segunda-feira, 9 de setembro de 2013

58 - EDDARD


A palha no chão fedia a urina. Não havia janela, nem cama, nem mesmo um balde para os dejetos. Lembrava-se de paredes de pedra vermelho-clara, respingadas com manchas de salitre, uma porta cinza de madeira rachada, com dez centímetros de espessura e reforçada com ferro. Vira esses detalhes num rápido relance enquanto o atiravam lá. Depois de a porta ser fechada com estrondo, nada mais vira. A escuridão era absoluta. Era como se estivesse cego. Ou morto. Enterrado com o seu rei.
- Ah, Robert - murmurou enquanto a mão apalpava uma parede fria de pedra, com a perna latejando a cada movimento. Recordou a brincadeira do rei nas criptas de Winterfell, enquanto os Reis do Inverno os olhavam com frios olhos de pedra. O rei come, dissera Robert, e a Mão recolhe a merda. Como ele rira. Mas enganara-se. O rei morre, pensou Ned Stark, e a Mão é enterrada.
A masmorra ficava sob a Fortaleza Vermelha, mais fundo do que se atrevia a imaginar. Lembrava-se das velhas histórias sobre Maegor, o Cruel, que assassinara todos os pedreiros que tinham trabalhado em seu castelo para que nunca pudessem revelar os seus segredos.
Maldizia-os a todos: Mindinho, Janos Slynt e seus homens, a rainha, o Regicida, Pycelle, Varys e Sor Barristan, até Lorde Renly, do próprio sangue de Robert, que fugira quando era mais necessário. Mas, no fim das contas, culpava-se a si próprio.
- Estúpido - gritou para a escuridão - três vezes maldito, cego e estúpido.
O rosto de Cersei Lannister pareceu flutuar à sua frente na escuridão. Tinha os cabelos cheios de sol, mas havia troça no sorriso. "Quando se joga o jogo dos tronos, ganha-se ou morre", sussurrou. Ned jogara e perdera, e seus homens tinham pagado o preço da sua loucura com o sangue de suas vidas.
Quando pensou nas filhas, teria chorado de bom grado, mas as lágrimas não vinham. Mesmo agora, era um Stark de Winterfell, e a dor e a raiva congelavam dentro dele, Se se mantivesse muito quieto, a perna não doía tanto, por isso fez o que pôde para permanecer imóvel. Não saberia dizer durante quanto tempo. Não havia sol nem lua, Não conseguia enxergar para fazer marcas nas paredes. Ned fechou e abriu os olhos; não havia diferença. Adormeceu, acordou e voltou a adormecer. Não sabia o que era mais doloroso, se estar acordado ou dormindo. Quando dormia, sonhava, sonhos escuros e perturbadores sobre sangue e promessas quebradas. Quando acordava, nada havia a fazer a não ser pensar, e os pensamentos despertos eram piores que pesadelos. Pensar em Cat era tão doloroso como uma cama de urtigas. Perguntava a si mesmo onde ela poderia estar, o que estaria fazendo. Perguntava-se se voltaria a vê-la.
As horas transformaram-se em dias, ou pelo menos era o que parecia. Sentia uma dor surda na perna quebrada, uma comichão por baixo do gesso. Quando tocava a coxa, sentia a pele quente. O único som era o de sua respiração. Após algum tempo, começou a falar em voz alta, só para ouvir uma voz.
Fez planos para se manter são, construiu castelos de esperança na escuridão. Os irmãos de Robert andavam pelo mundo, recrutando exércitos em Pedra do Dragão e em Ponta Tempestade. Alyn e Harwin regressariam a Porto Real com o resto de sua guarda depois de tratarem de Sor Gregor. Catelyn rebelaria o Norte quando as notícias lhe chegassem, e os senhores do rio, da montanha e do Vale se juntariam a ela. Deu por si a pensar cada vez mais em Robert. Via o rei como ele fora na flor da juventude, alto e bonito, com o grande elmo guarnecido de chifres na cabeça, de machado de guerra na mão, montado no cavalo como um deus cornudo.
Ouviu seu riso na escuridão, viu seus olhos, azuis e cristalinos como lagos de montanha. "Olha para nós, Ned" disse Robert. "Deuses, como chegamos a isto? Você aqui e eu morto por um porco. Conquistamos juntos um trono..." Falhei com você, Robert, pensou Ned. Não podia dizer aquelas palavras. Menti, escondi a verdade. Deixei que te matassem.
O rei o ouviu. "Seu pateta de pescoço duro", murmurou, "orgulhoso demais para escutar. Pode-se comer orgulho, Stark? Será que a honra protege seus filhos?" Rachaduras correram pelo rosto, fissuras que se abriam na carne, e ele ergueu a mão e arrancou a máscara, Não era Robert; era Mindinho, sorrindo, zombando dele. Quando abriu a boca para falar, as mentiras transformaram-se em mariposas cinzentas, quase brancas, e levantaram vôo.
Ned estava meio adormecido quando ouviu passos. A princípio pensou que fosse sonho; passara-se tanto tempo desde que ouvira algo mais que o som da própria voz. Ned sentia-se febril, com a perna transformada em uma agonia surda e os lábios secos e rachados. Quando a pesada porta de madeira abriu com um rangido, a súbita luz fez seus olhos doerem.
Um carcereiro atirou-lhe um cântaro. O barro era fresco e salpicado de umidade. Ned agarrou-o com as duas mãos e emborcou avidamente. Água escorreu-lhe da boca e pingou através da barba. Bebeu até pensar que ficaria mal-disposto.
- Quanto tempo...? - perguntou, numa voz fraca, quando não mais conseguiu beber.
O carcereiro era um homem com ar de espantalho, cara de rato e barba desordenada, vestindo uma camisa de cota de malha e meia capa de couro.
- Não se fala - disse enquanto arrancava o cântaro dos dedos de Ned.
- Por favor - disse Ned - as minhas filhas... - a porta fechou-se com estrondo. Ned piscou quando a luz desapareceu, baixou a cabeça até o peito e enrolou-se na palha. Já não fedia a urina e a merda. Já não cheirava a nada. Já não era capaz de distinguir a diferença entre estar acordado e estar dormindo. A memória caiu sobre ele na escuridão, tão viva como um sonho. Era o ano da falsa primavera, e ele tinha de novo dezoito anos e descera do Ninho da Águia para o torneio em Harrenhal. Via o profundo verde da campina e cheirava o pólen no vento. Dias tépidos, noites frescas e o gosto doce do vinho, Lembrava-se das gargalhadas de Brandon e do enlouquecido valor de Robert na luta corpo a corpo, do modo como ria enquanto derrubava dos cavalos homem atrás de homem. Lembrava-se de Jaime Lannister, um jovem dourado numa armadura branca com escamas, ajoelhado na grama em frente do pavilhão do rei, fazendo seus votos de defender e proteger o Rei Aerys.
Depois, Sor Oswell Whent ajudou Jaime a pôr-se em pé, e o próprio Touro Branco, o Senhor Comandante Sor Gerold Hightower, prendeu o nevado manto da Guarda Real em volta de seus ombros. Todas as seis Espadas Brancas estavam lá para dar as boas-vindas ao seu irmão mais novo. Mas quando a justa começou, o dia foi de Rhaegar Targaryen. O príncipe herdeiro usava a armadura em que acabaria por morrer: cintilante placa negra com o dragão de três cabeças de sua Casa trabalhado em rubis no peito. Uma pluma de seda escarlate estendia-se atrás dele enquanto cavalgava, e parecia que nenhuma lança conseguia tocá-lo.
Brandon caiu perante ele, tal como Bronze Yohn Royce e até o magnífico Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã. Robert tinha feito comentários jocosos com Jon e o velho Lorde Hunter enquanto o príncipe dava a volta ao campo depois de derrubar Sor Barristan na última justa pela coroa de campeão. Ned lembrava-se do momento em que todos os risos tinham morrido, quando o Príncipe Rhaegar Targaryen fez o cavalo passar por sua esposa, a princesa dorniana Elia Martell, e depositou a coroa da rainha da beleza no colo de Lyanna. Ainda conseguia vê-la: uma coroa de rosas de inverno, azuis como a geada.
Ned Stark estendeu a mão para agarrar a coroa de flores, mas sob as pétalas azul-claras estavam escondidos espinhos. Sentiu-os penetrar-lhe a pele, aguçados e cruéis, viu o lento fio de sangue correr pelos seus dedos e acordou, tremendo, na escuridão. Prometa-me, Ned, sussurrara a irmã de sua cama de sangue. Ela adorava o odor de rosas de inverno.
- Que os deuses me salvem - chorou Ned. - Estou enlouquecendo. Os deuses não se dignaram a responder.
Cada vez que o carcereiro lhe trazia água, dizia a si mesmo que se passara mais um dia. A princípio suplicava ao homem alguma notícia sobre as filhas e o mundo para lá de sua cela. As únicas respostas eram grunhidos e pontapés. Mais tarde, quando começaram as dores de estômago, começou a suplicar por comida. Não fazia diferença; não era alimentado. Os Lannister talvez pretendessem que ele morresse de fome.
"Não", disse consigo mesmo. Se Cersei o quisesse morto, teria sido abatido na sala do trono com seus homens. Ela o queria vivo. Fraco, desesperado, mas vivo. Catelyn tinha seu irmão; não se atreveria a matá-lo, ou a vida do Duende estaria também perdida.
De fora da sua cela chegou-lhe o chocalhar de correntes de ferro. Quando a porta se abriu, rangendo, Ned pôs a mão na parede úmida e empurrou-se para a luz. O clarão de um archote o fez desviar o rosto.
- Comida - grasnou.
- Vinho - respondeu uma voz. Não era o homem com cara de rato.
Aquele carcereiro era mais robusto e mais baixo, embora usasse a mesma meia capa de couro e o mesmo capacete de aço com espigão.
- Beba, Lorde Eddard - enfiou um odre de vinho nas mãos de Ned.
A voz do homem era estranhamente familiar, mas Ned Stark precisou de um momento para a identificar.
- Varys? - disse, vacilante, quando o reconhecimento chegou. Tocou o rosto do homem. - Não estou... não estou sonhando. Está aqui - as rechonchudas bochechas do eunuco estavam cobertas com uma barba cheia e escura. Ned sentiu os pelos rudes com os dedos. Varys transformara-se num carcereiro grisalho, que fedia a suor e a vinho amargo. - Como conseguiu... Que tipo de mago é você?
- Um mago sedento - disse Varys. - Beba, senhor. As mãos de Ned apalparam o odre.
- Este é o mesmo veneno que deram a Robert?
- Ofende-me - disse Varys num tom triste - É verdade que ninguém gosta de um eunuco. Dê-me o odre - ele bebeu, com um fio vermelho escorrendo pelo canto da boca gorda. - Não se compara à safra que me você ofereceu na noite do torneio, mas não é mais venenoso que a maioria - concluiu, limpando os lábios. - Aqui está.
Ned experimentou um gole.
- Borras - sentiu-se a ponto de regurgitar o vinho.
- Qualquer homem deve engolir o amargo com o doce. Tanto os grandes senhores como os eunucos. Sua hora chegou, senhor.
- As minhas filhas...
- A mais nova escapou de Sor Meryn e fugiu - disse-lhe Varys. - Não fui capaz de encontrá-la. Nem os Lannister. Uma coisa boa, essa. Nosso novo rei não a ama. Sua filha mais velha continua prometida a Joffrey. Cersei a mantém por perto. Veio a uma audiência há alguns dias suplicar que o senhor fosse poupado. Uma pena que não pudesse estar lá, ficaria comovido - inclinou-se para a frente com uma expressão séria. - Creio que o senhor compreende que é um homem morto, Lorde Eddard?
- A rainha não me matará - disse Ned. Sentia a cabeça flutuar; o vinho era forte, e passara-se muito tempo desde que comera. - Cat... Cat tem o irmão dela...
- O irmão errado - suspirou Varys. - E de qualquer modo, está perdido. Ela deixou que o Duende lhe fugisse por entre os dedos. Suponho que esteja morto agora, em algum lugar nas Montanhas da Lua.
- Se isso é verdade, corte-me a garganta e acabe com isto - estava tonto do vinho, cansado e desolado.
- Seu sangue é a última coisa que desejo.
Ned franziu as sobrancelhas.
- Quando assassinaram minha guarda, você ficou ao lado da rainha, observando, sem dizer uma palavra.
- E o faria de novo. Julgo recordar que estava desarmado, sem armadura e rodeado por espadas dos Lannister - o eunuco olhou-o de forma curiosa, inclinando a cabeça. - Quando era um rapazinho, antes de ser cortado, viajei com uma trupe de pantomimeiros pelas Cidades Livres. Ensinaram-me que cada homem tem um papel a desempenhar, quer na vida quer na pantomima. Assim é na corte. O Magistrado do Rei tem de ser temível, o mestre da moeda deve ser frugal, o Senhor Comandante da Guarda Real tem de ser valente... e o mestre dos espiões deve ser dissimulado, obsequioso e sem escrúpulos. Um informante corajoso seria tão inútil como um cavaleiro covarde - recuperou o odre e bebeu.
Ned estudou o rosto do eunuco, procurando a verdade sob as cicatrizes de pantomimeiro e a barba falsa. Bebeu mais um pouco de vinho. Desta vez desceu mais facilmente.
- É capaz de me libertar deste buraco?
- Seria... Mas vou fazê-lo? Não. Seriam feitas perguntas, e as respostas levariam até mim.
Ned não esperava outra coisa.
- Você é direto.
- Um eunuco não tem honra, e uma aranha não se beneficia do luxo dos escrúpulos, senhor,
- Ao menos poderia levar uma mensagem minha?
- Dependeria da mensagem. De bom grado lhe fornecerei papel e tinta. E depois de escrita, levarei a carta, lerei e a entregarei ou não, conforme o que melhor sirva aos meus fins.
- Seus fins. E que fins são esses, Lorde Varys?
- A paz - respondeu Varys sem hesitação. - Se havia uma alma em Porto Real verdadeiramente desesperada por manter Robert Baratheon vivo era eu - suspirou. - Protegi-o de seus inimigos durante quinze anos, mas não consegui protegê-lo de seus amigos. Que estranho ataque de loucura o levou a dizer à rainha que sabia da verdade sobre o nascimento de Joffrey?
- A loucura da misericórdia - admitiu Ned.
- Ah - disse Varys. - Com certeza. E um homem honesto e honroso, Lorde Eddard. Por vezes me esqueço disso. Conheci tão poucos ao longo da vida - lançou uma olhadela pela cela. - Quando vejo o que a honestidade e a honra lhe trouxeram, compreendo porquê.
Ned Stark encostou a cabeça à úmida parede de pedra e fechou os olhos. Sentia a perna latejar.
- O vinho do rei... interrogou Lancei?
- Ah, decerto. Cersei deu-lhe os odres e lhe disse que eram da safra favorita de Robert - o eunuco encolheu os ombros. - Um caçador vive uma vida perigosa. Se o javali não tivesse acabado com Robert, teria sido uma queda do cavalo, a picada de uma víbora da mata, uma seta perdida... a floresta é o matadouro dos deuses. Não foi o vinho que matou o rei. Foi a sua misericórdia.
Era o que Ned temia.
- Que os deuses me perdoem.
- Se os deuses existirem - disse Varys - suponho que o farão. Em qualquer caso, a rainha não teria esperado muito tempo. Robert estava se tornando incontrolável, e ela precisava se ver livre dele para lidar com seus irmãos. Formam uma bela dupla, o Stannis e o Renly. A manopla de ferro e a luva de seda - limpou a boca com as costas da mão. - Foi tonto, senhor. Devia ter escutado Mindinho quando lhe sugeriu apoiar a sucessão de Joffrey.
- Como... como podia saber disso? Varys sorriu.
- Sei, e é tudo o que precisa saber. Também sei que de manhã a rainha virá visitá-lo. Lentamente, Ned ergueu os olhos.
- Por quê?
- Cersei o teme, senhor..., mas tem outros inimigos que teme ainda mais. Seu querido Jaime está lutando contra os senhores do rio neste preciso momento. Lysa Arryn mantém-se no Ninho da Águia, rodeada de pedra e aço, e não há nenhum amor entre ela e a rainha. Em Dorne, os Martell ainda alimentam ressentimentos pelo assassinato da Princesa Elia e de seus bebês. E agora o seu filho marcha pelo Gargalo com uma tropa de nortenhos atrás.
- Robb é só um rapaz - disse Ned, horrorizado,
- Um rapaz com um exército - disse Varys. - Mas apenas um rapaz, como diz. Os irmãos do rei são quem causa a Cersei noites sem dormir... particularmente Lorde Stannis. Sua pretensão é a verdadeira, é conhecido pelo seu valor como comandante de batalha e é completamente desprovido de misericórdia. Não há na terra criatura que seja, nem de longe, tão aterradora como um homem verdadeiramente justo. Ninguém sabe o que Stannis tem feito em Pedra do Dragão, mas apostaria com o senhor que reuniu mais espadas que conchas. Eis o pesadelo de Cersei: enquanto o pai e o irmão gastam seu poderio batalhando com os Stark e os Tully, Lorde Stannis desembarca, proclama-se rei e arranca a cabeça loura e encaracolada do filho... e junta a dela ao negócio, embora eu realmente creia que se preocupa mais com o filho.
- Stannis Baratheon é o verdadeiro herdeiro de Robert - disse Ned. - O trono é dele por direito. Eu veria com agrado a sua coroação.
Varys soltou um estalido com a língua.
- Cersei não vai querer ouvir isso, garanto. Stannis poderá conquistar o trono, mas só restará a sua cabeça podre para lhe dar as boas-vindas, a menos que tenha cuidado com a língua. Sansa suplicou tão docemente que seria uma pena que pusesse tudo a perder. Poderá ter a vida de volta, se a quiser. Cersei não é estúpida. Sabe que um lobo domado é mais útil que um morto.
- Quer que sirva a mulher que assassinou o meu rei, massacrou meus homens e fez do meu filho um aleijado? - a voz de Ned estava carregada de incredulidade.
- Quero que sirva o reino - disse Varys. - Diga à rainha que confessará sua vil traição, ordene a seu filho que pouse a espada e proclame Joffrey como o herdeiro verdadeiro. Proponha denunciar Stannis e Renly como usurpadores sem fé. Nossa leoa de olhos verdes sabe que é um homem de honra. Dando-lhe a paz de que precisa e o tempo para lidar com Stannis, e jurando levar seu segredo para a tumba, creio que lhe será permitido vestir o negro e viver o resto de seus dias na Muralha, com seu irmão e aquele seu filho ilegítimo.
Pensar em Jon encheu Ned com um sentimento de vergonha e uma mágoa profunda demais para ser expressa em palavras. Se ao menos pudesse voltar a vê-lo, sentar-se e falar com ele... Uma dor atacou-lhe a perna quebrada sob o imundo gesso cinzento que a cobria. Estremeceu, abrindo e fechando os dedos, impotente.
- Este plano é seu - arquejou para Varys - ou está aliado a Mindinho?
Aquilo pareceu divertir o eunuco.
- Mais depressa me casaria com a Cabra Negra de Qohor, Mindinho é o segundo homem mais traiçoeiro dos Sete Reinos. Ah, alimento-o com sussurros escolhidos, o suficiente para que ele pense que estou do seu lado... tal como permito que Cersei pense que estou do dela.
- E tal como me deixou acreditar que estava do meu. Diga-me, Lorde Varys, a quem serve realmente?
Varys fez um fino sorriso.
- Ora, o reino, meu bom senhor, como pode duvidar disto? Juro pelo meu membro viril perdido. Sirvo o reino, e o reino precisa de paz - bebeu o último gole de vinho e atirou o odre vazio para o lado. - Então, qual é a sua resposta, Lorde Eddard? Dê-me a sua palavra de que dirá à rainha aquilo que ela quer ouvir quando vier de visita.
- Se o fizesse, minha palavra seria tão oca como uma armadura vazia. Minha vida não me é assim tão preciosa,
- É pena - o eunuco pôs-se em pé. - E a vida de sua filha, senhor? Quão preciosa é?
Uma agulha de gelo perfurou o coração de Ned,
-Minha filha...
- Decerto não pensou que havia me esquecido de sua doce inocente, senhor? A rainha com toda a certeza não o fez.
- Não - suplicou Ned, com a voz quebrantada. - Varys, que os deuses tenham misericórdia, faça o que quiser comigo, mas deixe minha filha fora de suas intrigas. Sansa não é mais que uma criança.
- Rhaenys também era uma criança. Filha do Príncipe Rhaegar. Uma coisinha preciosa, mais nova que suas meninas. Tinha um pequeno gatinho negro a quem chamava Balerion, sabia? Sempre senti curiosidade em saber o que lhe teria acontecido. Rhaenys gostava de fingir que ele era o verdadeiro Balerion, o Terror Negro de outrora, mas imagino que os Lannister lhe tenham ensinado rapidamente a diferença entre um gatinho e um dragão no dia em que lhe arrombaram a porta - Varys soltou um longo suspiro cansado, o suspiro de um homem que transportava toda a tristeza do mundo em um saco sobre os ombros. - O Alto Septão disse-me uma vez que à medida que vamos pecando, assim sofremos. Se isso for verdade, Lorde Eddard, diga-me... por que são sempre os inocentes a sofrer mais, quando vocês, os grandes senhores, jogam o seu jogo dos tronos? Pense sobre isso, se quiser, enquanto espera a rainha. Mas guarde também um pensamento: o visitante seguinte poderá trazer pão, queijo e leite da papoula para as vossas dores... ou a cabeça de Sansa. A escolha, meu caro senhor Mão, é inteiramente sua.  

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