terça-feira, 10 de setembro de 2013

71 - CATELYN


Parecia terem se passado mil anos desde que Catelyn Stark levara o filho bebê de Correrrio, atravessando o Pedregoso num pequeno barco para dar início à viagem para o norte até Winterfell. E era pelo Pedregoso que regressavam agora para casa, embora o rapaz vestisse armadura e cota de malha em vez de cueiros.
Robb estava sentado à proa com Vento Cinzento, descansando a mão na cabeça do lobo gigante enquanto os remadores puxavam os remos. Theon Greyjoy encontrava-se com ele. O tio Brynden vinha depois no segundo barco, com Grande-Jon e Lorde Karstark.
Catelyn ocupou um lugar perto da popa. Correram pelo Pedregoso, deixando a forte corrente empurrá-los para lá da Torre da Roda. O trovejar da grande roda de água que havia lá dentro era um som de infância que trouxe um sorriso triste ao rosto de Catelyn. Das muralhas de arenito do castelo, soldados e criados gritavam o nome dela, e o de Robb, e "Winterfell!". Em todos os baluartes esvoaçava o estandarte da Casa Tully: uma truta saltante, de prata, em fundo ondulado de azul e vermelho. Era uma visão estimulante; no entanto, não lhe alegrava o coração. Gostaria de saber se o coração voltaria a alegrar-se algum dia. Ah, Ned...
Abaixo da Torre da Roda descreveram uma curva larga e cortaram as águas agitadas. Os homens puseram os ombros no esforço. O arco largo do Portão da Água surgiu à vista, e Catelyn ouviu o tinir de pesadas correntes quando a grande porta levadiça de ferro foi içada. Ergueu-se lentamente enquanto se aproximavam, e Catelyn viu que a parte de baixo estava vermelha de ferrugem. Os trinta centímetros inferiores pingaram lama sobre eles quando passaram por baixo, com as pontas farpadas a meros centímetros de suas cabeças.
Catelyn ergueu o olhar para as barras e se perguntou até que profundidade iria a ferrugem, como aguentaria a porta levadiça um aríete e se deveria ser substituída. Nos dias que corriam, era raro que pensamentos como aquele andassem longe de sua mente.
Passaram sob o arco e as muralhas, saindo do sol para a sombra e de novo para o sol. Havia barcos, grandes e pequenos, amarrados em toda a volta, presos a anéis de ferro incrustados na pedra. Os guardas do pai esperavam com o irmão na escada da água. Sor Edmure Tully era um jovem troncudo, de cabelos ruivos desgrenhados e barba cor de fogo. Sua placa de peito tinha arranhões e deformações de batalha, e o manto azul e vermelho estava manchado de sangue e de fumaça. Tinha ao lado Lorde Tytos Blackwood, um homem duro e espigado, de suíças cinzentas cortadas rente e nariz adunco. Sua armadura, de um amarelo vivo, era incrustada de azeviche em elaborados padrões que lembravam trepadeiras e folhas, e um manto feito de penas de corvo envolvia os ombros magros. Fora Lorde Tytos quem liderara a investida que arrancara o irmão de Catelyn do acampamento Lannister.
- Traga-os - ordenou Sor Edmure. Três homens precipitaram-se pelas escadas, entraram na água até os joelhos e puxaram o barco para perto com longos ganchos. Quando Vento Cinzento saltou para a terra, um deles deixou cair o cabo e cambaleou para trás, tropeçando e sentando-se abruptamente no rio. Os outros riram, e o homem ficou com expressão envergonhada.
Theon Greyjoy saltou por cima da borda do barco e ergueu Catelyn pela cintura, pousando-a num degrau seco acima dele enquanto a água lhe batia nas botas.
Edmure desceu os degraus para abraçá-la.
- Querida irmã - murmurou com voz rouca. Possuía profundos olhos azuis e uma boca feita para sorrisos, mas agora não sorria. Parecia desgastado e cansado, consumido pela batalha e macilento de tensão. Tinha um curativo no pescoço, no local onde fora ferido. Catelyn o abraçou com toda a força.
- Sua dor é minha, Cat - disse quando se separaram. - Quando soubemos o que aconteceu a Lorde Eddard... os Lannister pagarão, juro, terá a sua vingança.
- Isso me trará Ned de volta? - ela disse em tom cortante. A ferida ainda era demasiado recente para palavras mais suaves. Agora não conseguia pensar em Ned. Não queria. Não seria bom. Tinha de ser forte. - Tudo isso pode esperar. Tenho de ver meu pai.
- Ele a espera em seu aposento privado - disse Edmure.
- Lorde Hoster está acamado, senhora - explicou o intendente do pai. Quando ficara aquele bom homem tão grisalho? - Deu-me instruções para levá-la até ele imediatamente.
- Eu a levo - Edmure a acompanhou pela escada da água e pela muralha inferior, onde Petyr Baelish e Brandon Stark tinham no passado cruzado espadas pela sua estima. As maciças muralhas de arenito da fortaleza erguiam-se ao redor. Ao atravessarem uma porta, entre dois guardas com elmos encimados por peixes, ela perguntou:
- Como está ele? - já temendo a resposta enquanto pronunciava as palavras.
O olhar de Edmure era melancólico.
- Os meistres dizem que não ficará conosco muito tempo. A dor é... constante, e atroz.
Uma raiva cega a devastou, uma raiva contra o mundo inteiro, contra o irmão Edmure e a irmã Lysa, contra os Lannister, contra os meistres, contra Ned e contra o pai e contra os deuses monstruosos que queriam lhe roubar os dois.
- Devia ter me contado - disse. - Devia ter enviado uma mensagem assim que soube.
- Ele nos proibiu. Não queria que os inimigos soubessem que estava morrendo. Com o reino tão perturbado, temeu que, se os Lannister soubessem como estava frágil...
- ... pudessem atacar? - terminou Catelyn, dura. Foi obra sua, sua, sussurrou uma voz dentro dela. Se não tivesse decidido capturar o anão...
Subiram em silêncio a escada em espiral.
A fortaleza tinha três lados, como o próprio Correrrio, e o aposento privado de Lorde Hoster era também triangular, com uma varanda de pedra que se projetava ao leste como se fosse a proa de um grande navio de arenito. Dali, o senhor do castelo podia olhar de cima para as suas muralhas e ameias, e para lá delas, para onde as águas se encontravam. Tinham posto a cama do pai na varanda.
- Ele gosta de ficar ao sol, observando os rios - explicou Edmure. - Pai, olhe quem eu trouxe. Cat veio vê-lo...
Hoster Tully sempre fora um homem grande, alto e largo na juventude, corpulento quando envelheceu. Agora parecia encolhido, com o músculo e a carne arrancados dos ossos. Até o rosto cedera. Da última vez que Catelyn o vira, os cabelos e a barba eram castanhos, profusamente grisalhos. Agora tinham se tornado brancos como a neve. Os olhos dele se abriram ao som da voz de Edmure.
- Gatinha - murmurou numa voz fraca e fina, arruinada pela dor. - Minha gatinha - um sorriso trêmulo tocou-lhe o rosto enquanto a mão procurava a dela às apalpadelas.
- Fiquei à sua espera...
- Vou deixados conversar - disse o irmão, beijando suavemente o senhor seu pai na testa antes de se retirar.
Catelyn ajoelhou e tomou a mão do pai nas suas. Era uma mão grande, mas estava agora sem carne, com os ossos movendo-se soltos sob a pele, desaparecida toda a sua força.
- Devia ter me contado - disse ela. - Um mensageiro, um corvo...
- Os mensageiros são capturados e interrogados - ele respondeu. - Os corvos são abatidos... - foi tomado por um espasmo de dor, e os dedos apertaram os dela com força. - Tenho caranguejos na barriga... mordendo, sempre mordendo. Dia e noite. Têm garras duras, os caranguejos. Meistre Vyman faz-me vinho de sonhos, leite da papoula... durmo muito... Mas quis estar acordado para vê-la, quando chegasse. Tive medo... Quando os Lannister capturaram seu irmão, com os acampamentos a toda a volta... tive medo de partir antes de poder voltar a vê-la... tive medo...
- Estou aqui, pai - ela disse. - Com Robb, o meu filho. Ele também virá vê-lo.
- O seu rapaz - ele sussurrou. - Se bem me lembro, ele tinha os meus olhos...
- Tinha e ainda tem. E trouxemos Jaime Lannister a ferros. Correrrio está de novo livre, pai.
Lorde Holster sorriu.
- Eu vi. Ontem à noite, quando começou, eu lhes disse ... tinha de ver. Levaram-me para a guarita... Observei das ameias. Ah, foi uma beleza... os archotes chegaram numa onda, conseguia ouvir os gritos que pairavam sobre o rio... doces gritos... Quando aquela torre de cerco pegou fogo, deuses... teria morrido então, e contente, se pudesse tê-la visto primeiro, criança. Foi o seu rapaz que assim fez? Foi o seu Robb?
- Sim - disse Catelyn, imensamente orgulhosa. - Foi Robb... e Brynden. Seu irmão também está aqui, senhor.
- Ele - a voz do pai era um tênue sussurro. - O Peixe Negro... regressou? Do Vale?
- Sim.
- E Lysa? - um vento frio moveu-se através de seus finos cabelos brancos. - Que os deuses sejam bondosos, a sua irmã... ela também veio?
A voz dele estava tão cheia de esperança e desejo que foi duro dizer-lhe a verdade.
- Não. Lamento...
- Ah - o rosto descaiu, e alguma luz desapareceu dos olhos. - Tive esperança... teria gostado devê-la, antes de...
- Ela está com o filho, no Ninho da Águia.
Lorde Hoster fez um aceno cansado.
- Agora Lorde Robert, com o pobre Arryn falecido... eu me lembro... Por que é que ela não veio com você?
- Está assustada, senhor. No Ninho da Águia sente-se segura - beijou a testa enrugada do pai. - Robb deve estar à espera. Quer vê-lo? E Brynden?
- O seu filho - segredou ele. - Sim. O filho de Cat. Lembro-me que ele tinha os meus olhos. Quando
nasceu. Traga-o... sim.
- E seu irmão?
O pai olhou de relance para os rios.
- Peixe Negro - disse. - Já se casou? Tomou alguma... mulher como esposa?
Até no leito de morte, pensou Catelyn com tristeza.
- Ele não se casou. Sabe disso, pai. Nem nunca casará.
- Eu lhe disse... ordenei. Casa! Era o seu senhor. Ele sabe. Era meu direito, arranjar-lhe um partido. Um bom partido. Uma Redwyne. Casa antiga. Uma doce jovem, bonita... sardas... Bethany, sim. Pobre criança. Ainda espera. Sim. Ainda...
- Bethany Redwyne casou há anos com Lorde Rowan - lembrou-lhe Catelyn. - Tem três filhos dele.
- Mesmo assim - resmungou Lorde Hoster. - Mesmo assim. Cuspiu na moça. Nos Redwyne. Cuspiu em mim. O seu senhor, seu irmão... esse Peixe Negro. Tinha outras ofertas. A filha de Lorde Bracken. Walder Frey... qualquer uma das três, disse ele... Casou? Com alguém? Alguém?
- Ninguém - disse Catelyn. - Mas percorreu muitas léguas para vê-lo, abrindo caminho, lutando até Correrio. Eu não estaria aqui agora se Sor Brynden não nos tivesse ajudado.
- Ele sempre foi um guerreiro - sussurrou o pai. - Isso podia fazer. Cavaleiro do Portão, sim - reclinou-se e fechou os olhos, extremamente fatigado. - Mande-o vir. Mais tarde. Agora quero dormir. Estou muito doente para discutir. Mande-o vir aqui mais tarde, o Peixe Negro...
Catelyn deu-lhe um beijo suave, alisou-lhe o cabelo e deixou-o ali, à sombra da sua fortaleza, com os seus rios a correr embaixo. Adormecera antes ainda de ela sair do aposento.
Quando voltou à muralha inferior, Sor Brynden Tully encontrava-se na escada da água com as botas molhadas, conversando com o capitão dos guardas de Correrrio. Foi imediatamente ao seu encontro.
- Ele está...?
- Morrendo - disse ela. - Como temíamos.
O rosto escarpado do tio mostrou claramente a dor que sentia. Fez correr os dedos pelos espessos cabelos grisalhos.
- Vai me receber?
Ela confirmou com a cabeça.
- Diz que está muito doente para discutir.
Brynden Peixe Negro soltou um risinho.
- Sou um soldado velho demais para acreditar nisso. Hoster há de ralhar comigo a respeito da jovem Redwyne até quando acendermos a sua pira funerária, malditos sejam os seus ossos.
Catelyn sorriu, sabendo que aquilo era verdade.
- Não vejo Robb.
- Acho que foi com Greyjoy até o salão.
Theon Greyjoy estava sentado num banco no Salão Grande de Correrrio, saboreando um corno de cerveja e oferecendo à guarnição do pai de Catelyn um relato do massacre no Bosque dos Murmúrios.
- Alguns tentaram fugir, mas nós tínhamos fechado o vale pelos dois lados, e saltamos da escuridão com espadas e lanças. Os Lannister deviam ter pensado que eram os Outros quem os atacava quando aquele lobo do Robb surgiu entre eles. Vi-o arrancar o braço de um homem, e os cavalos deles enlouqueceram com o seu cheiro. Não sei dizer quantos homens foram atirados...
- Theon - interrompeu Catelyn - onde posso encontrar meu filho?
- Lorde Robb foi visitar o bosque sagrado, senhora.
Era o que Ned teria feito. Tenho de me lembrar que ele é tanto filho do seu pai como meu. Ah, deuses, Ned... Encontrou Robb sob a verde abóbada de folhas, rodeado de altas sequoias e grandes e velhos olmos, ajoelhado perante a árvore-coração, um esguio represeiro com uma cara que era mais triste que feroz. Tinha a espada à sua frente, com a ponta espetada na terra, e as mãos enluvadas a agarravam pelo punho. Ao seu redor, ajoelhavam-se também: Grande-Jon Umber, Rickard Karstark, Maege Mormont, Galbart Glover e outros. Até Tytos Blackwood se encontrava entre eles, com o grande manto de corvo aberto atrás de si. Estes são os que fazem culto aos velhos deuses, percebeu Catelyn. Perguntou-se que deuses ela cultuava nos dias que corriam, e não encontrou resposta.
Não podia perturbá-los nas suas preces. Os deuses têm de receber o que lhes é devido... mesmo deuses cruéis que quiseram lhe roubar Ned e também o senhor seu pai. Por isso, Catelyn esperou. O vento do rio soprava através dos ramos mais altos, e olhou para a Torre da Roda, à sua direita, com hera subindo pela parede. Enquanto esperava, foi inundada por todas as memórias, O pai lhe ensinara a montar entre aquelas árvores, e aquele era o olmo de onde Edmure caíra quando quebrara o braço, e mais adiante, sob aquele caramanchão, Lysa e ela tinham brincado aos beijos com Petyr.
Havia anos que não pensava naquilo. Como eram todos novos então... ela não seria mais velha que Sansa, Lysa, mais nova que Arya, e Petyr, ainda mais novo, mas ávido. As meninas tinham-no trocado entre elas, por vezes sérias, por vezes aos risinhos. A recordação era tão viva que quase conseguia sentir os dedos suados dele nos seus ombros e saborear a menta de seu hálito. Havia sempre menta crescendo no bosque sagrado, e Petyr gostava de mascá-la. Fora um rapazinho tão ousado, sempre metido em confusões. "Ele tentou enfiar a língua na minha boca", confessara Catelyn à irmã mais tarde, quando ficaram a sós. "Fez o mesmo comigo", segredara Lysa, tímida e sem fôlego. "Eu gostei."
Robb pôs-se lentamente em pé e embainhou a espada, e Catelyn perguntou-se se o filho teria alguma vez beijado uma moça no bosque sagrado. Certamente que sim. Vira Jeyne Poole lançar-lhe olhares úmidos, e algumas das criadas, mesmo as que já tinham feito dezoito anos... Ele participara de batalhas e matara homens com uma espada, com certeza já fora beijado. Havia lágrimas nos olhos dela. Limpou-as, zangada.
- Mãe - chamou Robb quando a viu ali em pé. - Temos de convocar um conselho. Há coisas para decidir.
- Seu avô gostaria de vê-lo - ela disse. - Robb, ele está muito doente.
- Sor Edmure me disse. Lamento, mãe... por Lorde Hoster e pela senhora. Mas primeiro temos de nos reunir. Recebemos notícias do sul. Renly Baratheon reivindicou o trono do irmão.
- Renly? - ela disse, chocada. - Pensei que seria certamente Lorde Stannis...
- Todos nós pensávamos o mesmo, senhora - disse Galbart Glover,
O conselho de guerra reuniu-se no Grande Salão, em quatro longas mesas de montar dispostas num quadrado quebrado. Lorde Hoster estava muito fraco para participar e dormia em sua varanda, sonhando com o sol nos rios de sua juventude. Edmure ocupava o cadeirão dos Tully, com Brynden Peixe Negro a seu lado e os vassalos do pai dispostos à esquerda e à direita e ao longo das mesas laterais. A notícia da vitória em Correrrio chegara aos senhores fugitivos do Tridente, atraindo-os de volta. Karyl Vance entrou, agora um lorde, com o pai morto sob o Dente Dourado. Sor Marq Piper estava com ele, e trouxeram um Darry, filho de Sor Raymun, um rapaz que não era mais velho que Bran. Lorde Jonos Bracken chegou das ruínas da Barreira de Pedra, carrancudo e fanfarrão, e ocupou um lugar tão afastado de Tytos Blackwood quanto as mesas permitiam.
Os senhores do Norte sentaram-se do lado oposto, com Catelyn e Robb em frente ao irmão dela. Eram menos. Grande-Jon sentou-se à esquerda de Robb, e em seguida Theon Greyjoy; Galbart Glover e a Senhora Mormont estavam à direita de Catelyn. Lorde Rickard Karstark, desolado e de olhos vazios na sua dor, ocupou seu lugar como um homem perdido num pesadelo, com a longa barba por lavar e pentear. Deixara dois filhos mortos no Bosque dos Murmúrios e não havia notícias do terceiro, o mais velho, que liderara os lanceiros Karstark contra Tywin Lannister no Ramo Verde.
A discussão prolongou-se noite dentro. Cada senhor tinha direito a falar, e foi o que fizeram... e também gritaram, e praguejaram, e argumentaram, e lisonjearam, e brincaram, e regatearam, e bateram na mesa com canecas de cerveja, e ameaçaram, e saíram, e regressaram, mal-humorados ou sorrindo. Catelyn permaneceu sentada ouvindo tudo.
Roose Bolton tinha reunido os restos de sua maltratada tropa no início do talude. Sor Heiman Tallhart e Walder Frey ainda mantinham as Gêmeas, o exército de Lorde Tywin atravessara o Tridente e dirigia-se para Harrenhal. E havia dois reis no reino. Dois reis e nenhum acordo.
Muitos dos senhores vassalos queriam marchar sobre Harrenhal de imediato, a fim de defrontar Lorde Tywin e terminar com o poderio dos Lannister de uma vez por todas. O jovem e temperamental Marq Piper sugeria, em vez disso, um ataque a oeste contra Rochedo Casterly. Outros ainda aconselhavam paciência. Correrrio estava atravessado nas linhas de abastecimento dos Lannister, fez notar Jason Mallister; que aguardassem o tempo certo, negando a Lorde Tywin provisões e soldados frescos, enquanto iam fortalecendo as defesas e descansando as tropas fatigadas. Lorde Blackwood não queria ouvir falar daquilo. Deveriam terminar o trabalho que tinham começado no Bosque dos Murmúrios. Marchar contra Harrenhal e trazer também para baixo o exército de Roose Bolton. Àquilo que Blackwood sugeria, Bracken opunha-se, como sempre; Lorde Jonos Bracken pôs-se em pé a fim de insistir que deviam declarar lealdade ao Rei Renly e ir para o sul juntar as suas forças às dele.
- Renly não é o rei - disse Robb. Era a primeira vez que o filho de Catelyn falava. Tal como o pai, sabia ouvir.
- Não pode pretender aderir a Joffrey, senhor - disse Galbart Glover. - Ele ordenou a morte de seu pai.
- Isso faz dele um mal - respondeu Robb. - Não sei se faz de Renly rei. Joffrey ainda é o filho legítimo mais velho de Robert, por isso o trono é dele segundo todas as leis do reino. Se ele morresse, e pretendo fazer com que morra, tem um irmão mais novo. Tommen segue na linha de sucessão a Joffrey.
- Tommen não é menos Lannister que o irmão - exclamou Sor Marq Piper.
- E como diz - disse Robb, perturbado. - Mas, mesmo assim, se nenhum deles for rei, como pode Lorde Renly sê-lo? Ele é o irmão mais novo de Robert. Bran não pode ser Senhor de Winterfell antes de mim, e Renly não pode ser rei antes de Lorde Stannis.
A Senhora Mormont concordou.
- Lorde Stannis tem a melhor pretensão.
- Renly foi coroado - disse Marq Piper - Jardim de Cima e Ponta Tempestade apoiam sua pretensão, e os de Dorne não ficarão atrás. Se Winterfell e Correrrio acrescentarem suas forças às dele, teremos cinco das sete grandes casas atrás dele. Seis, se os Arryn se moverem! Seis contra o Rochedo! Senhores, dentro de um ano teremos todas as suas cabeças em lanças, a rainha e o rei rapaz, Lorde Tywin, o Duende, o Regicida, Sor Kevan, todos! Será isto que ganharemos se nos juntarmos ao Rei Renly. Que tem Lorde Stannis contra isso para que ponhamos tudo de lado?
- O direito - disse teimosamente Robb, Catelyn achou que o filho soara estranhamente como o pai,
- Tem então tenção de nos declarar por Stannis? - perguntou Edmure.
- Não sei - disse Robb. - Rezei para saber o que fazer, mas os deuses não responderam. Os Lannister mataram meu pai por traição, e sabemos que isso foi uma mentira, mas se Joffrey for o rei de direito e lutarmos contra ele, nós seremos traidores.
- O senhor meu pai aconselharia cautela - disse o idoso Sor Stevron, com o sorriso de fuinha de um Frey. - Esperem, deixem que esses dois reis joguem o seu jogo de tronos. Quando terminarem de lutar, podemos dobrar os joelhos ao vencedor, ou podemos nos opor a ele, conforme seja a nossa escolha. Com Renly armando-se, é provável que Lorde Tywin acolha bem uma trégua... e a devolução em bom estado de seu filho. Nobres senhores, permitam-me que vá conferenciar com ele em Harrenhal e nos arranje bons termos e resgates...
Um rugido de afronta afogou a sua voz.
- Covarde! - trovejou Grande-Jon.
- Suplicar por uma trégua só fará com que pareçamos fracos - declarou a Senhora Mormont.
- Que se danem os resgates, não devemos abdicar do Regicida - gritou Rickard Karstark.
- Por que não fazer a paz? - perguntou Catelyn.
Os senhores olharam-na, mas foram os olhos de Robb que sentiu, os dele, e apenas os dele.
- Senhora, eles assassinaram o senhor meu pai, seu esposo - disse ele em tom sombrio. Desembainhou a espada e pousou-a na mesa à sua frente, fazendo cintilar o aço brilhante contra a madeira rústica. - Esta é a única paz que eu tenho a dar aos Lannister.
Grande-Jon berrou a sua concordância, e outros homens acrescentaram suas vozes, gritando, desembainhando espadas e batendo na mesa com os punhos. Catelyn esperou até que se calassem.
- Senhores - disse ela então - Lorde Eddard era seu suserano, mas eu partilhei sua cama e dei à luz os seus filhos. Julgam que o amo menos que os senhores? - sua voz quase se quebrou, mas Catelyn inspirou longamente e sossegou. - Robb, se esta espada pudesse trazê-lo de volta, eu nunca deixaria que a embainhasse até que Ned estivesse de novo ao meu lado... Mas ele partiu, e uma centena de Bosques dos Murmúrios não mudarão isso. Ned partiu, tal como Daryn Hornwood, tal como os valentes filhos de Lorde Karstark, tal como muitos outros bons homens, e nenhum deles regressará para nós. Precisaremos ainda de mais mortes?
- É uma mulher, senhora - estrondeou Grande-Jon com sua voz grave - As mulheres não compreendem estas coisas.
- É o sexo gentil - disse Lorde Karstark, com rugas de dor frescas no rosto. - Um homem tem necessidade de vingança.
- Dê-me Cersei Lannister, Lorde Karstark, e verá quão gentil uma mulher pode ser - respondeu Catelyn. - Eu talvez não compreenda as táticas e a estratégia... mas compreendo a futilidade. Partimos para a guerra quando os exércitos Lannister assolavam as terras do rio, e Ned era um prisioneiro, falsamente acusado de traição. Lutamos para nos defender e para conquistar a liberdade do meu senhor. Pois bem, uma parte está feita, e a outra, para sempre além do nosso alcance. Farei luto por Ned até o fim dos meus dias, mas tenho de pensar nos vivos. Quero as minhas filhas de volta, e a rainha ainda as tem. Se tiver de trocar os nossos quatro Lannister pelas duas Stark deles, chamarei a isso uma pechincha e darei graças aos deuses. Quero-o a salvo, Robb, governando em Winterfell do assento do seu pai. Quero que desfrute sua vida, que beije uma moça, case com uma mulher e gere um filho. Quero pôr fim a isto. Quero ir para casa, senhores, e chorar pelo meu esposo.
O salão ficou muito silencioso quando Catelyn parou de falar.
- Paz - disse o tio Brynden. - A paz é doce, minha senhora... mas em que termos? De nada serve forjar um arado a partir de uma espada se for necessário forjar de novo a espada no dia seguinte.
- Para que morreram Torrhen e o meu Eddard, se tiver de regressar a Karhold sem nada a não ser os seus ossos? - perguntou Rickard Karstark.
- Sim - disse Lorde Bracken, - Gregor Clegane arrasou meus campos, massacrou meu povo e transformou Barreira de Pedra em uma ruína fumegante. Deverei agora dobrar o joelho àqueles que lhe deram as ordens? Para que lutamos, se pusermos tudo como era antes?
Lorde Blackwood concordou, para surpresa e desânimo de Catelyn.
- E se fizéssemos a paz com o Rei Joffrey, não seríamos então traidores para o Rei Renly? E se o veado vencer o leão, em que situação ficaremos?
- Seja o que for que decidirem, nunca chamarei um Lannister de rei - declarou Marq Piper.
- Nem eu! - gritou o pequeno Derry. - Nunca o farei!
De novo começaram os gritos. Catelyn sentou-se, desesperada. Estivera tão perto, pensou. Tinham quase escutado, quase,., mas o momento passara. Não haveria paz, não haveria possibilidade de sarar, não haveria segurança. Olhou para o filho, observou-o enquanto escutava o debate dos senhores, de sobrancelha franzida, perturbado, mas casado com a sua guerra. Tinha prometido desposar uma filha de Walder Frey, mas agora Catelyn via claramente a sua esposa: a espada que pousara na mesa.
Catelyn estava pensando nas filhas, perguntando-se se alguma vez voltaria a vê-las, quando Grande-Jon se pôs em pé de um salto.
- Senhores! - gritou, fazendo a voz reverberar nas traves. - Eis o que eu digo a esses dois reis! - cuspiu. - Renly Baratheon não é nada para mim, e Stannis também não. Por que haveriam de governar a mim e aos meus de uma cadeira florida qualquer em Jardim de Cima ou Dorne? Que sabem eles da Muralha ou da Mata de Lobos, ou das sepulturas dos Primeiros Homens? Até os seus deuses estão errados. Que os Outros levem também os Lannister, já tive deles mais do que a minha conta - esticou a mão atrás do ombro e puxou a sua imensa espada longa de duas mãos. - Por que não havemos de nos governar de novo a nós próprios? Foi com os dragões que casamos, e os dragões estão todos mortos! - apontou com a lâmina para Robb. - Está ali o único rei perante o qual pretendo vergar o meu joelho, senhores - trovejou. - O Rei do Norte!
Ajoelhou-se, e depositou a espada aos pés do filho de Catelyn.
- Aceitarei a paz nesses termos - disse Lorde Karstark. - Podem ficar com o seu castelo vermelho e com a sua cadeira de ferro também - tirou a espada da bainha. - O Rei do Norte! - disse, ajoelhando-se ao lado de Grande-Jon.
Maege Mormont pôs-se em pé.
- O Rei do Inverno! - declarou, e pousou sua maça de espigões ao lado das espadas.
E os senhores do rio também estavam se erguendo, Blackwood, Bracken e Mallister, casas que nunca tinham sido governadas por Winterfell, mas Catelyn viu-os erguer-se e puxar as lâminas, vergando os joelhos e gritando as velhas palavras que não eram ouvidas no reino havia mais de trezentos anos, desde que Aegon, o Dragão, chegara para fazer dos Sete Reinos um só... mas agora eram ouvidas de novo, ressoando no madeirame do salão de seu pai:
- O Rei do Norte!
- O Rei do Norte!
- O Rei do Norte!

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