terça-feira, 10 de setembro de 2013

67 - SANSA


No quarto da torre, no coração da Fortaleza de Maegor, Sansa entregou-se às trevas. Fechou as cortinas em volta da cama, dormiu, acordou chorando e voltou a adormecer. Quando não mais conseguiu dormir, ficou deitada sob os cobertores, tremendo de desgosto. Os criados iam e vinham trazendo refeições, mas a visão de comida era mais do que conseguia suportar. Os pratos empilhavam-se na mesa junto à janela, intocados, estragando, até que os criados os levassem de volta.
Por vezes, seu sono era de chumbo e sem sonhos, e acordava mais cansada do que estivera quando fechara os olhos. Mas esses eram os melhores momentos, pois, quando sonhava, sonhava com o pai. Acordada ou dormindo, via-o, via os homens de manto dourado empurrá-lo para baixo, via Sor Ilyn avançar a passos largos, desembainhando Gelo da bainha que levava às costas, via o momento... o momento em que... quisera afastar os olhos, quisera fazê-lo, perdera o apoio das pernas e caíra de joelhos, mas de algum modo não fora capaz de virar a cabeça, e todo mundo gritava e berrava, e o seu príncipe sorrira-lhe, ele sorrira e ela se sentira segura, mas só por um momento, até dizer aquelas palavras, e as pernas do pai... era isso que recordava, as pernas, a maneira como elas se tinham sacudido quando Sor Ilyn... quando a espada...
Se calhar, também vou morrer, disse a si mesma, e a ideia não lhe pareceu assim tão terrível. Se se atirasse da janela, poderia pôr fim ao sofrimento, e nos anos vindouros os cantores escreveriam canções sobre o seu pesar. Seu corpo jazeria sobre as pedras, lá embaixo, quebrado e inocente, envergonhando todos aqueles que a tinham traído. Sansa chegara a atravessar o quarto e a abrir as venezianas... mas então a coragem a deixara, e correra de volta à cama, aos soluços.
As criadas tentavam conversar com ela quando lhe traziam as refeições, mas nunca lhes deu resposta. Uma vez, o Grande Meistre Pycelle veio ao quarto com uma caixa cheia de frascos e garrafas, para perguntar se estava doente. Pôs a mão em sua testa, obrigou-a a despir-se e tocou-a por todo o lado enquanto a criada a segurava. Quando saiu, deu-lhe uma poção de aguamel e ervas e disse-lhe para beber um gole todas as noites. Ela a bebeu toda de uma vez e voltou a adormecer.
Sonhou com passos na escada da torre, um agourento raspar de couro em pedra feito por um homem que subia lentamente até seu quarto, degrau por degrau. Tudo o que podia fazer era comprimir-se contra a porta e escutar, tremendo, enquanto ele se aproximava cada vez mais. Sabia que era Sor Ilyn Payne vindo buscá-la, com Gelo na mão, para cortar-lhe a cabeça. Não havia para onde fugir, não havia esconderijo nenhum, nenhuma maneira de trancar a porta. Por fim, os passos pararam e ela soube que ele estava mesmo do outro lado, ali, em pé, silencioso, com seus olhos mortos e a longa cara marcada. Foi então que se percebeu nua. Agachou-se, tentando cobrir-se com as mãos, ao mesmo tempo em que a porta começava a se abrir, rangendo, com a ponta da espada espreitando...
Acordou murmurando:
- Por favor, por favor, serei boa, serei boa, por favor, não - mas não havia ninguém para ouvi-la.
Quando por fim vieram realmente buscá-la, Sansa não chegou a ouvir os passos. Foi Joffrey quem abriu a porta, não Sor Ilyn, e sim o rapaz que fora o seu príncipe. Estava na cama, enrolada sobre si mesma, com as cortinas cerradas, e não soube dizer se era meio-dia ou meia-noite. A primeira coisa que ouviu foi a porta batendo. Depois, as colchas da cama foram puxadas para trás, e ela ergueu a mão contra a súbita luz e os viu em pé a seu lado.
- Esta tarde a apresentarei na audiência - disse Joffrey. - Trate de se banhar e vestir algo próprio para minha prometida - Sandor Clegane estava ao lado dele com um gibão simples marrom e uma capa verde, com o rosto queimado hediondo à luz da manhã. Atrás deles encontravam-se dois cavaleiros da Guarda Real trajando longos mantos de cetim branco.
Sansa puxou a manta até o queixo para se cobrir.
- Não - choramingou - por favor... deixe-me em paz.
- Se recusar a se levantar e se vestir, meu Cão de Caça fará isso por você - disse Joffrey.
- Suplico-lhe, meu príncipe...
- Eu agora sou rei. Cão, tire-a da cama.
Sandor Clegane agarrou-a pela cintura e a ergueu da cama de penas enquanto ela se debatia numa luta frágil.
O cobertor caiu ao chão. Por baixo, tinha apenas uma fina camisa de dormir cobrindo-lhe a nudez.
- Faz o que lhe pedem, criança - disse Clegane. - Vista-se - empurrou-a até o roupeiro, quase com gentileza.
Sansa afastou-se deles.
- Eu fiz o que a rainha pediu, escrevi as cartas, escrevi o que ela me disse para escrever. Vossa Graça prometeu que seria misericordioso. Por favor, deixe-me ir para casa. Não cometerei traições, serei boa, juro, não tenho sangue de traidor, não tenho. Só quero ir para casa - recordando-se da boa educação, baixou a cabeça. - Se for sua vontade - terminou em voz fraca.
- Não é - disse Joffrey. - A mãe diz que eu ainda devo me casar com você, portanto, ficará aqui e obedecerá.
- Eu não quero me casar com você - choramingou Sansa. - Cortou a cabeça do meu pai!
- Ele era um traidor. Nunca prometi poupá-lo, só ser misericordioso, e isso fui. Se ele não fosse seu pai, teria mandado dilacerá-lo ou flagelá-lo, mas lhe ofereci uma morte limpa.
Sansa fixou os olhos nele, vendo-o pela primeira vez. Vestia um gibão carmesim almofadado com um padrão de leões e uma capa de pano de ouro com um colarinho elevado que lhe enquadrava o rosto. Perguntou-se como podia alguma vez tê-lo achado bonito. Tinha uns lábios tão moles e vermelhos como os vermes que se encontravam depois das chuvas, e os olhos eram vaidosos e cruéis.
- Odeio-o - sussurrou.
O rosto do Rei Joffrey endureceu.
- Minha mãe me disse que não é próprio que um rei bata na esposa. Sor Meryn.
O cavaleiro estava em cima dela antes sequer de ter tempo de pensar, puxando-lhe a mão para trás quando tentou proteger o rosto e dando-lhe um murro na orelha com as costas de um punho enluvado. Sansa não se lembrava de ter caído, mas, quando deu por si, estava estatelada nas esteiras. A cabeça ressoava. Sor Meryn Trant pairava sobre ela, com sangue nos nós dos dedos de sua luva de seda branca.
- Irá me obedecer agora, ou terei de mandá-lo castigá-la de novo?
Sansa sentia a orelha dormente. Tocou-a, e as pontas dos dedos vieram úmidas e vermelhas,
- Eu... como... às suas ordens, senhor.
- Vossa Graça - corrigiu Joffrey. - Procurarei por você na audiência - virou-se e saiu.
Sor Meryn e Sor Arys seguiram-no, mas Sandor Clegane ficou por tempo suficiente para a colocá-la em pé.
- Poupe-se de alguma dor, menina, e dê-lhe o que ele quer.
- O que... o que ele quer? Diga-me, por favor.
- Quer vê-la sorrindo, perfumada, e sendo a senhora sua amada - rouquejou Cão de Caça. - Quer ouvi-la recitar todas as palavrinhas bonitas da maneira que a septã lhe ensinou. Quer que o ame... e que o tema.
Depois de ele sair, Sansa voltou a estender-se nas esteiras, olhando fixamente para a parede, até que duas criadas de quarto deslizaram timidamente para dentro do aposento.
- Vou precisar de água quente para o meu banho, por favor - disse-lhes - e de perfume, e algum pó para esconder este roxo - o lado direito do rosto estava inchado e começava a doer, mas sabia que Joffrey queria vê-la bela.
A água quente a fez pensar em Winterfell, e retirou forças daí. Não se lavara desde o dia em que o pai morrera, e ficou sobressaltada ao ver como a água ficara suja. As criadas limparam o sangue do rosto, rasparam a sujeira das costas, lavaram os cabelos e os escovaram até saltarem em espessos caracóis ruivos. Sansa não falou nada, exceto para lhes dar ordens; eram criadas Lannister, não suas, e não confiava nelas. Quando chegou a hora de se vestir, escolheu o vestido de seda verde que usara no torneio. Lembrou-se de como Joff fora galante naquela noite no banquete. Talvez o vestido o fizesse recordar também e talvez a tratasse com mais gentileza.
Bebeu um copo de soro de leite coalhado e beliscou alguns biscoitos doces enquanto esperava, para acalmar o estômago. Era meio-dia quando Sor Meryn regressou. Tinha envergado a armadura branca; um camisão de escamas esmaltadas com relevos em ouro, um elmo alto com um esplendor dourado como timbre, grevas, gorjal, manoplas e botas de metal reluzente, um pesado manto de lã preso com um leão dourado. O visor fora removido do elmo para exibir seu rosto severo; bolsas sob os olhos, uma boca larga e amarga, cabelos cor de ferrugem pintalgados de cinza.
- Minha senhora - disse, fazendo uma reverência, como se não a tivesse espancado havia menos de três horas. - Sua Graça ordenou-me que a escoltasse até a sala do trono.
- Ordenou também que me batesse se me recusasse a ir?
- Está se recusando a vir, senhora? - o olhar não tinha expressão alguma. Nem sequer olhou de relance a marca que lhe deixara.
Sansa compreendeu que o homem não a odiava; nem a amava. Não sentia absolutamente nada por ela. Para ele, era apenas uma... uma coisa.
- Não - respondeu, pondo-se em pé. Quis exaltar-se, magoá-lo como ele a magoara, prevenido de que, quando fosse rainha, o mandaria para o exílio se alguma vez se atrevesse a lhe bater de novo... mas lembrou-se do que Cão de Caça lhe dissera, e tudo o que disse foi: - Farei o que quer que Sua Graça ordene.
- Tal como eu - ele respondeu.
- Sim... mas o senhor não é um verdadeiro cavaleiro, Sor Meryn.
Sansa sabia que Sandor Clegane teria rido se tivesse ouvido aquilo. Outros homens a teriam amaldiçoado, avisado para que se calasse, até suplicado perdão. Sor Meryn Trant não fez nada disso. Ele simplesmente não se importou.
Além de Sansa, o balcão estava deserto. Ficou em pé, de cabeça baixa, lutando por reter as lágrimas, enquanto lá embaixo Joffrey se sentava no seu Trono de Ferro e distribuía o que lhe aprazia chamar justiça. Nove casos em dez pareciam aborrecê-lo; esses, permitia que o conselho deles tratasse, contorcendo-se continuamente enquanto Lorde Baelish, o Grande Meistre Pycelle ou a Rainha Cersei resolviam o assunto. Mas quando escolhia decidir, nem mesmo a rainha sua mãe era capaz de influenciado.
Um ladrão foi trazido à sua presença e ele mandou Sor Ilyn cortar-lhe a mão, ali mesmo, na sala de audiências. Dois cavaleiros vieram apresentar-lhe uma disputa sobre umas terras, e ele decretou que deveriam decidida em duelo na manhã seguinte.
- Até a morte - acrescentou. Uma mulher caiu de joelhos para pedir a cabeça de um homem executado por traição. Que o amava, disse ela, e que o queria ver decentemente enterrado. - Se amou um traidor, deve ser também traidora - disse Joffrey. Dois homens de mantos dourados arrastaram-na para as masmorras.
Lorde Slynt, o da cara de sapo, sentava-se ao fundo da mesa do conselho, usando um gibão de veludo negro e uma reluzente capa de pano de ouro, acenando com aprovação cada vez que o rei pronunciava uma sentença. Sansa fitou duramente aquele rosto feio, lembrando-se de como o homem atirara o pai ao chão para que Sor Ilyn o decapitasse, desejando poder feri-lo, desejando que algum herói lhe atirasse ao chão e lhe cortasse a cabeça. Mas uma voz em seu interior sussurrou: Não há heróis, e ela se lembrou do que Lorde Petyr lhe dissera, ali naquela mesma sala: "A vida não é uma canção, querida. Poderá aprender isso um dia, para sua mágoa".
Na vida, os monstros vencem, disse a si mesma, e agora era a voz de Cão de Caça que ouvia, um raspar frio, de metal em pedra. "Poupe-se de alguma dor, menina, e dê-lhe o que ele quer." O último caso foi o de um roliço cantor de taberna, acusado de fazer uma canção que ridicularizava o falecido Rei Robert. Joff ordenou-lhe que fosse buscar sua harpa e o obrigou a cantar a canção perante a corte.
O cantor chorou e jurou que nunca mais voltaria a cantá-la, mas o rei insistiu. Era uma canção mais ou menos engraçada, toda ela sobre Robert lutando com um porco. Sansa sabia que o porco era o javali que o matara, mas em alguns versos quase parecia que o que o homem cantava era sobre a rainha. Depois de a canção terminar, Joffrey anunciou que decidira ser misericordioso. O cantor poderia ficar ou com os dedos ou com a língua. Teria um dia para escolher. Janos Slynt acenou.
Sansa viu, aliviada, que aquele foi o último caso da tarde, mas sua provação ainda não tinha terminado. Quando a voz do arauto pôs fim à audiência, ela fugiu do balcão, mas foi deparar com Joffrey à sua espera no fundo da escada curva. Cão de Caça encontrava-se com ele, bem como Sor Meryn. O jovem rei a examinou com ar crítico dos pés à cabeça.
- Está com aspecto muito melhor do que de manhã.
- Obrigada, Vossa Graça - disse Sansa. Palavras ocas, mas que o fizeram acenar e sorrir.
- Acompanhe-me - ordenou Joffrey, oferecendo-lhe o braço. Ela não teve alternativa a não ser aceitar. O toque da mão dele a teria arrebatado em outros tempos; agora lhe causava arrepios. - O dia do meu nome chegará em breve - disse Joffrey enquanto se esgueiravam pelos fundos da sala do trono. - Haverá um grande banquete e presentes. Que irá me oferecer?
- Eu... eu não pensei nisso, senhor.
- Vossa Graça - disse ele em tom cortante. - É mesmo uma menina estúpida, não é? É o que a minha mãe diz.
- Diz? - depois de tudo o que aconteceu, aquelas palavras deviam ter perdido o poder de magoá-la, mas de algum modo não era assim. A rainha sempre fora tão boa para ela.
- Ah, sim. Preocupa-se com os nossos filhos, com a hipótese de serem estúpidos como você, mas eu lhe disse que não se preocupasse - o rei fez um gesto, e Sor Meryn abriu uma porta para eles passarem.
- Obrigada, Vossa Graça - murmurou Sansa. Cão de Caça tinha razão, pensou. Sou só um passarinho, repetindo as palavras que me ensinaram. O sol descera abaixo da muralha ocidental, e as pedras da Fortaleza Vermelha brilhavam, escuras como sangue.
- Eu a engravidarei assim que seja capaz de conceber - disse Joffrey enquanto a levava pelo pátio de treinos. - Se o primeiro for estúpido, cortarei sua cabeça e arranjarei uma esposa mais inteligente. Quando será capaz de ter filhos?
Sansa não conseguia olhar para ele, de tanto que se envergonhava.
- Septã Mordane diz que a maior parte... a maior parte das moças bem-nascidas tem o desabrochar aos doze ou treze anos.
Joffrey acenou com a cabeça.
- Por aqui - levou-a para dentro da guarita, até a base dos degraus que levavam às ameias. Sansa sacudiu-o, tremendo. Só agora compreendera para onde se dirigiam.
- Não - disse, com a voz transformada num arquejo assustado. - Por favor, não, não me obrigue, suplico-lhe...
Joffrey apertou os lábios.
- Quero lhe mostrar o que acontece aos traidores.
Sansa sacudiu violentamente a cabeça.
- Não vou. Não vou.
- Posso dizer a Sor Meryn que a arraste até lá em cima - disse. - Não gostaria disso. É melhor que faça o que eu digo - Joffrey estendeu o braço para ela, e Sansa esquivou-se, recuando até esbarrar em Cão de Caça.
- Obedece, menina - disse-lhe Sandor Clegane, voltando a empurrá-la para o rei. Sua boca torceu-se no lado queimado do rosto, e Sansa quase foi capaz de ouvir o resto. Ele conseguirá que suba, aconteça o que acontecer; portanto, dê-lhe o que quer.
Forçou-se a tomar a mão do Rei Joffrey, A subida era algo saído de um pesadelo; cada degrau era uma luta, como se puxasse os pés de dentro da lama que lhe chegava aos tornozelos, e havia mais degraus do que teria acreditado, um milhar de milhares de degraus, e o horror que a esperava nas muralhas.
Visto das altas ameias da guarita, o mundo inteiro estendia-se abaixo deles. Sansa via o Grande Septo de Baelor, na colina de Visenya, onde o pai morrera. Na outra extremidade da Rua das Irmãs erguiam-se as ruínas enegrecidas pelo fogo do Poço dos Dragões. A oeste, o sol, vermelho e inchado, estava meio escondido por trás do Portão dos Deuses. Tinha o mar salgado nas costas, e ao sul via-se o mercado dos peixes, as docas e a corrente cheia de remoinhos da Torrente da Água Negra. E ao norte...
Virou-se para esse lado, e viu apenas a cidade, ruas, vielas, colinas e vales, e mais ruas e mais vielas, e a pedra de muralhas distantes. Mas sabia que para lá delas havia campo aberto, fazendas, prados e florestas, e para lá de tudo isso, ao norte, ao norte e depois ainda mais para o norte, ficava Winterfell.
- Está olhando para onde? - Joffrey perguntou. - O que queria que visse é isto, aqui mesmo.
Um espesso parapeito de pedra protegia o limite exterior da muralha, erguendo-se até o queixo de Sansa, com fendas abertas a cada metro e meio para os arqueiros. As cabeças estavam encravadas entre as fendas, ao longo do topo da muralha, empaladas em hastes de ferro para ficarem viradas para a cidade. Sansa as vira no momento em que pusera os pés ali, mas o rio, as ruas agitadas e o sol poente eram muito mais bonitos. Ele pode me obrigar a olhar para as cabeças, disse consigo mesma, mas não pode me obrigar a vê-las,
- Este é seu pai - disse. - Este aqui. Cão, vire-o para que ela consiga vê-lo.
Sandor Clegane pegou na cabeça pelos cabelos e a virou. A cabeça cortada fora mergulhada em alcatrão para se manter preservada durante mais tempo. Sansa olhou-a calmamente, sem vê-la totalmente. Não se assemelhava mesmo a Lorde Eddard, pensou; nem sequer parecia real.
- Tenho de olhar durante quanto tempo?
Joffrey pareceu desapontado.
- Quer ver os outros? - havia uma longa fileira.
- Se der prazer a Vossa Graça...
Joffrey marchou com ela ao longo do muro, passando por mais uma dúzia de cabeças e duas hastes vazias.
- Estou reservando aquelas para meus tios Stannis e Renly - explicou. As outras cabeças estavam mortas e encravadas na muralha havia muito mais tempo que a do seu pai. Apesar do alcatrão, a maioria estava irreconhecível. O rei apontou para uma e disse: - Ali está sua septã - mas Sansa nem se teria apercebido de que se tratava de uma mulher. O maxilar apodrecera e caíra, e as aves tinham comido uma orelha e a maior parte de uma bochecha.
Sansa se perguntara o que teria acontecido a Septã Mordane, embora agora lhe parecesse que sempre o soubera.
- Por que foi morta? - perguntou. - Jurara perante os deuses...
- Era uma traidora - Joffrey parecia mal-humorado. De algum modo, Sansa o estava aborrecendo. - Não disse o que pretende me dar pelo dia do meu nome. Em vez disso, talvez deva ser eu a lhe dar algo, gostaria?
- Se lhe agradar, senhor - disse Sansa.
Quando ele sorriu, Sansa compreendeu que caçoava dela.
- Seu irmão também é um traidor, compreende? - voltou a virar a cabeça de Septã Mordane ao contrário. - Lembro-me do seu irmão de Winterfell. Meu cão o chamou de senhor da espada de madeira. Não é verdade, cão?
- Chamei? - respondeu Cão de Caça. - Não me lembro.
Joffrey deu petulantemente de ombros.
- Seu irmão derrotou meu tio Jaime. Minha mãe diz que foi por traição e engano. Chorou quando ouviu a notícia. As mulheres são todas fracas, até ela, embora finja que não é. Diz que temos de ficar em Porto Real para o caso de meus outros tios atacarem, mas eu não me importo. Depois do banquete do dia do meu nome, vou reunir uma tropa e matarei eu mesmo seu irmão. Será isso que lhe darei, Senhora Sansa. A cabeça de seu irmão.
Uma espécie de loucura tomou conta de Sansa naquele instante, e ouviu-se a dizer:
- Talvez meu irmão me dê a vossa cabeça..
Joffrey fez uma carranca.
- Nunca deve zombar de mim dessa maneira. Uma esposa fiel não zomba de seu senhor. Sor Meryn, ensine-lhe.
Daquela vez, o cavaleiro a agarrou pelo queixo e manteve sua cabeça imóvel enquanto lhe batia. Bateu-lhe duas vezes, da esquerda para a direita e, com mais força, da direita para a esquerda. O lábio de Sansa abriu-se e correu-lhe sangue pelo queixo, misturando-se com o sal de suas lágrimas.
- Não devia passar o tempo todo chorando - disse-lhe Joffrey. - É mais bela ao sorrir.
Sansa obrigou-se a sorrir, com medo de que ele pudesse dizer a Sor Meryn para que batesse de novo se não o fizesse, mas não bastou, o rei ainda balançou a cabeça.
- Limpe o sangue, está toda descomposta.
O parapeito exterior chegava-lhe ao peito, mas ao longo da borda interna do caminho não havia nada, nada, a não ser um longo mergulho até o chão, vinte ou vinte e cinco metros mais abaixo. Bastaria um empurrão, disse a si mesma. Ele estava mesmo ali, bem ali, sorrindo-lhe afetadamente com aqueles lábios que eram como vermes gordos. Podia fazê-lo. Podia. Faça-o agora mesmo. Nem importaria se caísse com ele. Não importaria nem um bocadinho.
- Vem cá, menina - Sandor Clegane ajoelhou à sua frente, entre ela e Joffrey. Com uma delicadeza surpreendente para um homem tão grande, limpou o sangue que lhe escorria do lábio aberto.
O momento passara. Sansa baixou os olhos.
- Obrigada - disse quando ele acabou. Era uma boa menina, e lembrava-se sempre da boa educação.  

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