terça-feira, 10 de setembro de 2013

72 -DAENERYS


A terra era vermelha, morta e ressequida, e era difícil encontrar boa madeira. Os forrageiros regressaram com algodoeiros nodosos, arbustos roxos, feixes de grama seca. Abateram as duas árvores menos retorcidas, desbastaram os galhos, arrancaram a casca e dividiram-nas, dispondo as toras em quadrado. Encheram o centro com palha, arbustos, aparas de casca de árvore e fardos de mato seco. Rakharo escolheu um garanhão da pequena manada que lhes restava; não era tão nobre como o vermelho de Khal Drogo, mas poucos cavalos o eram. No centro do quadrado, Aggo deu-lhe uma maçã mirrada e o abateu num instante com um golpe de machado dado entre os olhos.
Atada de pés e mãos, Mirri Maz Duur observava da poeira com inquietação em seus olhos negros.
- Não basta matar um cavalo - disse a Dany. - Em si mesmo, o sangue não é nada. Não sabe as palavras para fazer um feitiço, nem tem a sabedoria para encontrá-las. julga que a magia de sangue é um jogo de crianças? Chamam-me maegi como se fosse uma praga, mas tudo o que isso significa é sábio. E uma criança, com a ignorância de uma criança. Seja o que for que pretenda fazer, não dará resultado. Solte-me destes nós, e eu a ajudo.
- Estou farta dos zurros da maegi - disse Dany a Jhogo.
Ele brindou-a com o chicote, e depois daquilo a esposa de deus manteve-se em silêncio.
Por cima da carcaça do cavalo, construíram uma plataforma de toras decepadas; troncos de árvores menores e braços das maiores, e os mais grossos e direitos galhos que conseguiram encontrar. Dispuseram a madeira de leste para oeste, do nascente ao poente. Sobre a plataforma, empilharam os tesouros de Khal Drogo: sua grande tenda, os coletes pintados, as selas e arreios, o chicote que o pai lhe dera quando se fizera um homem, o arakh que usara para matar Khal Ogo e o filho, um grande arco de osso de dragão. Aggo queria juntar também as armas que os companheiros de sangue de Drogo tinham dado a Dany como presentes de noivado, mas ela o proibiu.
- Essas são minhas - disse-lhe - e quero ficar com elas - outra camada de arbustos foi depositada em volta dos tesouros do khal, e feixes de mato seco foram espalhados sobre eles.
Sor Jorah Mormont puxou-a de lado quando o sol se aproximava do zénite.
- Princesa... - começou.
- Por que me chama assim? - desafiou Dany. - Meu irmão Viserys era seu rei, não é verdade?
- Era, senhora.
- Viserys está morto. Eu sou sua herdeira, o último sangue da Casa Targaryen. O que quer que fosse dele é agora meu.
- Minha... rainha - disse Sor Jorah, caindo sobre um joelho. - Minha espada, que era dele, é sua, Daenerys. E o meu coração também, que nunca pertenceu a vosso irmão. Sou apenas um cavaleiro, e nada tenho a oferecer-lhe exceto o exílio, mas escute-me, suplico-lhe. Esqueça Khal Drogo. Não estará só. Prometo-lhe que nenhum homem a levará para Vaes Dothrak a menos que deseje ir. Não tem de se juntar às dosh khaken. Venha para o leste comigo, Yi Ti, Qarth, o Mar de Jade, Asshai da Sombra. Veremos todas as maravilhas que ainda há para ver, e beberemos os vinhos que os deuses achem por bem nos oferecer. Por favor, khakesi. Sei o que pretende fazer. Não o faça. Não o faça.
- Tenho de fazê-lo - disse-lhe Dany. Tocou-lhe o rosto, com carinho, com tristeza. - O senhor não compreende.
- Compreendo que o amava - disse Sor Jorah com uma voz carregada de desespero. - Há tempos amei a senhora minha esposa, mas não morri com ela. É a minha rainha, a minha espada é sua, mas não me peça para me afastar enquanto sobe para a pira de Drogo, Não a verei arder.
- É isso o que teme? - Dany deu-lhe um leve beijo na testa larga. - Não sou assim tão infantil, querido sor.
- Não planeja morrer com ele? Jura, minha rainha?
-Juro - disse ela no Idioma Comum dos Sete Reinos que por direito eram seus.
O terceiro nível da plataforma foi tecido com ramos que não eram mais grossos que um dedo, e coberto com folhas e raminhos secos. Dispuseram-nos de norte a sul, do gelo ao fogo, e em cima colocaram uma grande pilha de suaves almofadas e sedas de dormir. O sol começava a baixar em direção a oeste quando terminaram. Dany chamou os dothrakis. Restavam menos de uma centena. Com quantos começara Aegon?, perguntou ela a si mesma. Não importava.
- Serão o meu khalasar - disse-lhes. - Vejo os rostos de escravos. Liberto-os. Tirem as coleiras. Partam se quiser, ninguém lhes fará mal. Se ficarem, serão como irmãos e irmãs, maridos e esposas - os olhos negros observavam, cautelosos, sem expressão. - Vejo crianças, mulheres, os rostos enrugados dos idosos. Ontem era uma criança. Hoje sou uma mulher. Amanhã serei velha. A cada um de vocês digo: deem-me suas mãos e os seus corações, e haverá sempre lugar para todos - virou-se para os três jovens guerreiros do seu khas. - Jhogo, a você ofereço o chicote de cabo de prata que foi meu presente de noivado, nomeio-o ko e peço que jure que viverá e morrerá como sangue do meu sangue, cavalgando ao meu lado para me manter a salvo do mal.
Jhogo aceitou o chicote de suas mãos, mas o rosto mostrava confusão.
- Khakesi - disse hesitantemente - isto não se faz. Seria uma vergonha ser companheiro de sangue de uma mulher.
- Aggo - chamou Dany, sem prestar atenção às palavras de Jhogo. Se olhar para trás, estou perdida. - A você ofereço o arco de osso de dragão que foi meu presente de noivado - tinha dupla curvatura, era de um negro brilhante e requintado, mais alto que ela. - Nomeio-o ko, e peço que jure que viverá e morrerá como sangue do meu sangue, cavalgando ao meu lado para me manter a salvo do mal,
Aggo aceitou o arco com os olhos baixos.
- Não posso dizer essas palavras. Só um homem pode liderar um khalasar ou nomear um ko.
- Rakharo - disse Dany, virando as costas à recusa - você ficará com o grande arakh que foi meu presente de noivado, com ouro incrustado no cabo e na lâmina. E também o nomeio ko, e peço que jure que viverá e morrerá como sangue do meu sangue, cavalgando ao meu lado para me manter a salvo do mal.
- É khaleesi - disse Rakharo, recebendo o arakh. - Cavalgarei ao seu lado até Vaes Dothrak sob a Mãe das Montanhas, e a manterei a salvo do mal até ocupar o seu lugar com as feiticeiras do dosh khaleen. Não posso prometer mais.
Ela acenou, tão calmamente como se não tivesse ouvido sua resposta, e virou-se para o último de seus campeões.
- Sor Jorah Mormont - disse - primeiro e maior dos meus cavaleiros, não tenho presente de noivado para lhe oferecer, mas juro que um dia receberá das minhas mãos uma espada longa como o mundo nunca viu outra igual, forjada por um dragão e feita de aço valiriano. E quero pedir também seu juramento.
- É seu, minha rainha - disse Sor Jorah, ajoelhando-se para depositar a espada aos pés dela. -Juro servi-la, obedecê-la, morrer pela senhora se for necessário.
- Aconteça o que acontecer?
- Aconteça o que acontecer.
- Lembrarei desse juramento. Rezo para que nunca se arrependa de tê-lo feito - Dany o fez se levantar. Pondo-se na ponta dos pés para lhe chegar aos lábios, deu um leve beijo no cavaleiro e disse: - É o primeiro da minha Guarda Real.
Conseguia sentir os olhos do khalasar postos nela ao entrar na tenda. Os dothrakis resmungavam e lançavam-lhe estranhos olhares de soslaio com seus olhos escuros e amendoados. Dany compreendeu que a julgavam louca. Talvez estivesse. Saberia em breve. Se olhar para trás, estou perdida,
O banho estava escaldando quando Irri a ajudou a entrar na banheira, mas Dany não vacilou nem gritou. Gostava do calor. Fazia-a sentir-se limpa. Jhiqui aromatizara a água com os óleos que Dany encontrara no mercado em Vaes Dothrak; o vapor subia úmido e odorífero. Doreah lavou-lhe os cabelos e os escovou, soltando os nós e os desembaraçando. Irri escovou-lhe as costas. Dany fechou os olhos e deixou que o cheiro e a tepidez a envolvessem. Sentia o calor ensopando a região machucada entre as coxas. Estremeceu quando a penetrou, e sua dor e rigidez pareceram se dissolver. Flutuou.
Quando ficou limpa, as aias ajudaram-na a sair da água. Irri e Jhiqui secaram-na, enquanto Doreah lhe escovava os cabelos até deixá-los como um rio de prata que lhe descia pelas costas. Perfumaram-na com florespeciaria e canela; uma gota em cada pulso, atrás das orelhas, na ponta dos seios pesados de leite. O último salpico destinava-se ao sexo. O dedo de Irri foi tão ligeiro e fresco como o beijo de um amante ao deslizar suavemente entre seus lábios.
Depois, Dany mandou todos embora para que pudesse preparar Khal Drogo para a sua última cavalgada às terras da noite. Lavou-lhe o corpo e escovou e oleou seus cabelos, fazendo correr os dedos por eles uma última vez, sentindo-lhes o peso, recordando a primeira vez que os tocara, na noite da cavalgada de casamento. Seus cabelos nunca foram cortados. Quantos homens podiam morrer sem nunca terem cortado os cabelos? Submergiu o rosto neles e inalou a escura fragrância dos óleos. Cheirava a erva e a terra quente, a fumaça, a sêmen e a cavalos. Cheirava a Drogo. Perdoa-me, sol da minha vida, pensou. Perdoa-me por tudo o que fiz e por tudo o que tenho de fazer. Paguei o preço, minha estrela, mas foi alto demais, alto demais...
Dany entrançou seus cabelos, prendeu seus anéis de prata no bigode e pendurou as campainhas, uma a uma. Tantas campainhas, de ouro, prata e bronze. Campainhas para que os inimigos o ouvissem chegar e ficassem fracos de medo. Vestiu-o com calções de pelo de cavalo e botas altas, afivelando à cintura um pesado cinto de medalhões de ouro e prata. Sobre seu peito marcado por cicatrizes, enfiou um colete pintado, velho e desbotado, aquele de que Drogo mais gostava. Para si escolheu calças largas de sedareia, sandálias atadas até o meio da perna e um colete como o de Drogo.
O sol estava descendo quando voltou a chamá-los para levarem o corpo dele até a pira. Os dothrakis observaram em silêncio quando Jhogo e Aggo o trouxeram da tenda. Dany os seguia. Depositaram-no nas almofadas e sedas, com a cabeça voltada para a Mãe das Montanhas, lá longe para nordeste,
- Óleo - ordenou ela, e trouxeram os jarros e despejaram o óleo sobre a pira, empapando as sedas, os arbustos e os feixes de mato seco, até que pingou sob as toras e o ar ficou rico de fragrâncias. - Tragam-me os meus ovos - ordenou Dany às aias. Algo na sua voz as fez correr.
Sor Jorah pegou-lhe no braço.
- Minha rainha, Drogo não terá nenhuma utilidade para ovos de dragão nas terras da noite. E melhor vendê-los em Asshai. Venda um, e poderá comprar um navio que nos leve de volta para as Cidades Livres. Venda os três, e será uma mulher abastada até o fim dos seus dias.
- Não me foram dados para vender - disse-lhe Dany.
Subiu ela mesma na pira para colocar os ovos em volta do seu sol-e-estrelas. O negro junto ao coração, debaixo do braço. O verde ao lado da cabeça, com a trança enrolada nele. O creme e dourado entre as pernas. Quando o beijou pela última vez, Dany sentiu a doçura do óleo em seus lábios. Ao descer da pira, reparou que Mirri Maz Duur a observava.
- É louca - disse roucamente a esposa de deus.
- Há assim tão grande distância entre a loucura e a sabedoria? - perguntou Dany. - Sor Jorah, ate esta maegi à pira.
- À pir... minha rainha, não, escute-me...
- Faça o que eu digo - mesmo assim, ele hesitou até que a ira dela flamejou. - Jurou me obedecer, acontecesse o que acontecesse. Rakharo, ajude-o.
A esposa de deus não gritou quando a arrastaram para a pira de Khal Drogo e a prenderam entre os seus tesouros. Foi a própria Dany quem despejou o óleo na cabeça da mulher.
- Agradeço-lhe, Mirri Maz Duur - disse - pelas lições que me ensinou.
- Não me ouvirá gritar - respondeu Mirri enquanto o óleo lhe pingava da cabeça e ensopava as suas roupas.
- Ouvirei - disse Dany - mas o que quero não são os seus gritos, só a sua vida. Lembro-me do que me disse. Só a morte pode pagar pela vida - Mirri Maz Duur abriu a boca, mas não respondeu. Ao se afastar, Dany viu que o desprezo tinha desaparecido dos olhos negros e achatados da maegi, no seu lugar havia algo que poderia ser medo. Depois, nada ficou por fazer, a não ser observar o sol e procurar a primeira estrela. Quando um senhor dos cavalos morre, seu cavalo é morto com ele, para que possa montar orgulhoso nas terras da noite. Os corpos são queimados a céu aberto, e o khal ergue-se na sua montaria de chamas para ocupar o seu lugar entre as estrelas. Quanto mais ferozmente o homem tiver queimado em vida, mais brilhante sua estrela será na escuridão.
Jhogo a viu primeiro.
- Ali - disse ele numa voz abafada. Dany olhou e a viu, baixa, no leste. A primeira estrela era um cometa que ardia, vermelho. Vermelho de sangue; vermelho de fogo; a cauda do dragão. Não poderia ter pedido um sinal mais forte.
Dany tirou o archote da mão de Aggo e o enfiou entre as toras. O óleo pegou fogo de imediato, os arbustos e o mato seco um instante depois. Minúsculas chamas correram pela madeira como velozes ratos vermelhos, patinando sobre o óleo e saltando de casca em ramo, de ramo em folha. Um calor que aumentava soprou-lhe no rosto, suave e súbito como o hálito de um amante, mas em segundos se tornara quente demais para suportar.
Dany deu um passo atrás, A madeira estalou, cada vez mais alto. Mirri Maz Duur começou a cantar numa voz estridente e ululante. As chamas rodopiaram e contorceram-se, fazendo corridas umas com as outras pela plataforma acima. O ocaso ondulou quando o próprio ar pareceu liquefazer-se com o calor. Dany ouviu toras que se fendiam e estalavam. O fogo envolveu Mirri Maz Duur. A canção dela tornou-se mais sonora, mais estridente... e então arquejou, uma vez e outra, e a canção transformou-se num lamento trêmulo, agudo, sonoro e cheio de agonia.
E agora as chamas chegavam ao seu Drogo, e o rodeavam por completo. Suas roupas pegaram fogo, e por um instante o khal ficou vestido com farrapos de flutuante seda cor de laranja e elos de fumaça rodopiante, cinzenta e oleosa. Os lábios de Dany abriram-se, e ela deu por si prendendo a respiração.
Parte de si queria ir com ele, como Sor Jorah temera, correr para as chamas para lhe pedir perdão e introduzi-lo no seu corpo uma última vez, deixando o fogo derreter a carne até se tornarem um só, para sempre. Conseguia sentir o cheiro de carne queimada, em nada diferente da carne de cavalo assando numa fogueira. A pira rugia no crepúsculo que se aprofundava como um grande animal, afogando o som mais fraco dos gritos de Mirri Maz Duur e projetando longas línguas de fogo para lamber a barriga da noite. Quando a fumaça se tornou mais espessa, os dothrakis se afastaram, tossindo.
Grandes gotas de fogo cor de laranja desenrolaram seus estandartes naquele vento infernal, com as toras silvando e estalando, e fagulhas brilhantes erguendo-se na fumaça e afastando-se, flutuando como outros tantos vaga-lumes recém-nascidos. O calor batia o ar com grandes asas vermelhas, afastando os dothrakis, afastando até Mormont, mas Dany ficou no seu lugar.
Era do sangue do dragão, e tinha o fogo em si. Sentira a verdade havia muito, pensou Dany quando deu um passo para mais perto do incêndio, mas o braseiro nunca estivera suficientemente quente. As chamas contorciam-se à sua frente como as mulheres que dançaram no seu casamento, rodopiando, cantando e fazendo girar seus véus amarelos, laranja e carmins, terríveis de admirar, mas ao mesmo tempo adoráveis, tão adoráveis, vivas de calor. Dany abriu os braços, com a pele corada e brilhando. Isto também é um casamento, pensou. Mirri Maz Duur caíra no silêncio. A esposa de deus a julgara uma criança, mas as crianças crescem, e aprendem.
Outro passo, e Dany sentiu o calor da areia nas solas dos pés, apesar das sandálias. Suor escorreu-lhe pelas coxas, por entre os seios e em regatos pelas bochechas, onde antes tinham corrido lágrimas. Sor Jorah gritava atrás dela, mas eleja não importava, somente o fogo. As chamas eram tão belas, as coisas mais lindas que jamais vira antes, cada uma delas uma feiticeira vestida de amarelo, laranja e escarlate, fazendo rodopiar longos mantos fumarentos. Viu leões de fogo carmesins e grandes serpentes amarelas e unicórnios feitos de chamas azul-claras; viu peixes e raposas e monstros, lobos e aves brilhantes e árvores floridas, cada uma mais bela que a anterior. Viu um cavalo, um grande garanhão cinzento retratado na fumaça, com uma auréola de chama azul no lugar da crina. Sim, meu amor, meu sol-e-estrelas, sim, monte agora, cavalgue agora.
Seu colete começara a pegar fogo, e Dany o tirou e deixou cair ao chão. O couro pintado rebentou em súbitas chamas quando deu um pequeno salto para mais perto do fogo, com os seios nus perante as chamas, córregos de leite a jorrar dos mamilos vermelhos e inchados. Agora, pensou, agora, e por um instante vislumbrou Khal Drogo à sua frente, montado em seu garanhão de fumaça, com um chicote de fogo na mão.
Ele sorriu, e o chicote serpenteou para a pira, silvando. Ouviu um crac, o som de pedra que se quebra. A plataforma de árvores, arbustos e mato começou a deslocar-se e a colapsar sobre si mesma. Pedaços de madeira ardendo deslizaram até junto dela, e Dany foi salpicada por cinzas e fagulhas. E algo mais caiu, saltando e rolando, parando a seus pés; um pedaço de rocha curva, de cor clara e com veios de ouro, quebrada e fumegante. O rugido enchia o mundo, mas, de um modo tênue, Dany ouviu através da catarata de fogo gritos de mulheres e choros de crianças, incrédulas. Só a morte pode pagar pela vida.
E então se ouviu um segundo crac, tão sonoro e cortante como um trovão, e a fumaça agitou-se e rodopiou em torno dela e a pira oscilou, com as toras explodindo quando o fogo atingiu os seus corações secretos. Ouviu os gritos de cavalos assustados e as vozes dos dothrakis em gritos de medo e terror, e Sor Jorah chamando pelo seu nome e praguejando. Não, quis gritar, não, meu bom cavaleiro, não tema por mim. O fogo é meu. Sou Daenerys, nascida na Tempestade, filha de dragões, noiva de dragões, mãe de dragões, não vê? Não vê?
Com um vômito de chamas e fumaça que subiu a nove metros de altura, a pira ruiu e caiu à sua volta. Sem medo, Dany deu um passo para a tempestade de fogo, chamando pelos seus filhos.
O terceiro crac foi tão sonoro e cortante como se o mundo se rasgasse. Quando o fogo enfim morreu e o chão ficou suficientemente frio para poder ser atravessado, Sor Jorah Mormont encontrou-a entre as cinzas, rodeada por toras enegrecidas, fagulhas de brasas incandescentes e os ossos queimados de homem, mulher e garanhão. Estava nua, coberta de fuligem, com as roupas transformadas em cinzas, os belos cabelos torrados até desaparecer... mas incólume.
O dragão creme e dourado chupava-lhe o seio esquerdo, o verde e cor de bronze, o direito. Os braços dela os embalavam bem perto. O animal negro e escarlate envolvia-lhe os ombros, com o longo pescoço sinuoso enrolado sob seu queixo. Quando viu Jorah, ergueu a cabeça e o encarou com olhos vermelhos como brasas.
Sem palavras, o cavaleiro caiu de joelhos. Os homens do seu khas vieram atrás dele. Jhogo foi o primeiro a depositar o arakh a seus pés.
- Sangue do meu sangue - murmurou, inclinando o rosto à terra fumegante.
- Sangue do meu sangue - ouviu Aggo repetir num eco.
- Sangue do meu sangue - gritou Rakharo.
E depois dele vieram as aias, e depois os outros, todos os dothrakis, homens, mulheres e crianças, e Dany não teve mais que olhar para os seus olhos para saber que eram seus agora, hoje, amanhã e para sempre, seus como nunca tinham sido de Drogo.
Quando Daenerys Targaryen se pôs em pé, seu dragão negro silvou, com fumaça clara saindo da boca e das narinas. Os outros dois afastaram-se dos seios e somaram suas vozes ao chamamento, com asas translúcidas abrindo-se e agitando o ar, e pela primeira vez em centenas de anos a noite ganhou vida com a música dos dragões.  

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