A parte
mais perigosa da viagem foi a última. Os Estreitos Redwyne estavam
repletos de dracares, tal como os avisara em Tyrosh. Com o grosso da
frota da Arvore do outro lado de Westeros, os homens de ferro tinham
saqueado Porto Ryam e tomado Vilavinha e Porto da Estrela do Mar,
usando-os como base para cair sobre a navegação com destino a
Vilavelha.
Por três
vezes foram avistados dracares do cesto da gávea. Porém, dois
desses navios estavam muito longe, para trás, e Vento de Canela
rapidamente se distanciou deles. O terceiro surgiu perto do pôr do
sol, tentando cortar-lhes a entrada na Enseada dos Murmúrios. Quando
viram seus remos subindo e descendo, flagelando as águas acobreadas,
deixando-as brancas, Kojja Mo mandou seus arqueiros para os castelos
de proa e popa, com seus grandes arcos de amagodouro, que eram
capazes de enviar uma flecha mais longe e com mais precisão até do
que o teixo de Dorne. Esperou o dracar chegar a uma distância de
duzentos metros do navio cisne antes de dar a ordem de disparar. Sam
disparou com os outros, e daquela vez lhe pareceu que sua flecha
atingiu o navio. Um disparo bastou. O dracar virou de bordo para o
sul, em busca de presa mais dócil.
Um
profundo ocaso azul caía quando entraram na Enseada dos Murmúrios.
Goiva pôs-se à proa com o bebê, fitando de boca aberta um castelo
nos rochedos.
- Três
Torres - disse-lhe Sam - a sede da Casa Costayne - delineado contra
as estrelas do princípio da noite, com luz de archotes tremeluzindo
em suas janelas, o castelo formava um magnífico quadro, mas vê-lo o
entristecia. A viagem estava quase no fim.
- É
muito alto - Goiva estava impressionada.
- Espere
até ver a Torralta.
O bebê
de Dalla começou a chorar. Goiva abriu a túnica e deu o seio ao
garoto. Sorriu enquanto amamentava e afagou-lhe os macios cabelos
castanhos. Ela acabou por amar este tanto quanto o que deixou para
trás, Sam compreendeu. Esperava que os deuses fossem gentis para com
ambas as crianças.
Os homens
de ferro tinham penetrado até nas águas abrigadas da Enseada dos
Murmúrios. Ao chegar a manhã, enquanto Vento de Canela continuava a
avançar na direção de Vilavelha, começou a colidir com cadáveres
que eram empurrados para o mar pela corrente. Alguns dos corpos
transportavam tripulações de corvos, que se erguiam no ar
protestando ruidosamente quando o navio cisne perturbava suas
jangadas grotescamente inchadas. Campos carbonizados e aldeias
queimadas surgiam nas margens, e os baixios e bancos de areia estavam
semeados de navios desfeitos. Os mais comuns eram embarcações
mercantes e barcos de pesca, mas também viram dracares abandonados e
destroços de dois grandes dromones. Um tinha sido queimado até a
linha de água, enquanto o outro tinha um buraco escancarado e
estilhaçado no flanco, onde seu casco fora abalroado.
- Batalha
aqui - disse Xhondo. - Não muito tempo atrás.
- Quem
seria louco a ponto de atacar tão perto de Vilavelha?
Xhondo
apontou para um dracar meio afundado nos baixios. De sua popa pendiam
os restos de um estandarte, manchado pela fumaça e esfarrapado. Sam
nunca tinha visto o símbolo: um olho vermelho com pupila negra sob
uma coroa de ferro negra sustentada por dois corvos.
- De quem
é aquele estandarte? - Sam quis saber. Xhondo limitou-se a encolher
os ombros.
O dia
seguinte chegou frio e brumoso. Quando Vento de Canela passou
lentamente por outra aldeia de pescadores saqueada, uma galé de
guerra surgiu deslizando pelo nevoeiro, batendo lentamente os remos
em sua direção. Caçadora era o nome que ostentava, sob uma figura
de proa que representava uma esguia donzela vestida de folhas
brandindo uma lança. Um segundo mais tarde, duas galés menores
apareceram de ambos os lados da maior, como um par de galgos seguindo
o dono. Para alívio de Sam, mostravam o estandarte do veado e do
leão de Tommen por cima da alva torre escalonada de Vilavelha, com
sua coroa de chamas.
O capitão
da Caçadora era um homem alto, com manto de um cinza-fumaça
debruado de chamas vermelhas de cetim. Pôs sua galé ao lado do
Vento de Canela, ergueu os remos e gritou que vinha a bordo. Enquanto
seus besteiros e os arqueiros de Kojja Mo se observavam por cima da
estreita extensão de água, ele atravessou com meia dúzia de
cavaleiros, fez um aceno a Quhuru Mo e pediu para ver seus porões.
Pai e filha conferenciaram brevemente e concordaram.
- As
minhas desculpas - disse o capitão quando concluiu a inspeção. -
Entristece-me que homens honestos tenham de aguentar tal descortesia,
mas antes isso do que ter homens de ferro em Vilavelha. Apenas quinze
dias atrás alguns desses malditos bastardos capturaram um navio
mercante tyroshi nos estreitos. Mataram sua tripulação, vestiram
suas roupas e usaram as tintas que encontraram para colorir os
bigodes com meia centena de cores. Uma vez dentro das muralhas,
tentaram incendiar o porto e abrir um portão lá de dentro, enquanto
combatíamos o fogo. Podia ter resultado, mas deram de cara com o
Senhora da Torre, e seu mestre dos remadores tem por esposa uma
tyroshi. Quando viu todas as barbas verdes e purpúreas, saudou-os na
língua de Tyrosh, e nenhum deles sabia as palavras para lhe
responder à saudação.
Sam ficou
estarrecido.
- Eles
não podem querer atacar Vilavelha.
O capitão
do Caçadora deitou-lhe um olhar curioso.
- Estes
não são meros corsários. Os homens de ferro sempre atacaram onde
puderam. Surgiam de repente, vindos do mar, levavam consigo algum
ouro e garotas e zarpavam, mas raramente havia mais do que um ou dois
dracares, e nunca mais de meia dúzia. Agora são centenas os navios
deles que nos atormentam, que saem das Ilhas Escudo e de alguns dos
rochedos que rodeiam a Árvore. Capturaram o Recife do Caranguejo de
Pedra, a Ilha dos Porcos e o Palácio da Sereia, e têm outros ninhos
no Rochedo da Ferradura e no Berço do Bastardo. Sem a frota de Lorde
Redwyne, faltam-nos os navios necessários para lidar com eles.
- O que
Lorde Hightower está fazendo? - Sam deixou escapar. - Meu pai sempre
disse que era tão rico quanto os Lannister e podia reunir três
vezes mais espadas do que qualquer outro dos vassalos de Jardim de
Cima.
- Mais
até, se varrer as calçadas - o capitão retrucou - mas espadas de
nada servem contra os homens de ferro, a menos que aqueles que as
manejem saibam caminhar sobre a água.
-
Hightower tem de fazer alguma coisa.
- Com
certeza. Lorde Leyton está trancado no topo de sua torre, com a
Donzela Louca, consultando livros de feitiços. Pode ser que conjure
um exército vindo das profundezas. Ou não. Baelor está construindo
galés; Gunthor tem o porto a seu cargo; Garth treina novos recrutas;
e Humfrey foi a Lys contratar navios mercenários. Se conseguir
arrancar uma frota como deve ser da puta da irmã, podemos começar a
pagar aos homens de ferro com alguma de sua própria moeda. Até lá,
o melhor que podemos fazer é defender a enseada e esperar que a
cadela da rainha em Porto Real solte a trela de Lorde Paxter.
A
amargura nas palavras finais do capitão chocou tanto Sam quanto
aquilo que ele disse. Se Porto Real perder Vilavelha e a Árvore, o
reino inteiro poderá desmoronar, pensou, enquanto observava o
Caçadora e as irmãs que se afastavam.
Perguntou-se
se mesmo Monte Chifre estaria verdadeiramente a salvo. As terras
Tarly ficavam no interior, entre colinas densamente arborizadas, cem
léguas para nordeste de Vilavelha e a uma grande distância de
qualquer costa. Deviam estar bem além do alcance de homens de ferro
e dracares, mesmo com o senhor seu pai longe, combatendo nas terras
fluviais, e o castelo fracamente defendido. O Jovem Lobo certamente
pensara que o mesmo se aplicava a Winterfell, até o dia em que Theon
Vira-Manto escalara suas muralhas. Sam não suportava a ideia de ter
feito Goiva e o bebê percorrer toda aquela distância, para ficar
longe do perigo, só para abandoná-los no meio de uma guerra.
Passou o
resto da viagem lutando com suas dúvidas, sem saber o que fazer.
Supunha que podia manter Goiva consigo em Vilavelha. As muralhas da
cidade eram muito mais impressionantes do que as do castelo do pai, e
tinham milhares de homens para defendê-las, contra o punhado que
Lorde Randyll teria deixado em Monte Chifre quando marchara para
Jardim de Cima a fim de obedecer à convocatória de seu suserano.
Mas, se o fizesse, teria de arranjar algum modo de escondê-la; a
Cidadela não permitia que seus noviços mantivessem esposas ou
amantes, pelo menos não abertamente. Além disso, se ficar muito
mais tempo com Goiva, como encontrarei forças para deixá-la? E
tinha de deixá-la, caso contrário seria forçado a desertar. Eu
proferi o juramento, lembrou Sam a si mesmo. Se desertar, isso me
custará a cabeça. E, sendo assim, como isso ajudaria Goiva?
Pesou a
ideia de suplicar a Kojja Mo e ao pai para levarem a garota selvagem
consigo para as Ilhas do Verão. Mas esse rumo também tinha seus
perigos. Quando Vento de Canela zarpasse de Vilavelha, teria de
voltar a atravessar os Estreitos Redwyne, e dessa vez talvez não
fosse tão afortunado. E se o vento morresse, e os ilhéus do verão
dessem por si mergulhados numa calmaria? Se as histórias que ouvira
fossem verdadeiras, Goiva seria levada como serva ou esposa de sal, e
era provável que o bebê fosse lançado ao mar por ser um
aborrecimento.
Temos de
prosseguir até Monte Chifre, por fim Sam decidiu. Assim que
chegarmos a Vilavelha, alugarei um a carroça e alguns cavalos e a
levarei pessoalmente até lá. Assim poderia examinar o castelo e sua
guarnição e, se alguma parte do que visse lhe levantasse dúvidas,
podia simplesmente dar meia-volta e trazer Goiva de volta para
Vilavelha.
Chegaram
a Vilavelha numa manhã fria e úmida, coberta com um nevoeiro tão
denso que o sinal luminoso da Torralta era a única parte visível da
cidade. Um dique flutuante fechava o porto, ligando duas dúzias de
cascos apodrecidos. Logo atrás encontrava-se uma fileira de navios
de guerra, ancorados junto a três grandes dromones e ao enorme navio
almirante de quatro cobertas de Lorde Hightower, o Honra de
Vilavelha. Mais uma vez, Vento de Canela teve de se submeter à
inspeção. Agora foi o filho de Lorde Leyton, Gunthor, quem veio a
bordo, trajando um manto de pano prata e uma couraça de escamas
cinzentas e esmaltadas. Sor Gunthor estudara durante vários anos na
Cidadela e falava o idioma do verão, de modo que ele e Quhuru Mo se
reuniram na cabine do capitão para conferenciar em privado.
Sam
aproveitou o tempo para explicar seus planos a Goiva.
-
Primeiro, a Cidadela, para entregar as cartas de Jon e lhes informar
a morte de Meistre Aemon. Suponho que os arquimeistres mandem um
carro para vir buscar seu corpo. Depois arranjarei cavalos e uma
carroça para levá-la à minha mãe em Monte Chifre. Regressarei
assim que conseguir, mas talvez não possa até amanhã de manhã.
- Amanhã
de manhã - a garota repetiu, e lhe deu um beijo de boa sorte.
Passado
algum tempo, Sor Gunthor reapareceu e fez sinal para que abrissem a
corrente, a fim de que o Vento de Canela pudesse atravessar o dique e
atracar. Sam juntou-se a Kojja Mo e a três de seus arqueiros,
resplandecentes nos mantos de penas que só usavam em terra, junto da
prancha de embarque enquanto o navio cisne era amarrado. Sentiu-se
maltrapilho ao lado deles, com seus largos trajes negros, manto
desbotado e botas manchadas pelo salitre.
- Quanto
tempo permanecerão no porto?
- Dois
dias, dez, quem poderá dizer? O tempo que demorar para esvaziar os
porões e voltar a enchê-los - Kojja sorriu. - Meu pai também tem
de visitar os meistres cinzentos. Tem livros para vender.
- Goiva
pode ficar a bordo até o meu regresso?
- Goiva
pode ficar tanto tempo quanto quiser - espetou um dedo na barriga de
Sam. - Ela não come tanto como certas pessoas.
- Não
sou tão gordo como era - Sam rebateu em sua defesa. A passagem para
o sul servira para isso. Todos aqueles turnos de vigia, e nada para
comer, exceto fruta e peixe. Os ilhéus do verão adoravam fruta e
peixe.
Sam
seguiu os arqueiros pela prancha, mas, uma vez em terra, separaram-se
e seguiram cada um o seu caminho. Sam esperava ainda se lembrar do
caminho para a Cidadela. Vilavelha era um labirinto, e não tinha
tempo a perder.
O dia
estava úmido, e as ruas de pedra estavam molhadas e escorregadias
debaixo dos seus pés e as vielas mostravam-se cobertas de névoa e
mistério. Sam evitou-as o melhor que pôde e permaneceu na estrada
do rio, que serpenteava ao longo do Vinhomel através do coração da
cidade antiga. Era bom ter de novo terreno sólido sob seus pés em
vez de um convés oscilante, mas ainda assim a caminhada o deixou
desconfortável. Sentia olhos postos em si, espreitando de varandas e
janelas, observando-o de dentro de soleiras escurecidas. No Vento de
Canela conhecia todos os rostos. Ali, não importa para onde se
virasse, via um novo estranho. Ainda pior era a ideia de ser visto
por alguém que o conhecesse. Lorde Randyll Tarly era conhecido em
Vilavelha, mas pouco amado. Sam não sabia o que seria pior: ser
reconhecido por um dos inimigos do senhor seu pai ou por um de seus
amigos. Puxou o capuz para cima e acelerou o passo.
Os
portões da Cidadela eram flanqueados por um par de esfinges verdes
muito altas com corpo de leão, asas de águia e cauda de serpente.
Uma tinha rosto de homem, e a outra, de mulher. Logo atrás ficava o
Lar do Escriba, onde o povo de Vilavelha vinha procurar acólitos
para lhes escrever os testamentos ou ler as cartas. Meia dúzia de
escribas entediados estavam sentados em barracas abertas à espera de
algum freguês. Em algumas delas havia livros sendo vendidos e
comprados. Sam parou numa que oferecia mapas e examinou um da
Cidadela, desenhado à mão, a fim de averiguar qual o caminho mais
curto para a Residência do Senescal.
O caminho
dividia-se onde a estátua do Rei Daeron Primeiro sentava-se em seu
grande cavalo de pedra, de espada erguida na direção de Dorne. Uma
gaivota encontrava-se empoleirada na cabeça do Jovem Dragão, e
havia outras duas na espada. Sam seguiu pela rua da esquerda, que
corria junto ao rio. Na Doca Gotejante, viu dois acólitos ajudando
um velho a entrar num barco para uma curta viagem até a Ilha
Sangrenta. Uma jovem mãe subiu atrás do velho, com um bebê, não
muito mais velho do que o de Goiva, guinchando em seus braços. Por
baixo da doca, alguns ajudantes de cozinha andavam pelos baixios
apanhando rãs. Uma fila de noviços de faces rosadas passou correndo
perto dele, rumo à septeria. Devia ter vindo para cá quando era da
idade deles, Sam pensou. Se tivesse fugido e arranjado um nome falso,
poderia ter desaparecido entre os outros noviços. Meu pai poderia
ter fingido que Dickon era seu único filho. Duvido que tivesse se
incomodado em me procurar, a menos que eu tivesse levado uma mula.
Então teria me dado caça, mas só por causa da mula.
À porta
da Residência do Senescal, os reitores prendiam um noviço mais
velho no tronco.
- Roubou
comida das cozinhas - explicou um deles aos acólitos que esperavam
para atirar no prisioneiro uma saraivada de vegetais podres. Todos
lançaram olhares curiosos a Sam quando passou por eles a passos
largos, com o manto negro enfunando-se atrás de si como uma vela.
Para além
das portas foi encontrar um salão de chão de pedra e altas janelas
arqueadas. Na outra extremidade, um homem de rosto chupado
encontrava-se sentado sobre um estrado alto arranhando um
livro-mestre com uma pena. Embora ele trajasse uma veste de meistre,
não havia corrente em volta do seu pescoço. Sam pigarreou.
-
Bom-dia.
O homem
ergueu os olhos e não pareceu aprovar aquilo que viu.
- Cheira
a noviço.
- Espero
vir a sê-lo em breve - Sam tirou do bolso as cartas que Jon lhe
dera. - Vim da Muralha com Meistre Aemon, mas ele morreu durante a
viagem. Se pudesse falar com o Senescal...
- Seu
nome?
-
Samwell. Samwell Tarly.
O homem
escreveu o nome em seu livro-mestre e indicou com a pena um banco
encostado à parede.
-
Sente-se. Será chamado a seu tempo.
Sam
sentou-se no banco.
Outros
chegaram e partiram. Alguns entregaram mensagens e se retiraram.
Alguns falaram com o homem no estrado e foram mandados entrar pela
porta atrás e por uma escada em caracol. Alguns se juntaram a Sam
nos bancos, à espera de que seus nomes fossem chamados. Tinha quase
certeza de que alguns dos que foram convocados tinham chegado depois
dele. Depois da quarta ou da quinta vez que isso aconteceu, ergueu-se
e voltou a atravessar a sala.
- Quanto
tempo ainda falta?
- O
Senescal é um homem importante.
- Eu
venho da Muralha.
- Então
não terá dificuldade em andar um pouco mais. Até aquele banco ali,
debaixo da janela.
Sam
regressou ao banco. Passou mais uma hora. Outros entraram, falaram
com o homem no estrado, esperaram uns momentos e foram mandados
entrar. Durante todo esse tempo, o porteiro nem sequer olhou para Sam
de relance. O nevoeiro lá fora foi se tornando menos denso à medida
que o dia passava, e uma pálida luz do sol entrou em diagonal pelas
janelas. Deu por si observando os grãos de poeira dançando na luz.
Deixou escapar um bocejo, e depois outro. Remexeu numa bolha
rebentada na palma da mão e depois encostou a cabeça para trás e
fechou os olhos.
Devia ter
adormecido. Quando deu por si, o homem no estrado chamava um nome.
Sam pôs-se em pé de um salto, após o que se voltou a se sentar
quando compreendeu que não era o seu.
- Tem de
passar uma moeda a Lorcas, senão ficará esperando aqui três dias -
disse uma voz atrás dele. - O que traz a Patrulha da Noite à
Cidadela?
A voz era
de um jovem magro, esbelto e de boa aparência, vestido com calções
de pele de corça e uma brigantina verde ajustada ao corpo e
tachonada de ferro. Tinha a pele de uma leve cor de cerveja castanha
e uma coroa de densos cachos negros que se juntavam em bico por cima
de seus grandes olhos negros.
- O
Senhor Comandante está restaurando os castelos abandonados - Sam
explicou. - Precisamos de mais meistres, para os corvos... Falou em
moeda?
- Uma
moeda servirá. Por um veado de prata, Lorcas carregaria você nas
costas até o Senescal. Há cinquenta anos é acólito. Odeia
noviços, especialmente os de nascimento nobre.
- Como
sabe que sou de nascimento nobre?
- Da
mesma maneira que você sabe que sou meio dornês - o rapaz falou,
com um sorriso, num suave e arrastado dornês.
Sam
procurou uma moeda:
- É um
noviço?
-
Acólito, Alleras, mas alguns me chamam de Esfinge.
O nome
fez Sam dar um salto.
- A
esfinge é a adivinha, não o adivinho - disse, sem pensar. - Sabe o
que isso significa?
- Não. É
um enigma?
- Bem que
eu gostaria de saber. Sou Samwell Tarly. Sam.
- Prazer.
E que negócios tem Samwell Tarly com o Arquimeistre Theobald?
- E ele o
Senescal? - Sam perguntou, confuso. - Meistre Aemon dizia que seu
nome era Norren.
- Nos
últimos dois turnos não. Há um novo todos os anos. Ocupam o cargo
com um dos arquimeistres, a maioria dos quais o vê como uma tarefa
ingrata que os afasta de seu verdadeiro trabalho. Este ano, a pedra
preta saiu para o Arquimeistre Walgrave, mas sua cabeça tende a
vaguear, de modo que Theobald avançou e disse que serviria durante o
mandato dele. É um homem duro, mas bom. Disse Meistre Aemon?
- Sim.
- Aemon
Targaryen?
-
Outrora, sim. A maioria das pessoas o chamava simplesmente Meistre
Aemon. Morreu durante nossa viagem para o sul. Como é que sabe dele?
- Como
não saber? Era mais do que o mais velho meistre vivo. Era o homem
mais velho em Westeros, e sobreviveu a mais história do que
Arquimeistre Perestan alguma vez aprendeu. Podia ter nos contado
muitas coisas sobre o reinado do pai e do tio. Que idade tinha, você
sabe?
- Cento e
dois anos.
- O que
ele fazia no mar na sua idade?
Sam
remoeu a questão por um momento, perguntando-se quanto devia dizer.
A esfinge é a adivinha, não o adivinho. Poderia Meistre Aemon ter
se referido àquela Esfinge? Parecia pouco provável.
- O
Senhor Comandante Snow o mandou embora para lhe salvar a vida -
começou, hesitante. Falou desajeitadamente do Rei Stannis e de
Melisandre de Asshai, pretendendo parar por aí, mas uma coisa levou
a outra e deu por si falando de Mance Rayder e de seus selvagens, de
sangue real e de dragões, e antes de se dar conta do que estava
acontecendo, todo o resto jorrou-lhe da boca; as criaturas no Punho
dos Primeiros Homens, o Outro em seu cavalo morto, o assassinato do
Velho Urso na Fortaleza de Craster, Goiva e a fuga de ambos,
Brancarbor e Paul Pequeno, Mãos-Frias e os corvos, Jon se tornando
senhor comandante, Melro, Dareon, Bravos, os dragões que Xhondo vira
em Qarth, o Vento de Canela e tudo que Meistre Aemon murmurou no fim
da vida. Reteve apenas os segredos que jurara manter, sobre Bran
Stark e os companheiros e os bebês que Jon Snow trocara. - Daenerys
é a única esperança - concluiu. - Aemon disse que a Cidadela tinha
de lhe enviar imediatamente um meistre para trazê-la para Westeros
antes que seja tarde demais.
Alleras
escutou com atenção. Pestanejou de tempos em tempos, mas nunca riu
nem o interrompeu. Quando Sam terminou, tocou-lhe levemente no
antebraço com uma esguia mão castanha e disse:
- Poupe
sua moeda, Sam. Theobald não acreditará em metade dessa história,
mas há quem talvez acredite. Quer vir comigo?
- Para
onde?
- Falar
com um arquimeistre.
Tem de
lhes dizer, Sam, dissera Meistre Aemon. Tem de contar aos
arquimeistres.
- Muito
bem - poderia sempre voltar ao Senescal na manhã seguinte, com uma
moeda na mão. - Temos de andar muito?
- Não
muito. A Ilha dos Corvos.
Não
precisaram de um barco para chegar; uma desgastada ponte levadiça de
madeira ligava a ilha à margem oriental.
- A
Corvoaria é o edifício mais velho da Cidadela - disse-lhe Alleras,
enquanto atravessavam as águas lentas do Vinhomel. - Diz-se que na
Era dos Heróis era o quartel-general de um senhor pirata que ficava
aqui assaltando os navios que desciam o rio.
Sam viu
que musgo e trepadeiras cobriam as paredes, e corvos patrulhavam as
ameias no lugar dos arqueiros. Não havia memória de a ponte
levadiça ter sido içada.
Dentro
das muralhas do castelo era fresco e havia pouca luz. Um antigo
represeiro enchia o pátio, como fizera desde que aquelas pedras
tinham sido erguidas pela primeira vez. O rosto esculpido no tronco
estava coberto pelo mesmo musgo purpúreo que pendia pesadamente dos
galhos claros da árvore. Metade dos galhos pareciam mortos, mas nos
outros algumas folhas vermelhas ainda farfalhavam, e era aí que os
corvos gostavam de se empoleirar. A árvore estava cheia deles, e
havia mais nas janelas arqueadas que se abriam mais acima, em volta
de todo o pátio. O chão encontrava-se salpicado por seus
excrementos. Enquanto cruzavam o pátio, um dos corvos esvoaçou por
cima de suas cabeças, e Sam ouviu os outros crocitando uns com os
outros.
-
Arquimeistre Walgrave tem seus aposentos na torre ocidental, por
baixo da colônia branca - disse-lhe Alleras. - Os corvos brancos e
os pretos guerreiam como dorneses e gente da Marca, por isso os
mantém separados.
-
Arquimeistre Walgrave compreenderá o que eu lhe disser? - Sam quis
saber. - Disse que a cabeça dele tende a vaguear.
- Ele tem
bons e maus dias - Alleras respondeu - mas não é Walgrave que vamos
visitar - abriu a porta da torre norte e começou a subir. Sam galgou
os degraus atrás dele. Ouviam-se asas batendo e murmúrios vindos de
cima, e aqui e ali um grito irritado, quando os corvos se queixavam
por terem sido acordados.
No topo
dos degraus, um jovem pálido e loiro, com quase a mesma idade de
Sam, estava sentado junto a uma porta de carvalho e ferro, fitando
intensamente a chama de uma vela com o olho direito. O esquerdo
estava escondido atrás de uma madeixa de cabelos loiros muito
claros.
- Está à
procura de quê? Seu destino? Sua morte?
O jovem
loiro afastou os olhos da vela, piscando.
-
Mulheres nuas - respondeu. - Quem é este agora?
-
Samwell. Um novo noviço. Veio ver o Mago.
- A
Cidadela já não é o que era - o loiro protestou. - Aceitam
qualquer coisa hoje em dia. Cães morenos e dorneses, criadores de
porcos, aleijados, cretinos, e agora uma baleia vestida de preto. E
eu que pensava que os leviatãs eram cinzentos - uma meia capa com
listras verdes e douradas envolvia-lhe um ombro. Era muito bonito,
embora tivesse olhos astutos e uma boca cruel.
Sam o
conhecia.
- Leo
Tyrell - a menção do nome o fez se sentir como se ainda fosse um
garoto de sete anos, prestes a molhar a roupa de baixo. - Sou Sam, de
Monte Chifre. Filho de Lorde Randyll Tarly.
- É
mesmo? - Leo lançou-lhe outro olhar. - Suponho que seja. Seu pai
disse a todos que estava morto. Ou será que só desejava que
estivesse? - sorriu. - Ainda é um covarde?
- Não -
Sam mentiu. Jon lhe dera uma ordem. - Estive além da Muralha e lutei
em batalhas. Chamam-me Sam, o Matador - não sabia por que dissera
aquilo. As palavras limitaram-se a jorrar para fora.
Leo deu
risada, mas antes de ter tempo de responder, a porta atrás dele se
abriu.
- Para
dentro, Matador - resmungou o homem que surgiu na soleira. - E você
também, Esfinge. Já.
- Sam -
Alleras o chamou - este é o Arquimeistre Marwyn.
Marwyn
usava uma corrente de muitos metais em torno do seu pescoço de
touro. Fora isso, parecia-se mais com um criminoso das docas do que
um meistre. Tinha uma cabeça grande demais para o corpo, e o modo
como a projetava para a frente, junto com o queixo quadrado, fazia
que parecesse prestes a arrancar a cabeça de alguém. Embora fosse
baixo e atarracado, tinha peito e ombros pesados, e uma barriga de
cerveja redonda, dura como pedra, que empurrava os atilhos do
justilho de couro que usava em vez da veste tradicional. Hirsutos
pelos brancos brotavam-lhe das orelhas e das narinas. A testa
sobressaía-se, o nariz tinha sido quebrado mais de uma vez e
folhamarga manchara-lhe os dentes de um vermelho mosqueado. Tinha as
maiores mãos que Sam já vira.
Quando
Sam hesitou, uma dessas mãos agarrou seu braço e o fez atravessar a
porta com um puxão. A sala atrás da porta era grande e redonda.
Havia livros e rolos por todo lado, espalhados nas mesas e amontoados
no chão em pilhas com mais de um metro de altura. Tapeçarias
desbotadas e mapas esfarrapados cobriam as paredes de pedra. Um fogo
ardia na lareira, sob uma panela de cobre. O que quer que esta
contivesse cheirava a queimado. Além da fogueira, a única luz que
havia ali provinha de uma grande vela negra no centro da sala.
A vela
era desagradavelmente brilhante. Havia algo de estranho nela. A chama
não tremeluzia, nem mesmo quando Arquimeistre Marwyn fechou a porta
com tanta força que papéis voaram de uma mesa próxima. A luz
também fazia qualquer coisa estranha às cores. Os brancos eram
brilhantes como a neve recém-caída, o amarelo cintilava como ouro,
os vermelhos transformavam-se em chamas, mas as sombras eram tão
negras que pareciam buracos abertos no mundo. Sam deu por si
fitando-a. A vela propriamente dita tinha quase um metro de altura e
era esguia como uma espada, com arestas e retorcida, de um negro
reluzente.
- Isso
é...?
- ...
obsidiana - disse o outro homem que se encontrava presente no
aposento, um indivíduo novo, pálido, carnudo e macilento, com
ombros redondos, mãos delicadas, olhos juntos e manchas de comida
nas vestes.
- Você
chama isso de vidro de dragão - Arquimeistre Marwyn lançou um
relance momentâneo à chama. - Arde mas não é consumido.
- O que
alimenta a chama? - Sam quis saber.
- O que
alimenta o fogo de um dragão? - Marwyn sentou-se num banco. - Toda a
feitiçaria valiriana tem raízes no sangue ou no fogo. Os
feiticeiros da Cidade Livre podiam ver além das montanhas, dos mares
e dos desertos com uma dessas velas de vidro. Podiam entrar nos
sonhos de um homem e dar-lhe visões, e falar uns com os outros a
meio mundo de distância, sentados diante de suas velas. Acha que
isso podia ser útil, Matador?
- Não
precisaríamos de corvos.
- Só
depois das batalhas - o arquimeistre arrancou uma folhamarga de um
fardo, enfiou-a na boca e pôs-se a mastigá-la. - Conte-me tudo o
que confidenciou à nossa esfinge de Dorne. Sei muitas dessas coisas
e mais ainda, mas alguns pequenos detalhes podem ter me escapado.
Não era
homem a quem se pudesse dizer não. Sam hesitou por um momento, e
então voltou a contar sua história, enquanto Marwyn, Alleras e o
outro noviço escutavam.
- Meistre
Aemon acreditava que Daenerys Targaryen era a realização de uma
profecia... Ela, não Stannis nem Príncipe Rhaegar, nem o
principezinho cuja cabeça foi atirada contra a parede.
- Nascida
entre o sal e o fumo, sob uma estrela sangrenta. Conheço a profecia
- Marwyn virou a cabeça e escarrou uma bola de muco vermelho para o
chão. - Não que confie nela. Gorghan de Velha Ghis escreveu um dia
que uma profecia é como uma mulher traiçoeira. Mete o seu membro na
boca, você geme de prazer e pensa, “ que maravilha, que agradável,
que bom isto é” ... E então seus dentes se fecham e seus gemidos
se transformam em gritos. É essa a natureza da profecia, Gorghan
disse. A profecia sempre arranca seu pau a dentada - mascou durante
algum tempo. - Mesmo assim...
Alleras
pôs-se ao lado de Sam.
- Aemon
teria ido ter com ela se tivesse forças para isso. Queria que lhe
mandássemos um meistre, para aconselhá-la, protegê-la e trazê-la
para casa em segurança.
- Ah
queria? - Arquimeistre Marwyn encolheu os ombros. - Talvez seja bom
que tenha morrido antes de chegar a Vilavelha. Caso contrário, as
ovelhas cinzentas talvez tivessem de matá-lo, e isso teria feito os
queridos dos pobres velhos torcer as mãos encarquilhadas.
-
Matá-lo? - Sam estava chocado. - Por quê?
- Se eu
lhe disser, podem ter de matar você também - Marwyn abriu um
horrendo sorriso com o sumo da folhamarga escorrendo, rubro, entre os
dentes. - Quem você acha que matou todos os dragões da última vez?
Galantes matadores de dragões armados de espadas? - cuspiu. - O
mundo que a Cidadela está construindo não tem lugar para
feitiçaria, profecias ou velas de vidro, e muito menos para dragões.
Pergunte a si mesmo por que foi deixado que Aemon Targaryen
desperdiçasse a vida na Muralha, quando, por direito próprio, devia
ter sido promovido a arquimeistre. O motivo foi seu sangue. Não
podiam confiar nele. Assim como não podem confiar em mim.
- O que
fará? - Alleras, o Esfinge perguntou.
-
Arranjarei um meio de chegar à Baía dos Escravos no lugar de Aemon.
O navio cisne que trouxe o Matador deve responder bastante bem às
minhas necessidades. As ovelhas cinzentas irão enviar seu homem numa
galé, sem dúvida. Com bons ventos, deverei chegar antes - Marwyn
voltou a olhar Sam de relance e franziu as sobrancelhas. - Você...
você devia ficar e forjar a sua corrente. Se eu fosse você, faria
isso depressa. Chegará um momento em que será necessário na
Muralha -virou-se para o noviço de rosto macilento: - Arranje uma
cela seca para o Matador. Dormirá aqui, e o ajudará a cuidar dos
corvos.
- M-m-mas
- Sam gaguejou - os outros arquimeistres... o Senescal... o que lhes
direi?
-
Diga-lhes como são sábios e bons. Diga-lhes que Aemon ordenou que
você se colocasse nas mãos deles. Diga-lhes que sempre sonhou em um
dia ser autorizado a usar a corrente e servir o bem supremo, que o
serviço é a maior das honras, e a obediência é sua maior virtude.
Mas não diga nada sobre profecias ou dragões, a menos que goste de
veneno no mingau de aveia - Marwyn tirou um manto de couro manchado
de um cabide perto da porta e o apertou bem. - Esfinge, proteja este
rapaz.
-
Protegerei - Alleras respondeu, mas o arquimeistre já tinha saído.
Ouviram suas botas batendo nos degraus.
- Aonde
ele foi? - Sam quis saber, desorientado.
- Para as
docas. O Mago não é homem de perder tempo - Alleras sorriu. - Tenho
uma confissão a fazer. Nosso encontro não foi casual, Sam. O Mago
mandou que eu o agarrasse antes que falasse com Theobald. Ele sabia
que estava a caminho.
- Como?
Alleras
indicou a vela de vidro com um aceno.
Sam fitou
a estranha chama pálida por um momento, após o que pestanejou e
afastou o olhar. Escurecia do outro lado da janela.
- Há uma
cela vazia por baixo da minha na torre ocidental, com uma escada que
leva diretamente aos aposentos de Walgrave - disse o jovem de rosto
macilento. - Se não se importar com o barulho dos corvos, tem uma
boa vista sobre o Vinhomel. Serve?
- Suponho
que sim - Sam sabia que tinha de dormir em algum lugar.
- Eu
levarei algumas mantas de lã para você. Paredes de pedra ficam
frias durante a noite, até mesmo aqui.
-
Obrigado - havia algo no pálido e delicado jovem que lhe
desagradava, mas não queria parecer descortês, de modo que
acrescentou: - Meu nome não é Matador. Sou Sam. Samwell Tarly.
- Eu me
chamo Pate - o outro se apresentou - como o criador de porcos.
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