segunda-feira, 9 de setembro de 2013

60 - JON


- Está bem, Snow? - perguntou Lorde Mormont, franzindo as sobrancelhas. “Bem", grasnou o corvo. "Bem."
- Estou, senhor - mentiu Jon... muito alto, como se isso pudesse transformar a mentira em verdade. - E o senhor?
Mormont franziu a testa.
- Um morto tentou matar-me. Como poderia estar bem? - coçou o queixo. Sua barba cinzenta tinha sido chamuscada pelo fogo e ele a cortara. Os curtos pelos brancos de suas novas suíças faziam-no parecer velho, pouco confiável e mal-humorado. - Não parece estar bem. Como está sua mão?
- Vai sarando - Jon dobrou os dedos enfaixados para lhe mostrar. Tinha se queimado mais do que supunha ao atirar as cortinas em chamas, e a mão direita estava enfaixada com seda até a metade do antebraço. Na hora nada sentira; a agonia chegara mais tarde. A pele vermelha e fendida segregou fluido, e borbulhas negras com um aspecto terrível surgiram entre os dedos, grandes como baratas. - O meistre diz que vou ficar com cicatrizes, mas fora isso a mão deve ficar tão boa como era antes.
- Uma mão com cicatrizes não é nada. Na Muralha usará luvas com frequência.
- É como diz, senhor - não eram as cicatrizes que perturbavam Jon; era o resto, Meistre Aemon dera-lhe leite da papoula, mas mesmo assim a dor fora terrível. A princípio sentira como se a mão ainda estivesse em chamas, ardendo dia e noite. Só mergulhá-la em bacias de neve e gelo moído lhe dava algum alívio. Jon estava agradecido aos deuses por ninguém, além de Fantasma, tê-lo visto se contorcer na cama, choramingando de dor. Quando por fim dormiu, sonhou, e isso foi ainda pior. No sonho, o cadáver com que lutara tinha olhos azuis, mãos negras e o rosto do pai, mas não se atrevia a contar isso a Mormont.
- Dywen e Hake regressaram ontem à noite - disse o Velho Urso. - Não encontraram sinal algum do seu tio, tal como os outros.
- Eu sei - Jon arrastara-se até a sala comum para jantar com os amigos, e o fracasso na busca dos patrulheiros fora o único tema das conversas.
- Você sabe - resmungou Mormont. - Como é que todo mundo sabe de tudo por aqui? - não parecia esperar uma resposta. - Parece que havia só dois... duas dessas criaturas, fossem elas o que fossem, não os chamarei de homens. E devemos dar graças aos deuses. Mais e... bom, não vale a pena pensar nisso. Mas vai haver mais. Posso senti-lo nestes meus velhos ossos, e Meistre Aemon concorda. Os ventos frios estão se erguendo. O verão está no fim, e está para chegar um inverno como o mundo nunca viu.
O inverno está para chegar. As palavras dos Stark nunca tinham soado a Jon tão sombrias e de mau agouro como agora,
- Senhor - perguntou, hesitante - ouvi dizer que chegou uma ave ontem à noite...
- Chegou. Por quê?
- Tinha esperança de que trouxesse alguma notícia de meu pai.
"Pai", escarneceu o velho corvo, inclinando a cabeça enquanto passeava pelos ombros de Mormont. "Pai"
O Senhor Comandante levantou a mão para lhe fechar o bico, mas o corvo saltou para cima de sua cabeça, sacudiu as asas e voou através do aposento para ir se empoleirar sobre uma janela.
- Dor e ruído - resmungou Mormont. - É só para isso que servem os corvos. Por que aguento esse pestilento pássaro...? Se houvesse notícias de Lorde Eddard, não acha que teria mandado te chamar? Bastardo ou não, pertence ao seu sangue. A mensagem dizia respeito a Sor Barristan Selmy. Parece que foi destituído da Guarda Real. Deram seu lugar àquele cão negro Clegane, e agora Selmy é procurado por traição. Os tontos mandaram um grupo de vigias para capturá-lo, mas ele matou dois e escapou - Mormont bufou, não deixando lugar a dúvidas a respeito do que pensava de homens que mandavam guardas de mantos dourados contra um cavaleiro de tanto renome como Barristan, o Ousado. - Temos sombras brancas na floresta e mortos irrequietos que caminham furtivamente pelos nossos salões, e é um rapaz que ocupa o Trono de Ferro - disse, desgostoso.
O corvo riu estridentemente. "Rapaz, rapaz, rapaz, rapaz"
Jon recordou que Sor Barristan fora a melhor esperança do Velho Urso; se caíra, que hipótese havia de que a carta de Mormont recebesse atenção? Fechou a mão em punho, A dor rompeu dos dedos queimados.
- E minhas irmãs?
- A mensagem não fazia menção alguma a Lorde Eddard ou às meninas - encolheu os ombros, irritado. - Talvez não tenham chegado a receber minha carta. Aemon mandou duas cópias, com as suas melhores aves, mas, quem sabe? O mais provável é que Pycelle não tenha se dignado a responder. Não seria nem a primeira nem a última vez. Temo que contemos com menos que nada em Porto Real. Contam-nos o que querem que saibamos, e isso é bem pouco.
E você me conta o que quer que eu saiba, e isso é ainda menos, pensou Jon com ressentimento. Seu irmão Robb convocara os vassalos e partira para o sul, para a guerra, e nem uma palavra sobre isso lhe fora ventilada... exceto por Samwell Tarly, que lera a carta para Meistre Aemon e sussurrara o conteúdo a Jon naquela noite, em segredo, enquanto repetia que não devia fazê-lo, Não havia dúvida de que pensavam que a guerra do irmão não lhe dizia respeito.
Perturbava-o mais do que conseguia exprimir. Robb marchava, e ele, não. Não importava quantas vezes Jon dissesse a si próprio que seu lugar agora era ali, com seus novos irmãos na Muralha, sentia-se um covarde do mesmo jeito.
"Grão", gritava o corvo. "Grão, grão".
- Ah, cale-se - disse-lhe o Velho Urso. - Snow, daqui a quanto tempo, segundo Meistre Aemon, terá essa mão em boas condições?
- Em breve - Jon respondeu.
- Ótimo - sobre a mesa, entre os dois, Lorde Mormont depositou uma grande espada numa bainha de metal negro ligado com prata. - Toma. Neste caso, está pronto para isto.
O corvo desceu e aterrissou sobre a mesa, pavoneando-se na direção da espada, com a cabeça inclinada de um modo curioso. Jon hesitou. Não fazia nem uma vaga ideia do que aquilo significava.
- Senhor?
- O fogo derreteu a prata do botão e queimou a guarda e o punho. Bem, que se podia esperar de couro seco e madeira velha? Mas a lâmina... seria necessário um fogo cem vezes mais quente que aquele para danificar a lâmina - Mormont empurrou a bainha sobre as pranchas grossas de carvalho. - Mandei fazer o resto de novo. Toma.
"Toma", repetiu o corvo num eco, arranjando as penas com o bico. "Toma, toma."
Com movimentos inábeis Jon pegou a espada. Pegou-a com a mão esquerda, pois a direita, envolta em ataduras, estava ainda muito dolorida e desajeitada. Com cuidado, puxou-a da bainha e ergueu-a até os olhos.
O botão da espada era um pedaço de pedra clara recheado de chumbo para equilibrar a longa lâmina. Fora esculpida à semelhança de uma cabeça de lobo rosnando, com lascas de granada para os olhos. O punho era de couro virgem, suave e negro, ainda sem manchas de suor ou sangue. A lâmina propriamente dita era cerca de quinze centímetros mais longa que aquelas a que Jon estava habituado, delgada de forma a poder trespassar tão bem como cortar, com três caneluras profundamente entalhadas no metal. Enquanto Gelo era uma verdadeira espada longa de duas mãos, esta era uma espada de mão e meia, por vezes denominada "espada bastarda". Mas a espada do lobo, na verdade, parecia mais leve que as que manejara antes. Quando Jon a virou de lado, conseguiu ver as ondulações do aço escuro, onde o metal fora dobrado sobre si próprio uma e outra vez.
- Isto é aço valiriano, senhor - disse, espantado. Seu pai o deixara segurar Gelo muitas vezes; conhecia o aspecto e a sensação.
- É - disse-lhe o Velho Urso. - Foi a espada de meu pai, e antes, do pai dele. Os Mormont a usaram ao longo de cinco séculos. Manejei-a nos meus tempos, e a passei a meu filho quando vesti o negro.
Está me dando a espada do filho. Jon quase não conseguia acreditar. A lâmina tinha um equilíbrio magnífico. As arestas cintilavam levemente quando beijavam a luz.
- Seu filho...
- Meu filho trouxe desonra à Casa Mormont, mas pelo menos teve a elegância de deixar a espada quando fugiu. Minha irmã a devolveu à minha guarda, mas bastava que a visse para me recordar da desgraça de Jorah, então a coloquei de lado e não voltei a pensar nela até que a encontramos nas cinzas do meu quarto. O botão original era uma cabeça de urso, em prata, mas tão desgastada que seus traços estavam praticamente indistinguíveis. Para você, pensei que um lobo branco seria mais adequado. Um dos nossos construtores é um escultor razoável.
Quando Jon tinha a idade de Bran, sonhara com a realização de grandes feitos, como os rapazes sonhavam sempre. Os detalhes de seus feitos mudavam em cada sonho, mas era frequente imaginar que salvava a vida do pai. Depois, Lorde Eddard declararia que Jon provara ser um verdadeiro Stark e colocaria Gelo em suas mãos. Mesmo então soubera que aquilo não passava de delírio de criança; nenhum bastardo poderia jamais esperar manejar a espada do pai. Até a recordação o envergonhava. Que tipo de homem roubava os direitos de nascença do próprio irmão? Não tenho direito a isto, pensou, tal como não tenho direito a Gelo. Contraiu subitamente os dedos, sentindo uma palpitação de dor bem fundo sob a pele.
- Senhor, honra-me, mas...
- Poupe-me os seus mas, rapaz - interrompeu Lorde Mormont. - Não estaria aqui se não fosse você e aquele seu animal. Lutou bravamente... e, mais importante, pensou depressa. Fogol Sim, maldição. Já devíamos saber. Devíamos ter lembrado, A Longa Noite já chegou antes. Ah, oito mil anos é bastante tempo, com certeza... mas, se a Patrulha da Noite não recorda, quem recordará?
"Quem recordara, concordou o corvo falador."Quem recordará"
Na verdade, os deuses tinham atendido às preces de Jon naquela noite; o fogo pegara nas roupas do morto e o consumira como se a carne fosse cera e os ossos, madeira velha e seca. Bastava a Jon fechar os olhos para ver a coisa cambalear no aposento privado, esbarrando contra a mobília e batendo nas chamas. Era o rosto que mais o assombrava; rodeado por uma auréola de fogo, com os cabelos em brasa como se fossem palha, a carne morta derretendo e escorrendo do crânio, revelando o brilho do osso que estava por baixo.
Qualquer que fosse a força demoníaca que animava Othor, fora expulsa pelas chamas; a coisa retorcida que tinham encontrado nas cinzas não passava de carne queimada e ossos carbonizados. Mas em seus pesadelos voltava a enfrentá-la... e dessa vez o cadáver ardente tinha as feições de Lorde Eddard. Era a pele do pai que estourava e enegrecia, os olhos do pai que escorriam pelo rosto como lágrimas de gelatina. Jon não compreendia por que era assim, ou o que aquilo significava, mas o assustava mais do que era capaz de exprimir.
- Uma espada é pagamento pequeno por uma vida - concluiu Mormont. - Fique com ela. Não quero mais ouvir falar disso, compreendido?
- Sim, senhor - o couro suave cedeu sob os dedos de Jon, como se a espada já estivesse se moldando à sua mão. Sabia que devia sentir-se honrado, e se sentia, no entanto...
Ele não é meu pai, O pensamento surgiu sem ser convidado na mente de Jon. Lorde Eddard Stark é meu pai. Não o esquecerei, e não importa quantas espadas me ofereçam. Mas não podia dizer a Lorde Mormont que era com a espada de outro homem que sonhava...
- Também não quero cortesias - disse Mormont - por isso, não me agradeça. Honre o aço com ações, não com palavras.
Jon fez um aceno com a cabeça.
- Tem nome, senhor?
- Em tempos passados teve. Chamava-se Garralonga.
"Garra", gritou o corvo."Garra"
- Garralonga é um bom nome - Jon experimentou um golpe. Era desastrado e sentia-se desconfortável com a mão esquerda, mas mesmo assim o aço pareceu fluir pelo ar, como se tivesse vontade própria. - Os lobos têm garras, tal como os ursos.
O Velho Urso parecia satisfeito.
- Suponho que sim. Imagino que vá preferir usar isso sobre o ombro. E longa demais para a coxa, pelo menos até que cresça um pouco mais. E será preciso praticar seus golpes com as duas mãos. Sor Endrew pode lhe mostrar alguns movimentos quando as queimaduras sararem.
- Sor Endrew? - Jon não conhecia o nome.
- Sor Endrew Tarth, um bom homem. Vem a caminho, desde a Torre das Sombras, para assumir o cargo de mestre de armas. Sor Alliser Thorne partiu ontem de manhã para Atalaialeste do Mar.
Jon baixou a espada.
- Por quê? - perguntou, estupidamente.
Mormont resfolegou.
- Por que o mandei, o que acha? Transporta a mão que o seu Fantasma arrancou do pulso de Jafer Flowers. Ordenei-lhe que embarcasse para Porto Real e a apresentasse a esse rei rapaz. Isso deve chamar a atenção do jovem Joffrey, julgo eu... e Sor Alliser é um cavaleiro, bem-nascido, ungido, com velhos amigos na corte, muito mais difícil de ignorar que uma gralha com fama de grandeza.
"Gralha," Pareceu a Jon que o corvo soava vagamente indignado.
- E, além disso - prosseguiu o Senhor Comandante, ignorando o protesto da ave - coloca mil léguas entre você e ele sem que pareça uma reprimenda - sacudiu o dedo na cara de Jon. - E não pense que isto quer dizer que aprovo aquele disparate na sala comum. O valor compensa um bom bocado de tolice, mas já não é um rapaz, independente da idade que tenha. Isso que tem aí é uma espada de homem, e é preciso ser homem para brandi-la. Espero que de hoje em diante desempenhe esse papel.
- Sim, senhor - Jon voltou a enfiar a espada na bainha ligada com prata. Mesmo que não fosse a lâmina que ele teria escolhido, era de qualquer forma um presente nobre, e libertá-lo da malevolência de Alliser Thorne era mais nobre ainda.
O Velho Urso coçou o queixo.
- Tinha me esquecido de como uma barba nova dá comichão - disse. - Bem, não há como evitá-la. Estará essa sua mão suficientemente sã para retomar seus deveres?
- Sim, senhor.
- Ótimo. A noite será fria e vou querer vinho quente com especiarias. Arranje-me um jarro de tinto que não seja demasiado amargo, e não seja sovina com as especiarias. E diga a Hobb que, se voltar a me enviar carneiro cozido, o mais certo é que eu o cozinhe. Aquele último quadril estava cinzento. Nem o pássaro o tocou - afagou a cabeça do corvo com o polegar, e a ave soltou um quorc de satisfação. - Desapareça. Tenho trabalho a fazer.
Os guardas sorriram-lhe de seus nichos enquanto ia serpenteando pela escada da torre abaixo, levando a espada na mão boa.
- Bom aço - disse um homem.
- Você ganhou isso, Snow - disse-lhe outro. Jon obrigou-se a sorrir-lhes de volta, mas não pôs o coração nos sorrisos. Sabia que devia estar contente, mas não se sentia assim. A mão doía-lhe, e tinha na boca o sabor da ira, embora não pudesse explicar com o que estava irritado, ou por quê.
Meia dúzia dos seus amigos estava à espreita lá fora quando saiu da Torre do Rei, onde o Senhor Comandante Mormont residia agora. Tinham pendurado um alvo na porta do celeiro, para que parecessem estar afinando a sua perícia como arqueiros, mas Jon reconhecia tocaias quando as via. Assim que surgiu, Pyp chamou:
- Então, vem cá, deixe-me ver.
- O quê? - perguntou Jon. Sapo aproximou-se de lado.
- Sua bunda rosada, o que havia de ser?
- A espada - declarou Grenn. - Queremos ver a espada.
Jon varreu-os com um olhar acusador.
- Todos sabiam.
Pyp sorriu.
- Nem todos somos tão estúpidos como Grenn.
- São, sim - insistiu Grenn. - São mais estúpidos.
Halder encolheu os ombros como que pedindo desculpa.
- Ajudei o Pate a esculpir a pedra para o botão - disse o construtor - e seu amigo Sam comprou as granadas em Vila Toupeira.
- Mas já sabíamos mesmo antes disso - disse Grenn. - Rudge tem ajudado Donal Noye na forja. Estava lá quando o Velho Urso lhe levou a lâmina queimada.
- A espada! - insistiu Matt. Os outros se juntaram ao cântico. - A espada, a espada, a espada.
Jon desembainhou Garralonga e a mostrou, virando-a de um lado para o outro para que pudessem admirá-la. A lâmina bastarda cintilava à luz clara do dia, escura e mortífera.
- Aço valiriano - declarou solenemente, tentando soar tão satisfeito e orgulhoso como deveria se sentir.
- Ouvi falar de um homem que tinha uma navalha feita de aço valiriano - Sapo declarou. - Cortou a cabeça ao tentar fazer a barba.
Pyp deu um sorriso.
- A Patrulha da Noite tem milhares de anos de idade - disse - mas aposto que Lorde Snow é o primeiro irmão a receber honrarias por destruir a Torre do Senhor Comandante com um incêndio.
Os outros riram, e até Jon teve de sorrir. O incêndio que iniciara não tinha, na verdade, destruído aquela formidável torre de pedra, mas fizera um bom trabalho em devastar o interior dos dois andares superiores, onde o Velho Urso tinha seus aposentos. Isso não parecia preocupar ninguém por lá, visto que também destruíra o cadáver assassino de Othor.
A outra criatura, a coisa com uma mão só que outrora fora um patrulheiro chamado Jafer Flowers, também foi destruída, quase cortada aos pedaços por uma dúzia de espadas..., mas não antes de ter matado Sor Jaremy Rykker e mais quatro homens. Sor Jaremy concluíra o serviço de lhe arrancar a cabeça, mas morrera mesmo assim quando o cadáver sem cabeça lhe tirara o punhal da bainha e o enterrara nas entranhas. A força e a coragem não eram grande vantagem contra inimigos que não caíam porque já estavam mortos; até as armas e as armaduras davam pouca proteção. Esse sombrio pensamento amargava o frágil humor de Jon.
- Tenho de falar com Hobb sobre o jantar do Velho Urso - anunciou bruscamente, devolvendo Garralonga à bainha. Os amigos tinham boas intenções, mas não compreendiam. Não era culpa deles, na verdade; não tinham tido de enfrentar Othor, não tinham visto o pálido brilho daqueles olhos mortos e azuis, não tinham sentido o frio daqueles dedos mortos e negros. Nem sabiam da luta nas terras fluviais.
Como poderia esperar que compreendessem? Virou-lhes as costas abruptamente e afastou-se a passos largos, carrancudo. Pyp o chamou, mas Jon não lhe deu atenção. Depois do incêndio, tinham-no instalado de novo em sua antiga cela, na arruinada Torre de Hardin, e foi para lá que regressou. Fantasma estava adormecido, enrolado sobre si mesmo junto à porta, mas ergueu a cabeça ao ouvir as botas de Jon. Os olhos vermelhos do lobo selvagem eram mais escuros que granadas e mais sábios que os dos homens. Jon ajoelhou, coçou sua orelha e mostrou-lhe o botão da espada.
- Olha. É você.
Fantasma farejou o retrato de rocha esculpida e experimentou lambê-lo. Jon sorriu.
- É você quem merece a honra - disse ao lobo... e subitamente lembrou-se de como o encontrara, naquele dia, na neve do fim do verão. Afastavam-se com as outras crias, mas Jon ouvira um ruído e se virara, e ali estava ele, de pelos brancos, quase invisível no meio da neve. Estava sozinho, pensou, longe do resto da ninhada. Era diferente, e por isso fora afastado.
- Jon? - ele ergueu o olhar. Samwell Tarly estava lá, balançando-se nervosamente nos calcanhares. Tinha as bochechas coradas e enrolava-se num pesado manto de peles que fazia com que parecesse estar pronto para a hibernação.
- Sam - Jon pôs-se em pé. - O que se passa? Quer ver a espada? - se os outros tinham sabido, sem dúvida Sam também sabia.
O rapaz gordo abanou a cabeça.
- Em tempos passados fui herdeiro da lâmina de meu pai - disse ele num tom soturno. - Coração da Morte. Lorde Randyll deixou-me pegá-la algumas vezes, mas sempre me assustou. Era de aço valiriano, bela, mas tão aguçada que tinha medo de machucar uma das minhas irmãs. Deve ser Dickon quem a tem agora - esfregou as mãos suadas no manto. - Eu... ah... Meistre Aemon quer vê-lo.
Não era o momento de mudar as ataduras. Jon franziu as sobrancelhas, com suspeita.
- Por quê? - quis saber. Sam fez uma expressão infeliz. Era resposta suficiente. - Você lhe disse, não foi? - perguntou Jon em tom de zanga. - Você disse que me contou.
- Eu... ele... Jon, eu não queria... ele perguntou... ou melhor... eu acho que ele sabia, ele vê coisas que mais ninguém vê...
- Ele é cego - Jon rebateu energicamente, descontente. - Eu sei o caminho - deixou Sam ali, de pé, de boca aberta e tremendo.
Encontrou Meistre Aemon no viveiro, alimentando os corvos. Clydas estava com ele, levando um balde de carne picada de gaiola em gaiola.
- Sam disse que quer falar comigo?
O meistre confirmou com um meneio.
- É verdade. Clydas, dê o balde a Jon. Talvez ele tenha a bondade de me ajudar - o irmão corcunda de olhos rosados entregou o balde a Jon e desceu precipitadamente a escada. - Atire a carne nas gaiolas - instruiu Aemon. - As aves farão o resto.
Jon passou o balde para a mão direita e enfiou a esquerda nos pedaços ensanguentados. Os corvos desataram a crocitar ruidosamente e a voar de encontro às grades, batendo no metal com asas negras como a noite. A carne tinha sido cortada em pedaços que não eram maiores que uma falange.
Encheu a mão e atirou as fatias cruas para dentro da gaiola, e os grasnidos e as brigas tornaram-se mais acalorados. Voaram penas quando dois dos pássaros maiores começaram a lutar por um pedaço. Com rapidez, Jon agarrou uma segunda mão-cheia e atirou-a para a gaiola.
- O corvo de Lorde Mormont gosta de fruta e milho.
- E uma ave rara - disse o meistre. - A maioria dos corvos come grãos, mas prefere carne. Torna-os fortes, e temo que apreciem o gosto do sangue. Nisso, são como os homens... e tal como os homens, nem todos os corvos são iguais.
Jon nada tinha a responder àquilo. Atirou carne, perguntando a si mesmo por que teria sido chamado. Não havia dúvida de que o velho acabaria dizendo, a seu próprio tempo. Meistre Aemon não era homem que se pudesse apressar.
- Os pombos também podem ser treinados para transportar mensagens - prosseguiu o meistre - embora o corvo seja um voador mais forte, maior, mais ousado, muito mais inteligente, mais capaz de se defender contra falcões..., mas os corvos são negros, e comem os mortos, por isso alguns homens piedosos os detestam. Baelor, o Bem-Aventurado, tentou substituir todos os corvos por pombas, sabia? - o meistre virou os olhos brancos para Jon, sorrindo. - A Patrulha da Noite prefere corvos.
Os dedos de Jon estavam no balde, com sangue até o pulso.
- Dywen diz que os selvagens nos chamam de gralhas - ele disse em tom incerto.
- A gralha é a prima pobre do corvo. São ambos pedintes de negro, odiados e incompreendidos.
Jon quis compreender qual era o assunto da conversa, e o motivo. Que lhe interessavam corvos e pombas? Se o velho tivesse alguma coisa a lhe dizer, por que não podia simplesmente dizê-la?
- Jon, alguma vez perguntou a si mesmo por que é que os homens da Patrulha da Noite não têm esposas nem geram filhos? - perguntou Meistre Aemon.
Jon encolheu os ombros.
- Não - espalhou mais um pouco de carne. Tinha os dedos da mão esquerda escorregadios com o sangue, e a direita latejava por causa do peso do balde.
- Para que não amem - respondeu o velho - pois o amor é o veneno da honra, a morte do dever.
Aquilo não lhe soava correto, mas nada disse. O meistre tinha cem anos e era um grande oficial da Patrulha da Noite; não lhe competia contradizê-lo. O homem idoso pareceu sentir suas dúvidas.
- Diga-me, Jon, se chegar o dia em que o senhor seu pai tiver de escolher entre a honra por um lado e aqueles que ama pelo outro, o que fará?
Jon hesitou. Queria dizer que Lorde Eddard nunca se desonraria, nem mesmo por amor, mas dentro de si uma pequena voz zombeteira segredou: Ele foi pai de um bastardo, onde está a honra nisso? E tua mãe, que foi feito dos deveres dele para com ela, se nem sequer lhe pronuncia o nome?
- Faria o que estivesse certo - disse... com uma voz ressonante, para compensar a hesitação. - Acontecesse o que acontecesse.
- Então Lorde Eddard é um homem entre dez mil. A maior parte de nós não é tão forte. O que é a honra comparada com o amor de uma mulher? O que é o dever contra sentir um filho recém-nascido nos braços... ou a memória do sorriso de um irmão? Vento e palavras. Vento e palavras. Somos apenas humanos, e os deuses nos moldaram para o amor. Esta é a nossa grande glória e a nossa grande tragédia. Os homens que criaram a Patrulha da Noite sabiam que só a coragem defenderia o reino da escuridão do Norte. Sabiam que não podiam ter as lealdades divididas que lhes enfraquecessem a determinação. Por isso juraram não ter esposas nem filhos. Mas tinham irmãos e irmãs. Mães que os tinham dado à luz, pais que lhes tinham dado nomes. Chegavam de uma centena de reinos conflituosos e sabiam que os tempos podiam mudar, mas os homens não mudam. Por isso juraram também que a Patrulha da Noite não participaria das batalhas dos reinos que guardava. Mantiveram o juramento. Quando Aegon assassinou o Negro Harren e lhe conquistou o reino, o irmão de Harren era Senhor Comandante na Muralha, com dez mil espadas à mão. Não se pôs em marcha. Nos dias em que os Sete Reinos eram sete reinos, não se passava uma geração sem que três ou quatro deles estivessem em guerra. A Patrulha não participou. Quando os ândalos atravessaram o Mar Estreito e varreram os reinos dos Primeiros Homens, os filhos dos reis caídos mantiveram-se fiéis aos seus votos e permaneceram em seus postos. Sempre foi assim, ao longo de anos incontáveis. É este o preço da honra. Um covarde pode ser tão bravo como qualquer homem quando não há nada a temer. E todos cumprimos o nosso dever quando ele não tem um preço. Como parece fácil então seguir o caminho da honra. Mas, cedo ou tarde, na vida de todos os homens chega um dia em que não é fácil, um dia em que ele tem de escolher.
Alguns dos corvos ainda estavam comendo, com longos pedaços fibrosos de carne balançando dos bicos. Os outros pareciam observá-lo. Jon conseguia sentir o peso de todos aqueles minúsculos olhos negros.
- E este é o meu dia... é isso o que está dizendo?
Meistre Aemon virou a cabeça e o olhou com aqueles alvos olhos mortos. Era como se estivesse olhando diretamente para o seu coração. Jon sentiu-se nu e exposto. Pegou o balde com as duas mãos e atirou o resto do conteúdo por entre as grades. Pedaços de carne e sangue voaram para todo o lado, espantando os corvos. Levantaram voo, gritando como loucos. As aves mais rápidas apanharam nacos em pleno voo e engoliram avidamente. Jon deixou o balde vazio tinir no chão.
O velho pousou a mão murcha e manchada em seu ombro.
- Dói, rapaz - disse ele em voz baixa. - Ah, sim. Escolher... sempre doeu. E sempre doera. Eu sei.
- O senhor não sabe - disse Jon com amargura. - Ninguém sabe. Mesmo que eu seja seu bastardo, ainda assim ele é meu pai...
Meistre Aemon suspirou.
- Não ouviu nada do que eu disse, Jon? Pensa que é o primeiro? - sacudiu a velha cabeça, gesto de um cansaço impossível de descrever. - Três vezes acharam os deuses por bem testar os meus votos. Uma vez quando era rapaz, uma vez em plena idade adulta e uma vez depois de envelhecer. Nessa altura, já as forças me tinham fugido, já os olhos viam mal, mas essa última escolha foi tão cruel como a primeira. Meus corvos traziam as notícias do Sul, palavras mais escuras que suas asas, a ruína da minha Casa, a morte dos meus, desgraça e desolação. Que poderia eu ter feito, velho, cego e frágil? Estava tão impotente como um bebê de colo, mas mesmo assim me magoava estar imóvel e esquecido enquanto abatiam o pobre neto de meu irmão, e o filho dele, e até as crianças pequenas...
Jon ficou chocado ao ver o brilho de lágrimas nos olhos do idoso.
- Quem é o senhor? - perguntou em voz baixa, quase aterrorizado. Um sorriso sem dentes estremeceu naqueles velhos lábios.
- Apenas um meistre da Cidadela a serviço do Castelo Negro e da Patrulha da Noite. Na minha ordem, pomos de lado os nomes de nossas Casas quando fazemos os votos e colocamos o colar - o velho tocou a corrente de meistre que pendia solta em torno do pescoço fino e descarnado. - Meu pai foi Mekar, o Primeiro de Seu Nome, e meu irmão Aegon reinou depois dele em meu lugar. Meu avô deu-me o nome em honra do Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, que era seu tio, ou seu pai, depende da lenda em que se acredite. Chamou-me Aemon...
- Aemon... Targaryen? - Jon quase não conseguia acreditar.
- Outrora - disse o velho. - Outrora. Portanto, como vê, Jon, eu sei... e, sabendo, não lhe direi fica ou vai. Você tem de fazer essa escolha, e viver com ela pelo resto de seus dias. Como eu - a voz reduziu-se a um suspiro. - Como eu...  

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