A cauda
do cometa espraiava-se pela madrugada, um corte vermelho que sangrava
por cima dos penhascos da Pedra do Dragão como uma ferida num céu
cor-de-rosa e púrpura.
O meistre
estava em pé, na varanda varrida pelo vento, do lado de fora dos
seus aposentos. Era ali que chegavam os corvos, depois de longos
voos. Os excrementos das aves salpicavam as gárgulas, que se erguiam
a uma altura de três metros e meio, de ambos os lados; um mastim do
inferno e uma serpe, dois dos mil exemplares que se empoleiravam nas
muralhas da antiga fortaleza.
Quando
chegara à Pedra do Dragão, o exército de grotescas esculturas de
pedra costumava deixá-lo incomodado, mas, com a passagem dos anos,
foi se acostumando. Agora, pensava nelas como em velhas amigas. Os
três observaram juntos o céu, tomados por pressentimentos.
O meistre
não acreditava em presságios. E, no entanto... Apesar de ser tão
velho, Cressen nunca vira um cometa com metade do brilho daquele, nem
daquela cor, aquela cor terrível, do sangue, da chama e dos
crepúsculos. Perguntou a si mesmo se suas gárgulas já teriam visto
algo parecido. Já estavam ali muito tempo antes de ele chegar, e
ainda lá permaneceriam muito depois de ele partir. Se línguas de
pedra falassem...
Que
tolice. Encostou-se nas ameias, com o mar batendo lá embaixo e a
pedra negra áspera sob os seus dedos. Gárgulas falantes e profecias
no céu. Sou um velho acabado que se tornou de novo leviano como uma
criança. Teria a sabedoria duramente conquistada ao longo de uma
vida inteira fugido com a saúde e a força? Era um meistre, treinado
e acorrentado na grande Cidadela de Vilavelha. A que ponto chegara,
se a superstição lhe enchia a cabeça como se fosse um camponês
ignorante?
E no
entanto... No entanto... Agora, o cometa brilhava até durante o dia,
enquanto o vapor cinza-claro se erguia da cratera quente do Monte
Dragão, atrás do castelo. E na manhã anterior, um corvo branco
tinha trazido notícias da própria Cidadela, há muito esperadas,
mas não menos temíveis por isso, notícias do fim do verão. Tudo
presságios. Demasiados para ser negados. Que significa tudo isso?
Ele quis gritar.
- Meistre
Cressen, temos visitantes - Pylos falou suavemente, como se estivesse
relutante em perturbar as meditações solenes de Cressen. Se
soubesse dos disparates que lhe enchiam a cabeça, teria gritado. - A
princesa deseja ver o corvo branco.
Sempre
correto, Pylos a chamava agora princesa, visto que o senhor seu pai
era um rei. Rei de um rochedo fumegante no grande mar salgado, mas
ainda assim rei.
- O bobo
veio junto.
O velho
virou as costas à alvorada, mantendo uma mão pousada sobre a serpe
a fim de se equilibrar.
-
Ajude-me a chegar até a cadeira e mande-os entrar.
Tomando
seu braço, Pylos o levou para dentro. Na juventude, Cressen
caminhara com vigor, mas agora não estava longe do octogésimo dia
do seu nome, e tinha as pernas frágeis e instáveis. Há dois anos
um tombo lhe causara fratura de um lado da bacia, da qual nunca
chegou a ficar curado totalmente. No ano anterior, quando tinha
adoecido, a Cidadela enviara Pylos de Vilavelha, apenas dias antes de
Lorde Stannis ter fechado a ilha, para ajudá-lo nas suas tarefas,
tinham dito, mas Cressen sabia a verdade. Pylos viera para
substituí-lo quando morresse. Não se importava. Alguém teria de
ocupar seu lugar, e em menos tempo do que teria gostado...
Deixou
que o homem mais novo o acomodasse atrás dos seus livros e papéis.
- Vá
buscá-la. É feio deixar uma senhora esperando.
O meistre
acenou, um frágil gesto de pressa de um homem que já não era capaz
de se apressar. Tinha a pele enrugada e manchada, tão fina como
papel, de modo que se podia ver a teia de veias e a forma dos ossos
por baixo. E agora tremiam, aquelas suas mãos que tempos atrás
tinham sido tão seguras e hábeis...
Quando
Pylos voltou, a garota veio com ele, tímida como sempre. Atrás
dela, arrastando os pés e saltitando daquele seu estranho jeito
torto, veio o bobo. Trazia na cabeça uma imitação de elmo, feito
de um velho balde de estanho, com um par de chifres de veado atado ao
topo e decorado com guizos que a cada passo deslizante soavam, cada
um num tom diferente, clang-a-dang, bong-dong, ring-a-ling,
clong-clong-clong.
- Quem
vem nos visitar tão cedo, Pylos? - Cressen perguntou.
- Sou eu
e o Malhas, Meistre.
Olhos
azuis sinceros piscaram na sua direção. Infelizmente, o rosto dela
não era belo. A menina possuía o queixo quadrado e projetado do
senhor seu pai e as infelizes orelhas da mãe, bem como uma
deformação só sua, o legado do ataque de um escamagris, um tipo de
crocodilo, que quase a matara quando bebê. Da metade inferior de uma
bochecha até bem abaixo no pescoço, tinha a carne rígida e morta,
com a pele rachada e escamando, manchada de negro e cinza, lembrando
pedra ao toque.
- Pylos
disse que podíamos ver o corvo branco.
-
Realmente podem - respondeu Cressen. Como se alguma vez pudesse lhe
negar algo. A menina tinha enfrentado negativas demais na vida.
Chamava-se Shireen. Faria dez anos no próximo dia do seu nome, e era
a criança mais triste que Meistre Cressen conhecera. Sua tristeza é
a minha vergonha, pensou o velho, outro sinal do meu fracasso. -
Meistre Pylos, faça-me a gentileza de trazer a ave do viveiro para
mostrar à Senhora Shireen.
- Será
um prazer.
Pylos era
um jovem educado, com não mais de vinte e cinco anos, mas era solene
como um homem de sessenta. Se ao menos houvesse nele mais humor, mais
vida; era isso que fazia falta ali. Os lugares sombrios precisavam de
vivacidade, não de solenidade, e Pedra do Dragão era
indubitavelmente um lugar sombrio, uma cidadela solitária no deserto
de água, rodeada por tempestades e sal, com a sombra fumegante da
montanha às suas costas. Um meistre tinha de ir para onde era
enviado, e Cressen acompanhara seu senhor havia cerca de doze anos, e
bem lhe servira.
Mas nunca
tinha amado Pedra do Dragão, nem se sentia verdadeiramente em casa
ali, Nos últimos tempos, quando acordava de sonhos inquietos, nos
quais a mulher vermelha tinha uma participação perturbadora, era
frequente não saber onde estava.
O bobo
virou sua cabeça manchada e malhada para observar Pylos subindo os
íngremes degraus de ferro que levavam ao viveiro. Seus guizos soaram
com o movimento.
- Debaixo
do mar, as aves têm escamas em lugar de penas - ele disse,
clangorejando. - Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.
Mesmo
para um bobo, o Cara-Malhada era digno de pena. Talvez em outros
tempos tivesse sido capaz de arrancar gargalhadas com uma frase de
efeito, mas o mar lhe tinha roubado esse poder, juntamente com metade
da imaginação e toda a memória. Mole e obeso, vítima de
convulsões e tremores, era mais comum mostrar-se incoerente do que o
contrário. A garota era a única que agora ria dele, a única que se
importava com ele estar vivo ou morto. Uma menininha feia e um bobo
triste, e com o meistre faz três... eis uma história boa para jazer
os homens chorar.
-
Sente-se comigo, filha - Cressen fez-lhe sinal para se aproximar. - É
cedo para vir me visitar, o dia mal amanheceu. Você deveria estar
aconchegada na cama.
- Tive
pesadelos - Shireen respondeu. - Com os dragões. Vinham me comer.
Cressen
se lembrava de a criança sofrer com pesadelos desde muito pequena.
- Já
conversamos sobre isso - ele disse com gentileza. - Os dragões não
podem ganhar vida. São feitos de pedra, filha. Antigamente, nossa
ilha era o posto avançado mais ocidental da grande Cidade Franca de
Valíria. Foram os valirianos que ergueram esta cidadela, e eles
tinham maneiras de esculpir a pedra que desde então se perderam. Um
castelo tem de ter torres sempre que duas muralhas se encontrem num
ângulo, para defendê-las. Os valirianos deram forma de dragões a
estas torres para fazer com que sua fortaleza parecesse mais temível,
tal como coroaram as muralhas com mil gárgulas, em vez de simples
ameias.
O meistre
tomou a pequena mão cor-de-rosa da menina na sua, manchada e frágil,
e deu um apertão suave.
- Viu só?
Não há nada a temer.
Shireen
não estava convencida.
- Mas...
E a coisa no céu? Dalla e Matrice estavam conversando perto do poço,
e Dalla disse que ouviu a mulher vermelha dizer à mãe que aquilo é
respiração de dragão. Se os dragões estão respirando, não quer
dizer que estão ganhando vida?
A mulher
vermelha, pensou amargamente Meistre Cressen. Já é ruim o bastante
que tenha enchido a cabeça da mãe com as suas loucuras, terá de
envenenar também os sonhos da filha? Teria uma conversa severa com
Dalla, para que não ficasse espalhando essas histórias.
- A coisa
no céu é um cometa, minha doce menina, Uma estrela com uma cauda,
perdida nos céus. Desaparecerá em breve, para não voltar a ser
vista enquanto estivermos vivos. Espere e verá.
Shireen
fez um pequeno, mas corajoso aceno com a cabeça.
- A mãe
diz que o corvo branco quer dizer que já não é verão.
- E
verdade, senhora. Os corvos brancos só voam da Cidadela.
Os dedos
de Cressen alcançaram a corrente que rodeava seu pescoço; cada um
de seus elos havia sido forjado com um metal diferente, cada um
simbolizando o seu domínio de mais um ramo do conhecimento; o colar
de meistre, a marca da sua ordem. No orgulho da juventude, usara-o
com facilidade, mas agora parecia-lhe pesado, e o metal era frio no
contato com sua pele.
- São
maiores do que os outros corvos, mais inteligentes, e criados apenas
para transportar as mensagens mais importantes. Este veio nos dizer
que o Conclave se reuniu, avaliou os relatórios e as medições
feitas pelos meistres de todo o reino e declarou que este longo verão
finalmente terminou. Durou dez anos, duas rotações e dezesseis
dias, o mais longo verão já registrado.
- Agora
vai ficar frio?
Shireen
era uma criança do verão, e nunca tinha experimentado o verdadeiro
frio.
- A seu
tempo - Cressen respondeu. - Se os deuses forem bondosos, oferecerão
um Outono quente e colheitas abundantes para que possamos nos
preparar para o inverno que virá depois - o povo dizia que um verão
longo significava um inverno ainda mais longo, mas o meistre não
tinha por que assustar a criança com histórias como essa.
Cara-Malhada fez soar seus guizos.
- E
sempre verão debaixo do mar - entoou. - As sereias casadas usam
enfeites no cabelo e cosem vestidos de algas prateadas. Eu sei, eu
sei, ei, ei, ei.
Shireen
soltou um risinho.
- Eu
gostaria de ter um vestido de algas prateadas.
- Debaixo
do mar, neva para cima - disse o bobo - e a chuva é seca como um
osso. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.
- Vai
mesmo nevar? - ela perguntou.
- Vai -
Cressen confirmou. - Mas espero que ainda demore anos, e que não
neve por muito tempo.
- Ah, ali
vem Pylos com a ave.
Shireen
soltou um grito de alegria. Até Cressen tinha de admitir que a ave
era impressionante, branca como a neve e maior do que qualquer
falcão, com os brilhantes olhos negros que significavam não se
tratar de uma ave albina, mas sim de um corvo branco puro-sangue da
Cidadela.
- Aqui -
chamou o meistre. O corvo abriu as asas, deu um salto e bateu-as
ruidosamente pela sala até pousar na mesa ao lado dele.
- Vou
agora tratar do seu café da manhã - Pylos anunciou, e Cressen anuiu
com a cabeça.
- Esta é
a Senhora Shireen - disse ao corvo. A ave balançou a cabeça para
cima e para baixo, como se a estivesse reverenciando. "Senhora",
crocitou. "Senhora."
A criança
ficou de queixo caído.
- Ele
fala!
- Algumas
palavras. Como eu disse, estas aves são espertas.
- Ave
esperta, homem esperto, bobo esperto, esperto - cantarolou
Cara-Malhada com uma voz desagradável. - Oh, bobo esperto, esperto,
esperto - e começou a cantar: - As sombras vêm dançar, senhor,
dançar, senhor, dançar, senhor - cantou, saltitando de um pé para
outro. - As sombras vêm ficar, senhor, ficar, senhor, ficar, senhor.
Inclinava
a cabeça a cada palavra, fazendo ressoar os guizos presos aos
chifres.
O corvo
branco soltou um grito e voou para longe, indo empoleirar-se no
corrimão de ferro das escadas do viveiro. Shireen pareceu
encolher-se.
- Ele
canta isso o tempo todo. Disse-lhe para parar, mas ele não para. Ele
me assusta. Faça-o parar.
E como
faço isso?, perguntou-se o velho. Em outros tempos poderia tê-lo
silenciado para sempre,mas agora... Cara-Malhada chegara até eles
ainda jovem. Lorde Steffon, de boa lembrança, encontrara-o em
Volantis, do outro lado do mar estreito. O rei, o antigo rei, Aerys
Targaryen, que não era tão louco assim naqueles tempos, enviara sua
senhoria em busca de uma noiva para o Príncipe Rhaegar, que não
tinha irmãs com quem casar, "Encontramos o mais magnífico dos
bobos", escrevera a Cressen, uma quinzena antes da hora de
regressar da infrutífera missão. "E ainda jovem, mas ágil
como um macaco, e espirituoso como uma dúzia de cortesões. Sabe
malabarismo, adivinhas e magia, e é capaz de cantar agradavelmente
em quatro línguas. Compramos a sua liberdade e esperamos trazê-lo
conosco para casa. Robert vai adorá-lo; com o tempo, o bobo talvez
até consiga ensinar Stannis a rir."
Recordar
aquela carta enchia Cressen de tristeza. Ninguém conseguira ensinar
Stannis a rir, muito menos o jovem Cara- Malhada. A tempestade
chegara de repente, uivando, e a Baía dos Naufrágios provara a
verdade do seu nome, A galé de dois mastros do senhor, Orgulho do
Vento, quebrara-se à vista do castelo. Das varandas, os dois filhos
mais velhos tinham observado o navio do pai ser esmagado de encontro
aos rochedos e engolido pelas águas. Uma centena de remadores e
marinheiros afundaram com Lorde Steífon Baratheon e a senhora sua
esposa, e ao longo de vários dias cada maré deixava uma nova
colheita de cadáveres inchados na costa de Ponta Tempestade.
O rapaz
chegara à costa no terceiro dia. Meistre Cressen tinha descido com
os outros, a fim de ajudar a reconhecer os mortos. Quando encontraram
o bobo, estava nu, com a pele branca, enrugada e cheia de areia
molhada. Cressen julgou que se tratava de mais um cadáver, mas,
quando Jommy o agarrou pelos tornozelos a fim de arrastá-lo para o
carro fúnebre, o rapaz tossiu água e se sentou. Até o dia da sua
morte, Jommy jurou que a pele de Cara-Malhada estava fria e pegajosa.
Ninguém
jamais conseguiu explicar aqueles dois dias que o bobo passou perdido
no mar. Os pescadores gostavam de dizer que uma sereia havia lhe
ensinado a respirar água em troca de seu sêmen. O próprio
Cara-Malhada nada disse. O jovem espirituoso e inteligente nunca
chegou a Ponta Tempestade; o rapaz que encontraram era outra pessoa,
quebrado de corpo e de mente, quase incapaz de falar, muito menos de
gracejar. Mas sua cara de bobo não deixava dúvidas sobre quem era.
Era costume da Cidade Livre de Volantis tatuar o rosto dos escravos e
dos servos; do pescoço ao couro cabeludo, a pele do rapaz tinha sido
marcada com quadrados vermelhos e verdes.
- O
desgraçado está louco, e com dores, e não presta para ninguém,
nem para si mesmo - tinha declarado o velho Sor Harbert, naqueles
tempos castelão de Ponta Tempestade. - A coisa mais bondosa que se
pode fazer com esse tipo é encher sua taça com o leite da papoula.
Um sono sem dor, e acaba tudo. Ele iria abençoá-lo se tivesse
esperteza para isso.
Mas
Cressen se recusou e acabou vencendo. Não saberia dizer se
Cara-Malhada tinha sido feliz com essa vitória, nem mesmo agora,
tantos anos depois.
- As
sombras vêm dançar, senhor, dançar, senhor, dançar, senhor -
continuou o bobo a cantar, balançando a cabeça e fazendo os guizos
ressoar. Bong-dong, ring-a-ling, bong-dong. "Senhor",
guinchou o corvo branco."Senhor, senhor, senhor"
- Um bobo
canta o que quer - disse o meistre à sua ansiosa princesa. - Não
deve levar suas palavras a sério. De manhã, ele poderá se lembrar
de outra canção, e esta nunca mais será ouvida.
"Ele
é capaz de cantar agradavelmente em quatro línguas", escrevera
Lorde Steffon...
Pylos
entrou a passos largos:
-
Meistre, as minhas desculpas.
- Você
se esqueceu do mingau - Cressen completou, rindo. Aquilo não era do
feitio de Pylos.
-
Meistre, Sor Davos regressou ontem à noite. Estavam falando disso na
cozinha, Achei que gostaria de saber de imediato.
-
Davos... Ontem à noite, você diz? Onde está ele?
- Com o
rei. Passaram juntos a maior parte da noite.
Em tempos
passados, Lorde Stannis teria mandado acordá-lo a qualquer hora,
para tê-lo junto a si, a fim de aconselhá-lo.
- Eu
devia ter sido informado - queixou-se Cressen. - Devia ter sido
acordado - desprendeu seus dedos dos de Shireen: - As minhas
desculpas, senhora, mas tenho de falar com o senhor seu pai. Pylos,
dê-me o braço. Há degraus demais neste castelo, e parece-me que
acrescentam uns tantos todas as noites, só para me aborrecer.
Shireen e
Cara-Malhada seguiram-nos, mas a menina rapidamente se cansou do
passo rastejante do velho e correu na frente, com o bobo a balançar
atrás dela, fazendo os guizos tinir loucamente.
Enquanto
descia a escada em espiral da Torre do Dragão Marinho, Cressen
percebeu, mais uma vez, que os castelos não são lugares amigáveis
para homens frágeis. Lorde Stannis deveria estar na Sala da Mesa
Pintada, no topo do Tambor de Pedra, a fortaleza central de Pedra do
Dragão, assim chamada devido ao modo como suas paredes antigas
estrondeavam e ressoavam durante as tempestades. Para chegar até
ele, teria de cruzar a galeria, atravessar as muralhas intermediária
e interna, com as suas gárgulas de guarda e portões de ferro negro,
e subir mais degraus do que queria imaginar. Os jovens subiam degraus
de dois em dois; para velhos com quadris em mau estado, cada degrau
era um tormento. Mas Lorde Stannis não pensaria em encontrá-lo;
então, o meistre resignava-se à provação. Pelo menos tinha Pylos
para ajudá-lo, e sentia-se grato por isso.
Arrastando
os pés ao longo da galeria, passaram na frente de uma fileira de
altas janelas arqueadas com uma vista privilegiada sobre a muralha
exterior e a aldeia de pescadores, que se erguia mais adiante. No
pátio, arqueiros disparavam contra alvos de treino aos gritos de
"Encaixar, puxar, largar". As flechas faziam um som que era
como o de um bando de pássaros levantando voo. Guardas caminhavam
sobre as muralhas, espreitando, por entre as gárgulas, a tropa
acampada lá fora. O ar da manhã estava enevoado com a fumaça de
fogueiras para cozinhar, num momento em que três mil homens se
sentavam para quebrar o jejum sob os estandartes dos seus senhores.
Para lá do acampamento, o ancoradouro encontrava-se repleto de
navios.
Nenhuma
embarcação que tivesse sido avistada da Pedra do Dragão ao longo
do último semestre fora autorizada a partir de novo. A Fúria de
Lorde Stannis, uma galé de guerra com três conveses e trezentos
remos, quase parecia pequena ao lado de alguns dos galeões e
pesqueiros de casco largo que a rodeavam. Os guardas à porta do
Tambor de Pedra conheciam o meistre e o deixaram entrar.
- Espere
aqui - disse Cressen a Pylos, já dentro da sala. - E melhor que eu
fale com ele a sós.
- E uma
longa subida, meistre.
Cressen
sorriu:
- Pensa
que me esqueci? Subi tantas vezes estes degraus que conheço cada um
pelo nome. No meio da subida, arrependeu-se da decisão. Tinha
parado, para recuperar o fôlego e aliviar a dor na bacia, quando
ouviu o raspar de botas na pedra e ficou cara a cara com Sor Davos
Seaworth, que descia.
Davos era
um homem franzino; a origem plebeia estava escrita em seu rosto
comum. Um manto verde puído, manchado de sal e maresia, e desbotado
pelo sol, envolvia seus ombros estreitos, por cima de um gibão e uns
calções castanhos que combinavam com os cabelos e olhos da mesma
cor. Uma bolsa de couro gasto pendia de uma correia passada em volta
do pescoço. Sua barba curta estava bem salpicada de cinza, e usava
uma luva de couro na mão esquerda mutilada.
Quando
viu Cressen, interrompeu a descida.
- Sor
Davos - cumprimentou-o o meistre. - Quando retornou?
- Na
escuridão da madrugada. A minha hora preferida.
Dizia-se
que ninguém jamais manobrara um navio de noite com metade da
destreza de Davos Mão-Curta. Antes de Lorde Stannis tê-lo armado
cavaleiro, Sor Davos era o mais notório e esquivo contrabandista de
todos os Sete Reinos.
- E?
O homem
balançou a cabeça.
- É como
o preveni. Não se levantarão, Meistre. Por ele, não. Não gostam
dele.
Não,
pensou Cressen. Nem nunca gostarão. Ele é forte, capaz, mesmo...
sim, mesmo para além da sabedoria... Mas não basta. Nunca bastou.
- Falou
com todos?
- Todos?
Não. Só os que quiseram se encontrar comigo. Aqueles bem-nascidos
também não gostam de mim. Para eles serei sempre o Cavaleiro das
Cebolas.
A mão
esquerda fechou-se, com os dedos curtos formando um punho; Stannis
cortara suas pontas, exceto a do polegar.
- Dividi
a mesa com Guilan Swann e o velho Penrose, e os Tarth consentiram num
encontro à meia-noite num bosque. Os outros... Bem, Beric Dondarrion
desapareceu, alguns dizem que está morto, e Lorde Caron está com
Renly. Bryce, o Laranja, da Guarda Arco-íris.
- A
Guarda Arco-íris?
- Renly
criou sua própria Guarda Real - explicou o ex-contrabandista mas
esses sete não usam o branco. Cada um tem a sua cor. Loras Tyrell é
o seu Senhor Comandante.
Era
justamente o tipo de idéia que atrairia Renly Baratheon; uma
magnífica nova ordem de cavalaria, com maravilhosos novos trajes
para proclamá-la. Ainda quando garoto, Renly já adorava cores
brilhantes e tecidos belos, e também os seus jogos. "Olhem para
mim!", ele gritava enquanto corria às gargalhadas pelos salões
de Ponta Tempestade, "Olhem, sou um dragão", ou "Olhem,
sou um feiticeiro", ou "Olhem, olhem, sou o deus das
chuvas".
O ousado
rapazinho com cabelo negro bagunçado e risada nos olhos era agora um
marmanjo, com vinte e um anos, e ainda jogava seus jogos. Olhem, sou
um rei, pensou Cressen tristemente. Ah, Renly, Renly, querido filho,
sabe o que está fazendo? E se importaria se soubesse? Haverá alguém
que se preocupe com ele além de mim?
- Que
motivos deram os senhores para as recusas? - perguntou a Sor Davos.
- Bem,
quanto a isso, alguns usaram palavras suaves, e outros, rudes; alguns
arranjaram desculpas, outros fizeram promessas; outros limitaram-se a
mentir - e encolheu os ombros. - No fim das contas, as palavras não
passam de vento.
- Não
poderia lhe trazer alguma esperança?
- Só do
tipo falso, e eu não faria isso - Davos respondeu. - De mim, ouviu a
verdade.
Meistre
Cressen recordou o dia em que Davos fora feito cavaleiro, depois do
cerco a Ponta Tempestade. Lorde Stannis e uma pequena guarnição
defenderam o castelo durante quase um ano contra a grande tropa dos
senhores Tyrell e Redwyne.
Até o
mar lhes estava bloqueado, vigiado noite e dia por galés dos
Redwyne, que ostentavam as bandeiras bordo da Arvore. Dentro de Ponta
Tempestade, os cavalos há muito tinham sido comidos, os cães e os
gatos desaparecido, e a guarnição, limitada a raízes e ratazanas.
Então, chegou uma noite em que a lua era nova e nuvens negras
escondiam as estrelas. Envolto nessa escuridão, Davos, o
contrabandista, desafiou o bloqueio Redwyne e os rochedos da Baía
dos Naufrágios. Seu pequeno navio tinha casco, velas e remos negros
e um porão apinhado de cebolas e peixe salgado. Era pouco, mas
manteve a guarnição viva durante tempo suficiente para que Eddard
Stark chegasse a Ponta Tempestade e quebrasse o cerco.
Lorde
Stannis recompensou Davos com terras de boa qualidade em Cabo da
Fúria, uma pequena fortaleza e o título de cavaleiro... Mas também
decretou que perdesse uma falange de todos os dedos da mão esquerda,
a fim de pagar por todos seus anos de contrabando. Davos aceitou se
submeter, com a condição de que o próprio Stannis manejasse a
faca; não aceitaria nenhuma punição vinda de mãos menores. O
senhor usou um cutelo de açougueiro, a fim de fazer um corte limpo e
completo. Depois, Davos escolheu o nome Seaworth para sua nova casa,
e tomou como estandarte um navio negro em fundo cinza-claro... com
uma cebola desenhada nas velas, O antigo contrabandista gostava de
dizer que Lorde Stannis lhe fizera um favor, dando-lhe quatro unhas a
menos para cortar e limpar. Não, pensou Cressen, um homem assim não
daria falsas esperanças, nem suavizaria uma verdade dura.
- Sor
Davos, a verdade pode ser uma bebida amarga, mesmo para um homem como
Lorde Stannis, Ele só pensa em retornar a Porto Real investido de
todo o seu poder, a fim de derrubar os inimigos e reclamar o que é
seu de direito. Mas agora... Se levar sua tropa minguada para Porto
Real, será apenas para morrer. Não tem homens em número
suficiente. Disse-lhe isso, mas conhece o orgulho dele - Davos ergueu
a mão enluvada. - Meus dedos voltarão a crescer antes que aquele
homem se vergue ao bom-senso.
O velho
soltou um suspiro:
- O
senhor fez tudo o que podia. Agora devo somar a minha voz à sua - e,
fatigadamente, retomou a subida.
O refúgio
de Lorde Stannis Baratheon era uma grande sala redonda com paredes de
pedra negra nua e quatro janelas altas e estreitas, que se abriam
para as quatro pontas da bússola. No centro do aposento
encontrava-se a grande mesa que lhe dava o nome, uma enorme prancha
de madeira esculpida às ordens de Aegon Targaryen nos dias
anteriores à Conquista. A Mesa Pintada tinha mais de quinze metros
de comprimento, talvez metade dessa medida no ponto mais largo, mas
menos de um metro e vinte no mais estreito. Os carpinteiros de Aegon
tinham lhe dado a forma das terras de Westeros, serrando cada baía e
península até que em nenhuma parte a mesa estivesse reta. Na sua
superfície, escurecida pelo verniz de quase trezentos anos, estavam
pintados os Sete Reinos tal como tinham sido na época de Aegon; rios
e montanhas, castelos e cidades, lagos e florestas.
Havia uma
única cadeira na sala, cuidadosamente posicionada no local preciso
que Pedra do Dragão ocupava em relação à costa de Westeros, e
levantada a fim de fornecer uma boa visão do tampo da mesa. Sentado
na cadeira encontrava-se um homem vestido com um gibão de couro bem
apertado e calções de grosseira lã marrom. Quando Meistre Cressen
entrou, o lorde olhou de relance para cima.
- Eu
sabia que você viria, velho, fosse convocado ou não - não havia
sinal de calor na sua voz; raramente havia.
Stannis
Baratheon, Senhor de Pedra do Dragão e pela graça dos deuses o
legítimo herdeiro do Trono de Ferro dos Sete Reinos de Westeros,
tinha ombros largos e membros fortes, com o rosto e a pele tão
tensos que lembravam couro curado ao sol até ficar duro como aço. A
palavra que os homens usavam quando falavam de Stannis era duro, e
ele de fato o era. Embora ainda não tivesse trinta e cinco anos, só
lhe restava na cabeça uma orla de fino cabelo negro, rodeando a
parte de trás das orelhas como a sombra de uma coroa. Seu irmão, o
falecido Rei Robert, tinha deixado crescer uma barba nos seus últimos
anos. Meistre Cressen nunca a vira, mas dizia-se que era uma coisa
emaranhada, espessa e feroz. Como que em resposta, Stannis mantinha
suas suíças bem aparadas. Espalhavam-se como uma sombra negro-
azulada pelo maxilar quadrado e pelas bochechas secas e ossudas. Seus
olhos eram feridas abertas sob as pesadas sobrancelhas, de um azul
tão escuro como o do mar à noite. A boca teria levado ao desespero
o mais bufão dos bobos; era uma boca feita para ser franzida e
apertada, e para ordens ríspidas, toda ela lábios finos e pálidos
e músculos contraídos, uma boca que tinha se esquecido de como se
sorria e que nunca soube como era rir. Por vezes, quando o mundo
ficava muito quieto e silencioso de noite, Meistre Cressen imaginava
que conseguia ouvir Lorde Stannis rangendo os dentes a meio castelo
de distância.
- Em
outros tempos o senhor teria mandado me acordar - disse o velho.
- Em
outros tempos o meistre foi novo. Agora é velho e doente e precisa
dormir - Stannis nunca aprendera a suavizar o discurso, disfarçar ou
lisonjear; dizia o que pensava, e quem não gostasse que se danasse.
- Eu sabia que você descobriria em breve o que Davos tinha a dizer.
E sempre assim, não é?
- Eu não
lhe teria nenhuma utilidade se assim não fosse - Cressen respondeu.
- Encontrei Davos na escada.
- E ele
contou tudo, suponho. Devia ter encurtado a língua do homem junto
com os dedos.
- Assim
teria sido um enviado inútil.
- De
qualquer forma foi um enviado inútil. Os senhores da tempestade não
se levantarão por mim. Parece que não simpatizam comigo, e a
justiça da minha causa não significa nada para eles. Os covardes
ficarão quietos atrás das suas muralhas, esperando ver como se
ergue o vento e quem tem mais chances de triunfar. Os corajosos já
se declararam por Renly. Por Renly! - cuspiu o nome como se fosse
veneno que tivesse na língua.
- Seu
irmão tem sido senhor de Ponta Tempestade ao longo destes últimos
treze anos. Esses senhores são vassalos juramentados dele...
- Dele -
interrompeu Stannis. - Quando de direito deveriam ser meus. Nunca
pedi Pedra do Dragão. Nunca quis este castelo. Tomei-o porque os
inimigos de Robert estavam aqui, e ele me ordenou que os
escorraçasse. Construí sua frota e fiz o seu trabalho, obediente
como um irmão mais novo deve ser a um mais velho, como Renly devia
ser a mim. E como Robert me agradeceu? Nomeou-me Senhor de Pedra do
Dragão e deu Ponta Tempestade e seus rendimentos a Renly. Ponta
Tempestade pertenceu à Casa Baratheon durante trezentos anos; de
direito devia ter passado para mim quando Robert tomou o Trono de
Ferro.
Era uma
velha ofensa, profundamente sentida, e nunca antes tanto como agora.
Ali estava o cerne da fraqueza do seu senhor. Pedra do Dragão,
embora antiga e forte, detinha a lealdade de apenas um punhado de
pequenos senhores, cujos domínios pedregosos e insulares tinham uma
população escassa demais para fornecer os homens de que Stannis
necessitava. Mesmo com os mercenários que trouxera do outro lado do
mar estreito, das Cidades Livres de Myr e Lys, a hoste acampada junto
às suas muralhas era muito menor do que necessitava ser para
derrubar o poderio da Casa Lannister.
- Robert
foi injusto com o senhor - respondeu cuidadosamente Meistre Cressen -
mas tinha bons motivos. Pedra do Dragão era há muito a sede da Casa
Targaryen. Ele precisava da força de um homem para governar aqui, e
Renly era apenas uma criança.
- Ele
ainda é uma criança - declarou Stannis, com a ira ressoando alto no
salão vazio - uma criança ladra que pensa em surrupiar a coroa da
minha cabeça. Que fez Renly para ganhar um trono? Senta-se no
conselho e troca gracejos com Mindinho, e nos torneios enverga sua
magnífica armadura e permite que um homem melhor o derrube do
cavalo. Meu irmão Renly é isto, o meu irmão que pensa que deveria
ser um rei. Pergunto-lhe, por que os deuses me puniram com irmãos?
- Não
posso responder pelos deuses.
- Pois me
parece que hoje em dia é raro que responda a qualquer coisa. Quem é
o meistre de Renly? Talvez deva mandar buscá-lo, talvez eu venha a
gostar mais dos seus conselhos. Que acha que esse meistre disse
quando meu irmão decidiu roubar minha coroa? Que conselho terá o
seu colega oferecido àquele traiçoeiro sangue do meu sangue?
- Eu
ficaria surpreso se Lorde Renly procurasse conselhos, Vossa Graça.
O mais
novo dos três filhos de Lorde Steffon havia se tornado um homem
corajoso, mas impetuoso, que agia por impulso, e não por cálculo.
Nisso, tal como em muitas outras coisas, Renly era como o irmão
Robert, e completamente diferente de Stannis.
- Vossa
Graça - Stannis rebateu amargamente. - Zomba de mim com o tratamento
devido a um rei, mas sou rei de quê? Pedra do Dragão e um punhado
de rochedos no mar estreito, eis o meu reino.
Desceu os
degraus da cadeira e parou junto da mesa, fazendo sombra sobre a foz
da Torrente de Água Negra e sobre a floresta pintada onde agora se
erguia Porto Real. Ficou ali, pairando sobre o território que
pretendia reclamar, tão perto, e no entanto tão longe.
- Esta
noite devo jantar com os senhores meus vassalos, aqueles que tenho.
Celtigar, Velaryon, Bar Emmon, todo o insignificante bando. Colheita
fraca, pra dizer a verdade, mas são aquilo que meus irmãos me
deixaram. Aquele pirata liseno, Salladhor Saan, estará lá com a
fatura mais recente do que lhe devo, e Morosh, o mirano, vai me
advertir com histórias sobre marés e ventanias de Outono, enquanto
Lorde Sunglass resmunga piedosamente sobre a Fé dos Sete. Celtigar
quererá saber quantos dos senhores da tempestade irão se juntar a
nós. Velaryon ameaçará levar seus recrutas para casa a menos que
ataquemos de imediato. Que hei de dizer a eles? Que devo fazer agora?
- Seus
verdadeiros inimigos são os Lannister, senhor - foi a resposta de
Meistre Cressen. - Se você e seu irmão se unissem contra eles...
- Não
negociarei com Renly - respondeu Stannis num tom que não admitia
discussão. - Pelo menos enquanto ele se disser rei.
- Nesse
caso, com Renly não - cedeu o meistre. Seu senhor era teimoso e
orgulhoso; quando se decidia por alguma coisa, não havia jeito de
fazê-lo mudar de idéia. - Outros poderão também servir às suas
necessidades. O filho de Eddard Stark foi proclamado Rei no Norte e
conta com todo o poderio de Winterfell e Correrrio.
- Um
jovenzinho verde - Stannis ironizou. - E outro falso rei. Devo
aceitar um reino mutilado?
-
Certamente metade de um reino é melhor do que nada - Cressen
observou. - E se ajudar o rapaz a vingar o assassinato do pai...
- Por que
eu deveria vingar Eddard Stark? O homem não era nada para mim. Ah,
Robert adorava-o, com certeza. Adorava-o como a um irmão, quantas
vezes ouvi isso? Eu é que era o irmão dele, não Ned Stark, mas,
pela maneira como me tratava, nunca ninguém adivinharia. Defendi
Ponta Tempestade em seu nome, vendo bons homens passar fome, enquanto
Mace Tyrell e Paxter Redwyne se banqueteavam à vista das minhas
muralhas. E por acaso Robert me agradeceu? Não. Agradeceu ao Stark,
por romper o cerco quando estávamos reduzidos a ratazanas e
rabanetes. Construí uma frota às ordens de Robert, tomei Pedra do
Dragão em seu nome. Por acaso ele pegou minha mão e disse "Muito
bem, irmão, o que eu faria sem você?" Não. Culpou-me por ter
deixado que Willem Derry raptasse Viserys e o bebê, como se eu
tivesse podido impedi-lo. Fiz parte de seu conselho durante quinze
anos, ajudando Jon Arryn a governar o reino, enquanto Robert bebia e
visitava prostitutas, mas, quando Jon morreu, será que meu irmão me
nomeou sua Mão? Não. Partiu a galope atrás do seu querido amigo
Ned Stark e lhe ofereceu essa honra. Que de pouco valeu para ambos.
- Seja
como for, senhor - Meistre Cressen disse gentilmente. - Grandes
injustiças foram cometidas contra você, mas o passado é poeira. O
futuro ainda pode ser conquistado, caso se junte aos Stark. Há
outros que também poderia sondar. E a Senhora Arryn? Se a rainha
assassinou seu marido, ela certamente desejará obter justiça. Tem
um filho novo, herdeiro de Jon Arryn. Se prometesse Shireen ao
rapaz...
- O rapaz
é fraco e doente - retrucou Lorde Stannis. - Mesmo seu pai sabia
como ele era quando me pediu para criá-lo em Pedra do Dragão. O
serviço como escudeiro poderia ter-lhe feito bem, mas aquela maldita
Lannister mandou envenenar Lorde Arryn antes de o trato ser fechado,
e agora Lysa esconde-o no Ninho da Águia. Nunca se separará do
rapaz, garanto.
- Então,
terá de enviar Shireen para o Ninho da Águia - sugeriu o meistre. -
Pedra do Dragão é um lar lúgubre para uma criança. Deixe que o
bobo vá com ela, para que tenha por perto um rosto familiar.
-
Familiar e medonho - Stannis franziu a testa enquanto refletia. -
Mesmo assim... Talvez valha a pena tentar...
- Deverá
o senhor de direito dos Sete Reinos suplicar a ajuda de viúvas e
usurpadores? – perguntou rispidamente uma voz de mulher.
Meistre
Cressen virou-se e inclinou a cabeça.
- Minha
senhora - disse, desgostoso por não tê-la ouvido entrar.
Lorde
Stannis carregou o olhar.
- Eu não
suplico. De ninguém. Tente se lembrar disso, mulher.
-
Agrada-me ouvir isso, senhor.
A Senhora
Selyse era tão alta como o marido, com corpo e feição magros,
orelhas proeminentes, o nariz afilado e a mais leve sugestão de um
bigode sobre o lábio superior. Arrancava os pelos todos os dias e os
amaldiçoava regularmente, mas eles nunca deixavam de voltar. Seus
olhos eram claros; a boca, severa; a voz, um chicote. Agora, fazia-o
estalar.
- A
Senhora Arryn deve-lhe lealdade, tal como os Stark, seu irmão Renly
e todos os outros. O senhor é o verdadeiro rei deles. Não seria
adequado argumentar e negociar com eles aquilo que é seu por
direito, pela graça de Deus.
Deus, ela
disse, e não deuses. A mulher vermelha tinha conquistado Selyse de
alma e coração, afastando-a dos deuses dos Sete Reinos, tanto os
velhos como os novos, para que adorasse aquele a quem chamavam Senhor
da Luz.
- Seu
deus pode ficar com a sua graça - Lorde Stannis desdenhou; não
partilhava a fervorosa nova fé da mulher. - E de espadas que
preciso, não de bênçãos. Teria escondido em algum lugar um
exército de que não me falou antes?
Não
havia afeto no seu tom de voz. Stannis sempre se sentira
desconfortável junto das mulheres, até mesmo da sua própria
esposa. Quando partiu para Porto Real a fim de integrar o conselho de
Robert, deixou Selyse em Pedra do Dragão com a filha. As cartas
tinham sido escassas, as visitas mais ainda; cumpria seu dever de
marido na cama uma ou duas vezes por ano, mas não retirava disso
nenhum prazer, e os filhos homens que no passado esperara nunca
vieram.
- Meus
irmãos, tios e primos têm exércitos - ela disse. - A Casa Florent
vai se juntar à sua bandeira.
- A Casa
Florent pode pôr em campo, no máximo, duas mil espadas - dizia-se
que Stannis conhecia a força de cada casa dos Sete Reinos e você
tem bem mais fé nos seus irmãos e tios do que eu, minha senhora. As
terras dos Florent ficam próximas demais de Jardim de Cima para que
o senhor seu tio se arrisque a despertar a ira de Mace Tyrell.
- Há
outra forma - disse a Senhora Selyse, aproximando-se. - Olhe pelas
suas janelas, senhor. Ali está o sinal que esperava, estampado no
céu. E vermelho, o vermelho da chama, o vermelho do coração
flamejante do verdadeiro deus. É o estandarte dele... e o seu! Veja
como se desenrola pelos céus como o sopro quente de um dragão, e
você é Senhor de Pedra do Dragão. Significa que a sua hora chegou,
Vossa Graça. Nada é mais certo do que isso. Está destinado a
zarpar deste rochedo desolado como Aegon, o Conquistador, zarpou um
dia, para varrer todos à sua frente como ele o fez. Basta dizer a
palavra e acolher o poder do Senhor da Luz.
- Quantas
espadas porá o Senhor da Luz nas minhas mãos? - Stannis a desafiou
novamente.
- Quantas
forem necessárias - prometeu a mulher. - As espadas de Ponta
Tempestade e de Jardim de Cima, para começar, e de todos os senhores
seus vassalos.
- Davos
discordaria - Stannis retrucou. - Essas espadas estão juramentadas a
Renly. Adoram o meu encantador e jovem irmão, como anteriormente
adoravam Robert... e como nunca me adoraram.
- Sim -
ela respondeu. - Mas, e se Renly morresse...
Stannis
olhou sua senhora estreitando os olhos, até que Cressen não
conseguiu dominar a língua.
- Não se
deve pensar em tal coisa. Vossa Graça, sejam quais forem as loucuras
que Renly cometeu...
-
Loucuras? Eu chamo de traições - então, Stannis voltou-se para a
mulher. - Meu irmão é jovem e forte e tem um vasto exército ao seu
redor, e aqueles seus cavaleiros do arco-íris.
-
Melisandre estudou as chamas e o viu morto.
Cressen
ficou horrorizado.
-
Fratricídio... Senhor, isso é uma maldade, impensável... Por
favor, escute-me.
A Senhora
Selyse olhou-o fixamente.
- E o que
lhe diria, Meistre? Como ele poderá conquistar metade de um reino se
for até os Stark de joelhos e vender nossa filha a Lysa Arryn?
- J á
ouvi os seus conselhos, Cressen - Lorde Stannis os interrompeu. -
Agora ouvirei os dela. Está dispensado.
Meistre
Cressen dobrou o joelho rígido. Conseguia sentir os olhos da Senhora
Selyse nas suas costas enquanto se arrastava lentamente até a saída
da sala. Quando chegou ao fim da escada, só com muito esforço
conseguia se manter em pé.
-
Ajude-me - pediu a Pylos.
Depois de
estar de novo a salvo nos seus aposentos, Cressen mandou o jovem
embora e coxeou até a varanda novamente, para observar o mar junto
de suas gárgulas. Um dos navios de guerra de Salladhor Saan passava
pelo castelo, com o casco pintado com cores alegres, abrindo as águas
cinza-esverdeadas enquanto os remos subiam e desciam. Ficou olhando-o
até que desapareceu atrás de um promontório. Gostaria que os meus
temores desaparecessem assim tão facilmente.
Teria
vivido tanto tempo para isso? Quando um meistre colocava seu colar,
punha de lado a esperança de ter filhos; apesar disso, Cressen
sentira-se frequentemente como um pai. Robert, Stannis, Renly... Três
filhos que acabou educando depois de o mar em fúria ter reclamado
Lorde Steífon para si. Teria feito um trabalho tão ruim, para agora
ser forçado a ver um deles matar o outro? Não poderia permitir
isso, não permitiria isso.
A mulher
era a chave. Não a Senhora Selyse, a outra. A mulher vermelha, como
os criados a apelidaram, com medo de dizer seu nome.
- Eu
direi seu nome - disse Cressen ao seu mastim do inferno de pedra. -
Melisandre. Ela. Melisandre de Asshai, feiticeira, umbromante e
sacerdotisa de Rhllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus
da Chama e da Sombra. Melisandre, cuja loucura não se podia deixar
espalhar para lá de Pedra do Dragão.
Os
aposentos pareciam sombrios e lúgubres depois do brilho da manhã.
Com mãos desajeitadas, o velho acendeu uma vela e a levou para a
sala de trabalho sob a escada do viveiro, onde seus unguentos, poções
e medicamentos estavam bem- organizados nas estantes. Na prateleira
de baixo, atrás de uma fileira de bálsamos guardados em atarracadas
vasilhas de barro, encontrou um frasco de vidro anil que não era
maior do que seu dedo mindinho. Chocalhava quando o balançava.
Cressen soprou uma camada de pó e o levou para a mesa. Deixando-se
cair na cadeira, tirou a rolha do vidro e despejou o conteúdo do
frasco. Um punhado de cristais, de tamanho próximo ao de sementes,
tamborilou no pergaminho que ele acabara de ler. Brilhavam como joias
à luz da vela, tão purpúreos que o meistre pensou jamais ter
realmente visto aquela cor antes.
A
corrente em torno do pescoço parecia-lhe muito pesada. Tocou
ligeiramente em um dos cristais com a ponta do mindinho. Que coisa
pequena para conter o poder da vida e da morte. Era feito de uma
certa planta que crescia apenas nas ilhas do Mar de Jade, a meio
mundo de distância. As folhas tinham de ser envelhecidas e embebidas
numa loção de visgo, água de açúcar e certas especiarias raras
vindas das Ilhas do Verão. Depois, podiam ser descartadas, mas a
poção tinha de ser engrossada com cinzas e deixada cristalizar. O
processo era lento e trabalhoso, e os ingredientes, caros e difíceis
de adquirir. Mas os alquimistas de Lys conheciam-no, bem como os
Homens Sem Cara de Bravos... E os meistres da sua ordem, apesar de
não se tocar nesse assunto para lá das muralhas da Cidadela, O
mundo inteiro sabia que um meistre forjava seu elo de prata quando
aprendia a arte de curar... Mas o mundo preferia esquecer que os
homens encarregados de curar também sabiam matar.
Cressen
já não se lembrava do nome que os Asshai davam à folha, ou os
envenenadores de Lys ao cristal. Na Cidadela, era simplesmente
chamado "o estrangulador". Dissolvido em vinho, fazia os
músculos da garganta de um homem se fechar com mais força do que
qualquer punho, obstruindo a traqueia. Dizia-se que o rosto da vítima
ficava tão roxo como a pequena semente de cristal de onde tinha
nascido sua morte, mas o mesmo acontecia com um homem que sufocasse
com uma garfada de comida.
Naquela
mesma noite, Lorde Stannis iria oferecer um banquete aos seus
vassalos, à senhora sua esposa... E à mulher vermelha, Melisandre
de Asshai. Tenho de descansar, disse Meistre Cressen para si mesmo.
Tenho de estar na posse de todas as minhas forças quando a noite
chegar, Minhas mãos não podem tremer, minha coragem não pode
fraquejar. É uma coisa horrível, mas tem de ser feita. Se existirem
deuses, certamente me perdoarão. Andava dormindo tão mal
ultimamente, que uma soneca seria restauradora para a provação que
o esperava. Exausto, cambaleou até a cama. Porém, quando fechou os
olhos, ainda conseguia ver a luz do cometa, vermelha, fogosa e vivida
por entre a escuridão dos seus sonhos. Talvez seja o meu cometa,
pensou, por fim, sonolentamente, momentos antes de ser tomado pelo
sono. Um pressagio de sangue, predizendo o homicídio... sim...
Quando
acordou, era noite fechada, o quarto estava negro, e cada articulação
do seu corpo doía. Cressen sentou-se com esforço, sentindo a cabeça
latejar. Agarrando a bengala com força, pôs-se em pé, cambaleante.
É tão tarde, pensou. Não me chamaram. Era sempre chamado para os
banquetes, e sentava-se perto do sal, ao lado de Lorde Stannis. O
rosto do seu senhor oscilou na sua frente, não o do homem que era,
mas o do jovem que havia sido, sempre no frio da sombra, enquanto o
sol jorrava sobre o irmão mais velho. Fizesse o que fizesse, Robert
havia feito primeiro, e melhor. Pobre rapaz...
Tinha de
se apressar, para o bem dele. O meistre encontrou os cristais onde os
tinha deixado e os recolheu de cima do pergaminho. Cressen não tinha
anéis ocos, daqueles que se dizia que os envenenadores de Lys
preferiam, mas uma miríade de bolsos, grandes e pequenos, tinham
sido costurados do lado de dentro das grandes mangas da sua toga.
Escondeu as sementes de estrangulador num deles, escancarou a porta e
chamou:
- Pylos?
Onde está você? - diante da falta de resposta, voltou a chamar,
mais alto: - Pylos, preciso de ajuda.
Continuou
a não haver resposta. Era estranho; a cela do jovem meistre ficava
apenas meia-volta da escada abaixo, bem ao alcance da sua voz. Por
fim, Cressen foi forçado a chamar os criados.
-
Apressem-se - disse-lhes - Dormi demais. A esta altura já estão no
banquete... bebendo... Deviam ter me acordado - que teria acontecido
ao Meistre Pylos? Realmente não compreendia.
De novo
teve de atravessar a longa galeria, Um vento noturno sussurrava
através das grandes janelas, trazendo o cheiro vivo do mar. Tochas
tremeluziam ao longo das muralhas de Pedra do Dragão, e no
acampamento, que se estendia para lá delas, era possível ver
centenas de fogueiras de cozinhar ardendo, como se um campo de
estrelas tivesse caído sobre a terra. No alto, o cometa brilhava,
vermelho e malévolo. Sou velho e sábio demais para temer esse tipo
de coisa, disse o meistre para si mesmo.
As portas
que abriam para o Grande Salão ficavam na boca de um dragão de
pedra. Disse aos criados para que o deixassem do lado de fora. Seria
melhor entrar sozinho; não devia aparentar fraqueza. Apoiando-se
pesadamente na bengala, Cressen subiu os últimos degraus e coxeou
por baixo dos dentes da entrada. Um par de guardas abriu as pesadas
portas vermelhas à sua frente, libertando uma súbita explosão de
som e de luz. Cressen penetrou no estômago do dragão.
Por sobre
o tinir de facas e pratos, e o profundo burburinho das conversas de
mesa, ouviu Cara-Malhada cantando"... dançar, senhor, dançar,
senhor", acompanhado por guizos dissonantes. A mesma canção
horrível que cantara de manhã, "As sombras vêm ficar, senhor,
ficar, senhor, ficar, senhor" As mesas inferiores estavam
apinhadas de cavaleiros, arqueiros e capitães mercenários, que
desfaziam nacos de pão preto para ensopar nos seus guisados de
peixe. Ali não havia risos sonoros nem gritos obscenos, como os que
acabavam com a dignidade dos banquetes de outros homens, Lorde
Stannis não permitia tais coisas.
Cressen
abriu caminho na direção da plataforma elevada onde os senhores se
sentavam com o rei. Teve de fazer um desvio em volta de Cara-Malhada.
Dançando, com os guizos tocando, o bobo não o viu nem ouviu seus
passos. Enquanto saltitava de uma perna para outra, guinou sobre
Cressen, chutando a bengala em que o meistre se apoiava. No meio da
afobação, caíram juntos, num emaranhado de braços e pernas,
enquanto uma súbita explosão de risos se ergueu à volta deles. Não
havia dúvida de que o espetáculo era cômico. Cara-Malhada
estatelou-se meio por cima do meistre, com a sua cara tatuada de bobo
comprimida contra a de Cressen,
Tinha
perdido o elmo de latão com chifres e guizos.
- Debaixo
do mar, caímos para cima - declarou. - Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.
Aos
risinhos, o bobo rolou para longe, pôs-se em pé de um salto e fez
uma pequena dança. Tentando tirar o melhor proveito da situação, o
meistre deu um frágil sorriso e esforçou-se para se erguer, mas sua
bacia doía tanto que, por um momento, chegou a temer que a tivesse
quebrado de novo. Sentiu-se sendo agarrado por baixo dos braços por
mãos fortes que o puseram em pé.
-
Obrigado, sor - murmurou, virando-se para ver qual dos cavaleiros
tinha vindo ajudá-lo...
- Meistre
- disse a Senhora Melisandre, com a voz profunda temperada com a
música do mar de Jade. - Deveria tomar mais cuidado.
Como
sempre, trajava vermelho dos pés à cabeça, com um longo vestido
solto de seda esvoaçante, brilhante como fogo, com longas mangas
pendentes e profundos cortes no corpete, pelos quais se entrevia um
tecido mais escuro, vermelho-sangue, que usava por baixo. Tinha em
torno da garganta uma gargantilha de ouro vermelho, mais apertada do
que qualquer corrente de meistre, ornamentada com um único grande
rubi. O cabelo não era de tom alaranjado ou cor de morango dos
ruivos comuns, mas de um profundo acobreado lustroso que brilhava à
luz das tochas. Até seus olhos eram vermelhos... Mas a pele era lisa
e branca, imaculada, clara como leite. E era esguia, graciosa, mais
alta que a maior parte dos cavaleiros, com seios fartos, cintura
estreita e um rosto em forma de coração. Os olhos dos homens que a
encontravam não se afastavam facilmente, nem mesmo os de um meistre.
Muitos diziam que era bela, Mas não era. Era vermelha, e terrível,
e vermelha.
- Eu...
lhe agradeço, senhora.
- Um
homem da sua idade deve ver onde pisa - Melisandre disse cortesmente.
- A noite é escura e cheia de terrores.
Ele
conhecia a frase, uma prece qualquer da fé dela. Não importa, tenho
minha própria fé.
- Só as
crianças temem a escuridão - Cressen respondeu. Mas, mesmo enquanto
proferia aquelas palavras, ouviu Cara- Malhada retomar sua canção
"As sombras vêm dançar, senhor, dançar, senhor, dançar,
senhor".
- Eis um
mistério - disse Melisandre. - Um bobo esperto e um sábio tolo.
Dobrando-se,
pegou do chão o elmo de Cara-Malhada e o colocou na cabeça de
Cressen. Os guizos ressoaram suavemente quando o balde de latão
deslizou sobre suas orelhas.
- Uma
coroa para combinar com a sua corrente, Senhor Meistre - ela
anunciou. Por todos os lados, os homens riam.
Cressen
apertou os lábios e lutou para controlar a ira. Ela o via como
frágil e impotente, mas aprenderia que não era assim, antes de a
noite acabar, Podia ser velho, mas ainda era um meistre da Cidadela.
- Não
necessito de coroa alguma além da verdade - ele respondeu, tirando o
elmo do bobo da cabeça.
- Há
verdades neste mundo que não se ensinam em Vilavelha.
Melisandre
virou as costas num redemoinho de seda vermelha e abriu caminho de
volta à mesa elevada, onde se encontravam o Rei Stannis e sua
rainha. Cressen entregou o balde de latão com chifres a Cara-Malhada
e fez menção de segui-la.
Meistre
Pylos estava sentado no seu lugar. O velho só conseguiu ficar
parado, encarando-o.
- Meistre
Pylos - disse por fim. - Você... você não me acordou.
- Sua
Graça ordenou-me que o deixasse repousar - Pylos teve pelo menos a
cortesia de corar. - Disse-me que sua presença aqui não era
necessária.
Cressen
examinou por cima os cavaleiros, capitães e senhores que se sentavam
em silêncio. Lorde Celtigar, idoso e amargo, vestia um manto com um
padrão de caranguejos vermelhos realçados com granadas. O belo
Lorde Velaryon tinha escolhido seda verde-mar, e o cavalo-marinho de
ouro branco que trazia à garganta combinava com seus longos cabelos
claros. Lorde Bar Emmon, um roliço rapaz de catorze anos, estava
coberto de veludo roxo debruado com pele de foca branca; Sor Axell
Florent permanecia modesto, mesmo vestido de cor ferrugem e pele de
raposa. O piedoso Lorde Sunglass usava selenite na garganta, no pulso
e nos dedos, e o capitão liseno Salladhor Saan era um esplendor de
cetim escarlate, ouro e joias. Só Sor Davos vestia-se de forma
simples, com um gibão marrom e um manto de lã verde, e só ele
enfrentou seu olhar, com piedade nos olhos.
- Está
doente e confuso demais para me ser útil, velho - soava tanto como a
voz de Lorde Stannis, mas não podia ser, não podia. - Daqui em
diante, Pylos irá me aconselhar. Já cuida dos corvos, uma vez que
você já não é capaz de subir até o viveiro. Não deixarei que se
mate a meu serviço.
Meistre
Cressen pestanejou. Stannis, meu senhor, meu triste rapaz carrancudo,
filho que nunca tive, não pode fazer isso. Não sabe como me
preocupei com você, vivi para você, amei você apesar de tudo? Sim,
amei-o, mais até do que a Robert, ou a Renly, pois você era o
mal-amado, aquele que mais precisava.
Mas tudo
o que disse foi:
- As suas
ordens, senhor, mas... Tenho fome. Poderia ocupar um lugar à sua
mesa? - ao seu lado, o meu lugar é ao seu lado...
Sor Davos
levantou-se do banco.
- Ficaria
honrado se o meistre se sentasse aqui ao meu lado, Vossa Graça.
- Como
quiser - Lorde Stannis respondeu e se virou para dizer qualquer coisa
a Melisandre, que tinha se sentado do seu lado direito, lugar de
grande honra. A Senhora Selyse estava à sua esquerda, ostentando um
sorriso tão brilhante e anguloso como as suas joias.
Longe
demais, pensou Cressen, atordoado, olhando para onde Sor Davos estava
sentado. Metade dos senhores vassalos separava o contrabandista da
mesa elevada. Tenho de ficar mais perto dela se quiser pôr o
estrangulador na sua taça. Mas como?
Cara-Malhada
dava piruetas por ali, enquanto o meistre fazia seu lento trajeto em
volta da mesa até Davos Seaworth.
- Aqui
comemos peixe - declarou o bobo em tom feliz, brandindo um bacalhau
como se fosse um cetro. - Debaixo do mar, os peixes nos comem. Eu
sei, eu sei, ei, ei, ei.
Sor Davos
afastou-se para o lado, a fim de arranjar espaço no banco,
- Hoje
devíamos estar todos vestidos de bufões - ele disse lugubremente
quando Cressen se sentou - pois o que estamos fazendo é coisa de
bobo. A mulher vermelha viu vitória nas suas chamas; portanto,
Stannis deseja insistir na sua pretensão, sem se importar com os
números. Receio que, antes de ela terminar, é provável que todos
vejamos o que o Cara-Malhada viu... o fundo do mar.
Cressen
enfiou as mãos nas mangas, como se procurasse aquecê-las. Os dedos
encontraram os caroços que os cristais faziam na lã.
- Lorde
Stannis.
Stannis
afastou o olhar da mulher vermelha, mas foi Selyse quem respondeu.
- Rei
Stannis. Esqueceu-se do seu lugar, meistre.
- Ele é
velho, sua mente divaga - disse-lhe o rei num tom rabugento. - Que
foi, Cressen? Diga o que está pensando.
- Visto
que pretende zarpar, é vital que faça causa comum com Lorde Stark e
a Senhora Arryn...
- Não
faço causa comum com ninguém - Stannis Baratheon respondeu.
- Assim
como a luz não faz causa comum com a escuridão - a Senhora Selyse
tomou sua mão.
Stannis
concordou com a cabeça.
- Os
Stark tentam roubar metade do meu reino, tal como os Lannister me
roubaram o trono e o meu querido irmão, as espadas, servidores e
fortalezas, que são meus de direito. São todos usurpadores, e são
todos meus inimigos.
Perdi-o,
Cressen pensou, desesperando-se. Se ao menos conseguisse, de algum
modo, se aproximar de Melisandre sem ser visto... Não precisava de
mais do que um instante de proximidade da sua taça.
- O
senhor é o herdeiro legítimo do seu irmão Robert, o verdadeiro
Senhor dos Sete Reinos, e Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos
Primeiros Homens - Cressen disse, desesperadamente. - Mas, mesmo
assim, não pode crer em um triunfo sem aliados.
- Ele tem
um aliado - interveio a Senhora Selyse. - Rhllor, o Senhor da Luz, o
Coração do Fogo, o Deus da Chama e da Sombra.
- Os
deuses são, na melhor das hipóteses, aliados incertos - insistiu o
velho. - E esse não tem poder nenhum aqui.
-
Acredita que não?
O rubi
preso ao pescoço de Melisandre capturou a luz quando ela virou a
cabeça, e por um instante pareceu brilhar tão luminoso como o
cometa.
- Se
acredita em tal besteira, Meistre, deveria voltar a colocar sua
coroa.
- Sim -
concordou a Senhora Selyse. - O elmo do Malhada. Cai bem em você,
velho. Volte a colocá-lo, eu ordeno.
- Debaixo
do mar ninguém usa chapéus - cantarolou Cara-Malhada. - Eu sei, eu
sei, ei, ei, ei.
Os olhos
de Lorde Stannis estavam na sombra das suas pesadas sobrancelhas, sua
boca, apertada, enquanto o maxilar trabalhava em silêncio. Rangia os
dentes sempre que se zangava.
- Bobo -
ele rosnou por fim - a senhora minha esposa ordena. Dê o elmo a
Cressen.
Não,
pensou o velho meistre, este não é você, não é o seu jeito,
sempre foi justo, sempre duro, mas nunca cruel, nunca, não
compreendia a gozação, assim como não compreendia o riso.
Cara-Malhada
se aproximou dançando, fazendo soar os guizos, clang-a-clang,
ding-ding, clinc-clanc-clinc-clanc. O meistre ficou sentado, em
silêncio, enquanto o bobo punha o balde com chifres na sua cabeça.
Cressen abaixou a cabeça com o peso. Os sinos ressoaram.
- Talvez
ele deva, daqui para a frente, cantar os seus conselhos - disse a
Senhora Selyse.
- Foi
longe demais, mulher - repreendeu-a Lorde Stannis. - E um velho, e
serviu-me bem.
E
servirei até o fim, meu querido senhor, meu pobre filho solitário,
pensou Cressen. E, de repente, descobriu um jeito. A taça de Sor
Davos estava na sua frente, ainda com tinto amargo pela metade.
Encontrou uma dura lasca de cristal na manga, apertou-a bem entre o
indicador e o polegar enquanto estendia a mão para a taça.
Movimentos suaves, hábeis, agora não posso me atrapalhar, rezou, e
os deuses mostraram-se bondosos. Num piscar de olhos, os dedos
ficaram vazios. Havia anos que suas mãos não tinham estado tão
firmes, nem com metade daquela leveza. Davos viu, mas mais ninguém,
tinha certeza. De taça na mão, levantou-se.
- Talvez
tenha sido um tolo. Senhora Melisandre, quer partilhar comigo uma
taça de vinho? Uma taça em honra do seu deus, do seu Senhor da Luz?
Uma taça para brindar ao poder dele?
A mulher
vermelha o estudou.
- Se
quiser...
Podia
sentir que todos o observavam. Davos agarrou-o quando se levantou do
banco, prendendo sua manga com os dedos que Lord Stannis tinha
encurtado.
- O que
está fazendo? - sussurrou.
- Uma
coisa que tem de ser feita - respondeu meistre Cressen. - Para o bem
do reino e da alma do meu senhor - sacudiu a mão de Davos,
derramando uma gota de vinho nas esteiras.
Encontraram-se
sob a mesa elevada, com os olhos de todos os homens sobre eles. Mas
Cressen só via a mulher. Seda vermelha, olhos vermelhos, o rubi
vermelho no pescoço, lábios vermelhos encurvados num tênue sorriso
quando colocou a mão sobre a dele, em torno da taça. A pele dela
pareceu-lhe quente, febril.
- Não é
tarde demais para jogar o vinho fora, meistre.
- Não
-murmurou roucamente. - Não.
- Como
quiser.
Melisandre
de Asshai tirou a taça de suas mãos e bebeu, longa e profundamente.
Quando a devolveu, restava apenas meio gole de vinho no fundo.
- E agora
você.
As mãos
de Cressen tremiam, mas obrigou-se a ser forte. Um meistre da
Cidadela não devia ter medo. Sentiu o vinho amargo na língua.
Deixou a taça vazia cair dos seus dedos e se estilhaçar no chão.
- Ele tem
poder aqui, senhor - disse a mulher. - E o fogo purifica - na sua
garganta, o rubi cintilava, vermelho.
Cressen
tentou responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. Sua
tosse transformou-se num terrível assobio agudo quando tentou
inspirar. Dedos de ferro apertaram-se em torno do seu pescoço.
Quando caiu de joelhos, ainda balançava a cabeça, negando-a,
negando seu poder, sua magia, negando o seu deus. E os guizos tiniam
nos chifres, cantando tolo, tolo, tolo, enquanto a mulher vermelha o
olhava com piedade, e as chamas das velas dançavam nos seus olhos
tão... tão vermelhos.
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