terça-feira, 10 de setembro de 2013

65 - ARYA


O cheiro de pão quente que vinha das lojas na Rua da Farinha era mais doce que qualquer perfume que Arya tivesse sentido. Inspirou profundamente e aproximou-se do pombo. Era um pombo rechonchudo, pintalgado de marrom, atarefado bicando uma casca de pão que tinha caído entre duas pedras do pavimento, mas quando a sombra de Arya o tocou, levantou vôo.
Sua espada de pau assobiou e apanhou o pombo a meio metro do chão, e a ave tombou numa confusão de penas marrons. Num piscar de olhos Arya estava em cima dele, agarrando uma asa enquanto o pombo tentava voar. A ave deu-lhe uma bicada na mão. A menina agarrou-lhe o pescoço e o torceu até sentir os ossos quebrarem. Comparado com apanhar gatos, apanhar pombos era fácil.
Um septão que passava a olhava de soslaio.
- Este é o melhor lugar para encontrar pombos - disse-lhe Arya enquanto batia o pó de si e apanhava a espada de pau. - Vêm à procura de migalhas - o homem rapidamente se afastou.
Arya atou o pombo ao cinto e começou a descer a rua. Um homem passou por ela, empurrando um carregamento de tortas em um carrinho de duas rodas; os cheiros eram de mirtilos, limões e damascos. Seu estômago soltou um trovejar oco.
- Dá-me uma? - ouviu-se dizer. - De limão ou... ou qualquer uma.
O homem do carrinho de mão olhou-a dos pés à cabeça. Deixou claro que não gostou do que viu.
- Três cobres.
Arya bateu com a espada de madeira contra o lado da bota.
- Troco-a por um pombo gordo - disse.
- Que os Outros levem o seu pombo - disse o homem do carrinho de mão.
As tortas ainda vinham quentes do forno. Os cheiros enchiam-lhe a boca de água, mas ela não tinha três cobres... ou um que fosse. Olhou para o homem do carrinho de mão, lembrando-se do que lhe dissera Syrio sobre ver. Era um homem baixo, com uma pequena barriga redonda, e quando se movia parecia favorecer um pouco a perna esquerda. Estava precisamente pensando que, se agarrasse uma torta e fugisse, ele nunca conseguiria apanhá-la, quando o homem disse:
- Tenha tento nessas suas mãozinhas nojentas. Os homens de manto dourado sabem bem como lidar com ratazanazinhas gatunas de sarjeta, ah, sabem.
Arya olhou de relance para trás. Dois dos membros da Patrulha da Cidade estavam parados na esquina de uma viela. Os mantos chegavam quase ao chão, com a pesada lã tingida de um tom rico de dourado; as botas, luvas e cotas de malha eram negras. Um trazia uma espada longa na cintura, o outro, uma clava de ferro, Com um último relance ávido para as tortas, Arya afastou-se do carrinho e apressou-se em ir embora. Os homens de manto dourado não estavam prestando nenhuma atenção especial nela, mas vê-los deu-lhe nós no estômago. Arya andara para tão longe do castelo como pudera, mas mesmo a distância conseguia ver as cabeças que apodreciam no topo das grandes muralhas vermelhas.
Bandos de corvos brigavam ruidosamente por cima de cada uma delas, densos como moscas. Dizia-se na Baixada das Pulgas que os homens de manto dourado se tinham aliado aos Lannister, que seu comandante fora feito senhor, com terras no Tridente e lugar no conselho do rei.
Arya também ouvira outras coisas, coisas assustadoras, que não faziam sentido para ela. Havia quem dissesse que o pai assassinara o Rei Robert e que fora morto por Lorde Renly. Outros insistiam que fora Renly que matara o rei numa briga de bêbados entre irmãos. Por que outro motivo teria fugido durante a noite como um ladrão comum? Uma história dizia que o rei fora morto por um javali enquanto caçava, outra afirmava que morrera enquanto comia javali, empanturrando-se tanto que explodira à mesa. Não, o rei morrera à mesa, diziam outros, mas só porque Varys, a Aranha, o envenenara. Não, tinha sido a rainha quem o envenenara. Não, morrera de varíola. Não, sufocara com uma espinha de peixe.
Numa coisa todas as histórias concordavam: o Rei Robert estava morto. Os sinos nas sete torres do Grande Septo de Baelor tinham repicado durante um dia e uma noite, fazendo troar sua dor pela cidade numa maré de bronze. Só faziam soar os sinos assim quando um rei morria, dissera-lhe um aprendiz de curtidor.
Tudo o que queria era voltar para casa, mas deixar Porto Real não era tão fácil como esperara. Todo mundo falava de guerra, e a densidade dos homens de manto dourado era tão grande nas muralhas da cidade como a de moscas em... bem, nela, por exemplo. Vinha passando as noites na Baixada das Pulgas, sobre telhados e em estábulos, onde quer que conseguisse encontrar um lugar para se deitar, e não demorara muito tempo para compreender que o distrito tinha o nome certo.
Todos os dias, desde a fuga da Fortaleza Vermelha, Arya visitava os sete portões da cidade, um de cada vez. Os Portões do Dragão, do Leão e o Velho estavam fechados e trancados. O da Lama e o dos Deuses estavam abertos, mas só para aqueles que quisessem entrar na cidade; os guardas não deixavam ninguém sair. Os que estavam autorizados a sair o faziam pelo Portão do Rei ou pelo Portão de Ferro, mas eram homens de armas Lannister, de manto carmesim e elmo encimado por um leão, que lá guarneciam os postos de guarda. Espiando do telhado de uma estalagem próxima do Portão do Rei, Arya os viu vasculhar carroças e carruagens, forçar cavaleiros a abrir seus alforjes e interrogar todos os que tentavam passar a pé.
Por vezes pensava em atravessar o rio a nado, mas a Torrente da Agua Negra era larga e profunda, e todos concordavam que suas correntes eram perigosas e traiçoeiras. Não tinha dinheiro para pagar a um barqueiro ou comprar uma passagem de navio. O senhor seu pai a ensinara a nunca roubar, mas estava se tornando cada vez mais difícil lembrar por quê. Se não saísse dali em breve, teria de arriscar a sorte com os homens de manto dourado. Não tinha passado muita fome desde que aprendera a derrubar aves com a espada de pau, mas temia que tanto pombo a estivesse deixando doente. Comera dois deles crus antes de encontrar a Baixada das Pulgas.
Na Baixada havia casas de pasto espalhadas pelas vielas, onde enormes banheiras de guisado ferviam há anos, e podia-se trocar metade de uma ave por uma fatia de pão do dia anterior e uma "tigela de castanho", e até torravam a outra metade no fogo, desde que o cliente depenasse o pombo. Arya teria dado qualquer coisa por uma xícara de leite e um bolo de limão, mas o castanho não era de todo mau. Costumava ter cevada e pedaços de cenoura, cebola e nabo, e às vezes tinha até maçã com uma película de gordura por cima. Em geral, tentava não pensar na carne. Uma vez obtivera um pedaço de peixe.
O único problema era que essas casas nunca estavam vazias, e mesmo enquanto devorava a comida podia senti-los observando-a. Alguns deles não tiravam os olhos de suas botas ou de seu manto, e sabia no que estavam pensando. Com outros, quase conseguia sentir os olhos rastejando sob seus couros; não sabia em que eles estavam pensando, e isso a assustava ainda mais. Umas duas vezes fora seguida até as vielas e perseguida depois, mas até então nenhum tinha sido capaz de apanhá-la.
A pulseira de prata que esperava vender fora roubada na primeira noite que passara fora do castelo, junto com a trouxa de roupa boa, surrupiada enquanto dormia em uma casa queimada, perto da Viela dos Porcos. Tudo o que lhe tinham deixado foram o manto em que se enrolara, os couros que vestia, a espada de treino de madeira... e a Agulha. Dormia em cima da Agulha, e se não fosse isso, também a teria perdido; valia mais que todo o resto. Desde então, Arya acostumara-se a caminhar com o manto enrolado no braço direito, a fim de esconder a lâmina que trazia à cintura. A espada de madeira era levada na mão esquerda, onde todos a pudessem ver, para assustar ladrões, mas havia homens nas casas de pasto que não se assustariam nem que ela tivesse um machado de batalha. Era o suficiente para lhe fazer perder o gosto por pombo e pão duro. Era mais comum ir dormir com fome do que se arriscar aos olhares.
Uma vez fora da cidade, encontraria frutas do bosque prontas para colher, ou pomares que poderia assaltar em busca de maçãs ou cerejas. Arya lembrava-se de ver alguns da Estrada do Rei durante a viagem para o sul. E poderia escavar em busca de raízes na floresta, ou até caçar alguns coelhos. Na cidade, as únicas coisas que podia caçar eram ratazanas, gatos e cães descarnados.
Ouvira dizer que as casas de pasto ofereciam uma mão-cheia de cobres por uma ninhada de cachorros, mas não gostava de pensar nisso. Abaixo da Rua da Farinha ficava um labirinto de vilas retorcidas e travessas. Arya lutou para atravessar a multidão, tentando colocar distância entre si e os homens de manto dourado. Aprendera a manter-se no centro da rua. Por vezes tinha de se desviar de carroças e cavalos, mas pelo menos podia vê-los aproximarem-se.
Quem caminhasse junto aos edifícios era agarrado pelas pessoas. Em algumas vielas não havia hipótese de não roçar nas paredes; os edifícios aproximavam-se tanto que quase se encontravam. Um ruidoso bando de crianças pequenas passou por ela correndo, brincando de arco. Arya ficou olhando para eles com ressentimento, lembrando-se dos tempos em que assim brincara com Bran, Jon e o irmão mais novo, Rickon. Perguntou a si mesma quanto teria crescido Rickon, e se Bran estaria triste. Teria dado tudo por ter ali Jon chamando-a de"irmãzinha"e despenteando-lhe os cabelos. Não que precisasse ser despenteado. Vira seu reflexo em poças, e não lhe parecia que pudesse haver cabelos mais despenteados que os dela.
Tentara falar com as crianças que via na rua, esperando fazer um amigo que lhe arranjasse lugar para dormir, mas devia falar errado ou qualquer coisa do gênero. Os pequenos limitavam-se a mirá-la com olhos rápidos e cuidadosos, e fugiam caso se aproximasse demais. Os irmãos e irmãs mais velhos faziam perguntas que Arya não podia responder, davam-lhe apelidos e tentavam roubá-la. Já no dia anterior uma menina magricela e descalça, com o dobro de sua idade, a tinha atirado ao chão e tentara arrancar-lhe as botas, mas Arya dera-lhe um estalo na orelha com a espada de pau que a afastara aos soluços e sangrando.
Uma gaivota voou aos círculos por cima de sua cabeça quando desceu a colina em direção à Baixada das Pulgas. Arya olhou-a de relance, pensativa, mas estava bem longe do alcance de seu pau. A ave a fez pensar no mar. Talvez fosse esse o caminho para fora dali. A Velha Ama costumava contar histórias sobre rapazes que se escondiam em galés mercantes e zarpavam para todo o tipo de aventuras. Talvez Arya pudesse fazer o mesmo.
Decidiu visitar a margem do rio. De qualquer forma, ficava a caminho do Portão da Lama, que ainda não verificara hoje. Os cais estavam estranhamente sossegados quando Arya chegou lá. Viu outro par de mantos dourados, caminhando lado a lado pelo mercado de peixe, mas nem sequer olharam para ela. Metade das bancas estava vazia, e parecia-lhe que havia menos navios atracados do que recordava. No Água Negra três das galés de guerra do rei moviam-se em formação, com os cascos pintados de dourado rasgando as águas à medida que os remos subiam e desciam. Arya observou-as durante algum tempo, depois se pôs a caminho ao longo do rio.
Quando viu os guardas no terceiro cais, vestidos com mantos de lã cinza debruada de cetim branco, o coração quase parou em seu peito. Ver as cores de Winterfell trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Atrás dos guardas, uma lustrosa galé mercante de três remos balançava em suas amarras. Arya não conseguia ler o nome pintado no casco; as palavras eram estranhas, em miriano, bravosiano, talvez mesmo alto valiriano. Agarrou pela manga um estivador que passava.
- Por favor - disse - que navio é este?
- E a Bruxa dos Ventos, de Myr - disse o homem.
- Ainda está aqui - exclamou Arya. O estivador olhou-a de modo estranho, deu de ombros e afastou-se. Arya correu para o cais. A Bruxa dos Ventos era o navio que o pai contratara para levada para casa... ainda à espera!
Julgara que tinha zarpado havia séculos. Dois dos guardas jogavam dados enquanto o terceiro fazia rondas, com a mão pousada no botão da espada. Com vergonha de que a vissem chorar como um bebê, Arya parou para esfregar os olhos. Os olhos, os olhos, os olhos, por que era que...
Olha com os olhos, ouviu Syrio sussurrar. Arya olhou. Conhecia todos os homens do pai. Os três com os mantos cinzentos eram estranhos.
- Você - chamou aquele que fazia rondas. - Que quer aqui, rapaz? - os outros dois ergueram os olhos dos dados.
A única coisa que Arya conseguiu fazer foi evitar saltar e fugir, pois sabia que se o fizesse eles viriam imediatamente atrás dela. Obrigou-se a se aproximar. Estavam à espera de uma menina, mas a tomaram por um rapaz. Neste caso, seria um rapaz.
- Quer comprar um pombo? - mostrou-lhe a ave morta.
- Saia daqui - disse o guarda.
Arya fez o que lhe foi dito. Não teve de fingir estar assustada. Atrás dela, os homens voltaram aos seus dados.
Não saberia dizer como voltou à Baixada das Pulgas, mas respirava com força quando chegou às estreitas e retorcidas ruas de terra batida entre as colinas. A Baixada tinha um fedor característico, o cheiro de pocilgas, estábulos e barracas de curtumes, misturado ao odor azedo das tabernas e de bordéis baratos. Arya abriu caminho pelo labirinto com a mente entorpecida. Só percebeu que o pombo tinha desaparecido quando lhe chegou um odor de castanho borbulhante vindo da porta de uma casa de pasto. Devia ter escorregado do cinto enquanto corria, ou alguém lhe roubara sem que se desse conta. Por um momento quis chorar de novo. Teria de percorrer todo o caminho de volta à Rua da Farinha e encontrar outro pombo que estivesse tão gordo como aquele.
Longe, do outro lado da cidade, sinos começaram a tocar.
Arya olhou para cima, à escuta, perguntando-se o que o toque significaria daquela vez.
- Que é isto agora? - gritou um homem gordo de dentro da casa de pasto.
- Outra vez os sinos, que os deuses nos salvem - lamentou-se uma velha.
Uma prostituta de cabelos vermelhos enfiada dentro de um fiapo de seda pintada abriu uma janela de segundo andar.
- Foi o rapaz rei que morreu? - gritou ela para baixo, debruçando-se sobre a rua. - Ah, os rapazes são assim, nunca duram muito tempo - enquanto ria, um homem nu a rodeou com os braços por detrás, mordendo-lhe o pescoço e esfregando-lhe os pesados seios brancos que pendiam soltos sob a camisa.
- Vadia estúpida - gritou o gordo. - O rei não está morto, aquilo são só sinos de chamar. É só uma torre repicando. Quando o rei morre, tocam todos os sinos da cidade,
- Olha, para de morder, senão faço tocar os seus sinos - disse a mulher da janela para o homem atrás dela, afastando-o com um cotovelo. - Então, quem é que morreu, se não foi o rei?
- É uma chamada - repetiu o gordo.
Dois rapazes com aproximadamente a mesma idade de Arya passaram por ali correndo, patinhando numa poça. A velha os amaldiçoou, mas eles prosseguiram seu caminho. Outras pessoas também se punham em movimento, subindo a colina para ver o que era aquele barulho. Arya correu atrás do rapaz mais lento.
- Onde você vai? - ela gritou quando se pôs atrás dele. - O que está acontecendo? Ele olhou de relance para trás sem diminuir o passo.
- Os mantos dourados estão levando ele para o septo.
- Quem? - berrou Arya, correndo a toda velocidade.
- A Mão! O Buu diz que vão cortar a cabeça dele.
Uma carroça que passara pela rua deixara um sulco profundo na rua. O rapaz saltou por cima, mas Arya não chegou a ver a fenda. Tropeçou e caiu, de cabeça, esfolando o joelho numa pedra e esmagando os dedos quando as mãos atingiram a terra batida. A Agulha se emaranhou em suas pernas. Arya soluçou enquanto lutava para se pôr de joelhos. O polegar da mão esquerda estava coberto de sangue. Quando o pôs na boca, viu que metade da unha tinha desaparecido, arrancada na queda. As mãos latejavam, e o joelho também estava cheio de sangue.
- Abram alas! - gritou alguém da travessa. - Abram alas para os senhores de Redwyne! - Arya conseguiu sair da rua a tempo de não ser atropelada por quatro guardas montados em cavalos enormes, passando a galope. Usavam mantos xadrezes, azul e vinho. Atrás deles, dois jovens fidalgos cavalgavam lado a lado num par de éguas marrons, parecidos como duas gotas de água. Arya vira-os na muralha do castelo uma centena de vezes; os gêmeos Redwyne, Sor Horas e Sor Hobber, jovens desajeitados de cabelos cor de laranja e rosto quadrado e sardento. Sansa e Jeyne Poole costumavam chamá-los Sor Horror e Sor Babeiro, e explodiam em risinhos sempre que os viam. Agora não pareciam divertidos.
Todo mundo se movia na mesma direção, todos com pressa de ver o que motivava o repique dos sinos, que agora pareciam tocar mais alto, tinindo, chamando. Arya juntou-se à corrente de gente. Doía-lhe tanto o polegar onde a unha se partira que só com esforço evitava chorar. Mordeu o lábio enquanto coxeava, escutando as vozes excitadas ao seu redor.
- ... a Mão do Rei, Lorde Stark. Estão levando-o para o Septo de Baelor.
- Ouvi dizer que ele estava morto.
- Não tarda, não tarda. Olha, tenho aqui um veado de prata que diz que vão lhe arrancar a cabeça.
- Já vai tarde, o traidor - o homem cuspiu.
Arya lutou por encontrar a voz.
- Ele nunca... - começou, mas era apenas uma criança, e os homens continuaram a falar por cima dela.
- Palerma! Não vão cortar-lhe a cabeça coisa nenhuma. Desde quando eles dão um jeito em traidores nos degraus do Grande Septo?
- Bem, não vão ungi-lo cavaleiro, com certeza. Ouvi dizer que foi o Stark que matou o velho Rei Robert. Que lhe abriu a garganta na floresta e que, quando o encontraram, estava lá, frio, dizendo que tinha sido um javali velho que matara Sua Graça.
- Ah, isso não é verdade, foi o irmão que tratou dele, aquele Renly, o dos chifres de ouro.
- Cala essa boca mentirosa, mulher. Não sabe o que diz, sua senhoria é um homem bom e fiel.
Quando chegaram à Rua das Irmãs, a multidão aglomerava-se, ombro contra ombro. Arya deixou-se levar pela corrente humana até o topo da Colina de Visenya. A praça de mármore branco era uma massa sólida de gente, todos tagarelando excitadamente uns com os outros e fazendo força para chegar mais perto do Grande Septo de Baelor. Os sinos soavam muito alto ali.
Arya contorceu-se através da multidão, esgueirando-se entre as patas dos cavalos e agarrando-se bem à espada de pau. Do meio da multidão, tudo o que via eram braços, pernas e barrigas, e as sete torres esguias do septo que se erguiam por cima da praça. Vislumbrou uma carroça de madeira e pensou em subir nela para conseguir ver, mas outros tiveram a mesma ideia. O carroceiro os amaldiçoou e os afastou a golpes de chicote.
Arya ficou frenética. Ao forçar passagem até a frente da multidão, foi empurrada contra a pedra de um pedestal. Ergueu o olhar para Baelor, o Abençoado, o rei septão. Enfiou a espada de pau no cinto e começou a subir. A unha quebrada deixou manchas de sangue no mármore pintado, mas conseguiu subir e enfiou-se entre os pés do rei.
Foi então que viu o pai.
Lorde Eddard encontrava-se em pé no púlpito do Alto Septão, à porta do septo, apoiado em dois homens de manto dourado. Vestia um gibão de rico veludo cinza com um lobo branco cosido com contas na parte da frente, e um manto de lã cinza debruada de peles, mas estava mais magro do que Arya jamais o vira, com a longa face tensa de dor. Eram mais os homens mantendo-o em pé do que ele se sustentando; o gesso que envolvia a perna quebrada mostrava-se encardido e apodrecido.
O próprio Alto Septão estava atrás dele, um homem atarracado, grisalho pela idade e enormemente gordo, usando uma longa túnica branca e uma imensa coroa de ouro encordoado e cristal que lhe decorava a cabeça com um arco-íris sempre que se movia.
Em volta das portas do septo, um grupo de cavaleiros e de grandes senhores aglomerava-se na frente do púlpito elevado de mármore. Entre eles destacava-se Joffrey, vestido todo de carmesim, seda e cetim adornados com veados empinados e leões rugindo, e uma coroa de ouro na cabeça. Ao seu lado via-se a rainha sua mãe, trajando um vestido negro de luto com fendas carmesins e um véu de diamantes negros nos cabelos. Arya reconheceu Cão de Caça, que usava um manto branco de neve sobre a armadura cinza-escura, com quatro dos membros da Guarda Real à sua volta. Viu Varys, o eunuco, deslizando entre os senhores em chinelos suaves e com uma toga de damasco estampada, e achou que o homem baixo com a capa prateada e barba pontiaguda devia ser aquele que tinha um dia lutado em duelo por sua mãe.
E ali, entre eles, estava Sansa, vestida de seda azul-celeste, com os longos cabelos ruivos lavados e encaracolados, usando braceletes de prata nos pulsos. Arya fechou a cara, perguntando a si mesma o que a irmã estaria fazendo ali, e por que parecia tão feliz. Uma longa fileira de lanceiros de manto dourado segurava a multidão, comandada por um homem forte, com uma armadura elaborada, toda ela de laca negra e filigrana dourada. O manto tinha o brilho metálico de ouro verdadeiro.
Quando o sino parou de soar, um silêncio foi lentamente cobrindo a grande praça, e seu pai ergueu a cabeça e começou a falar, com a voz tão fraca que Arya quase não conseguia ouvir. As pessoas atrás dela começaram a gritar "Quê?", "Mais alto!". O homem com a armadura de negro e dourado aproximou-se do pai e aguilhoou-o com força. Arya quis gritar Deixe-o em paz!, mas sabia que ninguém a ouviria. Mordeu o lábio. O pai ergueu a voz e recomeçou.
- Sou Eddard Stark, Senhor de Winterfell e Mão do Rei - disse, mais alto, fazendo a voz chegar a toda a praça - e venho até vós para confessar minha traição perante os deuses e os homens.
- Não - choramingou Arya, Por baixo dela, a multidão desatou a berrar e a gritar. Insultos e obscenidades encheram o ar. Sansa escondera o rosto nas mãos.
O pai ergueu a voz ainda mais alto, esforçando-se por ser ouvido.
- Traí a fé do meu rei e a confiança do meu amigo Robert - gritou. - Jurei defender e proteger seus filhos, mas antes ainda que seu sangue arrefecesse conspirei para depor e matar seu filho, e tomar o trono para mim. Que o Alto Septão, Baelor, o Amado, e os Sete sejam testemunhas da verdade que digo: Joffrey Baratheon é o verdadeiro herdeiro do Trono de Ferro, e, pela graça de todos os deuses, Senhor dos Sete Reinos e Protetor do Território.
Uma pedra saltou da multidão. Arya gritou quando viu o pai ser atingido. Os homens de manto dourado evitaram que caísse. Sangue escorreu-lhe pelo rosto, vindo de um profundo golpe na testa. Mais pedras se seguiram. Uma atingiu o guarda à esquerda do pai. Outra retiniu na placa de peito do cavaleiro com a armadura de negro e ouro. Dois homens da Guarda Real puseram-se na frente de Joffrey e da rainha, protegendo-os com os escudos.
A mão de Arya deslizou sob o manto e encontrou a Agulha na bainha. Apertou os dedos em volta do cabo, com mais força do que jamais tivera de usar. Por favor, deuses, mantenham-no a salvo, orou, Não permitam que façam mal ao meu pai.
O Alto Septão ajoelhou perante Joffrey e sua mãe.
- Como pecamos, assim sofremos - entoou, numa voz profunda e empolada, muito mais forte que a de Stark. - Este homem confessou seus crimes à vista dos deuses e dos homens, aqui neste lugar sagrado - arco-íris dançaram em volta de sua cabeça quando ergueu as mãos numa súplica. - Os deuses são justos, mas o Abençoado Baelor ensinou-nos que também são misericordiosos. O que será feito com este traidor, Vossa Graça?
Mil vozes gritavam, mas Arya não as ouviu. O Príncipe Joffrey... não, o Rei Joffrey... saiu de trás dos escudos de sua Guarda Real.
- Minha mãe pede-me que permita que Lorde Eddard vista o negro, e a Senhora Sansa suplicou misericórdia para o pai - olhou então à direita para Sansa e sorriu, e por um momento Arya pensou que os deuses tinham ouvido sua prece, até que Joffrey voltou a virar-se para a multidão e disse: - Mas elas têm coração suave de mulher. Enquanto eu for vosso rei, a traição nunca passará impune. Sor Ilyn, traga-me a cabeça dele.
A multidão rugiu, e Arya sentiu a estátua de Baelor balançar quando todas aquelas pessoas a empurraram. O Alto Septão agarrou a capa do rei, e Varys aproximou-se correndo, sacudindo os braços, e até a rainha estava lhe dizendo alguma coisa, mas Joffrey balançou a cabeça.
Senhores e cavaleiros afastaram-se quando ele passou, alto e descarnado, um esqueleto em cota de malha, o Magistrado do Rei. Indistintamente, mesmo que de uma grande distância, Arya ouviu a irmã gritar. Sansa caíra de joelhos, soluçando histericamente. Sor Ilyn Payne subiu os degraus do púlpito.
Arya contorceu-se entre os pés de Baelor e atirou-se sobre a multidão, puxando a Agulha, Caiu em cima de um homem com um avental de açougueiro, atirando-o ao chão. De imediato, alguém esbarrou em suas costas, e quase que ela própria caía também. Corpos apertavam-se em volta, tropeçando e empurrando, pisoteando o pobre açougueiro. Arya atacou-os com a Agulha.
Bem no alto do púlpito, Sor Ilyn Payne fez um gesto, e o cavaleiro de negro e dourado deu uma ordem. Os homens de manto dourado atiraram Lorde Eddard ao mármore, projetando-lhe a cabeça e o peito sobre a borda.
- Ei, você! - gritou uma voz irritada a Arya, mas ela passou rapidamente pelo homem, empurrando pessoas para o lado, esgueirando-se entre elas, batendo em qualquer um que atravessasse seu caminho. Uma mão tentou agarrar-lhe a perna, mas ela deu um pontapé na canela dele. Uma mulher tropeçou e Arya correu por cima das costas dela, atirando golpes para um lado e para o outro, mas não havia jeito, não havia jeito, havia gente demais, assim que abria um buraco, ele voltava a se fechar. Alguém a empurrou com uma bofetada. Ainda conseguia ouvir os gritos de Sansa.
Sor Ilyn puxou uma espada longa da bainha que usava atada às costas. Quando ergueu a lâmina acima da cabeça, a luz do sol pareceu ondular e dançar no metal escuro, tremeluzindo num gume mais afiado que qualquer navalha. Gelo, pensou Arya, ele tem Gelo!
Jorraram-lhe lágrimas pelo rosto, cegando-a. E então uma mão projetou-se da multidão e fechou-se em torno de seu braço como uma armadilha para lobos, com tanta força que a Agulha lhe saltou da mão. Arya foi erguida no ar. Teria caído se ele não a tivesse mantido suspensa com tanta facilidade como se fosse uma boneca. Um rosto aproximou-se do dela, cabelos negros e longos, uma barba emaranhada e dentes podres.
- Não olhe! - rosnou-lhe uma voz espessa.
- Eu... eu... eu... - soluçou Arya.
O velho a sacudiu com tanta força que a fez bater os dentes.
- Cala a boca e fecha os olhos, rapaz - indistintamente, como que vindo de uma grande distância, ouviu um... um ruído... um som suave como um suspiro, como se um milhão de pessoas tivesse expirado ao mesmo tempo. Os dedos do velho enterraram-se em seu braço, rígidos como ferro. - Olha para mim. Sim, é isso mesmo, para mim - vinho azedo perfumava-lhe o hálito. - Lembrou-se, rapaz?
Foi o cheiro que avivou a recordação. Arya viu os cabelos despenteados e oleosos, o remendado e empoeirado manto negro que lhe cobria os ombros tortos, os duros olhos negros que a olhavam de soslaio. E lembrou-se do irmão negro que viera visitar seu pai.
- Agora já me conhece? Ora, aí está um rapaz inteligente - cuspiu. - Isto aqui já acabou. Você vem comigo, e vai manter a boca calada - quando ela começou a responder, ele a sacudiu outra vez, ainda com mais força. - Eu disse calada.
A praça começava a esvaziar-se. A multidão dissolveu-se em volta deles à medida que as pessoas iam regressando às suas vidas. Mas a vida de Arya tinha desaparecido. Entorpecida, arrastou-se ao lado de... Yoren, sim, o nome dele é Yoren. Não se deu conta de ele ter encontrado a Agulha até lhe entregar a espada.
- Espero que saiba usar isso, rapaz.
- Eu não sou... - começou ela.
Ele a enfiou na reentrância de uma porta, enterrou-lhe dedos sujos nos cabelos e os torceu, puxando-lhe a cabeça para trás.
- ... não é um rapaz esperto, é isso o que quer dizer?
Tinha uma faca na outra mão. Quando a lâmina relampejou na direção de seu rosto, Arya atirou-se para trás, escoiceando desesperadamente, sacudindo a cabeça de um lado para o outro, mas ele a tinha presa pelos cabelos, com tanta força que sentia o couro cabeludo rasgar-se, e nos lábios o sabor salgado das lágrimas.  

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