Não precisaríamos de corvos.
- Só depois das batalhas - o arquimeistre arrancou uma folhamarga de um fardo, enfiou-a na boca e pôs-se a mastigá-la. - Conte-me tudo o que confidenciou à nossa esfinge de Dorne. Sei muitas dessas coisas e mais ainda, mas alguns pequenos detalhes podem ter me escapado.
Não era homem a quem se pudesse dizer não. Sam hesitou por um momento, e então voltou a contar sua história, enquanto Marwyn, Alleras e o outro noviço escutavam.
- Meistre Aemon acreditava que Daenerys Targaryen era a realização de uma profecia... Ela, não Stannis nem Príncipe Rhaegar, nem o principezinho cuja cabeça foi atirada contra a parede.
- Nascida entre o sal e o fumo, sob uma estrela sangrenta. Conheço a profecia - Marwyn virou a cabeça e escarrou uma bola de muco vermelho para o chão. - Não que confie nela. Gorghan de Velha Ghis escreveu um dia que uma profecia é como uma mulher traiçoeira. Mete o seu membro na boca, você geme de prazer e pensa, “ que maravilha, que agradável, que bom isto é” ... E então seus dentes se fecham e seus gemidos se transformam em gritos. É essa a natureza da profecia, Gorghan disse. A profecia sempre arranca seu pau a dentada - mascou durante algum tempo. - Mesmo assim...
Alleras pôs-se ao lado de Sam.
- Aemon teria ido ter com ela se tivesse forças para isso. Queria que lhe mandássemos um meistre, para aconselhá-la, protegê-la e trazê-la para casa em segurança.
- Ah queria? - Arquimeistre Marwyn encolheu os ombros. - Talvez seja bom que tenha morrido antes de chegar a Vilavelha. Caso contrário, as ovelhas cinzentas talvez tivessem de matá-lo, e isso teria feito os queridos dos pobres velhos torcer as mãos encarquilhadas.
- Matá-lo? - Sam estava chocado. - Por quê?
- Se eu lhe disser, podem ter de matar você também - Marwyn abriu um horrendo sorriso com o sumo da folhamarga escorrendo, rubro, entre os dentes. - Quem você acha que matou todos os dragões da última vez? Galantes matadores de dragões armados de espadas? - cuspiu. - O mundo que a Cidadela está construindo não tem lugar para feitiçaria, profecias ou velas de vidro, e muito menos para dragões. Pergunte a si mesmo por que foi deixado que Aemon Targaryen desperdiçasse a vida na Muralha, quando, por direito próprio, devia ter sido promovido a arquimeistre. O motivo foi seu sangue. Não podiam confiar nele. Assim como não podem confiar em mim.
- O que fará? - Alleras, o Esfinge perguntou.
- Arranjarei um meio de chegar à Baía dos Escravos no lugar de Aemon. O navio cisne que trouxe o Matador deve responder bastante bem às minhas necessidades. As ovelhas cinzentas irão enviar seu homem numa galé, sem dúvida. Com bons ventos, deverei chegar antes - Marwyn voltou a olhar Sam de relance e franziu as sobrancelhas. - Você... você devia ficar e forjar a sua corrente. Se eu fosse você, faria isso depressa. Chegará um momento em que será necessário na Muralha -virou-se para o noviço de rosto macilento: - Arranje uma cela seca para o Matador. Dormirá aqui, e o ajudará a cuidar dos corvos.
- M-m-mas - Sam gaguejou - os outros arquimeistres... o Senescal... o que lhes direi?
- Diga-lhes como são sábios e bons. Diga-lhes que Aemon ordenou que você se colocasse nas mãos deles. Diga-lhes que sempre sonhou em um dia ser autorizado a usar a corrente e servir o bem supremo, que o serviço é a maior das honras, e a obediência é sua maior virtude. Mas não diga nada sobre profecias ou dragões, a menos que goste de veneno no mingau de aveia - Marwyn tirou um manto de couro manchado de um cabide perto da porta e o apertou bem. - Esfinge, proteja este rapaz.
- Protegerei - Alleras respondeu, mas o arquimeistre já tinha saído. Ouviram suas botas batendo nos degraus.
- Aonde ele foi? - Sam quis saber, desorientado.
- Para as docas. O Mago não é homem de perder tempo - Alleras sorriu. - Tenho uma confissão a fazer. Nosso encontro não foi casual, Sam. O Mago mandou que eu o agarrasse antes que falasse com Theobald. Ele sabia que estava a caminho.
- Como?
Alleras indicou a vela de vidro com um aceno.
Sam fitou a estranha chama pálida por um momento, após o que pestanejou e afastou o olhar. Escurecia do outro lado da janela.
- Há uma cela vazia por baixo da minha na torre ocidental, com uma escada que leva diretamente aos aposentos de Walgrave - disse o jovem de rosto macilento. - Se não se importar com o barulho dos corvos, tem uma boa vista sobre o Vinhomel. Serve?
- Suponho que sim - Sam sabia que tinha de dormir em algum lugar.
- Eu levarei algumas mantas de lã para você. Paredes de pedra ficam frias durante a noite, até mesmo aqui.
- Obrigado - havia algo no pálido e delicado jovem que lhe desagradava, mas não queria parecer descortês, de modo que acrescentou: - Meu nome não é Matador. Sou Sam. Samwell Tarly.
- Eu me chamo Pate - o outro se apresentou - como o criador de porcos.  

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