sábado, 7 de setembro de 2013

50 - ARYA


- Alto - gritou Syrio Forel, atirando um golpe à sua cabeça.
As espadas de pau fizeram clac quando Arya o parou.
- Esquerda - ele gritou, e sua lâmina aproximou-se assobiando. A dela precipitou-se para pará-la. O clac fez Syrio estalar os dentes.
- Direita - ele disse, e "Baixo" e "Esquerda" e de novo "Esquerda" mais e mais depressa, avançando. Arya recuou, parando todos os golpes.
- Estocada - preveniu Syrio, e quando o golpe veio, ela se esquivou para o lado, afastou a lâmina dele e atirou um contragolpe ao seu ombro. Quase o tocou, quase, ficou tão perto que sorriu. Uma madeixa pendeu-lhe sobre os olhos, pesada de suor, afastou-a com as costas da mão.
- Esquerda - Syrio cantou. - Baixo - sua espada era uma mancha indistinta, e o Pequeno Salão ecoava com os clac, clac , clac. - Esquerda. Esquerda. Alto. Esquerda. Direita. Esquerda. Baixo. Esquerda!
A lâmina de madeira a atingiu na parte superior do peito, num súbito golpe que era mais doloroso por ter vindo do lado errado.
- Au - ela gritou. Teria ali um novo hematoma quando fosse dormir, em algum lugar no mar. Um hematoma é uma lição, disse a si mesma, e todas as lições nos melhoram.
Syrio deu um passo para trás.
- Agora está agora morta.
Arya fez uma careta.
- Você me enganou - disse com veemência. - Disse esquerda e foi pela direita.
- Precisamente. E agora é uma garota morta.
- Mas você mentiu!
- Minhas palavras mentiram. Os olhos e o braço gritaram a verdade, mas você não estava vendo.
- Estava, sim - Arya rebateu. - Observei-o segundo a segundo!
- Observar não é ver, garota morta. O dançarino de água vê. Anda, deixe a espada, agora é tempo de escutar.
Arya o seguiu até junto da parede, onde ele se instalou num banco.
- Syrio Forel foi a primeira espada do Senhor do Mar de Bravos, mas saberá você como isso aconteceu?
- Você era o melhor espadachim da cidade.
- Precisamente. Mas por quê? Outros homens eram mais fortes, mais rápidos, mais jovens. Por que Syrio Forel era o melhor? Vou lhe dizer - tocou ligeiramente a pálpebra com a ponta do mindinho. - Ver, ver realmente, é o coração de tudo. Escute-me. Os navios de Bravos navegam até tão longe quanto os ventos sopram, até terras estranhas e maravilhosas, e, quando regressam, seus capitães trazem animais bizarros para a coleção do Senhor do Mar. Animais como você nunca viu, cavalos listrados, grandes coisas malhadas com pescoços longos como pernas de pau, ratos-porcos peludos do tamanho de vacas, manticoras com espinhos, tigres que transportam as crias numa bolsa, terríveis lagartos que caminham com foices no lugar das garras. Syrio Forel viu estas coisas. No dia do qual falo, a primeira espada tinha morrido havia pouco tempo e o Senhor do Mar mandou me chamar. Muitos espadachins tinham sido levados à sua presença e a todos mandara embora, sem que nenhum soubesse por quê. Quando foi a minha vez, encontrei-o sentado com um gordo gato amarelo ao colo. Disse-me que um dos capitães lhe tinha trazido o animal de uma ilha para lá do sol nascente. "Já viu algum animal como ela?", ele perguntou. E eu lhe disse: "Todas as noites, nas vielas de Bravos, vejo mil como ele", e o Senhor do Mar riu e nesse mesmo dia fui nomeado primeira espada. Arya contraiu o rosto.
- Não entendi.
Syrio rangeu os dentes.
- O gato era um gato comum, nada mais. Os outros esperavam um animal fabuloso, e era isso que viam. Era tão grande, diziam. Não era maior que qualquer outro gato, tinha apenas engordado devido à indolência, pois o Senhor do Mar o alimentava de sua própria mesa. Que curiosas pequenas orelhas possuía, diziam. Suas orelhas tinham sido roídas em lutas entre crias. E era claramente um macho, mas o Senhor do Mar dizia "ela", e era isso que os outros viam. Está ouvindo?
Arya refletiu sobre aquilo.
- Viu o que havia para ver.
- Precisamente. Abrir os olhos era o quanto bastava. O coração mente e a cabeça usa truques conosco, mas os olhos veem a verdade. Olhe com os olhos. Ouça com os ouvidos. Saboreie com a boca. Cheire com o nariz. Sinta com a pele. É então, depois, que chega o tempo de pensar e de, assim, conhecer a verdade.
- Precisamente - Arya respondeu sorrindo. Syrio Forel permitiu-se um sorriso.
- Estou pensando que quando chegarmos a esse seu Winterfell será tempo de pôr esta agulha em sua mão.
- Sim! - Arya disse, entusiasmada. - Espere só que eu mostre a Jon...
Atrás dela, as grandes portas de madeira do Salão Pequeno abriram-se bruscamente com um estrondo ressonante. Arya virou-se sobre si mesma.
Um cavaleiro da Guarda Real encontrava-se sob o arco da porta, com cinco guardas dos Lannister enfileirados atrás dele. Trazia armadura completa, mas o visor estava erguido. Arya lembrava-se de seus olhos caídos e das suíças cor de ferrugem de quando estivera em Winterfell com o rei: Sor Meryn Trant. Os homens de manto vermelho usavam cota de malha sobre couro fervido e capacetes de aço decorados com leões.
- Arya Stark - disse o cavaleiro - venha conosco, filha.
Arya mordeu o lábio, insegura.
- O que vocês querem?
- Seu pai quer vê-la.
Arya deu um passo em frente, mas Syrio Forel a segurou pelo braço.
- E por que é que Lorde Eddard enviaria homens dos Lannister em lugar dos seus? Estou curioso.
- Ponha-se no seu lugar, mestre de dança - disse Sor Meryn. - Isto não lhe diz respeito.
- Meu pai não os enviaria - Arya disse. E agarrou a espada de pau. Os Lannister riram.
- Pouse o pau, menina - disse-lhe Sor Meryn. - Sou um Irmão Juramentado da Guarda Real, as Espadas Brancas.
- Também o Regicida o era quando matou o antigo rei - Arya lembrou. - Não tenho de ir com vocês se não quiser.
Sor Meryn Trant ficou sem paciência.
- Capturem-na - ordenou a seus homens e abaixou o visor do elmo.
Três dos homens avançaram, fazendo tilintar suavemente a cota de malha a cada passo. Arya sentiu um medo súbito. O medo golpeia mais profundamente que as espadas, disse a si mesma a fim de acalmar as batidas do coração. Syrio Forel interpôs-se entre os homens e Arya, que batia levemente com a espada de madeira na bota.
- Parem aí mesmo. São homens ou cães para ameaçar uma criança?
- Saia da frente, velho - disse um dos homens de manto vermelho.
A espada de madeira de Syrio subiu assobiando e ressoou contra o elmo do homem.
- Chamo-me Syrio Forel, e vai se dirigir a mim com mais respeito.
- Maldito careca - o homem puxou a espada. A madeira voltou a movimentar-se com uma rapidez que cegava. Arya ouviu um sonoro crac quando a espada bateu ruidosamente no chão de pedra. - Minha mão - gemeu o guarda, agarrando os dedos quebrados.
- É rápido para um mestre de dança - Sor Meryn disse.
- É lento para um cavaleiro - Syrio respondeu.
- Matem o bravosiano e tragam-me a menina - ordenou o cavaleiro da armadura branca. Quatro guardas Lannister desembainharam as espadas. O quinto, o dos dedos quebrados, cuspiu e puxou um punhal com a mão esquerda.
Syrio Forel rangeu os dentes, pondo-se na sua posição de dançarino de água, apresentando apenas o flanco ao inimigo.
- Arya, minha filha - chamou, sem olhar para ela, sem nunca tirar os olhos dos Lannister - basta de dança por hoje. É melhor que vá embora. Corra para junto do seu pai.
Arya não queria deixá-lo, mas Syrio a ensinara a fazer o que lhe dizia.
- Ligeira como uma corça - sussurrou.
- Precisamente - disse Syrio Forel, enquanto os Lannister se aproximavam.
Arya recuou, com a espada de madeira bem apertada na mão. Ao vê-lo agora, compreendeu que Syrio se limitara a brincar com ela nos seus duelos. Os homens de manto vermelho aproximavam-se dele por três lados, de aço nas mãos. Tinham o peito e braços revestidos de cota de malha, e uma malha de aço cosida às calças, mas apenas couro nas pernas. As mãos estavam nuas, e os capacetes que usavam tinham protetores para o nariz, mas não uma viseira sobre os olhos.
Syrio não esperou que o alcançassem e girou para a esquerda. Arya nunca vira alguém mover-se tão depressa. O bravosiano parou um golpe de espada com seu pedaço de pau e rodopiou para longe de uma segunda lâmina. Desequilibrado, o segundo homem cambaleou sobre o primeiro. Syrio deu-lhe com uma bota nas costas, e os homens de vermelho caíram juntos. O terceiro guarda saltou por cima dos companheiros, dando um golpe na cabeça do dançarino de água. Syrio esquivou-se sob a lâmina e deu uma estocada de baixo para cima. O guarda caiu aos gritos, jorrando sangue do úmido buraco vermelho que se abrira onde estivera seu olho esquerdo.
Os homens que tinham caído estavam se levantando. Syrio pontapeou um deles na cara e arrancou o capacete de aço da cabeça do outro, O homem da adaga tentou apunhalá-lo. Syrio defendeu-se com o capacete e partiu-lhe a rótula com a espada de pau. O último homem de vermelho gritou uma praga e avançou, brandindo a espada de cima para baixo com as duas mãos. Syrio rolou para a direita, e aquele golpe de carniceiro atingiu entre o pescoço e o ombro do homem sem capacete, que tentava se ajoelhar. A longa espada triturou cota de malha, couro e carne. O homem de joelhos guinchou.
Antes que seu assassino conseguisse libertar a espada, Syrio deu-lhe uma estocada no pomo de adão. O guarda soltou um grito sufocado e cambaleou para trás, agarrado ao pescoço, com o rosto já enegrecendo. Quando Arya alcançou a porta dos fundos, que dava para a cozinha, cinco homens estavam caídos, mortos ou morrendo. Ouviu Sor Meryn Trant praguejar.
- Malditos idiotas - resmungou, sacando a espada da bainha.
Syrio Forel regressou à sua posição e rangeu os dentes.
- Arya, minha filha - chamou, sem nunca olhar para ela - vá embora agora.
Olhe com os olhos, dissera ele. E ela via: o cavaleiro coberto dos pés à cabeça pela armadura branca, com as pernas, garganta e mãos revestidos de metal, os olhos escondidos atrás do grande elmo branco, e aço afiado nas mãos. Contra aquilo: Syrio, vestido de couro, com uma espada de madeira na mão.
- Syrio, fuja - ela gritou.
- A primeira espada de Bravos não foge - ele cantou, enquanto Sor Meryn lhe desferia um golpe. Syrio pulou para longe, fazendo do pau uma mancha indistinta. Num instante, tinha lançado golpes contra a têmpora, o cotovelo e a garganta do cavaleiro, fazendo a madeira ressoar contra elmo, manopla e gorjal. Arya não conseguia se mexer. Sor Meryn avançou; Syrio recuou. Parou o golpe seguinte, rodopiou para longe do alcance do segundo e se desviou do terceiro. O quarto cortou a espada de pau em dois, estilhaçando a madeira e estraçalhando-a através do núcleo de chumbo.
Aos soluços, Arya virou-se e fugiu. Mergulhou através das cozinhas e da despensa, cega de pânico, serpenteando entre cozinheiros e aprendizes. Uma ajudante de padeiro surgiu na sua frente, segurando um tabuleiro de madeira. Arya atirou-o ao chão, espalhando por todo o lado cheirosos pães frescos. Ouviu gritos atrás de si enquanto rodopiava em torno de um corpulento carniceiro que ficou a olhá-la de boca aberta com um cutelo na mão. Tinha os braços vermelhos até o cotovelo.
Tudo o que Syrio Forel lhe ensinara passou-lhe num ápice pela cabeça. Ligeira como uma corça. Silenciosa como uma sombra. O medo golpeia mais profundamente que as espadas. Forte como um urso. Feroz como um glutão. O medo golpeia mais profundamente que as espadas. O homem que teme perder já perdeu. O medo golpeia mais profundamente que as espadas. O medo golpeia mais profundamente que as espadas. O medo golpeia mais profundamente que as espadas. O punho da espada de madeira estava escorregadio de suor, e Arya respirava com força quando chegou à escada da torre.
Por um instante, congelou. Para cima ou para baixo? O caminho para cima levaria à ponte coberta que atravessava o pátio pequeno até a Torre da Mão, mas este seria certamente o trajeto que esperavam que seguisse. Nunca faça o que eles esperam , dissera Syrio uma vez. Arya desceu, numa longa espiral, saltando sobre os estreitos degraus de pedra, dois e três de cada vez. Emergiu numa cavernosa adega abobadada e viu-se rodeada por barris de cerveja empilhados até chegar a seis metros de altura. A única luz que ali havia atravessava estreitas janelas oblíquas, abertas bem alto nas paredes. A adega era um beco sem saída. Não havia caminho a não ser aquele por onde viera. Não se atrevia a voltar e subir aqueles degraus, mas também não poderia ficar ali. Tinha de encontrar seu pai e lhe contar o que acontecera, Ele a protegeria.
Arya enfiou a espada de madeira no cinto e começou a escalar, saltando de barril em barril até conseguir alcançar uma janela. Agarrando-se à pedra com as duas mãos, subiu. A parede tinha quase um metro de espessura, e a janela era um túnel inclinado para cima e para fora. Arya torceu-se em direção da luz do dia. Quando a cabeça atingiu o nível do chão, espreitou a Torre da Mão, do outro lado da muralha.
A robusta porta de madeira pendia, lascada e partida, como se tivesse sido derrubada por machados. Um homem jazia morto nos degraus, de barriga para baixo, com a capa enrolada debaixo do corpo e as costas da cota de malha ensopadas de vermelho. Arya viu com terror que a capa do cadáver era de lã cinza, debruada de cetim branco. Não conseguia ver quem ele era.
- Não - sussurrou. O que estava acontecendo? Onde estava seu pai? Por que os homens de manto vermelho tinham ido buscá-la? Lembrou-se do que dissera o homem da barba amarela no dia em que encontrara os monstros. Se uma Mão pode morrer, porque não uma segunda?
Sentiu lágrimas nos olhos. Prendeu a respiração para escutar. Ouviu os sons de luta, berros, gritos, o clangor do aço batendo em aço, atravessando as janelas da Torre da Mão. Não podia regressar. Seu pai...
Arya fechou os olhos. Durante um instante, ficou assustada demais para se mover, Tinham matado Jory, Wyl e Heward, e aquele guarda no degrau, quem quer que ele fosse, Podiam também matar seu pai, e ela, se a apanhassem.
- O medo golpeia mais profundamente que as espadas - disse em voz alta, mas de nada servia fingir que era uma dançarina de água; Syrio fora um dançarino de água e àquela altura era provável que o cavaleiro branco o tivesse matado, e de qualquer forma ela era apenas uma garotinha com um pedaço de pau, só e assustada.
Escalou até o pátio, olhando em volta com cuidado enquanto se punha em pé, O castelo parecia deserto, A Fortaleza Vermelha nunca ficava deserta. Todo mundo devia estar escondido atrás de portas trancadas. Arya deu uma espiada ansiosa à janela do seu quarto e depois afastou-se da Torre da Mão, mantendo-se junto ao muro enquanto deslizava de sombra em sombra. Fez de conta que estava à caça de gatos... exceto que agora ela era o gato, e, se fosse apanhada, a matariam.
Movimentando-se entre os edifícios e por cima de muros, mantendo-se encostada às paredes sempre que possível para que ninguém fosse capaz de surpreendê-la, Arya chegou aos estábulos quase sem incidentes. Uma dúzia de homens de manto dourado protegidos por armaduras e cota de malha passou por ela correndo, enquanto avançava com cuidado pela muralha interior, mas, como não sabia de que lado eles estavam, agachou-se nas sombras e os deixou passar.
Hullen, que fora mestre dos cavalos em Winterfell desde que Arya conseguia recordar, estava esparramado no chão junto à porta dos estábulos. Fora apunhalado tantas vezes que sua túnica parecia ter um padrão de flores escarlates. Arya tinha certeza de que ele estava morto, mas quando se aproximou seus olhos se abriram.
- Arya Debaixo dos Pés - ele sussurrou. - Tem... prevenir o... senhor seu pai... - uma espumosa saliva vermelha saiu de sua boca borbulhando. O mestre dos cavalos voltou a fechar os olhos e nada mais disse.
Lá dentro havia mais corpos: um cavalariço com quem brincara e três dos guardas da Casa de seu pai. Uma carroça, carregada de caixotes e arcas, estava abandonada perto da porta do estábulo. Os mortos a deviam estar carregando para a viagem até as docas quando foram atacados. Arya esgueirou-se para mais perto. Um dos cadáveres era Desmond, o homem que lhe mostrara a espada e prometera proteger seu pai. Jazia de costas, com os olhos cegos fixos no teto enquanto moscas caminhavam por cima deles. Um morto vestido com o manto vermelho e o elmo do leão dos Lannister estava perto dele. Mas era só um. Cada nortenho vale tanto como dez desses soldados do sul, dissera-lhe Desmond.
- Mentiroso! - Arya disse, e deu um pontapé no corpo numa fúria súbita.
Os animais estavam inquietos nas cocheiras, relinchando e resfolegando devido ao cheiro de sangue. O único plano de Arya era selar um cavalo e fugir, para longe do castelo e da cidade. Tudo o que tinha a fazer era permanecer na Estrada do Rei, que a levaria até Winterfell. Tirou da parede um freio e arreios.
Ao passar pela parte de trás da carroça, uma arca caída chamou sua atenção. Devia ter sido atirada ao chão durante a luta, ou então caíra enquanto estava sendo carregada. A madeira quebrara-se e a tampa abrira-se, derramando o conteúdo pelo chão. Arya reconheceu sedas, cetins e veludos que nunca usava. Mas poderia precisar de roupas quentes na Estrada do Rei... e além disso...
Ajoelhou-se na terra por entre a roupa espalhada. Encontrou uma capa pesada de lã, uma saia de veludo, uma túnica de seda e alguma roupa de baixo, um vestido que sua mãe tinha bordado para ela, uma pulseira de criança em prata que poderia vender. Atirando a tampa partida para longe, apalpou dentro da arca, em busca da Agulha. Tinha-a escondido bem no fundo, debaixo de tudo, mas as coisas tinham se misturado todas quando a arca caíra. Por um momento Arya temeu que alguém tivesse encontrado e roubado a espada. Mas então seus dedos detectaram a dureza do metal sob um vestido de cetim.
- Aí está ela - sibilou uma voz, bem perto, às suas costas.
Sobressaltada, Arya rodopiou. Um cavalariço estava em pé atrás dela, com um sorriso estúpido no rosto e uma imunda túnica de baixo branca espreitando de sob um colete manchado, Tinha as botas cobertas de estrume e uma forquilha na mão.
- Quem é você? - ela perguntou.
- Ela não me conhece - ele disse - mas eu a conheço, ah, sim. A menina-lobo.
- Ajude-me a selar um cavalo - Arya pediu, enfiando a mão na arca, procurando a Agulha às apalpadelas. - Meu pai é a Mão do Rei, ele te dará uma recompensa.
- O pai tá morto - disse o rapaz. Aproximou-se, arrastando os pés - É a rainha que vai me dar recompensa. Vem cá, menina.
- Fica aí! - os dedos dela fecharam-se em torno do cabo da Agulha.
- Eu disse vem - ele agarrou seu braço com força.
Tudo o que Syrio Forel lhe ensinara desapareceu num instante. Naquele momento de súbito terror, a única lição que Arya conseguiu recordar foi aquela que Jon Snow lhe dera, a primeira de todas. Espetou nele a ponta aguçada, empurrando a lâmina para cima com uma força selvagem e histérica. A Agulha trespassou o colete de couro e a carne branca da barriga do rapaz e saiu entre as omoplatas. Ele deixou cair a forquilha e fez um som suave, algo entre um arquejo e um suspiro. As mãos fecharam-se em torno da lâmina.
- Ah, deuses - gemeu, quando a túnica de baixo começou a ficar vermelha. - Tire-a de mim.
Quando ela puxou a espada, ele morreu. Os cavalos relinchavam. Arya ficou em pé junto ao corpo, imóvel e assustada perante a morte. Jorrara sangue da boca do rapaz quando caíra, e mais sangue saía da incisão na sua barriga, acumulando-se num charco por baixo do corpo.
Tinha as palmas das mãos cortadas onde se agarrara à lâmina. Arya recuou lentamente, com Agulha, vermelha, na mão. Tinha de sair dali, ir para algum lugar distante, para algum lugar seguro, longe dos olhos acusadores do cavalariço. Voltou a pegar o freio e os arreios e correu para a sua égua, mas, ao erguer a sela por cima do dorso do cavalo, Arya compreendeu com um súbito terror que os portões do castelo estariam fechados. Mesmo as portas da entrada falsa estariam provavelmente guardadas. Os guardas talvez não a reconhecessem. Se pensassem que era um rapaz, talvez a deixassem... não, teriam ordens para não deixar ninguém sair, não importaria se a conheciam ou não. Mas havia outra saída do castelo...
A sela escorregou dos dedos de Arya e caiu ao chão com um baque e uma nuvem de pó. Seria capaz de voltar a encontrar a sala com os monstros? Não tinha certeza, mas sabia que tinha de tentar. Encontrou as roupas que tinha reunido e enrolou-se na capa, escondendo Agulha sob as suas dobras. Atou o resto numa trouxa. Com o embrulho debaixo do braço, esgueirou-se para o fundo do estábulo. Destrancando a porta dos fundos, espreitou para fora, ansiosa. Conseguia ouvir os sons distantes de espadas e o trêmulo pranto de um homem que gritava de dor do outro lado da muralha. Teria que descer a escada em espiral, atravessar a cozinha pequena e o pátio dos porcos; fora esse o caminho que tomara da outra vez, quando perseguia o gato preto... só que isso a levaria a passar justamente em frente da caserna dos homens de manto dourado. Não podia ir por aí. Arya tentou pensar em outro caminho. Se atravessasse o castelo até o outro lado, poderia avançar ao longo da muralha do rio e através do pequeno bosque sagrado..., mas primeiro tinha de atravessar o pátio, bem à vista dos guardas nas muralhas.
Nunca vira tantos homens nas muralhas. A maior parte usava mantos dourados e estava armada com lanças. Alguns a conheciam de vista, Que fariam se a vissem correndo através do pátio? Vista lá de cima, ela devia parecer muito pequena; seriam eles capazes de reconhecê-la? E se importariam?
Disse a si mesma que tinha de se pôr andando agora, mas quando o momento chegou descobriu-se assustada demais para se mover. Calma como águas paradas, sussurrou-lhe uma pequena voz ao ouvido. Arya ficou tão sobressaltada que quase deixou cair a trouxa. Olhou vivamente em volta, mas não havia ninguém no estábulo além dela, dos cavalos e dos homens mortos.
Silenciosa como uma sombra, ouviu. Seria sua voz ou a de Syrio? Não saberia dizer, mas de algum modo a voz acalmou-lhe os receios. Deu um passo para fora do estábulo.
Foi a coisa mais assustadora que já fizera. Quis fugir e esconder-se, mas obrigou-se a caminhar através do pátio, lentamente, colocando um pé à frente do outro como se tivesse todo o tempo do mundo e nenhuma razão para temer fosse quem fosse. Pareceu-lhe que conseguia sentir os olhos deles, como bichos rastejando pela sua pele sob a roupa.
Nunca olhou para cima. Sabia que, se os visse, toda a coragem a abandonaria, e deixaria cair a trouxa de roupa e fugiria chorando como um bebê, e então eles a teriam nas mãos. Manteve os olhos no chão. Quando atingiu a sombra do septo real, do outro lado do pátio, estava gelada de suor, mas ninguém dera o alarme.
O septo estava aberto e vazio. Lá dentro, meia centena de velas de oração ardia num silêncio odorífero. Arya achou que os deuses nunca dariam pela falta de duas. Apagou-as, enfiou-as nas mangas e saiu por uma janela dos fundos. Esgueirar-se até a viela onde encurralara o gato zarolho foi fácil, mas depois disso se perdeu. Rastejou para dentro e para fora de janelas, saltou por cima de muros e atravessou caves escuras às apalpadelas, silenciosa como uma sombra. Ouviu uma mulher chorar. Levou mais de uma hora para encontrar a janela baixa e estreita que se inclinava para a masmorra onde os monstros a esperavam.
Atirou a trouxa pela janela e voltou atrás para acender a vela. Foi um risco; a fogueira que se lembrava de ter visto tinha se reduzido a brasas, e ouviu vozes quando soprava os carvões. Pondo os dedos em taça em volta da tremeluzente vela, saiu pela janela no momento em que os donos das vozes entravam pela porta, mas não chegou a vê-los, nem mesmo de relance.
Daquela vez os monstros não a assustaram. Pareciam quase velhos amigos. Arya segurou a vela acima da cabeça. A cada passo que dava, as sombras moviam-se contra as paredes, como se se virassem para vê-la passar.
- Dragões - sussurrou. Tirou Agulha de dentro da capa. A esguia lâmina parecia muito pequena e os dragões, muito grandes, mas de alguma forma ela se sentia melhor com o aço na mão.
O longo salão sem janelas que se estendia para lá da porta era tão negro como Arya recordava. Empunhou Agulha com a mão esquerda, sua mão da espada, e a vela com a direita. Cera quente escorria-lhe pelos nós dos dedos. A boca do poço ficava do lado esquerdo; portanto, virou para a direita. Parte dela queria correr, mas tinha medo de apagar a vela. Ouviu os tênues guinchos das ratazanas e vislumbrou um par de minúsculos olhos brilhantes no limite da luz, mas ratazanas não a assustavam. Outras coisas sim. Seria tão fácil esconder-se ali, como ela se escondera do feiticeiro e do homem com a barba bifurcada. Quase conseguia ver o cavalariço em pé contra a parede, de mãos enroladas em garras, com o sangue ainda pingando dos profundos golpes nas palmas, onde Agulha as cortara. Podia estar à espera de agarrá-la quando passasse. Veria sua vela se aproximando de uma grande distância. Arya talvez ficasse melhor sem a luz...
O medo golpeia mais profundamente que as espadas , segredou a voz baixa dentro dela. De repente, Arya lembrou-se das criptas de Winterfell. Disse a si mesma que eram muito mais assustadoras que aquele lugar. Era apenas uma menininha quando as vira pela primeira vez. Seu irmão Robb os levara até lá embaixo, ela, Sansa e o bebê Bran, que então não era maior que Rickon era agora. Possuíam apenas uma vela para todos, e os olhos de Bran tinham se tornado grandes como pires quando ele olhara as caras de pedra dos Reis do Inverno, com os lobos a seus pés e as espadas de ferro sobre as pernas.
Robb levara-os bem até o fundo, para lá do avô, de Brandon e de Lyanna, para lhes mostrar suas próprias sepulturas. Sansa não tirara os olhos da velinha atarracada, temendo que se apagasse. A Velha Ama dissera-lhe que ali embaixo havia aranhas e ratazanas do tamanho de cães. Robb sorrira quando ela disse aquilo, "Há coisas piores que aranhas e ratazanas", sussurrara. "É aqui que os mortos caminham," Foi então que ouviram o som, baixo, profundo e trêmulo. O pequeno Bran agarrara-se à mão de Arya.
Quando o espírito saíra da tumba aberta, branco e gemendo por sangue, Sansa fugira aos gritos para a escada, e Bran enrolara-se na perna de Robb, soluçando. Arya mantivera-se firme e dera um murro no espírito. "Seu estúpido", dissera-lhe, "assustou o bebê", mas Jon e Robb limitaram-se a rir, e em breve Bran e Arya também começaram a rir.
A recordação a fez sorrir, e dali em diante a escuridão deixou de conter terrores. O cavalariço estava morto, ela o matara e, se ele saltasse sobre ela, o mataria de novo. Arya ia para casa. Tudo seria melhor quando estivesse de novo em casa, segura entre as muralhas cinzentas de granito de Winterfell. Seus passos fizeram correr suaves ecos à frente enquanto mergulhava mais profundamente na escuridão.  

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