Os mais
velhos eram homens-feitos, com dezessete ou dezoito anos vividos
desde o dia em que receberam os nomes. Um tinha mais de vinte anos. A
maior parte era mais nova, com dezesseis anos ou menos. Bran
observava-os da varanda da torre de Meistre Luwin, ouvindo-os
grunhir, esforçar-se e praguejar enquanto brandiam os bastões e as
espadas de madeira.
O pátio
ganhava vida com os clacs de madeira batendo em madeira,
interrompidos com bastante frequência por fuacs e uivos de dor
quando um golpe atingia couro ou carne. Sor Rodrik caminhava a passos
largos entre os rapazes, com o rosto corando sob as suíças brancas,
resmungando para todos. Bran nunca vira o velho cavaleiro com um ar
tão feroz.
- Não -
não parava de dizer. - Não. Não. Não.
- Eles
não lutam lá muito bem - disse Bran em tom de dúvida. Deu uma
coçadela à toa atrás das orelhas de Verão enquanto o lobo gigante
rasgava um pedaço de carne. Ossos esmagavam-se entre os dentes do
animal.
- Com
certeza - concordou Meistre Luwin com um profundo suspiro. O meistre
espiava através de sua grande luneta miriana, medindo sombras e
anotando a posição do cometa que pairava, baixo, no céu da manhã.
- Mas se
lhes dermos tempo... Sor Rodrik tem razão, precisamos de homens para
patrulhar as muralhas. O senhor seu pai levou a nata da sua guarda
para Porto Real, e seu irmão levou o resto, junto com todos os
rapazes capazes de léguas ao redor. Muitos não regressarão, e
temos de arranjar homens que os substituam.
Bran
olhou com ressentimento para os rapazes suados.
- Se
ainda tivesse as minhas pernas, poderia derrotá-los todos - recordou
a última vez que tivera uma espada na mão, quando o rei viera a
Winterfell. Fora apenas uma espada de madeira, mas derrubara o
Príncipe Tommen meia centena de vezes. - Sor Rodrik devia ensinar-me
a usar uma acha-de-armas. Se a tivesse com um cabo suficientemente
comprido, Hodor poderia ser as minhas pernas. Juntos, podíamos ser
um cavaleiro.
- Acho
isso... improvável - disse Meistre Luwin. - Bran, quando um homem
luta, seus braços, pernas e pensamentos devem ser um só.
Embaixo,
no pátio, Sor Rodrik gritava.
- Você
luta como um ganso. Ele te dá bicadas e você dá bicadas mais
fortes nele. Para! Bloqueia o golpe. Luta de gansos não será
suficiente. Se essas espadas fossem verdadeiras, a primeira bicada
arrancava-lhe o braço! - um dos outros rapazes soltou uma
gargalhada, e o velho cavaleiro virou-se para ele. - Você ri. Logo
você. É preciso descaramento. Você luta como um porco-espinho...
- Havia
um cavaleiro que não enxergava - disse
teimosamente
Bran, enquanto Sor Rodrik continuava a ofender os rapazes lá
embaixo. - A Velha Ama contou-me. Tinha uma haste longa com lâminas
nas duas extremidades que podia fazer rodopiar com as mãos e cortar
dois homens ao mesmo tempo.
- Symeon
Olhos-de-Estrela - disse Luwin enquanto anotava números num livro. -
Quando perdeu os olhos, pôs safiras em forma de estrelas nas órbitas
vazias, ou pelo menos é o que afirmam os cantores. Bran, isso é só
uma história, como os contos de Florian, o Tolo. Uma fábula da Era
dos Heróis - o meistre soltou um estalido com a língua. - É
preciso que ponha esses sonhos de lado, só vão lhe partir o
coração.
A menção
a sonhos despertou-lhe a memória.
- Sonhei
outra vez com o corvo na noite passada. Aquele com três olhos. Voou
até o meu quarto e me disse para ir com ele, e foi o que fiz.
Descemos às criptas. Meu pai estava lá, e conversamos. Ele estava
triste.
- E por
quê? - Luwin espreitou pela sua luneta.
- Tinha
qualquer coisa a ver com Jon, parece-me - o sonho fora profundamente
perturbador, mais que qualquer outro dos sonhos com o corvo. - Hodor
não quer descer às criptas.
O meistre
estivera desatento, Bran percebeu. Tirou o olho da luneta,
pestanejando.
- Hodor
não quer...
- Descer
às criptas. Quando acordei, disse-lhe para me levar até lá
embaixo, para ver se meu pai estava mesmo lá. A princípio, não
entendia o que eu dizia, mas levei-o até os degraus dizendo-lhe para
ir por ali e depois acolá, só que, lá chegando, não quis descer.
Limitou-se a ficar no degrau superior e a dizer "Hodor",
como se estivesse com medo do escuro, mas eu tinha um archote.
Deixou-me tão furioso que quase lhe dei uma pancada na cabeça, como
a Velha Ama faz sempre - viu o modo como o meistre franzia as
sobrancelhas e acrescentou depressa: - Mas não dei.
- Ótimo.
Hodor é um homem, não uma mula que se possa espancar.
- No
sonho, voei até lá embaixo com o corvo, mas não posso fazer isso
quando estou acordado - Bran explicou.
- Por que
quer descer às criptas?
- Já
disse. Para ir atrás do meu pai.
O meistre
puxou a corrente que lhe envolvia o pescoço, como fazia muitas vezes
quando se sentia desconfortável.
- Bran,
querida criança, um dia, Lorde Eddard se sentará lá embaixo, na
pedra, ao lado de seu pai e do pai de seu pai e de todos os Stark até
os velhos Reis do Norte... mas, se os deuses forem bondosos, isso não
acontecerá senão daqui a muitos anos. Seu pai é prisioneiro da
rainha em Porto Real. Não está nas criptas.
- Ele
estava lá ontem à noite. Conversei com ele.
- Rapaz
teimoso - suspirou o meistre, pondo o livro de lado. - Quer ir ver?
- Não
posso, Hodor não quer ir, e os degraus são estreitos e tortuosos
demais para a Dançarina.
- Acho
que posso resolver esse problema.
Em vez de
Hodor, chamaram a selvagem Osha. Era alta, dura e não se queixava,
indo de bom grado onde quer que a mandassem.
- Vivi a
minha vida para lá da Muralha, um buraco no chão não há de me
aborrecer, senhores - ela disse.
- Verão,
anda - chamou Bran quando ela o ergueu em braços fortes como metal.
O lobo gigante largou o osso e seguiu Osha, que atravessou o pátio
com Bran e desceu os degraus em espiral até a fria abóbada
subterrânea.
Meistre
Luwin seguia à frente com um archote. Bran nem se importou - muito -
que ela o transportasse nos braços, e não às costas. Sor Rodrik
ordenara que tirassem as correntes de Osha, pois a mulher servira bem
e fielmente desde que estava em Winterfell. Ainda usava as pesadas
grilhetas de ferro em torno dos tornozelos - um sinal de que ainda
não confiavam inteiramente nela - mas não prejudicavam seus passos
seguros nos degraus.
Bran não
recordava a última vez em que estivera nas criptas. Fora antes, com
certeza. Quando era pequeno, costumava brincar ali com Robb, Jon e as
irmãs. Desejou que estivessem ali agora; a cripta talvez não
parecesse tão escura e assustadora. Verão avançou pelas sombras
cheias de ecos, e então parou, ergueu a cabeça e farejou o ar
gelado e morto. Mostrou os dentes e rastejou para trás, com os olhos
brilhando, dourados à luz do archote do meistre. Até Osha, dura
como ferro velho, parecia desconfortável.
- Gente
sombria - disse ao observar a longa fila Stark em granito, nos seus
tronos de pedra.
- Eram os
Reis do Inverno - sussurrou Bran. Por algum motivo, parecia errado
falar alto naquele lugar.
Osha
sorriu.
- O
inverno não tem rei. Se o tivesse visto, saberia, rapaz de verão.
- Eles
foram os Reis do Norte durante milhares de anos - disse Meistre
Luwin, erguendo o archote bem alto para que a luz brilhasse nos
rostos de pedra. Alguns eram homens cabeludos e barbudos,
desgrenhados como os lobos que se agachavam a seus pés. Outros se
apresentavam escanhoados, com traços magros e aguçados como as
espadas longas que tinham sobre as pernas. Homens duros para tempos
duros. Venham - caminhou vivamente pela cripta, passando pela
procissão de pilares de pedra e pelas infinitas figuras esculpidas.
Uma língua de chamas projetava-se do archote erguido enquanto ele
prosseguia.
A abóbada
era cavernosa, mais longa que o próprio Winterfell, e Jon
dissera-lhe uma vez que havia outros níveis abaixo, criptas ainda
mais profundas e mais escuras onde estavam enterrados os outros reis.
Não seria bom perder a luz. Verão recusou-se a se afastar dos
degraus, mesmo quando Osha seguiu o archote com Bran nos braços.
- Lembra
de suas histórias, Bran? - perguntou o meistre enquanto caminhavam.
- Conta a Osha quem eles eram e o que fizeram, se puder.
Bran
olhou para os rostos que passavam e as histórias vieram-lhe à
memória. O meistre contara-as, e a Velha Ama dera-lhes vida.
- Aquele
é Jon Stark. Quando os atacantes vindos do mar desembarcaram no
leste, expulsou-os e construiu o castelo em Porto Branco. O filho foi
Rickard Stark, não o pai do meu pai, mas outro Rickard, que
conquistou o Gargalo do Rei do Pântano e casou-se com sua filha.
Theon Stark é aquele muito magro de cabelos compridos e barba
estreita. Chamavam-no "Lobo Faminto", porque estava sempre
em guerra. Aquele é um Brandon, o alto com ar sonhador, era Brandon,
o Construtor Naval, porque adorava o mar. Sua tumba está vazia.
Tentou navegar para oeste, através do Mar do Poente, e nunca mais
foi visto. O filho era Brandon, o Incendiário, porque passou o
archote em todos os navios do pai por desgosto. Ali está Rodrik
Stark, que conquistou a Ilha dos Ursos num combate de luta livre e a
deu aos Mormont. E aquele é Torrhen Stark, o Rei Que Ajoelhou. Foi o
último Rei do Norte e o primeiro Senhor de Winterfell, depois de se
render a Aegon, o Conquistador. Ah, ali, aquele é Cregan Stark.
Lutou uma vez contra o Príncipe Aemon, e o Cavaleiro do Dragão
disse que nunca tinha defrontado melhor espadachim - estavam agora
quase no fim, e Bran sentiu-se submergir em tristeza. - E ali está o
meu avô, Lorde Rickard, que foi decapitado pelo Rei Louco Aerys. A
filha Lyanna e o filho Brandon estão nas sepulturas ao seu lado. Eu,
não, outro Brandon, irmão do meu pai. Não era previsto que
tivessem estátuas, que isto é só para os senhores e reis, mas meu
pai os amava tanto que as mandou fazer.
- A
donzela é bonita - disse Osha.
- Estava
prometida a Robert, mas o Príncipe Rhaegar a raptou e violentou -
explicou Bran. - Robert lutou uma guerra para reconquistá-la. Matou
Rhaegar no Tridente com o seu martelo, mas Lyanna morreu e ele nunca
a teve de volta.
- Uma
história triste - disse Osha - mas aqueles buracos vazios são mais
tristes.
- A tumba
de Lorde Eddard, para quando seu dia chegar - disse Meistre Luwin. -
Foi aqui que viu seu pai no sonho, Bran?
- Sim - a
memória o fez estremecer, Olhou desconfortavelmente em volta, com os
pelos da nuca eriçados. Ouvira um ruído? Estaria alguém ali?
Meistre
Luwin aproximou-se do sepulcro aberto, com o archote na mão.
- Como
pode ver, ele não está aqui. Nem estará, durante muitos anos. Os
sonhos são apenas sonhos, menino - enfiou o braço na escuridão do
interior da tumba, como se fosse a boca de um grande animal qualquer.
- Vê? Está bem vaz...
A
escuridão saltou sobre ele, rosnando. Bran viu olhos que eram como
fogo verde, uma cintilação de dentes, pelo tão negro como o breu
que os rodeava. O archote saltou dos dedos do meistre, rolou pelo
rosto de pedra de Brandon Stark e caiu aos pés da estátua, com as
chamas lambendo-lhe as pernas. A luz ébria e irregular do archote,
viram Luwin lutar com o lobo gigante, batendo-lhe no focinho com a
mão enquanto os maxilares se fechavam sobre a outra.
- Verão!
- Bran gritou.
E Verão
veio, precipitando-se das trevas atrás deles, uma sombra em salto.
Esbarrou em Cão Felpudo e atirou-o para trás, e os dois lobos
gigantes rolaram e voltaram a rolar num emaranhado de pelo cinzento e
negro, mordendo-se um ao outro, enquanto Meistre Luwin se punha em pé
com dificuldade, com o braço rasgado e ensanguentado. Osha apoiou
Bran no lobo de pedra de Lorde Rickard e correu para prestar
assistência ao meistre, A luz do archote que se extinguia, lobos de
sombra com seis metros de altura lutavam na parede e no teto.
- Felpudo
- chamou uma voz sumida. Quando Bran ergueu os olhos, o irmão mais
novo estava em pé na abertura da sepultura do pai. Dando uma última
dentada no focinho de Verão, Cão Felpudo afastou-se e pôs-se ao
lado de Rickon. - Deixe meu pai em paz - avisou Rickon a Luwin. -
Deixe-o em paz.
- Rickon
- disse Bran suavemente. - O pai não está aqui,
- Está,
sim, Eu o vi - lágrimas brilhavam no rosto de Rickon. - Eu o vi
ontem à noite.
- No seu
sonho?...
Rickon
confirmou com a cabeça.
-
Deixe-o. Deixe-o em paz. Ele agora vem para casa, como prometeu. Vem
para casa.
Bran
nunca antes vira Meistre Luwin com uma expressão tão incerta.
Sangue pingava-lhe do braço, onde Cão Felpudo rasgara a lã da
manga e a carne que estava por baixo.
- Osha, o
archote - ele pediu, mordendo a dor, e ela o apanhou antes que se
apagasse. Manchas de fuligem enegreciam ambas as pernas do retrato do
tio de Bran. - Aquele... aquele animal - prosseguiu Luwin - devia
estar acorrentado nos canis.
Rickon
deu uma palmadinha no focinho de Cão Felpudo, úmido de sangue.
- Eu o
libertei. Ele não gosta de correntes - o lobo lambeu-lhe os dedos.
- Rickon
- disse Bran - quer vir comigo?
- Não.
Gosto disto aqui.
- Aqui
está escuro. E frio.
- Não
tenho medo. Tenho de esperar pelo pai.
- Pode
esperar comigo - disse Bran. - Vamos esperar juntos, eu, você e os
nossos lobos - ambos os lobos lambiam as feridas, e precisavam de um
exame atento.
- Bran -
disse firmemente o meistre - eu sei que você tem boas intenções,
mas Cão Felpudo é selvagem demais para andar à solta. Eu sou o
terceiro homem que ele ataca. Dê-lhe a liberdade do castelo, e é só
questão de tempo antes que mate alguém. A verdade é dura, mas o
lobo tem de ser acorrentado, ou... - hesitou.
... ou
morto, pensou Bran, mas o que disse foi:
- Ele não
foi feito para correntes. Esperaremos na sua torre, todos nós.
- Isso é
completamente impossível - disse Meistre Luwin.
Osha
sorriu.
- Se bem
me lembro, o pequeno lorde aqui é o rapaz - devolveu o archote a
Luwin e voltou a pegar Bran. - A torre do meistre.
- Você
vem, Rickon?
O irmão
concordou.
- Se
Felpudo vier também - disse, correndo atrás de Osha e Bran, e não
houve nada que Meistre Luwin pudesse fazer a não ser segui-los,
mantendo um olho cauteloso nos lobos.
A torre
de Luwin estava tão atravancada que Bran se espantava de o meistre
conseguir encontrar fosse o que fosse. Instáveis pilhas de livros
cobriam mesas e cadeiras, fileiras de frascos rolhados revestiam as
prateleiras, tocos de velas e poças de cera seca estavam espalhados
pela mobília, a luneta miriana, feita de bronze, apoiava-se num
tripé perto da porta da varanda, cartas estelares pendiam das
paredes, mapas sombreados encontravam-se espalhados por entre as
esteiras, havia papéis, penas e potes de tinta por toda a parte, e
tudo se achava manchado pelos excrementos dos corvos que se
empoleiravam nas traves. Seus estridentes quorcs soaram, vindos do
teto, enquanto Osha lavava, limpava e enfaixava as feridas do
meistre, seguindo suas concisas instruções.
- Isto é
uma loucura - disse o pequeno homem cinzento enquanto ela pincelava
as dentadas do lobo com um unguento que ardia. - Concordo que é
estranho que ambos tenham sonhado o mesmo sonho, mas quando paramos
para pensar, vemos que é natural. Sentem saudade do senhor seu pai,
e sabem que ele está preso. O medo pode tornar febril a mente de um
homem e lhe dar estranhos pensamentos. Rickon é novo demais para
perceber...
-Já
tenho quatro anos - disse Rickon. Espiava as gárgulas na Primeira
Fortaleza pela luneta. Os lobos selvagens estavam instalados em lados
opostos da grande sala redonda, lambendo as feridas e roendo ossos.
- ...novo
demais e... ooh, pelos sete infernos, isso arde, não, não pare,
mais. Novo demais, como dizia, mas você, Bran, já tem idade para
saber que sonhos são apenas sonhos.
- Alguns
são, outros, não - Osha jogou leite de fogo vermelho-claro num
longo corte. Luwin arquejou. - Os filhos da floresta podiam lhe dizer
uma coisa ou duas a respeito dos sonhos.
Corriam
lágrimas pelo rosto do meistre, mas ele sacudiu a cabeça
teimosamente.
- Os
filhos... sobrevivem apenas em sonhos. Hoje. Mortos e enterrados.
Chega, já chega. Agora as ataduras. Unguentos e depois as faixas, e
aperte-as bem, porque vai sangrar.
- A Velha
Ama diz que os filhos conheciam as canções das árvores, que podiam
voar como aves e nadar como peixes e falar com os animais - disse
Bran. - Diz que criavam música tão bela que nos fazia chorar como
bebês só de ouvi-la.
- E
faziam tudo isso com magia - disse Meistre Luwin, distraído. -
Gostaria que aqui estivessem agora. Um feitiço curaria meu braço
com menos dor, e poderiam falar com Cão Felpudo e dizer-lhe para não
morder - lançou ao grande lobo negro um relance zangado pelo canto
do olho. - Aprenda o seguinte, Bran: o homem que confia em feitiços
luta com espada de vidro. E os filhos confiavam. Venha cá, deixe-me
mostrar uma coisa - pôs-se abruptamente em pé, atravessou a sala e
regressou com um frasco verde na mão boa. - Olhe para isto - disse,
enquanto tirava a rolha e, com um abanão, fazia cair um punhado de
pontas de seta brilhantes e negras.
Bran
pegou uma.
- É
feita de vidro - curioso, Rickon aproximou-se da mesa para espiar.
- Vidro
de dragão - disse Osha ao sentar-se ao lado de Luwin, com as
ataduras na mão.
-
Obsidiana - insistiu Meistre Luwin, estendendo o braço ferido. -
Forjada nas fogueiras dos deuses, nas profundezas da terra. Os filhos
da floresta caçavam com isso há milhares de anos. Eles não
trabalhavam o metal. Em lugar de cota de malha, usavam longas camisas
de folhas entrelaçadas e envolviam as pernas com cortiça, para que
parecessem se fundir com a floresta. No lugar de espadas, usavam
lâminas de obsidiana.
- E ainda
usam - Osha colocou unguentos suaves sobre as mordidas no braço do
meistre e os atou bem apertados com longas faixas de linho.
Bran
aproximou a ponta de seta dos olhos. O vidro negro era liso e
brilhante. Achou-o belo.
- Posso
ficar com uma?
- Como
quiser - disse o meistre.
- Também
quero uma - disse Rickon. - Quero quatro. Tenho quatro anos.
Luwin o
obrigou a contá-las.
-
Cuidado, ainda são afiadas, podem cortá-lo.
- Fala
mais dos filhos - Bran pediu. Era importante.
- Que
quer saber?
- Tudo.
Meistre
Luwin puxou o colar de correntes onde lhe irritava o pescoço.
- Eram
pessoas da Era da Aurora, as primeiras, de antes dos reis e dos
reinos. Naquele tempo, não havia castelos ou fortalezas, não havia
cidades, nem sequer se encontrava uma vila mercantil entre aqui e o
mar de Dorne. Não havia homens nenhuns. Só os filhos da floresta
habitavam as terras a que hoje chamamos os Sete Reinos. Eram um povo
escuro e belo, de baixa estatura, não eram mais altos que crianças,
mesmo na idade adulta. Viviam nas profundezas dos bosques, em
cavernas, no meio dos lagos e em aldeias secretas nas árvores. Como
eram leves, os filhos eram ligeiros e graciosos. Os dois sexos
caçavam juntos, com arcos de represeiros e laços. Seus deuses eram
os deuses da floresta, dos rios e das pedras, os velhos deuses cujos
nomes são secretos. Seus sábios chamavam-se videntes verdes, e
esculpiam estranhos rostos nos represeiros para vigiar os bosques.
Ninguém sabe durante quanto tempo os filhos reinaram aqui nem de
onde vieram. Mas, há cerca de doze mil anos, os Primeiros Homens
chegaram do oriente, atravessando o Braço Partido de Dorne antes de
ele ter sido partido. Chegaram com espadas de bronze e grandes
escudos de couro, montados em cavalos. Nenhum cavalo fora alguma vez
visto deste lado do mar estreito. Não há dúvida que os filhos
ficaram tão atemorizados pelos cavalos como os Primeiros Homens,
pelos rostos nas árvores. Quando os Primeiros Homens construíram
fortalezas e fazendas, abateram os rostos e os queimaram.
Horrorizados, os filhos partiram para a guerra. As antigas canções
dizem que os videntes verdes usaram magia negra para fazer o mar
subir e varrer a terra, quebrando o Braço, mas era tarde demais para
fechar a porta. As guerras prolongaram-se até a terra ficar rubra
com o sangue de homens e filhos da floresta, mais destes que
daqueles, pois os homens eram maiores e mais fortes, e madeira, pedra
e obsidiana eram fraca oposição contra o bronze. Por fim,
prevaleceu a sensatez das duas raças, e os chefes e heróis dos
Primeiros Homens encontraram-se com os videntes verdes e dançarinos
da floresta nos bosques de represeiros de uma ilhota no grande lago
chamado Olho de Deus. Foi aí que forjaram o Pacto. Aos Primeiros
Homens foram dadas as terras costeiras, os planaltos e os prados
luminosos, as montanhas e os pântanos, mas a floresta profunda
ficaria para sempre nas mãos dos filhos, e nenhum outro represeiro
seria destruído pelo machado em todo o território. Para que os
deuses testemunhassem a assinatura, a todas as árvores da ilha foi
dada uma cara e, mais tarde, foi formada a sagrada Ordem dos Homens
Verdes para vigiar a Ilha das Caras. O Pacto iniciou quatro mil anos
de amizade entre os homens e os filhos da floresta. Com o tempo, os
Primeiros Homens até puseram de lado os deuses que tinham trazido
consigo e passaram a adorar os deuses secretos da floresta. A
assinatura do Pacto pôs fim à Era da Aurora e iniciou a Era dos
Heróis.
O punho
de Bran enrolou-se em volta da brilhante ponta de seta negra.
- Mas o
senhor disse que os filhos da floresta estão agora todos mortos.
- Aqui
estão - disse Osha, enquanto cortava com os dentes o fim da última
atadura. - A norte da Muralha as coisas são diferentes. Foi para lá
que os filhos foram, tal como os gigantes e as outras raças antigas.
Meistre
Luwin suspirou.
- Mulher,
por favor, devia estar morta ou encarcerada. Os Stark a trataram com
mais bondade do que merece. Não é bom retribuir-lhes a simpatia
enchendo a cabeça dos rapazes de besteiras,
- Diz
para onde eles foram - Bran desafiou. - Quero saber.
- Eu
também - disse Rickon, num eco.
- Ah,
muito bem - resmungou Luwin. - Enquanto os reinos dos Primeiros
Homens mantiveram o poder, o pacto manteve-se ao longo de toda a Era
dos Heróis, da Longa Noite e do nascimento dos Sete Reinos, mas por
fim chegou uma época, muitos séculos mais tarde, em que outros
povos atravessaram o mar estreito. Os ândalos foram os primeiros;
uma raça de guerreiros altos de cabelos claros que chegaram com aço,
fogo e a estrela de sete pontas dos novos deuses pintada no peito. As
guerras prolongaram-se ao longo de centenas de anos, mas, no fim,
todos os seis reinos do Sul caíram perante eles. Só aqui, onde o
Rei do Norte repeliu todos os exércitos que tentaram atravessar o
Gargalo, permaneceu a lei dos Primeiros Homens. Os ândalos
incendiaram os bosques de represeiros, destruíram os rostos a
machadadas, mataram os filhos da floresta onde os encontraram e
proclamaram por todo o lado o triunfo dos Sete sobre os velhos
deuses. Por isso, os filhos fugiram para o norte...
Verão
começou a uivar.
Meistre
Luwin interrompeu-se, sobressaltado. Quando Cão Felpudo se ergueu de
um salto e juntou sua voz à do irmão, o terror apertou o coração
de Bran.
- Está
para chegar - sussurrou, com a certeza, do desespero. Compreendeu que
o sabia desde a noite anterior, desde que o corvo o levara até as
criptas para dizer adeus. Sabia, mas não acreditara. Desejava que
Meistre Luwin tivesse razão. O corvo, pensou, o corvo de três
olhos...
Os uivos
pararam tão subitamente como tinham começado. Verão atravessou o
chão da torre até junto de Cão Felpudo e pôs-se a lamber um
emaranhado de pelo ensanguentado no pescoço do irmão. Da janela
veio um ruído de asas.
Um corvo
pousou no parapeito de pedra cinzenta, abriu o bico e soltou um ruído
duro e rouco de aflição. Rickon começou a chorar. As pontas de
seta caíram de sua mão uma por uma e tamborilaram no chão. Bran o
puxou para si e o abraçou.
Meistre
Luwin olhou para a ave negra como se fosse um escorpião com penas.
Ergueu-se, lento como um sonâmbulo, e dirigiu-se à janela. Quando
assobiou, o corvo saltou para cima de seu braço enfaixado. Trazia
sangue seco nas asas.
- Um
falcão - murmurou Luwin - talvez uma coruja. Pobre animal, é
incrível que tenha sobrevivido - tirou- he a carta da perna.
Bran deu
por si tremendo enquanto o meistre desenrolava o papel.
- O que
é? - perguntou, apertando o irmão com mais força ainda.
- Você
sabe o que é, rapaz - disse Osha, de uma forma que não era
desprovida de bondade, e pousou-lhe a mão na cabeça.
Meistre
Luwin olhou-os, estupidificado, um homenzinho cinzento com sangue na
manga da veste de lã cinzenta e lágrimas nos olhos brilhantes e
cinzentos.
-
Senhores - disse aos rapazes, numa voz que se tinha tornado rouca e
sem força - nós... teremos de encontrar um escultor que conheça
bem as suas feições...
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