segunda-feira, 9 de setembro de 2013

61 - DAENERYS


Depois da batalha, Dany levou a sua prata pelos campos de mortos. As aias e os homens do seu khas vinham atrás, sorrindo e brincando uns com os outros. Cascos dothrakis tinham rasgado a terra e esmagado o centeio e as lentilhas, enquanto arakhs e setas semeavam uma terrível nova cultura e a regavam com sangue. Cavalos moribundos erguiam a cabeça e gritavam quando ela passava por eles. Homens feridos gemiam e rezavam. Jaqqa rhan deslocavam-se entre eles, os homens da misericórdia com os seus pesados machados, fazendo colheita das cabeças dos mortos e moribundos. Depois deles, viria um bando de mocinhas, arrancando setas dos cadáveres até encher os cestos. E por fim viriam os cães, farejando, magros e famintos, a matilha selvagem que nunca andava muito longe do khalasar.
As ovelhas eram as que estavam mortas havia mais tempo. Parecia ter milhares delas, negras de moscas, com setas espetadas em todas as carcaças. Dany sabia que os homens de Khal Ogo tinham feito aquilo; nenhum homem do khalasar de Drogo seria tão tolo que desperdiçasse setas em ovelhas quando ainda havia pastores para matar.
A vila estava em chamas, com negras colunas de fumaça rodopiando enquanto se erguiam ao céu de um tom duro de azul. A sombra de muros derrubados de barro seco, cavaleiros galopavam para lá e para cá, brandindo seus longos chicotes enquanto pastoreavam os sobreviventes para fora do entulho fumegante. As mulheres e crianças do khalasar de Ogo caminhavam com um orgulho taciturno, mesmo derrotadas e amarradas; eram agora escravas, mas não pareciam temer essa condição. Com o povo da vila era diferente. Dany sentia pena deles; lembrava-se do terror. Mães avançavam aos tropeções, com o rosto vazio e morto, puxando pela mão crianças soluçando. Havia apenas um punhado de homens entre eles, aleijados, covardes e avôs.
Sor Jorah dizia que o povo daquele país chamava a si próprio lhazareno, mas os dothrakis o chamavam de haesh rakhi, os Homens-Ovelhas. Em outros tempos, Dany poderia tê-los tomado por dothraki, pois possuíam a mesma pele acobreada e os olhos amendoados. Agora, pareciam-lhe estranhos, atarracados e de rosto achatado, com os cabelos negros cortados curtos de forma estranha. Eram pastores de ovelhas e comedores de vegetais, e Khal Drogo dizia que pertenciam ao sul da curva do rio. O capim do mar dothraki não se destinava a ovelhas.
Dany viu um rapaz saltar e correr para o rio. Um cavaleiro cortou-lhe o caminho e o fez virar-se, e os outros o encurralaram, fazendo estalar os chicotes em seu rosto, obrigando-o a correr para lá e para cá. Um galopou atrás dele, chicoteando-o nas nádegas até lhe deixar as coxas vermelhas de sangue. Outro o apanhou pelo tornozelo, com uma chicotada que o fez estatelar-se. Por fim, quando o rapaz conseguia somente rastejar, fartaram-se da brincadeira e enfiaram-lhe uma seta nas costas.
Encontrou Sor Jorah junto ao portão despedaçado. Usava uma capa verde-escura sobre a cota de malha. Suas manoplas, grevas e elmo eram de aço cinza-escuro. Os dothrakis o tinham chamado de covarde quando pusera a armadura, mas o cavaleiro cuspira insultos de volta, os ânimos tinham se exaltado, a espada longa colidira com o arakh, e o guerreiro cuja troça fora mais sonora tinha sido deixado para trás, sangrando até a morte.
Sor Jorah ergueu o visor de seu elmo de topo achatado ao se aproximar.
- O senhor vosso esposo a espera na vila.
- Drogo não se feriu?
- Alguns golpes - respondeu Sor Jorah - nada de mais. Matou hoje dois khals. Primeiro Khal Ogo, e depois o filho, Fogo, que se tornou khal quando Ogo caiu. Seus companheiros de sangue cortaram os sinos dos cabelos deles, e agora cada passo de Khal Drogo ressoa mais alto que antes.
Ogo e o filho tinham partilhado o banco elevado com Drogo no banquete de batismo onde Viserys fora coroado, mas isso acontecera em Vaes Dothrak, à sombra da Mãe das Montanhas, onde todos os cavaleiros são irmãos e todas as querelas são postas de lado. No campo, as coisas eram diferentes. O khalasar de Ogo estava atacando a vila quando Khal Drogo o pegou. Dany perguntava a si mesma o que teriam pensado os Homens-Ovelhas quando viram pela primeira vez a poeira levantada pelos seus cavalos de cima daquelas muralhas de barro rachado. Talvez alguns, os mais novos e mais tolos, que ainda julgavam que os deuses escutavam as preces dos homens desesperados, a tivessem tomado por salvamento.
Do outro lado da estrada, uma jovem que não era mais velha que Dany soluçou numa voz fina e frágil quando um cavaleiro a atirou para cima de uma pilha de cadáveres, de barriga para baixo, e se enterrou nela. Outros cavaleiros desmontaram para aguardar a sua vez. Era aquele o tipo de salvamento que os dothrakis traziam aos Homens-Ovelhas. Sou do sangue do dragão, recordou Daenerys Targaryen a si mesma enquanto virava o rosto. Apertou os lábios, endureceu o coração e continuou a seguir para o portão,
- A maior parte dos guerreiros de Ogo fugiu - disse Sor Jorah.
- Mesmo assim, pode haver até dez mil cativos.
Escravos, pensou Dany. Khal Drogo os levaria ao longo do rio até uma das vilas da Baía dos Escravos. Quis chorar, mas disse a si mesma que tinha de ser forte. Isto é a guerra, é assim que ela é, é este o preço do Trono de Ferro.
- Disse ao khal que devíamos rumar a Meereen - Sor Jorah continuou. - Pagarão melhor preço do que ele obteria de uma caravana de escravos. Illyrio escreve que tiveram uma praga no ano passado, e por isso os bordéis estão pagando o dobro por garotas saudáveis, e o triplo por rapazes com menos de dez anos. Se crianças suficientes sobreviverem à viagem, o ouro pagará todos os navios de que precisarmos e contratará os homens para navegá-los.
Atrás deles, a moça que estava sendo violentada soltou um som de cortar o coração, um longo lamento soluçante que durava, durava, durava. A mão de Dany apertou as rédeas com força e virou a cabeça da prata.
- Faça-os parar - ordenou a Sor Jorah.
- Khaleesi? - o cavaleiro parecia perplexo.
- Faça o que digo. Quero que os pare agora - falou ao seu khas com o tom duro dos dothrakis. - Jhogo, Quaro, vão ajudar Sor Jorah. Não quero mais violações.
Os guerreiros trocaram um olhar desconcertado. Jorah Mormont trouxe seu cavalo para mais perto.
- Princesa - disse - tem um coração gentil, mas não compreende. Foi sempre assim. Estes homens derramaram sangue pelo khal. Agora reclamam a recompensa.
Do outro lado da estrada a jovem ainda chorava, numa língua aguda e cantante, estranha aos ouvidos de Dany. O primeiro homem já tinha se despachado, e o segundo tomara-lhe o lugar.
- Ela é uma mulher-ovelha - disse Quaro em dothraki. - Não é nada, khaleesi. Os cavaleiros a estão honrando. Os Homens-Ovelhas dormem com ovelhas, é sabido.
- É sabido - ecoou a aia Irri.
- É sabido - concordou Jhogo, escarranchado no grande garanhão cinzento que Drogo lhe oferecera. - Se seus lamentos ofendem vossos ouvidos, Jhogo cortará sua língua - e puxou o arakh,
- Não quero que a machuquem - disse Dany. - Eu a reivindico. Façam o que lhes ordeno, ou Khal Drogo saberá por quê.
- Sim, khaleesi - respondeu Jhogo, batendo com os calcanhares no cavalo. Quaro e os outros o seguiram, com os sinos nos cabelos a repicar.
- Vá com eles - ordenou a Sor Jorah.
- Às suas ordens - o cavaleiro deu-lhe um olhar estranho. - É mesmo irmã de seu irmão.
- Viserys? - Dany não compreendeu.
- Não - respondeu ele. - Rhaegar - e afastou-se a galope.
Dany ouviu Jhogo gritar. Os violadores riram dele. Um homem gritou de volta. O arakh de Jhogo relampejou, e a cabeça do homem tombou de cima de seus ombros. Os risos transformaram-se em pragas quando os cavaleiros levaram a mão às armas, mas, nessa altura, Quaro, Aggo e Rakharo já se encontravam lá. Viu Aggo apontar para o lugar, do outro lado da estrada, onde ela se encontrava montada na sua prata. Os cavaleiros olharam-na com frios olhos negros. Um cuspiu. Os outros retornaram às suas montarias, resmungando.
Enquanto isso, o homem que estava sobre a jovem continuava a entrar e sair dela, tão concentrado em seu prazer que parecia não se dar conta do que se passava à sua volta. Sor Jorah desmontou e arrancou-o da moça com a mão revestida de cota de malha. O dothraki estatelou-se na lama, saltou com a faca na mão e morreu com uma seta de Aggo na garganta. Mormont puxou a moça da pilha de cadáveres e a enrolou em seu manto salpicado de sangue. Levou-a até Dany.
- Que quer que façamos com ela?
A jovem tremia, de olhos dilatados e vagos. Os cabelos estavam empastados de sangue.
- Doreah, trate de suas feridas. Não se parece com um cavaleiro, ela talvez não a tema. O resto, comigo - e levou a prata através do portão quebrado de madeira.
Dentro da vila era pior. Muitas das casas estavam em chamas, e os jaqqa rhan tinham já desempenhado o seu macabro serviço. Cadáveres sem cabeça enchiam as ruelas estreitas e sinuosas. Passaram por outras mulheres que estavam sendo violentadas. Em todas as vezes, Dany puxava as rédeas, mandava seu khas pôr fim àquilo e levava a vítima como escrava. Uma delas, uma mulher de quarenta anos, de corpo largo e nariz achatado, abençoou hesitantemente Dany no Idioma Comum, mas das outras obteve apenas olhares negros e sem vida. Compreendeu com tristeza que suspeitavam dela; temiam que as tivesse poupado para um destino pior.
- Não pode levar todas, menina - disse Sor Jorah da quarta vez que pararam, enquanto os guerreiros de seu khas reuniam as novas escravas atrás dela,
- Sou khaleesi, herdeira dos Sete Reinos, do sangue do dragão - recordou-lhe Dany. - Não lhe cabe dizer o que eu não posso fazer - do outro lado da cidade um edifício ruiu numa grande nuvem de fogo e fumaça, e ouviam-se gritos distantes e lamentos de crianças assustadas.
Encontraram Khal Drogo sentado fora de um templo quadrado sem janelas, com muros largos de barro e uma cúpula bulbosa que parecia uma imensa cebola marrom. A seu lado encontrava-se uma pilha de cabeças mais alta que ele. Uma das setas curtas dos Homens-Ovelhas estava espetada na carne de seu antebraço, e sangue cobria o lado esquerdo do peito nu como um salpico de tinta. Seus três companheiros de sangue estavam com ele.
Jhiqui ajudou Dany a desmontar; tinha-se tornado desajeitada à medida que a barriga se tornava maior e mais pesada. Ajoelhou-se perante o khal.
- O meu sol-e-estrelas está ferido - o golpe de arakh era longo, mas pouco profundo; o mamilo esquerdo desaparecera, e uma aba sangrenta de carne e pele pendia-lhe do peito como um trapo molhado.
- É arranhão, lua da minha vida, de arakh de companheiro de sangue de Khal Ogo - disse Khal Drogo no Idioma Comum. - Matar ele por isso, e Ogo também - virou a cabeça, com as campainhas da trança a ressoar suavemente. - É Ogo que ouve, e Fogo, seu khalakka, que era khal quando o matei.
- Não há homem capaz de enfrentar o sol da minha vida - disse Dany - o pai do garanhão que monta o mundo.
Um guerreiro montado aproximou-se e saltou da sela. Falou com Haggo, uma torrente de dothraki zangado rápida demais para Dany compreender. O enorme companheiro de sangue lançou-lhe um olhar pesado antes de se virar para seu khal.
- Este é Mago, que cavalga, no khas de Ko Jhaqo. Diz que khaleesi ficou com sua presa, uma filha das ovelhas que era para ele montar.
O rosto de Khal Drogo estava parado e duro, mas os olhos negros estavam curiosos quando se dirigiram a Dany.
- Conte-me a verdade disto, lua da minha vida - ordenou em dothraki.
Dany contou-lhe o que fizera, em sua língua, para que o khal a compreendesse melhor, com palavras simples e diretas. Quando terminou, a testa de Drogo estava franzida.
- São estes os costumes da guerra. Essas mulheres são agora nossas escravas, para que façamos o que quisermos delas.
- Gostaria de mantê-las a salvo - disse Dany, perguntando-se se estaria se atrevendo demais. - Se seus guerreiros quiserem montar estas mulheres, que as tomem com gentileza e as mantenham como esposas. Que lhes deem lugares no khalasar e que lhes façam filhos.
Qotho era sempre o mais cruel dos companheiros de sangue. Foi ele que riu.
- Será que o cavalo se reproduz com ovelhas?
Algo no tom dele lembrou-lhe Viserys. Dany virou-se para ele, zangada.
- O dragão alimenta-se quer de cavalos quer de ovelhas.
Khal Drogo sorriu.
- Vejam como ela se faz feroz! - disse. - É meu filho dentro dela, o garanhão que monta o mundo, que a enche com o seu fogo. Monta devagar, Qotho... se a mãe não te queimar no lugar onde se senta, o filho te esmagará na lama. E você, Mago, recolhe a língua e encontra outra ovelha para montar. Estas pertencem à minha khaleesi - começou a estender a mão para Daenerys, mas, ao erguer o braço, Drogo fez um súbito esgar de dor e virou a cabeça.
Dany quase conseguia sentir a agonia dele. As feridas eram piores do que Sor Jorah dissera.
- Onde estão os curandeiros? - exigiu saber. O khalasar tinha dois tipos: mulheres estéreis e escravos eunucos. As ervanárias lidavam com poções e feitiços; os eunucos, com facas, agulhas e fogo. - Por que não tratam do khal?
- O khal mandou o homem sem cabelo embora, khaleesi - garantiu-lhe o velho Cohollo. Dany viu que o companheiro de sangue também tinha sido ferido; um golpe profundo no ombro esquerdo.
- Há muitos guerreiros feridos - disse teimosamente Khal Drogo. - Que sejam curados primeiro. Esta seta não é mais que uma picada de mosca; este pequeno corte é só uma nova cicatriz de que me gabar perante meu filho.
Dany via os músculos de seu peito onde a pele fora arrancada. Um fio de sangue corria da seta que lhe perfurara o braço.
- Não cabe ao Khal Drogo esperar - proclamou. - Jhogo, procure esses eunucos e os traga imediatamente.
- Senhora de prata - disse uma voz de mulher atrás dela - eu posso ajudar o Grande Cavaleiro com as suas feridas.
Dany virou a cabeça. Quem falava era uma das novas escravas, a mulher pesada de nariz achatado que a abençoara.
- O khal não precisa de ajuda de mulheres que dormem com ovelhas - ladrou Qotho. - Aggo, corte-lhe a língua.
Aggo agarrou-lhe os cabelos e empurrou uma faca contra a garganta da mulher. Dany ergueu a mão.
- Não. Ela é minha. Deixem-na falar.
Os olhos de Aggo saltaram dela para Qotho, e abaixou a faca.
- Não pretendo fazer nenhum mal, ferozes cavaleiros - a mulher falava dothraki bem. Os trajes que usava tinham sido feitos das mais leves e melhores lãs, ricas de bordados, mas agora estavam cobertos de lama, ensanguentados e rasgados. A mulher apertou o pano esfarrapado do corpete contra os pesados seios - Tenho alguns conhecimentos nas artes curativas.
- Quem é você? - perguntou-lhe Dany.
- Chamam-me Mirri Maz Duur. Sou esposa de deus neste templo.
- Maegi - grunhiu Haggo, passando os dedos pelo arakh.
Tinha o olhar escuro. Dany lembrava-se da palavra de uma história aterrorizadora que Jhiqui lhe contara uma noite junto à fogueira. Uma maegi era uma mulher que dormia com demônios e praticava a mais negra das feitiçarias, uma coisa vil, maldosa e sem alma, que vinha até os homens no escuro da noite e sugava a vida e a força de seus corpos.
- Sou uma curandeira - disse Mirri Maz Duur.
- Uma curandeira de ovelhas - escarneceu Qotho. - Sangue do meu sangue, eu digo que matemos esta maegi e que esperemos pelos homens sem cabelo.
Dany ignorou a explosão do companheiro de sangue. Aquela mulher idosa, modesta e gorda não lhe parecia uma maegi.
- Onde aprendeu a sua arte, Mirri Maz Duur?
- Minha mãe foi esposa de deus antes de mim e ensinou-me todas as canções e feitiços que mais agradam ao Grande Pastor, e como fazer os fumos sagrados e unguentos das folhas, raízes e bagas. Quando era mais nova e mais bonita, fui numa caravana a Asshai da Sombra, para estudar com os magos de lá. Chegam navios de muitas terras a Asshai, e fiquei durante muito tempo estudando os costumes de curar de povos distantes. Uma cantora de lua de Jogos Nhai deu-me de presente as suas canções de parto, uma mulher do vosso povo cavaleiro ensinou-me as magias do capim, dos grãos e dos cavalos, e um meistre das Terras do Poente abriu um cadáver e mostrou-me todos os segredos que se escondem sob a pele.
Sor Jorah Mormont interveio.
- Um meistre?
- Chamava-se Marwyn - respondeu a mulher no Idioma Comum. - Do mar. Do outro lado do mar. As Sete Terras, disse ele. Terras do Poente. Onde os homens são de ferro e os dragões governam. Ensinou-me esta língua.
- Um meistre em Asshai - meditou Sor Jorah. - Diz-me, Esposa de Deus, que usava este Marwyn em volta do pescoço?
- Uma corrente tão apertada que quase o sufocava, Senhor de Ferro, com elos de muitos metais.
O cavaleiro olhou para Dany.
- Só um homem treinado na Cidadela de Vilavelha usa uma corrente assim - disse - e esses homens realmente sabem muito sobre curar.
- Por que quer ajudar meu khal?
- Todos os homens pertencem ao mesmo rebanho, ou pelo menos é isso que nos é ensinado - respondeu Mirri Maz Duur. - O Grande Pastor enviou-me para a Terra para curar suas ovelhas, onde quer que as encontre.
Qotho deu-lhe uma forte bofetada.
- Não somos ovelhas, matgu
- Pare com isso - disse Dany com voz zangada. - Ela é minha. Não quero que lhe façam mal.
Khal Drogo grunhiu.
- A seta tem de sair, Qotho.
- Sim, Grande Cavaleiro - respondeu Mirri Maz Duur, tocando a face dolorida. - E seu peito tem de ser lavado e cosido para que não ulcere.
- Trata então disso - ordenou Khal Drogo.
- Grande Cavaleiro - disse a mulher - os meus instrumentos e poções estão dentro da casa de deus, onde os poderes curativos são mais fortes.
- Eu o levo, sangue do meu sangue - ofereceu-se Haggo.
Khal Drogo afastou-o com um gesto.
- Não preciso da ajuda de nenhum homem - disse, com uma voz dura e orgulhosa. Pôs-se em pé, sem ajuda, mais alto que todos os outros. Uma nova onda de sangue correu pelo seu peito, jorrando de onde o arakh de Ogo lhe cortara o mamilo.
Dany pôs-se depressa a seu lado.
- Eu não sou um homem - sussurrou ela - por isso pode se apoiar em mim - Drogo pousou a enorme mão em seu ombro.
Ela suportou um pouco do peso dele durante a caminhada até o grande templo de barro. Os três companheiros de sangue os seguiram. Dany ordenou a Sor Jorah e aos guerreiros de seu khas que guardassem a entrada para garantir que ninguém incendiaria o edifício enquanto estivessem lá dentro.
Passaram por uma série de átrios até o alto aposento central, sob a cebola. Uma luz tênue vinha de janelas escondidas, lá em cima. Alguns archotes ardiam, fumacentos, em candeeiros fixos às paredes. Havia peles de ovelha espalhadas pelo chão de barro.
- Ali - disse Mirri Maz Duur, apontando para o altar, uma maciça pedra com veios azuis, esculpida com imagens de pastores e de seus rebanhos. Khal Drogo deitou-se em cima dela. A velha mulher atirou um punhado de folhas secas em um braseiro, enchendo o aposento de fumaça odorífera. - É melhor esperarem lá fora - disse aos outros.
- Somos sangue do seu sangue - disse Cohollo. - Esperamos aqui. Qotho aproximou-se de Mirri Maz Duur.
- É melhor que saiba isto, mulher do Deus Ovelha. Se fizer mal ao khal, sofrerá o mesmo destino - puxou a faca de esfolar e mostrou-lhe a lâmina,
- Ela não fará mal - Dany sentia que podia confiar naquela velha mulher de semblante simples, com o nariz achatado; afinal de contas, salvara-a das mãos dos violadores.
- Se têm de ficar, então ajudem - disse Mirri aos companheiros de sangue. - O Grande Cavaleiro é forte demais para mim. Mantenham-no parado enquanto arranco a seta de sua carne - deixou os farrapos de seu vestido cair até a cintura enquanto abria um cofre esculpido, e atarefou-se com garrafas e caixas, facas e agulhas. Quando estava pronta, partiu a ponta farpada da seta e puxou a haste, enquanto entoava um cântico na língua cantante dos lhazarenos. Aqueceu no braseiro uma garrafa de vinho até ferver e despejou-a sobre as feridas de Khal Drogo. Drogo amaldiçoou-a, mas não se mexeu. Ela grudou na ferida da seta um emplastro de folhas úmidas e virou-se para o golpe no peito, untando-o com uma pasta verde-clara antes de voltar a pôr a aba de pele no lugar.
O khal rangeu os dentes e engoliu um grito. A esposa de deus pegou uma agulha de prata e um fuso de fio de seda e começou a fechar a ferida. Quando terminou, pintou a pele com unguento vermelho, cobriu-o com mais folhas e atou o peito com um pedaço esfarrapado de couro de ovelha.
- Deve dizer as preces que vou lhe dar e manter o couro de ovelha no lugar durante dez dias e dez noites - disse. - Vai haver febre, comichão e uma grande cicatriz quando a ferida sarar.
Khal Drogo sentou-se, com os sinos a tilintar.
- Eu canto sobre as minhas cicatrizes, mulher-ovelha - dobrou o braço e fez uma careta.
- Não pode beber nem vinho nem leite da papoula - preveniu-o a mulher. - Terá dores, mas deve manter o corpo forte para combater os espíritos do veneno.
- Sou khal - disse Drogo. - Cuspo na dor e bebo o que quiser. Cohollo, traga-me a roupa - o homem mais velho apressou-se a sair.
- Antes - disse Dany à feia lhazarena - ouvi você falar de canções de parto...
- Conheço todos os segredos da cama sangrenta, Senhora de Prata, e nunca perdi um bebê - respondeu Mirri Maz Duur.
- O meu tempo está próximo - disse Dany. - Quero que cuide de mim quando chegar, se quiser.
Khal Drogo deu risada.
- Lua da minha vida, não se pede a uma escrava, ordena-lhe. Ela fará o que mandar - saltou do altar. - Vem, meu sangue. Os garanhões chamam, este lugar é cinzas. É hora de montar.
Haggo seguiu o khal para fora do templo, mas Qotho deixou-se ficar tempo suficiente para brindar Mirri Maz Duur com um olhar duro.
- Lembre-se, maegi, como passar o khal, assim passará você.
- Seja como diz, cavaleiro - respondeu-lhe a mulher, recolhendo seus jarros e garrafas. - O Grande Pastor guarda o rebanho.  

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