terça-feira, 10 de setembro de 2013

64 - DAENERYS


As moscas voavam lentamente em volta de Khal Drogo, com as asas zumbindo, um ruído baixo, no limiar da audição, que enchia Dany de terror. O sol ia alto e impiedoso. O calor tremulava em ondas que subiam dos afloramentos rochosos de colinas baixas. Um estreito fio de suor escorria lentamente entre os seios inchados de Dany. Os únicos sons que se ouviam eram o ruído regular dos cascos dos cavalos, o tinir ritmado dos sinos nos cabelos de Drogo e as vozes distantes atrás deles.
Dany observou as moscas. Eram grandes como abelhas, volumosas, arroxeadas, brilhantes. Os dothrakis as chamavam de moscas de sangue. Viviam em pântanos e lagoas de águas paradas, sugavam sangue quer de homens quer de cavalos, e punham os ovos nos mortos e nos moribundos. Drogo as odiava. Sempre que alguma se aproximava dele, a mão disparava, rápida como um ataque de serpente, e fechava-se à sua volta. Nunca o vira falhar.
Mantinha a mosca dentro de seu enorme punho durante o tempo suficiente para ouvir seus frenéticos zumbidos. Depois, os dedos apertavam-se, e quando voltava a abrir a mão, a mosca era apenas uma mancha vermelha na palma. Agora, uma rastejava pela garupa de seu garanhão, e o cavalo deu uma sacudidela irritada na cauda para enxotá-la. As outras voaram em volta de Drogo, cada vez mais perto. O khal não reagiu. Os olhos fixavam-se em distantes colinas marrons, e as rédeas estavam soltas nas mãos. Sob o colete pintado, um emplastro de folhas de figueira e lama seca azul cobria a ferida que tinha no peito. As ervanárias o tinham feito. O cataplasma de Mirri Maz Duur ardia e provocava-lhe comichão, e ele o arrancara há seis dias, amaldiçoando-a e chamando-a de maegu O emplastro de lama era mais calmante, e as ervanárias fizeram também leite de papoula para ele. Tinha bebido muito nos últimos três dias; quando não era leite de papoula, era leite de égua fermentado ou cerveja picante.
Mas quase não tocava na comida, e agitava-se e gemia durante a noite. Dany via como seu rosto se tornara cansado. Rhaego estava inquieto dentro de sua barriga, dando pontapés como um garanhão, mas nem isso despertava o interesse de Drogo como antes. Todas as manhãs, os olhos dela encontravam novas rugas de dor em seu rosto quando acordava de seu sono perturbado. E agora aquele silêncio.
Estava ficando assustada. Desde que tinham montado, de madrugada, ele não dissera uma palavra. Quando ela falava, não obtinha nenhuma resposta além de um grunhido, e desde o meio-dia nem isso. Uma das moscas de sangue pousou na pele nua do ombro do khal. Outra, voando em círculos, pousou em seu pescoço e rastejou para cima, na direção da boca. Khal Drogo oscilava na sela, fazendo soar as campainhas, enquanto o garanhão prosseguia o caminho num passo regular. Dany empurrou os calcanhares contra a sua prata e aproximou-se.
- Senhor - disse em voz suave. - Drogo. Meu sol-e-estrelas.
Ele não pareceu ouvir. A mosca de sangue rastejou para baixo do bigode pendente e instalou-se na prega ao lado do nariz. Dany arfou:
- Drogo - estendeu a mão, desajeitadamente, e tocou seu braço.
Khal Drogo cambaleou sobre a sela, inclinou-se devagar, e caiu pesadamente do cavalo. As moscas espalharam-se por um segundo, e depois regressaram, aos círculos, pousando em cima dele.
- Não - disse Dany, puxando as rédeas. Sem prestar atenção à barriga pela primeira vez, saltou do cavalo e correu para ele. A erva em sua pele estava marrom e seca. Drogo gritou de dor quando Dany se ajoelhou a seu lado. A respiração raspava-lhe, áspera, na garganta, e ele olhou para ela sem reconhecê-la.
- Meu cavalo - arquejou. Dany enxotou as moscas de seu peito, esmagando uma como ele teria feito. A pele dele ardia sob seus dedos.
Os companheiros de sangue do khal seguiam logo atrás. Dany ouviu Haggo gritar enquanto se aproximava a galope. Cohollo saltou do cavalo.
- Sangue do meu sangue - disse, enquanto caía de joelhos. Os outros dois continuaram montados.
- Não - grunhiu Khal Drogo, lutando nos braços de Dany. - Tenho de montar. Montar. Não.
- Ele caiu do cavalo - disse Haggo, olhando fixamente para baixo. O largo rosto estava impassível, mas a voz era de chumbo.
- Não deve dizer isso - disse-lhe Dany. - Já avançamos o bastante hoje. Acamparemos aqui.
- Aqui? - Haggo olhou em volta. A terra era parda e ressequida, inóspita. - Isto não é lugar para acampar.
- Não cabe a uma mulher nos pedir para parar - disse Qotho - nem mesmo uma khaleesi.
- Acampamos aqui - repetiu Dany. - Haggo, diga-lhes que Khal Drogo ordenou a parada. Se alguém perguntar por que, diga que o meu tempo se aproxima e não consigo prosseguir. Cohollo, traga os escravos, eles devem montar a tenda do khal de imediato. Qotho...
- Não me dê ordens, khaleesi - disse Qotho.
- Procure Mirri Maz Duur - disse-lhe ela. A esposa de deus devia estar entre os outros Homens-Ovelhas, na longa coluna de escravos. - Traga-a até mim com o seu cofre.
Qotho lançou-lhe um olhar intenso, com os olhos duros como sílex,
- A maegi - cuspiu. - Não farei isso.
- Fará - disse Dany - senão, quando Drogo acordar, saberá por que razão me desafiou.
Furioso, Qotho virou o garanhão e afastou-se a galope... mas Dany sabia que regressaria com Mirri Maz Duur, por mais que não gostasse disso. Os escravos erigiram a tenda de Khal Drogo sob um afloramento recortado de rocha negra cuja sombra providenciava algum alívio do calor do sol da tarde.
Mesmo assim, estava sufocante sob a sedareia quando Irri e Doreah ajudaram Dany a amparar Drogo até o interior da tenda. Espessos tapetes ornamentados tinham sido colocados sobre o chão, e almofadas estavam espalhadas pelos cantos.
Eroeh, a jovem tímida que Dany salvara fora das muralhas de barro dos Homens-Ovelhas, acendeu um braseiro. Estenderam Drogo em uma esteira trançada.
- Não - resmungou ele no Idioma Comum. - Não, não - foi tudo o que disse, tudo o que parecia capaz de dizer.
Doreah desprendeu seu cinto de medalhões e o despiu do colete e dos calções, enquanto Jhi-qui ajoelhava junto a seus pés para desatar os nós das sandálias de montar. Irri quis deixar as abas da tenda abertas para a aragem poder entrar, mas Dany a proibiu. Não queria que ninguém visse Drogo assim, em delírio e fraco. Quando o seu khas chegou, manteve-os lá fora, de guarda.
- Não deixe entrar ninguém sem a minha licença - disse a Jhogo. - Ninguém.
Eroeh fitou Drogo, temerosa.
- Ele morre - sussurrou.
Dany a esbofeteou.
- O khal não pode morrer. Ele é o pai do garanhão que monta o mundo. Seu cabelo nunca foi cortado. Ainda usa as campainhas que o pai lhe deu.
- Khaleesi - disse Jhiqui - ele caiu do cavalo.
Tremendo, com os olhos subitamente cheios de lágrimas, Dany virou o rosto para elas. Ele caiu do cavalo! Tinha acontecido, ela tinha visto, e os companheiros de sangue, e sem dúvida que as aias e os homens de seu khas também. Quantos mais? Não podia manter segredo, e Dany sabia o que isso queria dizer. Um khal que não conseguia montar não conseguia governar, e Drogo caíra do cavalo.
- Temos de lhe dar banho - disse ela teimosamente. Não podia permitir-se o desespero. -Irri, manda que tragam a banheira imediatamente. Doreah, Eroeh, encontrem água, água fria, ele está tão quente - era uma fogueira em pele humana.
As escravas instalaram a pesada banheira de cobre no canto da tenda. Quando Doreah trouxe o primeiro jarro de água, Dany umedeceu um pano de seda e o pousou na testa de Drogo, sobre a pele que queimava. Os olhos dele olharam para ela, mas não a viram. Quando a boca se abriu, não deixou escapar nenhuma palavra, só um gemido.
- Onde está Mirri Maz Duur? - ela exigiu saber, com a paciência encurtada pelo medo.
- Qotho há de encontrá-la - disse Irri.
As aias encheram a banheira com água tépida que fedia a enxofre, purificando-a com jarros de óleo amargo e punhados de folhas esmagadas de menta. Enquanto o banho era preparado, Dany ajoelhou-se desajeitadamente ao lado do senhor seu marido, a barriga inchada com o filho de ambos lá dentro. Desfez-lhe a trança com dedos ansiosos, como fizera na noite em que ele a possuíra pela primeira vez, sob as estrelas. Pôs de lado as campainhas com cuidado, uma a uma. Ele iria querê-las de novo quando estivesse bem, disse Dany a si mesma. Um sopro de ar entrou na tenda quando Aggo enfiou a cabeça através da seda.
- Khaleesi - disse - o ândalo chegou e pede licença para entrar.
"O ândalo" era como os dothrakis chamavam Sor Jorah.
- Sim - disse ela, erguendo-se desajeitadamente - mande-o entrar - confiava no cavaleiro. Ele saberia o que fazer se mais ninguém soubesse.
Sor Jorah Mormont entrou, baixando a cabeça sob a aba da entrada da tenda, e esperou um momento para que os olhos se ajustassem à escuridão. No feroz calor do sul, usava calças largas de sedareia de várias cores e sandálias abertas de montar atadas ao joelho. A bainha de sua espada pendia de um cinto de pelo de cavalo trançado. Sob um colete branqueado, o peito estava nu, com a pele vermelha pelo sol.
- Fala-se ao ouvido por todo o khalasar - disse ele. - Dizem que Khal Drogo caiu do cavalo.
- Ajude-o - suplicou Dany. - Pelo amor que diz ter por mim, ajude-o agora.
O cavaleiro ajoelhou a seu lado. Olhou para Drogo com atenção durante muito tempo e depois virou os olhos para Dany.
- Mande as aias embora.
Sem palavras, com a garganta apertada pelo medo, Dany fez um gesto. Irri empurrou as outras para fora da tenda. Quando ficaram a sós, Sor Jorah puxou o punhal. Habilmente, com uma delicadeza surpreendente para um homem tão grande, começou a raspar do peito de Drogo as folhas negras e a lama seca azul. O emplastro tornara-se tão duro como os muros de barro dos Homens-Ovelhas, e, tal como esses muros, rachava facilmente. Sor Jorah quebrou a lama seca com a faca, afastou os pedaços da pele, puxou as folhas uma a uma. Um cheiro doce e desagradável elevou-se da ferida, tão forte que quase a sufocou. As folhas estavam cobertas de sangue e pus, e o peito de Drogo, negro e cintilante de decomposição.
- Não - sussurrou Dany enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto. - Não, por favor, deuses, ouçam-me, não.
Khal Drogo agitou-se, lutando contra algum inimigo invisível. O sangue escorreu, lento e espesso, da ferida aberta.
- Vosso khal é um homem morto, princesa.
- Não, ele não pode morrer, não pode, era. só um corte - Dany tomou a grande mão calosa de Drogo em suas mãos pequenas e apertou-a com força. - Não deixarei que morra...
Sor Jorah soltou uma gargalhada amarga.
- Kholeesi ou rainha, essa ordem está para lá do seu poder. Poupe as lágrimas, menina. Chore por ele amanhã, ou daqui a um ano. Não temos tempo para o luto. Temos de partir, e depressa, antes que morra.
Dany não compreendeu.
- Partir? Para onde partiríamos?
- Para Asshai, diria eu. Fica bem para o sul, no fim do mundo conhecido, mas os homens dizem que é um grande porto. Encontraremos um navio que nos leve de volta a Pentos. Será uma viagem dura, não tenha ilusões. Confia em seu khasí Virão conosco?
- Khal Drogo ordenou-lhes que me mantivessem a salvo - respondeu Dany em tom inseguro - mas se morrer... - tocou o inchaço na barriga. - Não compreendo. Por que haveríamos de fugir? Sou khaleesi. Estou grávida do herdeiro de Drogo. Ele será khal após Drogo...
Sor Jorah franziu as sobrancelhas.
- Princesa, escute-me. Os dothrakis não seguirão um bebê de peito. Eles se curvavam perante a força de Drogo, e só perante isso. Quando ele desaparecer, Jhaqo, Pono e o outro kos lutarão pelo seu lugar, e seu khalasar se devorará. O vencedor não quererá rivais. O rapaz será tirado de seu seio no momento em que nascer. Eles o darão aos cães.
Dany abraçou-se.
- Mas por quê? - gritou com voz queixosa. - Por que haveriam de matar um bebezinho?
- É filho de Drogo, e as feiticeiras dizem que será o garanhão que monta o mundo. Foi profetizado. E melhor matar a criança do que se arriscar à sua fúria quando crescer até ser homem.
O bebê deu um pontapé, como se tivesse ouvido. Dany recordou a história que Viserys lhe contara sobre o que os cães do Usurpador tinham feito aos filhos de Rhaegar. O filho dele também fora um bebê, e mesmo assim o tinham arrancado do peito da mãe e esmagado a cabeça contra uma parede. Assim eram os costumes dos homens.
- Não podem fazer mal ao meu filho! - gritou. - Ordenarei ao meu khas que o mantenha a salvo, e os companheiros de sangue de Drogo irão...
Sor Jorah agarrou-a pelos ombros.
- Um companheiro de sangue morre com o seu khal Sabe disso, filha. É certo que o levarão para Vaes Dothrak, para as feiticeiras, é o último dever que têm para com ele em vida... quando o cumprirem, se juntarão a Drogo nas terras da noite.
Dany não queria voltar para Vaes Dothrak e viver o resto da vida entre aquelas terríveis velhas, mas sabia que o cavaleiro falava a verdade. Drogo fora mais que o seu sol-e-estrelas; fora o escudo que a mantivera a salvo.
- Não deixarei que isso aconteça - disse ela teimosamente, numa voz infeliz. Voltou a pegar-lhe a mão. - Não deixarei. Uma agitação na aba da tenda fez Dany virar a cabeça. Mirri Maz Duur entrou, com uma profunda reverência. Dias de marcha atrás do khalasar a tinham deixado coxa e exausta, com bolhas sangrentas nos pés e covas sob os olhos. Atrás dela entraram Qotho e Haggo, transportando o cofre da esposa de deus entre ambos. Quando os companheiros de sangue repararam na ferida de Drogo, o cofre deslizou dos dedos de Haggo e tombou ao chão da tenda, e Qotho soltou uma praga tão forte que empestou o ar.
Mirri Maz Duur estudou Drogo, mantendo o rosto imóvel e morto.
- A ferida ulcerou.
- Isto é trabalho seu, maegi - disse Qotho. Haggo atirou o punho contra o queixo de Mirri com um estalo carnudo que a jogou ao chão. Depois a pontapeou.
- Pare com isso! - gritou Dany.
Qotho afastou Haggo da mulher, dizendo:
- Pontapés são muita misericórdia para uma maegi. Leve-a lá para fora. Vamos prendê-la a uma estaca, para que sirva de montaria a todos os homens que passarem por ela. E quando já nenhum a quiser, os cães a usarão também. Doninhas rasgarão suas entranhas e gralhas pretas se deliciarão com seus olhos. As moscas do rio depositarão os ovos no ventre dela e beberão pus das ruínas de seus seios... - enterrou dedos duros como ferro na carne mole e oscilante do braço da esposa de deus e a pôs em pé.
- Não - disse Dany. - Não a quero machucada.
Os lábios de Qotho mostraram seus dentes tortos e escuros numa terrível caricatura de sorriso.
- Não? Diz a mim que não? É melhor que reze para não a prendermos ao lado da sua maegi. Você fez isto, tanto como ela.
Sor Jorah interpôs-se, desapertando a espada na bainha.
- Puxe as rédeas da língua, companheiro de sangue. A princesa ainda é sua khaleesi.
- Só enquanto o sangue-do-meu-sangue sobreviver - disse Qotho ao cavaleiro. - Quando morrer, não será nada.
Dany sentiu um aperto dentro de si.
- Antes de ser khaleesi, era do sangue do dragão. Sor Jorah, chame o meu khas.
- Não - disse Qotho. - Nós saímos. Por enquanto... khaleesi - Haggo seguiu-o, carrancudo.
- Aquele a quer mal, princesa - disse Mormont. - Os dothrakis acreditam que um homem e os seus companheiros de sangue partilham uma vida, e Qotho a vê terminar. Um homem morto está para lá do medo.
- Ninguém morreu - disse Dany. - Sor Jorah, posso precisar da sua lâmina. É melhor colocar a armadura - estava mais assustada do que se atrevia a admitir, até para si mesma.
O cavaleiro fez uma reverência.
- Às suas ordens - saiu a passos largos da tenda.
Dany virou-se para Mirri Maz Duur. Os olhos da mulher estavam atentos.
- E assim me salvou outra vez.
- E agora você tem de salvá-lo - disse Dany. - Por favor...
- Não se pede a uma escrava - respondeu bruscamente Mirri - ordena - aproximou-se de Drogo, que ardia sobre a esteira, e olhou longamente para a ferida. - Pedir ou ordenar, não faz diferença. Ele está para lá das capacidades de um curandeiro - os olhos do khal estavam fechados. Ela abriu um com os dedos. - Tem atenuado a dor com leite de papoula.
- Sim - Dany admitiu.
- Fiz-lhe um cataplasma de vagem-de-fogo e não-me-piques, e atei-o com uma pele de ovelha.
- Ele dizia que ardia. Arrancou-o. As ervanárias fizeram-lhe uma nova, úmida e calmante.
- Sim, ardia. Há grande magia curativa no fogo, até seus homens sem cabelo sabem disso.
- Faça um novo cataplasma - pediu Dany. - Desta vez eu asseguro que ele não o arrancará.
- O tempo para isso passou, senhora - disse Mirri. - Tudo o que posso fazer agora é tornar mais fácil o escuro caminho que ele tem a percorrer, para que possa cavalgar sem dor para as terras da noite. Terá partido pela manhã.
As palavras da mulher foram como uma faca espetada no peito de Dany. Que tinha ela feito para tornar os deuses tão cruéis? Por fim encontrara um lugar seguro, e por fim experimentara o amor e a esperança. Finalmente estava a caminho de casa. E agora perdia tudo...
- Não - suplicou. - Salve-o, e juro que a liberto. Deve conhecer uma maneira... alguma magia, algum...
Mirri Maz Duur apoiou o peso nos calcanhares e estudou Daenerys com os olhos negros como a noite.
- Existe um feitiço - a voz era silenciosa, pouco mais que um suspiro. - Mas é duro, senhora, e escuro. Alguns diriam que a morte é mais limpa. Aprendi-o em Asshai, e paguei caro pela lição. Meu professor foi um mago de sangue vindo das Terras da Sombra.
Dany sentiu-se congelar.
- Então você é mesmo uma maegi...
- Serei? - Mirri Maz Duur sorriu. - Só uma maegi pode salvar o seu cavaleiro agora, Senhora de Prata.
- Não há nenhuma outra maneira?
- Nenhuma.
Khal Drogo soltou um arquejo trêmulo.
- Faça-o - exclamou Dany. Não podia ter medo, era do sangue do dragão. - Salve-o.
- Há um preço - preveniu-a a esposa de deus.
- Terá ouro, cavalos, o que quiser.
- Não é questão de ouro ou cavalos. Isto é magia de sangue, senhora. Só a morte pode pagar a vida.
- A morte? - Dany enrolou protetoramente os braços em torno de si própria e balançou para trás e para a frente sobre os calcanhares. - A minha morte? - disse a si mesma que morreria por ele se tivesse de ser. Era do sangue do dragão, não teria medo. O irmão Rhaegar morrera pela mulher que amava.
- Não - prometeu Mirri Maz Duur. - Sua morte, não, khaleesi.
Dany tremeu de alívio.
- Faça-o.
A maegi anuiu solenemente.
- Será feito como diz. Chame seus servos.
Khal Drogo contorceu-se debilmente quando Rakharo e Quaro o puseram no banho.
- Não - murmurou - não. Tenho de montar - uma vez dentro da água, toda a força pareceu escoar-se de seu corpo.
- Traga seu cavalo - ordenou Mirri Maz Duur, e foi o que fizeram. Jhiqui levou o grande garanhão vermelho para o interior da tenda. Quando o animal sentiu o cheiro da morte, relinchou e recuou, revirando os olhos. Foram precisos três homens para subjugá-lo.
- Que pretende fazer? - perguntou Dany.
- Precisamos do sangue - respondeu Mirri. - É este o caminho.
Jhogo afastou-se com cautela, com a mão sobre o arakh. Era um jovem de dezesseis anos, magro como um chicote, destemido, de riso fácil, com a leve sombra do primeiro bigode no lábio superior. Caiu de joelhos perante ela.
- Khaleesi - suplicou - não deve fazer isto. Deixe-me matar esta maegi.
- Se a matar, matará o seu khal - disse Dany.
- Isto é magia de sangue - disse ele. - É proibido.
- Sou khaleesi, e digo que não é proibido. Em Vaes Dothrak, Khal Drogo matou um garanhão e eu comi seu coração, para dar a nosso filho força e coragem. Isto é a mesma coisa. A mesma.
O garanhão escoiceou e recuou quando Rakharo, Quaro e Aggo o puxaram para perto da banheira onde o khal flutuava como seja estivesse morto, com sangue e pus escorrendo da ferida para ir sujar as águas. Mirri Maz Duur entoou um cântico com palavras numa língua que Dany não conhecia, e uma faca surgiu-lhe na mão. Dany não chegou a ver de onde a retirara. Parecia velha; bronze vermelho batido, em forma de folha, com a lâmina coberta de antigos glifos. A maegi rasgou com ela a garganta do garanhão, sob sua nobre cabeça, e o cavalo gritou e estremeceu enquanto o sangue jorrava numa torrente vermelha. Teria caído, mas os homens do khas de Dany mantiveram-no sobre as patas.
- Força da montaria, passa para o cavaleiro - cantou Mirri enquanto o sangue do cavalo rodopiava para dentro das águas do banho de Drogo. - Força do animal, passa para o homem.
Jhogo parecia aterrorizado enquanto lutava contra o peso do garanhão, com medo de tocar na carne morta, mas também com medo de largar. É só um cavalo, pensou Dany. Se podia comprar a vida de Drogo com a morte de um cavalo, pagaria esse preço mil vezes.
Quando deixaram o garanhão cair, o banho estava vermelho-escuro, e nada se via de Drogo a não ser o rosto, Mirri Maz Duur não precisava da carcaça.
- Queime-a - disse-lhes Dany. Sabia que era o que faziam. Quando um homem morria, a montaria era morta e colocada sob o seu corpo na pira funerária, a fim de transportá-lo para as terras da noite. Os homens do seu khas arrastaram a carcaça para fora da tenda. Havia sangue por todo lado. Até as paredes de sedareia estavam manchadas de vermelho, e as esteiras sob seus pés estavam negras e úmidas.
Foram acesos braseiros. Mirri Maz Duur atirou um pó vermelho sobre os carvões. Dava à fumaça um odor de especiaria, um cheiro bastante agradável, mas Eroeh fugiu aos soluços, e Dany encheu-se de medo. Mas fora longe demais para voltar atrás agora. Mandou as aias embora.
- Vá com elas, Senhora de Prata - disse-lhe Mirri Maz Duur.
- Eu fico - disse Dany. - O homem possuiu-me sob as estrelas e deu vida à criança que trago dentro de mim. Não o abandonarei.
- É preciso sair. Quando eu começar a cantar, ninguém deve entrar nesta tenda. A canção acordará poderes antigos e escuros. Os mortos dançarão aqui esta noite. Nenhum vivente deve vê-los.
Dany inclinou a cabeça, impotente.
- Ninguém entrará - dobrou-se sobre a banheira, sobre Drogo e seu banho de sangue, e o beijou suavemente na testa. - Traga-o de volta para mim - sussurrou a Mirri Maz Duur antes de sair.
Lá fora, o sol estava baixo no horizonte, e o céu era de um vermelho ferido. O khalasar acampara. Havia tendas e esteiras de dormir até onde o olhar chegava. Soprava um vento quente. Jhogo e Aggo cavavam um buraco de fogo para incinerar o garanhão morto.
Reunira-se uma multidão para olhar para Dany com olhos negros e duros, com rostos como máscaras de cobre martelado. Viu Sor Jorah Mormont, trazendo agora cota de malha e couro, com a larga testa de quem vai perdendo cabelo salpicada de suor. Ele abriu caminho aos empurrões por entre os dothrakis para se pôr ao lado de Dany. Quando viu as pegadas escarlates que as botas dela tinham deixado no chão, a cor pareceu esvair do seu rosto.
- O que fez, pequena louca? - perguntou ele em voz rouca.
- Tinha de salvá-lo.
- Podíamos ter fugido - disse ele. - Podia tê-la levado a salvo até Asshai, princesa. Não havia necessidade...
- Sou mesmo sua princesa? - ela perguntou.
- Sabe que sim, que os deuses nos salvem a ambos.
- Então me ajude agora.
Sor Jorah fez uma careta.
- Bem gostaria de saber como.
A voz de Mirri Maz Duur ergueu-se num lamento agudo e ululante, fazendo passar um arrepio pelas costas de Dany. Alguns dos dothrakis começaram a resmungar e a recuar. A tenda brilhava com a luz vinda dos braseiros que tinha no interior. Através da sedareia salpicada de sangue, Dany viu sombras que se moviam. Mirri Maz Duur dançava, e não estava só. Dany viu um medo nu no rosto dos dothrakis.
- Isto não pode ser - trovejou Qotho.
Não vira o companheiro de sangue voltar. Tinha Haggo e Cohollo com ele. Haviam trazido os homens sem cabelo, os eunucos que curavam com facas, agulhas e fogo.
- Isto será - respondeu Dany.
- Maegi - rosnou Haggo. E o velho Cohollo, o Cohollo que ligara a vida à de Drogo no dia de seu nascimento, o Cohollo que sempre fora bondoso com ela, cuspiu-lhe em cheio na cara.
- Morrerá, maegi - prometeu Qotho - mas a outra tem de morrer primeiro - puxou o arakh e dirigiu-se à tenda.
- Não - gritou Dany - não pode - pegou-o pelo ombro, mas Qotho a empurrou. Dany caiu de joelhos, cruzando os braços sobre a barriga para proteger a criança que tinha lá dentro. - Parem-no - ordenou ao seu khas - matem-no.
Rakharo e Quaro encontravam-se ao lado da aba da tenda. Quaro deu um passo em frente, levando a mão ao cabo do chicote, mas Qotho rodopiou, gracioso como uma bailarina, fazendo subir o arakh curvo. A lâmina apanhou Quaro debaixo do braço, o brilhante aço afiado cortou couro e pele, músculo e osso da costela. Sangue jorrou quando o jovem cavaleiro cambaleou para trás, arquejando.
Qotho libertou a lâmina.
- Senhor dos cavalos - chamou Sor Jorah Mormont. - Tente comigo - a espada longa deslizou de sua bainha.
Qotho girou, praguejando. O arakh moveu-se tão depressa que o sangue de Quaro foi projetado num borrifo fino, como chuva em vento quente. A espada o parou a trinta centímetros do rosto de Sor Jorah, e segurou-o, estremecendo por um instante enquanto Qotho uivava de fúria. O cavaleiro estava revestido por cota de malha, com manoplas e grevas de aço articulado e um pesado gorjal em volta da garganta, mas não se lembrara de colocar o elmo.
Qotho dançou para trás, fazendo girar o arakh por cima da cabeça num borrão cintilante, brilhando como um relâmpago, quando o cavaleiro arremeteu numa investida. Sor Jorah fez a melhor parada que foi capaz, mas os golpes sucediam-se tão depressa que parecia a Dany que Qotho tinha quatro arakhs em outras tantas mãos. Ouviu o barulho de uma espada atingir uma cota de malha, viu faíscas saltarem quando a longa lâmina curva atingiu de raspão uma manopla. De repente, era Mormont quem tropeçava para trás e Qotho que saltava para um ataque. A face esquerda do cavaleiro ficou vermelha de sangue e um golpe abriu uma fenda na cota de malha e o deixou coxeando. Qotho gritou insultos, chamando-o de covarde, homem de leite, eunuco em traje de ferro.
- Vai morrer agora! - prometeu, com o arakh tremendo no ocaso vermelho. Dentro do ventre de Dany, o filho deu um pontapé selvagem. A lâmina curva esquivou-se à direita e mordeu profundamente a anca do cavaleiro, onde a cota de malha fora cortada.
Mormont grunhiu, tropeçou. Dany sentiu uma dor aguda na barriga, uma sensação úmida nas coxas. Qotho berrou de triunfo, mas seu arakh batera em osso, e durante meio segundo ficou preso.
Foi o bastante. Sor Jorah fez cair sua espada com toda a força que lhe restava, fazendo-a cortar pele, músculo e osso, e o braço de Qotho pendeu solto, balançando, preso a um fino cordão de pele e tendões. O golpe seguinte do cavaleiro foi dirigido à orelha do dothraki, e levava tanta fúria que pareceu que a cara de Qotho explodiria.
Os dothrakis gritavam, Mirri Maz Duur uivava dentro da tenda como se não tivesse nada de humano, Quaro pedia água enquanto morria. Dany gritou por ajuda, mas ninguém a ouviu. Rakharo lutava com Haggo, arakh dançando com arakh, até que o chicote de Jhogo estalou, sonoro como um trovão, enrolando-se em volta da garganta de Haggo. Um puxão, e o companheiro de sangue tropeçou para trás, perdendo o equilíbrio e a espada. Rakharo saltou para a frente, uivando, empurrando o arakh para baixo com ambas as mãos através do topo da cabeça de Haggo. A ponta prendeu-se entre os olhos, vermelha, estremecendo. Alguém atirou uma pedra, e, quando Dany viu, tinha o ombro rasgado e ensanguentado.
- Não - chorou - não, por favor, parem, é demais, o preço é demais - mais pedras vieram pelo ar. Tentou rastejar na direção da tenda, mas Cohollo a segurou. Com os dedos em seus cabelos, puxou sua cabeça para trás, e Dany sentiu o frio toque da faca na garganta. - Meu bebê - gritou, e os deuses talvez tivessem ouvido, pois, no mesmo instante, Cohollo morreu. A seta de Aggo atingiu-o debaixo do braço e trespassou-lhe os pulmões e o coração.
Quando por fim Daenerys encontrou forças para erguer a cabeça, viu a multidão se dispersar; os dothrakis se esgueirando em silêncio de volta às suas tendas e esteiras de dormir. Alguns selavam cavalos, montavam e afastavam-se. O sol se pusera. Fogueiras ardiam por todo o khalasar; grandes chamas cor de laranja que crepitavam com fúria e cuspiam fagulhas para o céu.
Tentou erguer-se, mas uma dor imensa capturou-a e a esmagou como o punho de um gigante. Ficou sem fôlego; não conseguiu fazer mais que arquejar. O som da voz de Mirri Maz Duur era como uma poesia fúnebre. Dentro da tenda, as sombras rodopiavam. Sentiu um braço sob a cintura, e Sor Jorah a ergueu. Tinha o rosto pegajoso de sangue, e Dany viu que metade de sua orelha tinha desaparecido. Contorceu-se em seus braços quando a dor voltou e ouviu o cavaleiro gritar para que as aias o ajudassem. Todos têm tanto medo assim? Conhecia a resposta. Outra dor a assaltou, e Dany reprimiu um grito. Era como se o filho tivesse uma faca em cada mão, como se estivesse golpeando-a para abrir caminho para o exterior.
- Doreah, maldita seja - rugiu Sor Jorah. - Ande. Vá buscar as parteiras.
- Elas não virão. Dizem que ela está amaldiçoada.
- Se não vierem, arranco-lhes a cabeça.
- Elas se foram, senhor - chorou Doreah.
- A maegi - disse alguém. Teria sido Aggo? - Leve-a à maegi.
Não, quis dizer Dany, não, isso não, não podem, mas quando abriu a boca, escapou dela um longo lamento de dor, e surgiu suor em sua pele. Que se passa com eles, não veem? Dentro da tenda, as formas dançavam, escuras contra a sedareia, rodeando o braseiro e o banho sangrento, e algumas não pareciam humanas. Vislumbrou a sombra de um grande lobo, e outra que era como um homem envolvido em chamas.
- A Mulher-Ovelha conhece os segredos da cama de partos - disse Irri. - Foi ela que disse, eu a ouvi dizer.
- Sim - concordou Doreah - também a ouvi.
Não, gritou Dany, ou talvez tivesse apenas pensado em gritar, pois nem um sussurro lhe escapou dos lábios. Agora a levavam. Seus olhos abriram-se para um céu vazio e morto, negro, triste e sem estrelas. Por favor, não. O som da voz de Mirri Maz Duur ficou mais forte até encher o mundo. As formas!, gritou. Os dançarinos!
Sor Jorah entrou com ela na tenda.  

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