Asas
ensombraram seus sonhos febris.
- Você
não quer acordar o dragão, não é?
Caminhava
por um longo corredor sob grandes arcos de pedra. Não devia olhar
para trás, não podia olhar para trás. A frente havia uma porta,
minúscula na distância, mas mesmo de longe viu que estava pintada
de vermelho. Caminhou mais depressa, e seus pés nus deixaram pegadas
sangrentas na pedra.
- Você
não quer acordar o dragão, quer?
Viu a luz
do sol no mar dothraki, na planície viva, rica com os odores da
terra e da morte. O vento agitava o capim, que ondulava como água.
Drogo a envolvia em braços fortes, e a mão dele afagou-lhe o sexo e
o abriu, e acordou aquela doce umidade que era só dele, e as
estrelas lhes sorriram, estrelas num céu diurno. "Casa",
ela sussurrou quando ele a penetrou e a encheu com o seu sêmen, mas
de súbito as estrelas desapareceram, e as grandes asas varreram o
céu azul e o mundo pegou fogo.
- ... não
quer acordar o dragão, quer?
O rosto
de Sor Jorah estava contraído e desgostoso. "Rhaegar foi o
último dragão", disse-lhe. Aquecia suas mãos translúcidas
num braseiro brilhante onde ovos de pedra cintilavam, vermelhos como
carvões. Num momento estava ali, e no seguinte desvanecia-se, sem
cor na pele, menos sólido que o vento. "O último dragão",
sussurrou, em um frágil fio de voz, e desapareceu. Dany sentiu a
escuridão atrás de si, e a porta vermelha parecia mais longínqua
que nunca.
- ... não
quer acordar o dragão, quer?
Viserys
estava à sua frente, gritando. "O dragão não pede, puta. Você
não dá ordens ao dragão. Eu sou o dragão e serei coroado." O
ouro derretido escorria-lhe pelo rosto como cera, abrindo profundos
canais em sua carne."Eu sou o dragão e serei coroado!"
guinchou, e seus dedos saltaram como serpentes, apertando-lhe os
mamilos, beliscando, torcendo, mesmo depois de os olhos estourarem e
escorrerem como gelatina por bochechas secas e enegrecidas.
- ... não
quer acordar o dragão...
A porta
vermelha estava tão longe à sua frente, e Dany sentia a respiração
gelada atrás de si, aproximando-se pesadamente. Se a apanhasse,
teria uma morte que seria mais que morte, uivando para sempre sozinha
na escuridão. Pôs-se a correr. não quer acordar o dragão...
Conseguia
sentir o calor dentro de si, um terrível ardor no ventre. O filho
era alto e orgulhoso, com a pele acobreada de Drogo e os cabelos
louros prateados dela, com olhos violeta em forma de amêndoas. E
sorriu-lhe, e começou a erguer a mão na direção da dela, mas
quando abriu a boca, o fogo jorrou. Viu o coração arder-lhe no
peito, e num instante ele desaparecera, consumido como uma traça por
uma vela, transformado em cinzas.
Chorou
pelo filho, pela promessa de uma boca querida no seu seio, mas as
lágrimas transformaram-se em vapor quando lhe tocaram a pele.
- ...
quer acordar o dragão...
Fantasmas
alinhavam-se ao longo do corredor, vestidos com as vestes desbotadas
de reis. Nas mãos traziam espadas de fogo pálido. Tinham cabelos de
prata, cabelos de ouro e cabelos brancos de platina, e seus olhos
eram de opala e ametista, de turmalina e jade. "Mais depressa",
gritaram, "mais depressa, mais depressa". Ela correu, com
os pés derretendo a pedra onde a tocavam. "Mais depressa!",
gritavam os fantasmas como se fossem um só, e ela gritou e atirou-se
em frente. Uma grande faca de dor rasgou-lhe as costas, e sentiu a
pele abrir-se, cheirou o fedor de sangue ardendo e viu a sombra de
asas. E Daenerys Targaryen levantou voo.
- ...
acordar o dragão...
A porta
erguia-se na sua frente, a porta vermelha, tão próxima, tão
próxima, o corredor era um borrão à sua volta, o frio ficava para
trás. E agora já não havia pedra, e ela voava pelo mar dothraki,
cada vez mais alto, com o verde ondulando por baixo, e tudo o que
vivia e respirava fugia aterrorizado da sombra de suas asas.
Conseguia
sentir o cheiro de casa, conseguia vê-la, ali, por trás daquela
porta, campos verdejantes e grandes casas de pedra e braços que a
mantivessem quente, ali. Escancarou a porta.
-... o
dragão...
E viu o
irmão Rhaegar, montado num garanhão tão negro como a sua armadura.
Fogo cintilava, vermelho, através da fenda estreita da viseira de
seu elmo. "O último dragão", sussurrou, tênue, a voz de
Sor Jorah."O último, o último." Dany ergueu o polido
visor negro do irmão. O rosto que estava lá dentro era o dela.
Depois
daquilo, durante muito tempo, só houve dor, o fogo em seu interior e
os sussurros das estrelas. Acordou sentindo o sabor das cinzas.
- Não -
gemeu - por favor, não.
-
Khaleesi? - Jhiqui pairou sobre ela, como uma corça assustada.
A tenda
estava mergulhada em sombras, silenciosa e fechada. Flocos de cinzas
saltavam de um braseiro, e Dany seguiu-os com os olhos enquanto
atravessavam o buraco da fumaça, no topo da tenda. Voar, pensou.
Tinha asas, estava voando. Mas fora apenas um sonho.
-
Ajude-me - sussurrou, lutando por se erguer. - Traga-me... - tinha a
voz em sangue como uma ferida, e não conseguia pensar no que queria.
Por que doía tanto? Era como se seu corpo tivesse sido rasgado em
fatias e reconstruído. - Quero...
- Sim,
khaleesi - e nesse mesmo instante Jhiqui partira, saltando da tenda,
aos gritos.
Dany
precisava... de alguma coisa... de alguém... de quê?
Sabia que
era importante. Era a única coisa do mundo que importava. Rolou de
lado, apoiando-se sobre um cotovelo, lutando contra a manta que se
emaranhava nas pernas. Mexer-se era tão difícil. O mundo nadou,
entontecido. Tenho de...
Encontraram-na
caída sobre o tapete, rastejando na direção de seus ovos de
dragão. Sor Jorah Mormont ergueu-a nos braços e a levou de volta às
sedas de dormir, enquanto ela lutava debilmente contra ele. Por cima
do ombro do cavaleiro, viu as três aias, Jhogo, com sua pequena
sombra de bigode, e a cara larga e achatada de Mirri Maz Duur.
- Tenho -
tentou dizer-lhes - preciso...
- ...
dormir, princesa - disse Sor Jorah.
- Não -
disse Dany. - Por favor. Por favor.
- Sim -
cobriu-a com seda, apesar de ela estar ardendo. - Durma e ficará de
novo forte, khaleesi. Volte para nós - e então Mirri Maz Duur
estava ali, a maegi, inclinando uma taça contra seus lábios. Sentiu
o sabor de leite azedo e mais alguma outra coisa, algo espesso e
amargo.
Líquido
quente escorreu-lhe pelo queixo. Sem saber bem como, engoliu. A tenda
ficou mais sombria, e o sono tomou-a de novo. Desta vez não sonhou.
Flutuou, serena e em paz, num mar negro que não conhecia litorais.
Depois de
algum tempo, uma noite, um dia, um ano, não saberia dizer, voltou a
acordar. A tenda estava escura, com as paredes de seda batendo como
asas quando as rajadas de vento sopravam lá fora. Dessa vez Dany não
tentou se levantar.
- Irri -
chamou - Jhiqui, Doreah - chegaram imediatamente. - Tenho a garganta
seca, tão seca - e trouxeram-lhe água. Estava morna e sem sabor,
mas Dany bebeu sofregamente e mandou Jhiqui buscar mais. Irri
umedeceu um pano suave e afagou-lhe a testa. - Estive doente - disse
Dany.
A jovem
dothraki confirmou com um gesto. - Quanto tempo? - o pano era
calmante, mas Irri parecia tão triste que a assustou.
- Muito -
sussurrou a jovem. Quando Jhiqui regressou com mais água, Mirri Maz
Duur veio com ela, com olhos pesados de sono.
- Beba -
disse a maegi, voltando a levantar a cabeça de Dany até a taça,
mas desta vez era só vinho. Doce, doce vinho. Dany bebeu e voltou a
deitar-se, ouvindo o som suave da própria respiração. Sentiu o
peso nos membros quando o sono deslizou para voltar a tomá-la.
-
Traga-me... - murmurou, com a voz embaraçada e sonolenta. - Traga...
quero segurar...
- Sim? -
perguntou a maegi - Que deseja, khaleesi!
-
Traga-me... ovo... ovo de dragão... por favor... - as pestanas
transformaram-se em chumbo, e ficou cansada demais para segurá-las.
Quando
acordou pela terceira vez, um dardo de luz dourada do sol jorrava
pelo buraco de fumaça da tenda, e tinha os braços enrolados em
volta de um ovo de dragão. Era o mais claro, com escamas da cor de
creme de manteiga, com veios em volutas de ouro e bronze, e Dany
conseguia sentir seu calor. Sob as sedas de dormir, uma fina película
de transpiração cobria-lhe a pele nua.
Orvalho
de dragão, pensou. Passou levemente os dedos sobre a superfície da
casca, seguindo as volutas de ouro, e na profundidade da rocha sentiu
que algo se torcia e esticava em resposta. Não se assustou. Todo seu
medo tinha desaparecido, ardera.
Dany
tocou a testa. Sob a película de suor a pele estava fria ao toque, a
febre desaparecera. Esforçou-se para sentar. Houve um momento de
tontura, e uma dor profunda entre as coxas. Mas sentia-se forte. As
aias se precipitaram ao som de sua voz.
- Água -
disse-lhes - um jarro de água, a mais fria que consigam encontrar. E
fruta, acho eu. Tâmaras.
- Às
suas ordens, khaleesi.
- Quero
ver Sor Jorah - disse, pondo-se em pé. Jhiqui trouxe-lhe um roupão
de sedareia e envolveu-lhe os ombros com ele. - E também quero um
banho quente, e Mirri Maz Duur, e... - as recordações chegaram-lhe
todas ao mesmo tempo, e ela vacilou. - Khal Drogo - forçou-se a
dizer, observando o rosto delas com terror. - Ele...?
- O khal
vive - respondeu Irri em voz baixa... Mas Dany viu-lhe uma escuridão
nos olhos quando disse as palavras, e assim que acabou de falar, a
jovem fugiu para ir buscar água.
Dany
virou-se para Doreah.
-
Conte-me.
- Eu...
eu vou buscar Sor Jorah - disse a jovem lysena, inclinando a cabeça
e fugindo da tenda. Jhiqui teria fugido também, mas Dany a segurou
pelo pulso e a manteve presa.
- O que
está acontecendo? Tenho de saber. Drogo... e meu filho - por que não
teria se lembrado da criança até agora? - O meu filho... Rhaego...
onde está ele? Quero vê-lo.
A aia
baixou os olhos.
- O
menino... não sobreviveu, khaleesi - a voz dela era um murmúrio
assustado.
Dany
soltou-lhe o pulso. Meu filho está morto, pensou, enquanto Jhiqui
saía da tenda. De algum modo já o sabia. Soubera desde que acordara
pela primeira vez com as lágrimas de Jhiqui. Não, soubera-o antes
de acordar.
O sonho
regressou-lhe, súbito e vívido, e lembrou-se do homem alto com a
pele acobreada e a longa cabeleira de prata dourada, rebentando em
chamas. Sabia que devia chorar, mas tinha os olhos secos como cinza.
Chorara no sonho, e as lágrimas tinham se transformado em vapor no
rosto. Todo o pesar foi queimado em mim, disse a si mesma. Sentia-se
triste, e no entanto... conseguia sentir Rhaego afastando-se dela,
como se nunca tivesse existido.
Sor Jorah
e Mirri Maz Duur entraram alguns momentos mais tarde, e deram com
Dany em pé junto aos outros ovos de dragão, os que ainda estavam
dentro do cofre. Pareciam-lhe tão quentes como aquele com o qual
dormira, o que era muito estranho.
- Sor
Jorah, venha cá - disse. Tomou-lhe a mão e pousou-a no ovo negro
com as volutas escarlates. - O que sente?
- Casca,
dura como pedra - o cavaleiro estava cauteloso. - Escamas.
- Calor?
- Não.
Pedra fria - afastou a mão. - Princesa, está bem? Devia estar de
pé, assim tão fraca?
- Fraca?
Sinto-me forte, Jorah - para agradá-lo, reclinou-se numa pilha de
almofadas. - Conte-me como meu filho morreu.
- Não
chegou a viver, minha princesa. As mulheres dizem... - vacilou, e
Dany reparou como a carne pendia solta no seu corpo, e como coxeava
quando se movia.
-
Conte-me. Conte-me o que as mulheres dizem.
Ele virou
o rosto. Tinha os olhos assombrados.
- Elas
dizem que a criança era...
Dany
esperou, mas Sor Jorah não foi capaz de dizer. Seu rosto escureceu
de vergonha. Ele próprio parecia quase um cadáver.
-
Monstruosa - terminou Mirri Maz Duur por ele. O cavaleiro era um
homem poderoso, mas Dany compreendeu naquele momento que a maegi era
mais forte, e mais cruel, e infinitamente mais perigosa. - Deformada.
Fui eu quem a puxou. Tinha escamas como um lagarto, era cega, trazia
um vestígio de cauda e pequenas asas de couro como as de um morcego.
Quando o toquei, a carne desprendeu-se do osso, e por dentro estava
cheia de vermes e fedia a decomposição. Estava morta havia anos.
Escuridão,
pensou Dany. A terrível escuridão que vinha por trás para
devorá-la. Se olhasse para trás, estaria perdida.
- Meu
filho estava vivo e forte quando Sor Jorah me trouxe para esta tenda
- disse. - Sentia-o dar pontapés e lutar para nascer.
- Pode
ser que sim, pode ser que não - respondeu Mirri Maz Duur - mas a
criatura que saiu de seu ventre era como eu disse. Havia morte
naquela tenda, khaleesi.
- Só
sombras - desvendou Sor Jorah, mas Dany conseguia sentir a dúvida em
sua voz. - Eu vi, maegi. Vi-a, sozinha, dançando com as sombras.
- A
sepultura produz longas sombras, Senhor de Ferro - disse Mirri. -
Longas e escuras, e no fim nenhuma luz consegue resistir a elas.
Dany
sabia que Sor Jorah matara seu filho. Fizera aquilo por amor e
lealdade, mas a transportara para um lugar onde nenhum homem vivo
devia ir e entregara seu filho às trevas. Ele também o sabia; o
rosto cinzento, os olhos vazios, o coxear.
- As
sombras também o tocaram, Sor Jorah - disse-lhe Dany. O cavaleiro
não deu resposta. Ela se virou para a esposa de deus. - Preveniu-me
de que só a morte podia pagar pela vida. Pensei que se referisse ao
cavalo.
- Não -
disse Mirri Maz Duur. - Era nisso que queria acreditar. Conhecia o
preço.
Conhecia?
Conhecia? Se olhar para trás, estou perdida.
- O preço
foi pago - disse Dany. - O cavalo, meu filho, Quaro e Qotho, Haggo e
Cohollo. O preço foi pago, pago e pago - ergueu-se das almofadas. -
Onde está Khal Drogo? Mostre-me, esposa de deus, maegi, maga de
sangue, o que quer que seja. Mostre-me Khal Drogo. Mostre-me o que
comprei com a vida de meu filho.
- Às
suas ordens, khaleesi - disse a velha. - Venha, a levarei até ele.
Dany
estava mais fraca do que julgara. Sor Jorah pôs o braço ao seu
redor e a ajudou a ficar em pé.
- Há
tempo suficiente para isto mais tarde, princesa - disse ele em voz
baixa.
- Quero
vê-lo agora, Sor Jorah.
Depois da
escuridão da tenda, o mundo lá fora era tão brilhante que cegava.
O sol queimava como ouro derretido, e a terra estava seca e vazia. As
aias esperavam com frutas, vinho e água, e Jhogo aproximou-se para
ajudar Sor Jorah a suportar-lhe o peso. Aggo e Rakharo seguiam atrás.
O clarão do sol na areia fez com que lhe fosse difícil ver mais,
até Dany erguer a mão para dar sombra aos olhos. Viu as cinzas de
uma fogueira, alguns cavalos que andavam às voltas, apaticamente, em
busca de um pouco de capim, tendas e esteiras espalhadas. Uma pequena
multidão de crianças reunira-se para vê-la, e atrás delas
vislumbrou mulheres que tratavam de seus deveres e velhos mirrados
que olhavam o céu azul uniforme com olhos cansados, enxotando
fracamente moscas de sangue. Uma contagem mostraria umas cem pessoas,
não mais. Onde as outras quarenta mil tinham montado acampamento, só
o vento e a poeira restavam agora.
- O
khalasar de Drogo desapareceu - disse ela.
- Um khal
que não pode montar não é um khal - disse Jhogo.
- Os
dothrakis seguem apenas os fortes - disse Sor Jorah.
-
Lamento, minha princesa. Não havia maneira de detê-los. Ko Pono foi
o primeiro a partir, chamando-se a si mesmo Khal Pono, e muitos o
seguiram. Jhaqo não esperou muito tempo para fazer o mesmo. O resto
foi se esgueirando noite após noite, em bandos grandes e pequenos.
Há uma dúzia de novos khalasares no mar dothraki, no lugar que em
tempos passados foi apenas de Drogo.
- Os
velhos ficaram - disse Aggo. - Os assustados, os fracos e os doentes.
E nós, que juramos. Nós ficamos.
- Levaram
as manadas de Khal Drogo, khaleesi - disse Rakharo. - Não éramos
suficientes para impedir. É direito dos fortes roubar dos fracos.
Levaram também muitos escravos, do khal e seus, mas deixaram alguns.
- Eroeh?
- perguntou Dany, lembrando-se da criança assustada que salvara fora
da cidade dos Homens-Ovelhas.
- Mago,
que é agora companheiro de sangue de Khal Jhaqo, capturou-a para si
- disse Jhogo. - Montou-a por cima e por baixo e a deu ao seu khal, e
Jhaqo a deu aos seus outros companheiros de sangue. Eram seis. Quando
ficaram satisfeitos, cortaram-lhe a garganta.
- Foi o
destino dela, khaleesi - disse Aggo.
Se olhar
para trás, estou perdida.
- Foi um
destino cruel - disse Dany - mas não tão cruel como será o de
Mago. Prometo, pelos velhos deuses e pelos novos, pelo deus-ovelha e
pelo deus-cavalo e por todos os deuses que vivem. Juro pela Mãe das
Montanhas e o Ventre do Mundo. Antes de acabar com eles, Mago e Ko
Jhaqo suplicarão pela clemência que mostraram a Eroeh,
Os
dothrakis trocaram olhares inseguros.
-
Khaleesi - explicou a aia Irri, como se estivesse falando com uma
criança. - Jhaqo é agora um khal, à frente de vinte mil
cavaleiros.
Dany
ergueu a cabeça,
- E eu
sou Daenerys, nascida na Tempestade, Daenerys da Casa Targaryen, do
sangue de Aegon, o Conquistador, e Maegor, o Cruel, e da velha
Valíria antes deles. Sou a filha do dragão, e, juro-lhes, esses
homens morrerão aos gritos. Agora leve-me a Khal Drogo.
Jazia
sobre a terra vermelha e nua, de olhos fixos no sol. Uma dúzia de
moscas de sangue pousara em seu corpo, embora ele não parecesse
senti-las. Dany enxotou-as e ajoelhou-se a seu lado. Os olhos dele
estavam muito abertos, mas não viam, e ela compreendeu de imediato
que Drogo estava cego. Quando sussurrou seu nome, não pareceu ouvir.
A ferida no peito estava curada como jamais poderia estar, com a
cicatriz que a cobria cinzenta e vermelha e hedionda.
- Por que
ele está aqui sozinho ao sol? - perguntou-lhes.
- Parece
gostar do calor, princesa - disse Sor Jorah. - Seus olhos seguem o
sol, embora não o veja. Consegue fazer algo semelhante ao andar. Vai
para onde o levam, mas não mais longe. Come se lhe puserem comida na
boca e bebe se lhe escorrerem água para os lábios.
Dany
beijou o seu sol-e-estrelas suavemente na testa, e ergueu-se para
encarar Mirri Maz Duur.
- Seus
feitiços são caros, maegi.
- Ele
vive - disse Mirri Maz Duur. - Você pediu vida, e pagou por vida.
- Isto
não é vida para quem era como Drogo. Sua vida eram gargalhadas e
carne assando numa fogueira, e um cavalo entre as pernas. Sua vida
eram um arakh na mão e as campainhas tinindo no cabelo enquanto
cavalgava ao encontro de um inimigo. Sua vida eram os seus
companheiros de sangue, e eu, e o filho que lhe devia ter dado.
Mirri Maz
Duur não deu resposta.
- Quando
voltará a ser como era? - quis saber Dany.
- Quando
o sol nascer no ocidente e se puser no oriente - disse Mirri Maz
Duur. - Quando os mares secarem e as montanhas forem sopradas pelo
vento como folhas. Quando seu ventre voltar a ganhar vida para dar à
luz um filho vivo. Então, e não antes, ele regressará.
Dany fez
um gesto para Sor Jorah e os outros.
-
Deixem-nos. Quero falar a sós com esta maegi - Mormont e os
dothrakis retiraram-se. - Você sabia - disse Dany depois de eles
irem embora. Sentia dor, por dentro e por fora, mas a fúria dava-lhe
forças. - Você sabia o que eu estava comprando e conhecia o preço,
e mesmo assim me deixou pagá-lo.
- Foi
errado da parte deles terem queimado meu templo - disse placidamente
a pesada mulher de nariz achatado. - Isso enfureceu o Grande Pastor.
- Isto
não foi trabalho de nenhum deus - Dany disse friamente.
Se olhar
para trás, estou perdida.
-
Enganou-me. Assassinou meu filho dentro de mim.
- O
garanhão que monta o mundo já não queimará cidades. O seu
khalasar não transformará nações em poeira.
- Eu
intervim por você - disse Dany, angustiada. - Salvei-a.
-
Salvou-me? - cuspiu a lhazarena. - Três guerreiros já tinham me
possuído, não como um homem possui uma mulher, mas por trás, como
um cão possui uma cadela. O quarto estava dentro de mim quando você
passou por ali. Como foi que me salvou? Vi a casa do meu deus arder,
o lugar onde curei homens bons sem conta. Também me queimaram a
casa, e na rua vi pilhas de cabeças. Vi a cabeça de um padeiro que
me fazia o pão. Vi a cabeça de um rapaz que salvei da febre do olho
morto havia só três luas. Ouvi crianças chorando quando os
guerreiros as arrancaram de casa à chicotada. Diga-me lá outra vez
o que salvou.
- A sua
vida.
Mirri Maz
Duur soltou uma gargalhada cruel.
- Olha
para o seu khal e vê de que serve a vida quando todo o resto
desapareceu.
Dany
chamou os homens do seu khas e lhes pediu para prenderem Mirri Maz
Duur e atarem seus pés e mãos, mas a maegi sorriu-lhe quando a
levaram, como se partilhassem um segredo. Uma palavra, e Dany podia
ter feito com que a decapitassem... mas o que teria então? Uma
cabeça? Se a vida não tinha valor, que valor tinha a morte?
Levaram
Khal Drogo até sua tenda, e Dany ordenou-lhes
que
enchessem uma banheira, e desta vez não houve sangue na água. Foi
ela mesma que lhe deu o banho, lavando a terra e o pó dos braços e
do peito, limpando o rosto com um pano suave, ensopando os longos
cabelos negros e escovando os nós e embaraços até ficarem de novo
brilhantes como os recordava. Quando acabou, o sol já tinha se posto
havia muito, e Dany estava exausta.
Parou
para beber e comer, mas só conseguiu mordiscar um figo e engolir um
gole de água. O sono teria sido uma libertação, mas já dormira o
suficiente... na verdade, até demais. Devia aquela noite a Drogo,
por todas as noites que tinham existido e ainda poderiam existir. A
memória da primeira cavalgada juntos a acompanhou quando o levou
para a escuridão do exterior, pois os dothrakis acreditavam que
todas as coisas de importância na vida de um homem tinham de ser
realizadas a céu aberto. Disse a si mesma que havia poderes mais
fortes que o ódio, e feitiços mais velhos e verdadeiros que
qualquer um que a maegi tivesse aprendido em Asshai. A noite estava
negra e sem lua, mas por cima de sua cabeça mil estrelas ardiam,
brilhantes. Tomou aquilo como um presságio.
Nenhum
suave cobertor verde lhes deu ali as boas-vindas, só o chão duro e
poeirento, nu e semeado de pedras. Não havia árvores agitando-se ao
vento, e não havia um córrego que lhe acalmasse os medos com a
música suave das águas. Dany disse a si mesma que as estrelas
bastariam.
-
Lembre-se, Drogo - murmurou. - Lembre-se da nossa primeira cavalgada
juntos, no dia em que casamos. Lembre-se da noite em que fizemos
Rhaego, com o khalasar à nossa volta e os seus olhos no meu rosto.
Lembre-se de como a água estava fria e limpa no Ventre do Mundo.
Lembre-se, meu sol-e-estrelas. Lembre-se e volte para mim.
O parto a
tinha deixado demasiado dolorida e rasgada para introduzi-lo dentro
de si como teria desejado, mas Doreah ensinara-lhe outras maneiras.
Dany usou as mãos, a boca, os seios. Arranhou-o com as unhas,
cobriu-o de beijos e segredou-lhe, rezou e contou-lhe histórias, e
quando terminou, o tinha banhado com as suas lágrimas.
Mas Drogo
nem sentiu, nem falou, nem se ergueu. E quando a alvorada sem vida
surgiu num horizonte vazio, Dany compreendeu que ele estava realmente
perdido.
- Quando
o sol nascer a oeste e se puser a leste - disse tristemente. - Quando
os mares secarem e as montanhas forem sopradas pelo vento como
folhas. Quando meu ventre voltar a ganhar vida e der à luz um filho
vivo. Então regressará, meu sol-e-estrelas, e não antes.
Nunca,
gritou a escuridão, nunca, nunca, nunca. Dentro da tenda Dany
encontrou uma almofada de seda suave estofada de penas. Apertou-a
contra os seios enquanto voltava para junto de Drogo, para junto do
seu sol-e-estrelas. Se olhar para trás, estou perdida. Até andar
lhe doía, e queria dormir, dormir e não sonhar.
Ajoelhou,
beijou Drogo nos lábios e apertou a almofada contra o rosto.
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