terça-feira, 10 de setembro de 2013

68 - DAENERYS


Asas ensombraram seus sonhos febris.
- Você não quer acordar o dragão, não é?
Caminhava por um longo corredor sob grandes arcos de pedra. Não devia olhar para trás, não podia olhar para trás. A frente havia uma porta, minúscula na distância, mas mesmo de longe viu que estava pintada de vermelho. Caminhou mais depressa, e seus pés nus deixaram pegadas sangrentas na pedra.
- Você não quer acordar o dragão, quer?
Viu a luz do sol no mar dothraki, na planície viva, rica com os odores da terra e da morte. O vento agitava o capim, que ondulava como água. Drogo a envolvia em braços fortes, e a mão dele afagou-lhe o sexo e o abriu, e acordou aquela doce umidade que era só dele, e as estrelas lhes sorriram, estrelas num céu diurno. "Casa", ela sussurrou quando ele a penetrou e a encheu com o seu sêmen, mas de súbito as estrelas desapareceram, e as grandes asas varreram o céu azul e o mundo pegou fogo.
- ... não quer acordar o dragão, quer?
O rosto de Sor Jorah estava contraído e desgostoso. "Rhaegar foi o último dragão", disse-lhe. Aquecia suas mãos translúcidas num braseiro brilhante onde ovos de pedra cintilavam, vermelhos como carvões. Num momento estava ali, e no seguinte desvanecia-se, sem cor na pele, menos sólido que o vento. "O último dragão", sussurrou, em um frágil fio de voz, e desapareceu. Dany sentiu a escuridão atrás de si, e a porta vermelha parecia mais longínqua que nunca.
- ... não quer acordar o dragão, quer?
Viserys estava à sua frente, gritando. "O dragão não pede, puta. Você não dá ordens ao dragão. Eu sou o dragão e serei coroado." O ouro derretido escorria-lhe pelo rosto como cera, abrindo profundos canais em sua carne."Eu sou o dragão e serei coroado!" guinchou, e seus dedos saltaram como serpentes, apertando-lhe os mamilos, beliscando, torcendo, mesmo depois de os olhos estourarem e escorrerem como gelatina por bochechas secas e enegrecidas.
- ... não quer acordar o dragão...
A porta vermelha estava tão longe à sua frente, e Dany sentia a respiração gelada atrás de si, aproximando-se pesadamente. Se a apanhasse, teria uma morte que seria mais que morte, uivando para sempre sozinha na escuridão. Pôs-se a correr. não quer acordar o dragão...
Conseguia sentir o calor dentro de si, um terrível ardor no ventre. O filho era alto e orgulhoso, com a pele acobreada de Drogo e os cabelos louros prateados dela, com olhos violeta em forma de amêndoas. E sorriu-lhe, e começou a erguer a mão na direção da dela, mas quando abriu a boca, o fogo jorrou. Viu o coração arder-lhe no peito, e num instante ele desaparecera, consumido como uma traça por uma vela, transformado em cinzas.
Chorou pelo filho, pela promessa de uma boca querida no seu seio, mas as lágrimas transformaram-se em vapor quando lhe tocaram a pele.
- ... quer acordar o dragão...
Fantasmas alinhavam-se ao longo do corredor, vestidos com as vestes desbotadas de reis. Nas mãos traziam espadas de fogo pálido. Tinham cabelos de prata, cabelos de ouro e cabelos brancos de platina, e seus olhos eram de opala e ametista, de turmalina e jade. "Mais depressa", gritaram, "mais depressa, mais depressa". Ela correu, com os pés derretendo a pedra onde a tocavam. "Mais depressa!", gritavam os fantasmas como se fossem um só, e ela gritou e atirou-se em frente. Uma grande faca de dor rasgou-lhe as costas, e sentiu a pele abrir-se, cheirou o fedor de sangue ardendo e viu a sombra de asas. E Daenerys Targaryen levantou voo.
- ... acordar o dragão...
A porta erguia-se na sua frente, a porta vermelha, tão próxima, tão próxima, o corredor era um borrão à sua volta, o frio ficava para trás. E agora já não havia pedra, e ela voava pelo mar dothraki, cada vez mais alto, com o verde ondulando por baixo, e tudo o que vivia e respirava fugia aterrorizado da sombra de suas asas.
Conseguia sentir o cheiro de casa, conseguia vê-la, ali, por trás daquela porta, campos verdejantes e grandes casas de pedra e braços que a mantivessem quente, ali. Escancarou a porta.
-... o dragão...
E viu o irmão Rhaegar, montado num garanhão tão negro como a sua armadura. Fogo cintilava, vermelho, através da fenda estreita da viseira de seu elmo. "O último dragão", sussurrou, tênue, a voz de Sor Jorah."O último, o último." Dany ergueu o polido visor negro do irmão. O rosto que estava lá dentro era o dela.
Depois daquilo, durante muito tempo, só houve dor, o fogo em seu interior e os sussurros das estrelas. Acordou sentindo o sabor das cinzas.
- Não - gemeu - por favor, não.
- Khaleesi? - Jhiqui pairou sobre ela, como uma corça assustada.
A tenda estava mergulhada em sombras, silenciosa e fechada. Flocos de cinzas saltavam de um braseiro, e Dany seguiu-os com os olhos enquanto atravessavam o buraco da fumaça, no topo da tenda. Voar, pensou. Tinha asas, estava voando. Mas fora apenas um sonho.
- Ajude-me - sussurrou, lutando por se erguer. - Traga-me... - tinha a voz em sangue como uma ferida, e não conseguia pensar no que queria. Por que doía tanto? Era como se seu corpo tivesse sido rasgado em fatias e reconstruído. - Quero...
- Sim, khaleesi - e nesse mesmo instante Jhiqui partira, saltando da tenda, aos gritos.
Dany precisava... de alguma coisa... de alguém... de quê?
Sabia que era importante. Era a única coisa do mundo que importava. Rolou de lado, apoiando-se sobre um cotovelo, lutando contra a manta que se emaranhava nas pernas. Mexer-se era tão difícil. O mundo nadou, entontecido. Tenho de...
Encontraram-na caída sobre o tapete, rastejando na direção de seus ovos de dragão. Sor Jorah Mormont ergueu-a nos braços e a levou de volta às sedas de dormir, enquanto ela lutava debilmente contra ele. Por cima do ombro do cavaleiro, viu as três aias, Jhogo, com sua pequena sombra de bigode, e a cara larga e achatada de Mirri Maz Duur.
- Tenho - tentou dizer-lhes - preciso...
- ... dormir, princesa - disse Sor Jorah.
- Não - disse Dany. - Por favor. Por favor.
- Sim - cobriu-a com seda, apesar de ela estar ardendo. - Durma e ficará de novo forte, khaleesi. Volte para nós - e então Mirri Maz Duur estava ali, a maegi, inclinando uma taça contra seus lábios. Sentiu o sabor de leite azedo e mais alguma outra coisa, algo espesso e amargo.
Líquido quente escorreu-lhe pelo queixo. Sem saber bem como, engoliu. A tenda ficou mais sombria, e o sono tomou-a de novo. Desta vez não sonhou. Flutuou, serena e em paz, num mar negro que não conhecia litorais.
Depois de algum tempo, uma noite, um dia, um ano, não saberia dizer, voltou a acordar. A tenda estava escura, com as paredes de seda batendo como asas quando as rajadas de vento sopravam lá fora. Dessa vez Dany não tentou se levantar.
- Irri - chamou - Jhiqui, Doreah - chegaram imediatamente. - Tenho a garganta seca, tão seca - e trouxeram-lhe água. Estava morna e sem sabor, mas Dany bebeu sofregamente e mandou Jhiqui buscar mais. Irri umedeceu um pano suave e afagou-lhe a testa. - Estive doente - disse Dany.
A jovem dothraki confirmou com um gesto. - Quanto tempo? - o pano era calmante, mas Irri parecia tão triste que a assustou.
- Muito - sussurrou a jovem. Quando Jhiqui regressou com mais água, Mirri Maz Duur veio com ela, com olhos pesados de sono.
- Beba - disse a maegi, voltando a levantar a cabeça de Dany até a taça, mas desta vez era só vinho. Doce, doce vinho. Dany bebeu e voltou a deitar-se, ouvindo o som suave da própria respiração. Sentiu o peso nos membros quando o sono deslizou para voltar a tomá-la.
- Traga-me... - murmurou, com a voz embaraçada e sonolenta. - Traga... quero segurar...
- Sim? - perguntou a maegi - Que deseja, khaleesi!
- Traga-me... ovo... ovo de dragão... por favor... - as pestanas transformaram-se em chumbo, e ficou cansada demais para segurá-las.
Quando acordou pela terceira vez, um dardo de luz dourada do sol jorrava pelo buraco de fumaça da tenda, e tinha os braços enrolados em volta de um ovo de dragão. Era o mais claro, com escamas da cor de creme de manteiga, com veios em volutas de ouro e bronze, e Dany conseguia sentir seu calor. Sob as sedas de dormir, uma fina película de transpiração cobria-lhe a pele nua.
Orvalho de dragão, pensou. Passou levemente os dedos sobre a superfície da casca, seguindo as volutas de ouro, e na profundidade da rocha sentiu que algo se torcia e esticava em resposta. Não se assustou. Todo seu medo tinha desaparecido, ardera.
Dany tocou a testa. Sob a película de suor a pele estava fria ao toque, a febre desaparecera. Esforçou-se para sentar. Houve um momento de tontura, e uma dor profunda entre as coxas. Mas sentia-se forte. As aias se precipitaram ao som de sua voz.
- Água - disse-lhes - um jarro de água, a mais fria que consigam encontrar. E fruta, acho eu. Tâmaras.
- Às suas ordens, khaleesi.
- Quero ver Sor Jorah - disse, pondo-se em pé. Jhiqui trouxe-lhe um roupão de sedareia e envolveu-lhe os ombros com ele. - E também quero um banho quente, e Mirri Maz Duur, e... - as recordações chegaram-lhe todas ao mesmo tempo, e ela vacilou. - Khal Drogo - forçou-se a dizer, observando o rosto delas com terror. - Ele...?
- O khal vive - respondeu Irri em voz baixa... Mas Dany viu-lhe uma escuridão nos olhos quando disse as palavras, e assim que acabou de falar, a jovem fugiu para ir buscar água.
Dany virou-se para Doreah.
- Conte-me.
- Eu... eu vou buscar Sor Jorah - disse a jovem lysena, inclinando a cabeça e fugindo da tenda. Jhiqui teria fugido também, mas Dany a segurou pelo pulso e a manteve presa.
- O que está acontecendo? Tenho de saber. Drogo... e meu filho - por que não teria se lembrado da criança até agora? - O meu filho... Rhaego... onde está ele? Quero vê-lo.
A aia baixou os olhos.
- O menino... não sobreviveu, khaleesi - a voz dela era um murmúrio assustado.
Dany soltou-lhe o pulso. Meu filho está morto, pensou, enquanto Jhiqui saía da tenda. De algum modo já o sabia. Soubera desde que acordara pela primeira vez com as lágrimas de Jhiqui. Não, soubera-o antes de acordar.
O sonho regressou-lhe, súbito e vívido, e lembrou-se do homem alto com a pele acobreada e a longa cabeleira de prata dourada, rebentando em chamas. Sabia que devia chorar, mas tinha os olhos secos como cinza. Chorara no sonho, e as lágrimas tinham se transformado em vapor no rosto. Todo o pesar foi queimado em mim, disse a si mesma. Sentia-se triste, e no entanto... conseguia sentir Rhaego afastando-se dela, como se nunca tivesse existido.
Sor Jorah e Mirri Maz Duur entraram alguns momentos mais tarde, e deram com Dany em pé junto aos outros ovos de dragão, os que ainda estavam dentro do cofre. Pareciam-lhe tão quentes como aquele com o qual dormira, o que era muito estranho.
- Sor Jorah, venha cá - disse. Tomou-lhe a mão e pousou-a no ovo negro com as volutas escarlates. - O que sente?
- Casca, dura como pedra - o cavaleiro estava cauteloso. - Escamas.
- Calor?
- Não. Pedra fria - afastou a mão. - Princesa, está bem? Devia estar de pé, assim tão fraca?
- Fraca? Sinto-me forte, Jorah - para agradá-lo, reclinou-se numa pilha de almofadas. - Conte-me como meu filho morreu.
- Não chegou a viver, minha princesa. As mulheres dizem... - vacilou, e Dany reparou como a carne pendia solta no seu corpo, e como coxeava quando se movia.
- Conte-me. Conte-me o que as mulheres dizem.
Ele virou o rosto. Tinha os olhos assombrados.
- Elas dizem que a criança era...
Dany esperou, mas Sor Jorah não foi capaz de dizer. Seu rosto escureceu de vergonha. Ele próprio parecia quase um cadáver.
- Monstruosa - terminou Mirri Maz Duur por ele. O cavaleiro era um homem poderoso, mas Dany compreendeu naquele momento que a maegi era mais forte, e mais cruel, e infinitamente mais perigosa. - Deformada. Fui eu quem a puxou. Tinha escamas como um lagarto, era cega, trazia um vestígio de cauda e pequenas asas de couro como as de um morcego. Quando o toquei, a carne desprendeu-se do osso, e por dentro estava cheia de vermes e fedia a decomposição. Estava morta havia anos.
Escuridão, pensou Dany. A terrível escuridão que vinha por trás para devorá-la. Se olhasse para trás, estaria perdida.
- Meu filho estava vivo e forte quando Sor Jorah me trouxe para esta tenda - disse. - Sentia-o dar pontapés e lutar para nascer.
- Pode ser que sim, pode ser que não - respondeu Mirri Maz Duur - mas a criatura que saiu de seu ventre era como eu disse. Havia morte naquela tenda, khaleesi.
- Só sombras - desvendou Sor Jorah, mas Dany conseguia sentir a dúvida em sua voz. - Eu vi, maegi. Vi-a, sozinha, dançando com as sombras.
- A sepultura produz longas sombras, Senhor de Ferro - disse Mirri. - Longas e escuras, e no fim nenhuma luz consegue resistir a elas.
Dany sabia que Sor Jorah matara seu filho. Fizera aquilo por amor e lealdade, mas a transportara para um lugar onde nenhum homem vivo devia ir e entregara seu filho às trevas. Ele também o sabia; o rosto cinzento, os olhos vazios, o coxear.
- As sombras também o tocaram, Sor Jorah - disse-lhe Dany. O cavaleiro não deu resposta. Ela se virou para a esposa de deus. - Preveniu-me de que só a morte podia pagar pela vida. Pensei que se referisse ao cavalo.
- Não - disse Mirri Maz Duur. - Era nisso que queria acreditar. Conhecia o preço.
Conhecia? Conhecia? Se olhar para trás, estou perdida.
- O preço foi pago - disse Dany. - O cavalo, meu filho, Quaro e Qotho, Haggo e Cohollo. O preço foi pago, pago e pago - ergueu-se das almofadas. - Onde está Khal Drogo? Mostre-me, esposa de deus, maegi, maga de sangue, o que quer que seja. Mostre-me Khal Drogo. Mostre-me o que comprei com a vida de meu filho.
- Às suas ordens, khaleesi - disse a velha. - Venha, a levarei até ele.
Dany estava mais fraca do que julgara. Sor Jorah pôs o braço ao seu redor e a ajudou a ficar em pé.
- Há tempo suficiente para isto mais tarde, princesa - disse ele em voz baixa.
- Quero vê-lo agora, Sor Jorah.
Depois da escuridão da tenda, o mundo lá fora era tão brilhante que cegava. O sol queimava como ouro derretido, e a terra estava seca e vazia. As aias esperavam com frutas, vinho e água, e Jhogo aproximou-se para ajudar Sor Jorah a suportar-lhe o peso. Aggo e Rakharo seguiam atrás. O clarão do sol na areia fez com que lhe fosse difícil ver mais, até Dany erguer a mão para dar sombra aos olhos. Viu as cinzas de uma fogueira, alguns cavalos que andavam às voltas, apaticamente, em busca de um pouco de capim, tendas e esteiras espalhadas. Uma pequena multidão de crianças reunira-se para vê-la, e atrás delas vislumbrou mulheres que tratavam de seus deveres e velhos mirrados que olhavam o céu azul uniforme com olhos cansados, enxotando fracamente moscas de sangue. Uma contagem mostraria umas cem pessoas, não mais. Onde as outras quarenta mil tinham montado acampamento, só o vento e a poeira restavam agora.
- O khalasar de Drogo desapareceu - disse ela.
- Um khal que não pode montar não é um khal - disse Jhogo.
- Os dothrakis seguem apenas os fortes - disse Sor Jorah.
- Lamento, minha princesa. Não havia maneira de detê-los. Ko Pono foi o primeiro a partir, chamando-se a si mesmo Khal Pono, e muitos o seguiram. Jhaqo não esperou muito tempo para fazer o mesmo. O resto foi se esgueirando noite após noite, em bandos grandes e pequenos. Há uma dúzia de novos khalasares no mar dothraki, no lugar que em tempos passados foi apenas de Drogo.
- Os velhos ficaram - disse Aggo. - Os assustados, os fracos e os doentes. E nós, que juramos. Nós ficamos.
- Levaram as manadas de Khal Drogo, khaleesi - disse Rakharo. - Não éramos suficientes para impedir. É direito dos fortes roubar dos fracos. Levaram também muitos escravos, do khal e seus, mas deixaram alguns.
- Eroeh? - perguntou Dany, lembrando-se da criança assustada que salvara fora da cidade dos Homens-Ovelhas.
- Mago, que é agora companheiro de sangue de Khal Jhaqo, capturou-a para si - disse Jhogo. - Montou-a por cima e por baixo e a deu ao seu khal, e Jhaqo a deu aos seus outros companheiros de sangue. Eram seis. Quando ficaram satisfeitos, cortaram-lhe a garganta.
- Foi o destino dela, khaleesi - disse Aggo.
Se olhar para trás, estou perdida.
- Foi um destino cruel - disse Dany - mas não tão cruel como será o de Mago. Prometo, pelos velhos deuses e pelos novos, pelo deus-ovelha e pelo deus-cavalo e por todos os deuses que vivem. Juro pela Mãe das Montanhas e o Ventre do Mundo. Antes de acabar com eles, Mago e Ko Jhaqo suplicarão pela clemência que mostraram a Eroeh,
Os dothrakis trocaram olhares inseguros.
- Khaleesi - explicou a aia Irri, como se estivesse falando com uma criança. - Jhaqo é agora um khal, à frente de vinte mil cavaleiros.
Dany ergueu a cabeça,
- E eu sou Daenerys, nascida na Tempestade, Daenerys da Casa Targaryen, do sangue de Aegon, o Conquistador, e Maegor, o Cruel, e da velha Valíria antes deles. Sou a filha do dragão, e, juro-lhes, esses homens morrerão aos gritos. Agora leve-me a Khal Drogo.
Jazia sobre a terra vermelha e nua, de olhos fixos no sol. Uma dúzia de moscas de sangue pousara em seu corpo, embora ele não parecesse senti-las. Dany enxotou-as e ajoelhou-se a seu lado. Os olhos dele estavam muito abertos, mas não viam, e ela compreendeu de imediato que Drogo estava cego. Quando sussurrou seu nome, não pareceu ouvir. A ferida no peito estava curada como jamais poderia estar, com a cicatriz que a cobria cinzenta e vermelha e hedionda.
- Por que ele está aqui sozinho ao sol? - perguntou-lhes.
- Parece gostar do calor, princesa - disse Sor Jorah. - Seus olhos seguem o sol, embora não o veja. Consegue fazer algo semelhante ao andar. Vai para onde o levam, mas não mais longe. Come se lhe puserem comida na boca e bebe se lhe escorrerem água para os lábios.
Dany beijou o seu sol-e-estrelas suavemente na testa, e ergueu-se para encarar Mirri Maz Duur.
- Seus feitiços são caros, maegi.
- Ele vive - disse Mirri Maz Duur. - Você pediu vida, e pagou por vida.
- Isto não é vida para quem era como Drogo. Sua vida eram gargalhadas e carne assando numa fogueira, e um cavalo entre as pernas. Sua vida eram um arakh na mão e as campainhas tinindo no cabelo enquanto cavalgava ao encontro de um inimigo. Sua vida eram os seus companheiros de sangue, e eu, e o filho que lhe devia ter dado.
Mirri Maz Duur não deu resposta.
- Quando voltará a ser como era? - quis saber Dany.
- Quando o sol nascer no ocidente e se puser no oriente - disse Mirri Maz Duur. - Quando os mares secarem e as montanhas forem sopradas pelo vento como folhas. Quando seu ventre voltar a ganhar vida para dar à luz um filho vivo. Então, e não antes, ele regressará.
Dany fez um gesto para Sor Jorah e os outros.
- Deixem-nos. Quero falar a sós com esta maegi - Mormont e os dothrakis retiraram-se. - Você sabia - disse Dany depois de eles irem embora. Sentia dor, por dentro e por fora, mas a fúria dava-lhe forças. - Você sabia o que eu estava comprando e conhecia o preço, e mesmo assim me deixou pagá-lo.
- Foi errado da parte deles terem queimado meu templo - disse placidamente a pesada mulher de nariz achatado. - Isso enfureceu o Grande Pastor.
- Isto não foi trabalho de nenhum deus - Dany disse friamente.
Se olhar para trás, estou perdida.
- Enganou-me. Assassinou meu filho dentro de mim.
- O garanhão que monta o mundo já não queimará cidades. O seu khalasar não transformará nações em poeira.
- Eu intervim por você - disse Dany, angustiada. - Salvei-a.
- Salvou-me? - cuspiu a lhazarena. - Três guerreiros já tinham me possuído, não como um homem possui uma mulher, mas por trás, como um cão possui uma cadela. O quarto estava dentro de mim quando você passou por ali. Como foi que me salvou? Vi a casa do meu deus arder, o lugar onde curei homens bons sem conta. Também me queimaram a casa, e na rua vi pilhas de cabeças. Vi a cabeça de um padeiro que me fazia o pão. Vi a cabeça de um rapaz que salvei da febre do olho morto havia só três luas. Ouvi crianças chorando quando os guerreiros as arrancaram de casa à chicotada. Diga-me lá outra vez o que salvou.
- A sua vida.
Mirri Maz Duur soltou uma gargalhada cruel.
- Olha para o seu khal e vê de que serve a vida quando todo o resto desapareceu.
Dany chamou os homens do seu khas e lhes pediu para prenderem Mirri Maz Duur e atarem seus pés e mãos, mas a maegi sorriu-lhe quando a levaram, como se partilhassem um segredo. Uma palavra, e Dany podia ter feito com que a decapitassem... mas o que teria então? Uma cabeça? Se a vida não tinha valor, que valor tinha a morte?
Levaram Khal Drogo até sua tenda, e Dany ordenou-lhes
que enchessem uma banheira, e desta vez não houve sangue na água. Foi ela mesma que lhe deu o banho, lavando a terra e o pó dos braços e do peito, limpando o rosto com um pano suave, ensopando os longos cabelos negros e escovando os nós e embaraços até ficarem de novo brilhantes como os recordava. Quando acabou, o sol já tinha se posto havia muito, e Dany estava exausta.
Parou para beber e comer, mas só conseguiu mordiscar um figo e engolir um gole de água. O sono teria sido uma libertação, mas já dormira o suficiente... na verdade, até demais. Devia aquela noite a Drogo, por todas as noites que tinham existido e ainda poderiam existir. A memória da primeira cavalgada juntos a acompanhou quando o levou para a escuridão do exterior, pois os dothrakis acreditavam que todas as coisas de importância na vida de um homem tinham de ser realizadas a céu aberto. Disse a si mesma que havia poderes mais fortes que o ódio, e feitiços mais velhos e verdadeiros que qualquer um que a maegi tivesse aprendido em Asshai. A noite estava negra e sem lua, mas por cima de sua cabeça mil estrelas ardiam, brilhantes. Tomou aquilo como um presságio.
Nenhum suave cobertor verde lhes deu ali as boas-vindas, só o chão duro e poeirento, nu e semeado de pedras. Não havia árvores agitando-se ao vento, e não havia um córrego que lhe acalmasse os medos com a música suave das águas. Dany disse a si mesma que as estrelas bastariam.
- Lembre-se, Drogo - murmurou. - Lembre-se da nossa primeira cavalgada juntos, no dia em que casamos. Lembre-se da noite em que fizemos Rhaego, com o khalasar à nossa volta e os seus olhos no meu rosto. Lembre-se de como a água estava fria e limpa no Ventre do Mundo. Lembre-se, meu sol-e-estrelas. Lembre-se e volte para mim.
O parto a tinha deixado demasiado dolorida e rasgada para introduzi-lo dentro de si como teria desejado, mas Doreah ensinara-lhe outras maneiras. Dany usou as mãos, a boca, os seios. Arranhou-o com as unhas, cobriu-o de beijos e segredou-lhe, rezou e contou-lhe histórias, e quando terminou, o tinha banhado com as suas lágrimas.
Mas Drogo nem sentiu, nem falou, nem se ergueu. E quando a alvorada sem vida surgiu num horizonte vazio, Dany compreendeu que ele estava realmente perdido.
- Quando o sol nascer a oeste e se puser a leste - disse tristemente. - Quando os mares secarem e as montanhas forem sopradas pelo vento como folhas. Quando meu ventre voltar a ganhar vida e der à luz um filho vivo. Então regressará, meu sol-e-estrelas, e não antes.
Nunca, gritou a escuridão, nunca, nunca, nunca. Dentro da tenda Dany encontrou uma almofada de seda suave estofada de penas. Apertou-a contra os seios enquanto voltava para junto de Drogo, para junto do seu sol-e-estrelas. Se olhar para trás, estou perdida. Até andar lhe doía, e queria dormir, dormir e não sonhar.
Ajoelhou, beijou Drogo nos lábios e apertou a almofada contra o rosto.  

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