quarta-feira, 25 de setembro de 2013

9 - DAVOS


O relâmpago partiu o lado norte do céu, estampando a negra torre da Lamparina da Noite contra o firmamento branco e azul. Seis segundos depois veio o trovão, como um tambor distante.
Os guardas escoltaram Davos Seaworth por uma ponte de basalto negro e sob um portão de ferro corrediço com sinais de ferrugem. Além do portão havia um profundo fosso salgado e uma ponte levadiça presa por um par de grossas correntes. Águas verdes agitavam-se embaixo, com ondas que rebentavam contra as fundações do castelo. Então veio uma segunda guarita, maior do que a primeira, suas pedras barbadas com algas verdes. Davos chegou a um pátio lamacento com as mãos atadas pelos pulsos. Uma chuva gelada caía em seus olhos. Os guardas o cutucaram para subir os degraus, até o cavernoso salão de pedra de Quebra-Mar.
Uma vez lá dentro, o capitão tirou a capa e a pendurou em um gancho, de modo a não deixar poças no puído tapete de Myr. Davos fez o mesmo, tateando o fecho com as mãos amarradas. Ele não esquecera a cortesia aprendida em Pedra do Dragão durante anos de serviço.
Encontraram o senhor sozinho na escuridão da sala, fazendo uma refeição de cerveja, pão e ensopado. Vinte arandelas de ferro estavam dispostas ao longo das grossas paredes de pedra, mas somente quatro tinham tochas e nenhuma delas estava acesa. Duas gordas velas de sebo davam ao ambiente uma iluminação pobre e indefinida. Davos podia ouvir a chuva escorrendo pelas paredes e uma goteira que caía de um vazamento no telhado.
- Senhor - disse o capitão - encontramos este homem na Barriga da Baleia, tentando comprar uma passagem para sair da ilha. Ele tinha vinte dragões e esta coisa também.
O capitão colocou-a na mesa diante do senhor: uma larga fita de veludo negro aparada com samito, com três selos - um veado coroado carimbado em cera de abelha dourada, um coração em chamas em cera vermelha e uma mão em cera branca.
Davos esperou, molhado e pingando, os pulsos esfolados onde a corda molhada entrara em sua pele. Uma palavra desse senhor, e logo estaria pendurado no Portão do Enforcamento de Vilirmã, mas pelo menos estava fora da chuva, com pedra sólida sob seus pés, em vez de um convés balançante. Estava encharcado, dolorido e exausto, desgastado pela dor e pela traição, e cansado até a morte das tempestades.
O senhor limpou a boca com as costas da mão e pegou a fita para analisá-la mais de perto. Um relâmpago brilhou lá fora, formando uma seta branca e azul que durou meio segundo. Um, dois, três, quatro, contou Davos, antes que o trovão viesse. Quando o barulho passou, ele ouviu o gotejamento e o rugido sincopado sob seus pés, onde as ondas quebravam contra os enormes arcos de pedra de Quebra-Mar e turbilhonavam pelas masmorras do castelo. Ele bem que poderia terminar lá, acorrentado ao chão de pedra molhado, deixado para se afogar quando a maré subisse. Não, tentou dizer a si mesmo, um contrabandista pode morrer assim, mas não a Mão do Rei. Valho mais se me vender à rainha dele.
O senhor segurou a fita entre os dedos, franzindo a testa para o selos. Era um homem feio, grande e carnudo, com ombros grossos de remador e nenhum pescoço. Uma barba cinza cobria o rosto e o queixo, com algumas partes já totalmente brancas. Em cima das grossas sobrancelhas, avistava-se uma careca. Seu nariz era irregular e vermelho, com algumas veias aparecendo, tinha lábios grossos e uma espécie de membrana entre os três dedos do meio da mão direita. Davos ouvira falar que alguns dos senhores das Três Irmãs tinham membranas entre os dedos das mãos e dos pés, mas sempre achara que eram apenas histórias de marujos.
O senhor inclinou-se para trás.
- Tire as amarras dele - disse - e também as luvas. Quero ver suas mãos.
O capitão fez o que lhe foi ordenado. Quando levantou a mão esquerda mutilada do prisioneiro, um relâmpago brilhou novamente, jogando as sombras dos dedos encurtados de Davos Seaworth contra o rosto franco e brutal de Godric Borrell, Senhor da Doceirmã.
- Qualquer homem pode roubar uma fita - o senhor disse - mas esses dedos não mentem. Você é o cavaleiro das cebolas.
- Tenho sido chamado assim, senhor - Davos era um senhor também, e fora sagrado cavaleiro havia muitos anos, mas no fundo ainda era o que sempre fora, um contrabandista de nascimento humilde que comprara sua nobreza com um porão de cebolas e peixe salgado. - E também contrabandista de coisas piores.
- Sim. Traidor. Rebelde. Vira-casaca.
Ele se indignou com o último xingamento.
- Nunca virei a casaca, senhor. Sou um homem do rei.
- Só se Stannis for um rei. - O senhor o mediu com duros olhos negros. - A maioria dos cavaleiros que chega às minhas terras procura-me no meu salão, não na Barriga da Baleia. Um covil de vis contrabandistas, aquele lugar. Está retomando o antigo negócio, cavaleiro das cebolas?
- Não, senhor. Estava procurando passagem para Porto Branco. O rei me enviou, com uma mensagem de lá para o senhor.
- Então você está no lugar errado, com o senhor errado. - Lorde Godric pareceu divertir-se. - Esta é Vilirmã, em Doceirmã.
- Sei disso. - Embora não houvesse nada doce em Vilirmã. Era uma cidade torpe, um chiqueiro, pequena, pobre e rançosa com os cheiros de excremento de porco e peixe podre. Davos lembrava bem de seus dias de contrabando. As Três Irmãs eram o refúgio preferido dos contrabandistas havia centenas de anos e, antes disso, um ninho de piratas. As ruas de Vilirmã eram feitas de barro e tábuas de madeira, as casas eram cabanas de pau a pique com telhados de palha, e no Portão do Enforcamento sempre tinha um homem pendurado com as entranhas de fora.
- Você tem amigos aqui, não duvido - disse o senhor. - Todo contrabandista tem amigos nas Irmãs. Alguns deles são meus amigos também. Os que não são, eu enforco. Deixo eles serem estrangulados lentamente, com as tripas batendo contra os joelhos. - O salão brilhou novamente: um relâmpago acendeu a janela. Dois segundos depois veio o trovão. - Se é Porto Branco que você quer, por que está em Vilirmã? O que o trouxe aqui?
Uma ordem do rei e a traição de um amigo, Davos podia ter dito. Em vez disso, respondeu:
- Tempestades.
Vinte e nove navios zarparam da Muralha. Se metade deles ainda estivesse flutuando, Davos ficaria surpreso. Céus negros, ventos amargos e chuvas pesadas os seguiram por todo o caminho pela costa. As galeras Oledo e Filho da Velha Mãe haviam sido levadas para as rochas de Skagos, a ilha dos unicórnios e canibais onde até mesmo o Bastardo Cego tinha medo de ir; o grande barco de pesca Saathos Saan naufragara nas Falésias Cinzentas.
- Stannis pagará por eles - Salladhor Saan esbravejara. - Pagará com bom ouro, cada um deles.
Era como se algum deus irado estivesse cobrando pela fácil viagem que haviam feito para o norte, quando partiram de Pedra do Dragão para a Muralha. Outro vendaval arrancou o cordame do Colheita Caridosa, obrigando Salla a rebocá-lo. Sessenta quilômetros ao norte de Atalaia da Viúva o mar se levantou novamente, empurrando o Colheita contra a galera que o rebocava e afundando os dois. O restante da frota lisena se espalhara pelo Mar Estreito. Alguns navios deviam andar perdidos em um ou outro porto. Outros nunca mais seriam vistos.
- Salladhor, o Mendigo, foi nisso que seu rei me transformou - Salladhor Saan reclamou para Davos, enquanto os navios que sobraram claudicavam pela Dentada. - Salladhor, o Esmagado. Onde estão meus navios? E meu ouro, onde está todo o ouro que me prometeram?
Quando Davos tentou assegurar que ele teria seu pagamento, Salla irrompeu.
- Quando? Quando? Amanhã, na lua nova, quando o cometa vermelho aparecer de novo? Ele me prometeu ouro e pedras preciosas, sempre prometendo, mas nunca vi esse ouro. Ele deu sua palavra, me diz, ah, sim, sua real palavra, e por escrito. Salladhor Saan pode comer as palavras do rei? Pode aplacar sua sede com pergaminhos e selos de cera? Pode derrubar promessas em um colchão de penas e fodê-Ias até gritarem?
Davos tentou persuadi-lo a permanecer fiel. Se Salla abandonasse Stannis e sua causa, argumentou, deixaria de lado toda a esperança de receber o ouro que lhe era devido. No final das contas, um vitorioso Rei Tommen não pagaria as dívidas de seu tio derrotado. A única esperança de Salla era manter-se leal a Stannis Baratheon até que ele conquistasse o Trono de Ferro. De outra maneira, nunca veria uma só moeda do seu dinheiro. Tinha que ser paciente.
Talvez algum senhor com mel na língua pudesse ter influenciado o príncipe dos piratas liseno, mas Davos era um cavaleiro das cebolas e suas palavras só provocaram nova indignação em Salla.
- Em Pedra do Dragão eu fui paciente - disse - quando a mulher vermelha queimou os deuses de madeira e os homens aos gritos. Todo o caminho para a Muralha eu fui paciente. Em Atalaialeste eu tive paciência ... e frio, muito frio. Bah, digo. Bah para sua paciência, e bah para seu rei. Meus homens estão com fome. Querem foder suas esposas e contar seus filhos, querem ver Passopedra e os jardins de prazer de Lys. Não querem gelo, tempestades e promessas vazias. Este norte é muito frio, e está ficando mais frio ainda.
Eu sabia que me dia chegaria, Davos disse para si mesmo. Eu gostava do velho malandro, mas nunca fui tolo de acreditar nele.
- Tempestades. - Lorde Godric disse a palavra tão carinhosamente quanto outro homem diria o nome da amada. - Tempestades eram sagradas nas Irmãs antes da chegada dos ândalos. Nossos deuses de antigamente eram a Senhora das Ondas e o Senhor dos Céus. Faziam tempestades cada vez que acasalavam. - Inclinou-se para a frente. - Esses reis nunca se importaram com as Irmãs. Por que deveriam? Somos pequenos e pobres. E, ainda assim, você está aqui. Entregue a mim pelas tempestades.
Entregue a você por um amigo, Davos pensou.
Lorde Godric virou-se para seu capitão.
- Deixe este homem comigo. Ele nunca esteve aqui.
- Não, senhor. Nunca.
O capitão despediu-se, suas botas molhadas deixando pegadas úmidas pelo tapete. Embaixo do piso, o mar roncava e agitava-se batendo na fundação do castelo. A porta foi fechada como um som que parecia um trovão distante, e novamente veio um relâmpago, como que em resposta.
- Senhor - disse Davos - se puder me mandar para Porto Branco, Sua Graça considerará isso um ato de amizade.
- Eu poderia enviar você para Porto Branco - o lorde concordou. - Ou posso mandá-lo para algum inferno frio e úmido.
Vilirmã já é inferno suficiente. Davos temeu o pior. As Três Irmãs eram putas inconstantes, leais apenas a si mesmas. Supostamente eram vassalas dos Arryn do Vale, mas o controle do Ninho da Águia sobre as ilhas era tênue, na melhor das hipóteses.
- Sunderland exigiria que você fosse entregue a ele, se soubesse que está aqui. - Borrell era senhor de Doceirmã, como Longthorpe era de Longairmã e Torrent de Pequenairmã; e todos eles eram vassalos de Triston Sunderland, o Senhor das Três Irmãs. - Ele venderia você à rainha, por um pote daquele ouro Lannister. Homens pobres precisam de cada dragão, ainda mais quando têm sete filhos determinados a ser cavaleiros. - O senhor pegou uma colher de madeira e atacou o ensopado novamente. - Eu costumava amaldiçoar os deuses por me darem apenas filhas mulheres, até que ouvi dizer que Triston lamenta o gasto com cavalos de batalha. Você ficaria surpreso em saber quanto peixe é necessário para comprar uma armadura decente e uma cota de malha.
Também tive sete filhos, mas quatro deles foram queimados e morreram.
- Lorde Sunderland é juramentado ao Ninho da Águia - Davos disse. - Por direito, deveria me entregar à Senhora Arryn. - Ele poderia ter uma chance melhor com ela do que com os Lannister, imaginava. Embora não tivesse tomado partido na Guerra dos Cinco Reis, Lysa Arryn era uma filha de Correrrio e tia do Jovem Lobo.
- Lysa Arryn está morta - disse Lorde Godric - assassinada por algum cantor. Lorde Mindinho comanda o Vale agora. Onde estão os piratas? - Quando Davos não respondeu, ele bateu com a colher na mesa. - Os lisenos. Torrent viu os navios deles de Pequenairmã, e antes dele os Flint de Atalaia da Viúva. Velas laranja, verdes e rosa. Salladhor Saan. Onde está ele?
- No mar. - Salla devia estar contornando os Dedos para voltar ao Mar Estreito. Estava retornando para Passopedra com os poucos navios que sobraram. Talvez conseguisse mais alguns no caminho, se encontrasse alguns navios mercantes promissores. Um pouco de pirataria ajudaria a distância a passar mais rápido. - Sua Graça enviou-o ao Sul, para levar um pouco de problemas aos Lannister e seus amigos. - Ele ensaiara essa mentira enquanto remava para Vilirmã embaixo de chuva. Cedo ou tarde, o mundo saberia que Salladhor Saan abandonara Stannis Baratheon, deixando-o sem uma frota, mas não ouviria isso dos lábios de Davos Seaworth.
Lorde Godric mexeu seu ensopado.
- Aquele velho pirata Saan fez você nadar até a praia?
- Cheguei em terra em um bote aberto, senhor - Salla esperara até que o farol da Lamparina da Noite se afastasse do porto valiriano para colocá-lo para fora. Sua amizade valera a pena por isso, no final das contas. O liseno teria ficado feliz em levá-lo consigo para o Sul, confessara, mas Davos recusara. Stannis precisava de Wyman Manderly, e confiava nele para ganhar o apoio do senhor. Ele não trairia aquela confiança.
- Bah - o príncipe pirata replicara - ele vai matar você com essa honra, velho amigo. Ele vai matar você.
- Nunca tive uma Mão do Rei sob meu teto antes - Lorde Godric disse. - Stannis pagaria um resgate por você, me pergunto?
Pagaria? Stannis dera terras, títulos e um cargo para Davos, mas pagaria um bom ouro por sua vida? Ele não tem ouro. Se tivesse, ainda teria Salla.
- Você encontrará Sua Graça no Castelo Negro, se quiser perguntar a ele.
Borrell grunhiu:
- O Duende está no Castelo Negro também?
- O Duende? - Davos não entendeu a pergunta. - Ele está em Porto Real, condenado à morte pelo assassinato do sobrinho.
- A Muralha é a última a saber, meu pai costumava dizer. O anão escapou. Torceu as barras de sua cela e despedaçou o próprio pai com as mãos. Um guarda o viu fugir, vermelho da cabeça aos pés, como se banhado em sangue. A rainha dará títulos e terras para qualquer homem que matá-lo.
Davos lutava para acreditar no que ouvia.
- Está me dizendo que Tywin Lannister está morto?
- Pela mão do filho, sim. - O senhor tomou um gole de cerveja. - Quando havia reis nas Irmãs, não permitíamos que os anões vivessem. Jogávamos eles ao mar, como oferenda aos deuses. Os septões nos fizeram parar. Um bando de tolos piedosos. Por que os deuses dariam tal forma a um homem, se não fosse para marcá-lo como um monstro?
Lorde Tywin está morto. Isso muda tudo.
- Senhor, me permitiria enviar um corvo para a Muralha? Sua Graça desejará saber que Lorde Tywin está morto.
- Ele saberá. Mas não por mim. Nem por você, enquanto estiver sob meu telhado gotejante. Não quero que digam que dei ajuda e conselho a Stannis. Os Sunderland arrastaram as Irmãs para as duas Rebeliões Blackfyre, e todos nós sofremos gravemente com isso. - Lorde Godric acenou com a colher em direção a uma cadeira. - Sente-se. Antes que caia, sor. Meu salão é frio, úmido e escuro, mas não sem alguma cortesia. Encontraremos roupas secas, mas primeiro você comerá. - Ele gritou, e uma mulher entrou no salão. - Temos um convidado para alimentar. Traga cerveja, pão e ensopado.
A cerveja era marrom, o pão, negro, e o ensopado, um branco cremoso. Foi servido em um pão velho escavado. Estava grosso, com alho-poró, cenoura, cevadinha e nabos brancos e amarelos, juntamente com amêijoas, pedaços de bacalhau e carne de caranguejo, nadando em uma porção de creme pesado e manteiga. Era o tipo de ensopado que aquecia o homem até os ossos, perfeito para uma noite úmida e fria. Davos comeu com gratidão.
- Já havia provado o ensopado das Irmãs?
- Já, senhor. - O mesmo ensopado era servido por todas as Três Irmãs, em cada estalagem e taverna.
- Este é melhor do que qualquer um que você já tenha comido. Gella preparou. A filha da minha filha. É casado, cavaleiro das cebolas?
- Sou, senhor.
- Uma pena. Gella não é. Mulheres caseiras são as melhores esposas. Há três tipos de caranguejos aí. Caranguejos vermelhos, caranguejos-aranha e conquistadores. Eu não como caranguejos-aranha, exceto no ensopado. Para me sentir meio canibal. - O nobre gesticulou para o estandarte pendurado sobre a fria lareira negra. Um caranguejo-aranha estava bordado ali, branco, em um campo verde-acinzentado. - Ouvimos histórias que Stannis queimou sua Mão.
A Mão que viera antes de mim. Melisandre dera Alester Florent para o deus dela em Pedra do Dragão, para conjurar o vento que os levaria para o Norte. Lorde Florent permaneceu forte e silencioso enquanto os homens da rainha o amarravam ao poste, tão dignamente quanto um homem seminu pode permanecer, mas quando as chamas lamberam suas pernas, ele começou a gritar, e seus gritos as sopraram por todo o caminho até Atalaialeste do Mar, se fosse possível acreditar na mulher vermelha. Podia facilmente ter sido eu.
- Eu não queimei - assegurou a Lorde Godric - embora Atalaialeste tenha quase me congelado.
- A Muralha fará isso. - A mulher trouxe um naco de pão fresco para eles, ainda quente do forno. Quando Davos viu a mão dela, não pôde deixar de encarar. Lorde Godric não se fez de rogado. - Sim, ela tem a marca. Como todos os Borrell, por cinco mil anos. Filha da minha filha. Não a que fez o ensopado. - Ele partiu o pão e ofereceu metade para Davos. - Coma. É bom.
E era, embora qualquer crosta velha teria parecido boa para Davos; significava que era um convidado ali, pelo menos por aquela noite. Os senhores das Três Irmãs tinham uma reputação negra, e ninguém suplantava a de Godric Borell, Senhor da Doceirmã, Escudo de Vilirmã, Mestre do Castelo Quebra-Mar e Protetor da Lamparina da Noite ... mas até mesmo senhores ladrões e sabotadores estavam submetidos às antigas leis da hospitalidade. Verei o amanhecer pelo menos, Davos disse para si mesmo. Comi seu pão e sal.
Embora pudesse perceber temperos mais estranhos do que sal no ensopado.
- É açafrão que estou sentindo? - Açafrão valia mais do que ouro. Davos provara apenas uma vez, quando o Rei Robert enviara metade de um peixe para ele em uma festa em Pedra do Dragão.
- Sim. De Qarth. Tem pimenta também. - Lorde Godric pegou uma pitada entre o polegar e o indicador e espalhou sobre o ensopado. - Pimenta negra moída de Vohntis, nada mais fino. Pegue o quanto quiser, se estiver se sentindo picante. Tenho quarenta baús dela. Sem mencionar cravo e noz-moscada, e um quilo de açafrão. Tirei de uma donzela de olhos amendoados - riu. Ele ainda tinha todos os dentes, Davos notou, embora estivessem amarelos e um dos de cima estivesse negro e morto. - Dirigia-se para Bravos, mas um vendaval a arrastou para a Dentada e esmagou-a contra uma das minhas pedras. Como pode ver, você não é o único presente que as tempestades me trouxeram. O mar é uma coisa traiçoeira e cruel.
Não tão traiçoeiro quanto os homens, pensou Davos. Os antepassados de Lorde Godric haviam sido reis piratas, até que os Stark desceram sobre eles com fogo e espadas. A partir daí, os homens das irmãs deixaram a pirataria para Salladhor Saan e sua laia e se contentaram em provocar naufrágios. Os faróis que queimavam ao longo das margens das Três Irmãs eram supostamente para avisar de cardumes, recifes e rochas e garantir a segurança do caminho, mas em noites de tempestade e neblina, alguns homens das irmãs usavam falsas luzes para levar capitães incautos à perdição.
- As tempestades fizeram uma gentileza ao trazer você até minha porta - Lorde Godric disse. - Você teria encontrado uma recepção mais fria em Porto Branco. Chegou muito tarde, sor. Lorde Wyman pretende se ajoelhar, mas não para Stannis. - Tomou um pequeno gole de cerveja. - Os Manderly não são nortenhos, não no fundo. Não faz mais de novecentos anos que vieram para o norte, carregados com todo o seu ouro e seus deuses. Haviam sido grandes senhores no Mander, até que se excederam e os mãos verdes os expulsaram. O rei lobo tomou seu ouro, mas lhes deu terras e os deixou ficarem com seus deuses. - Ele esfregou um pedaço de pão no ensopado. - Se Stannis pensa que o gordo cavalgará o veado, está enganado. O Leão Estrelado parou em Vilirmã há doze dias, para abastecer os barris de água. Você o conhece? Velas carmesins e um leão de ouro na proa. E cheio de Freys, dirigindo-se para Porto Branco.
- Freys? - Esta era a última coisa que Davos poderia esperar. - Ouvimos que os Frey mataram o filho de Lorde Wyman.
- Sim - Lorde Godric disse - e o gordo estava tão indignado que jurou viver só de pão e vinho até ter sua vingança. Mas antes que o dia acabasse, já estava enchendo a boca de amêijoas e bolos novamente. Há navios entre as Irmãs e Porto Branco todo o tempo. Nós vendemos caranguejos, peixes e queijo de cabra para eles, e eles nos vendem madeira, lãs e peles. Pelo que escutei, sua senhoria está mais gordo do que nunca. Demais para juramentos. Palavras são vento, e o vento da boca de Manderly não significa mais do que aquele que escapa pelo seu traseiro. - O senhor partiu outro pedaço de pão para raspar o fundo do ensopado. - Os Frey traziam ao gordo tolo um saco de ossos. Alguns chamam de cortesia levar os ossos do filho morto para alguém. Se tivesse sido filho meu, teria retornado a cortesia e agradecido aos Frey antes de enforcá-los, mas o gordo é nobre demais para isso. - Enfiou o pão na boca, mastigou-o e engoliu a seco. - Recebi os Frey para jantar. Um deles ficou sentado exatamente onde você está agora. Rhaegar, ele disse ser seu nome. Quase ri na cara dele. Havia perdido a esposa, me disse, mas queria conseguir uma nova em Porto Branco. Corvos voaram para cá e para lá. Lorde Wyman e Lorde Walder teriam feito um pacto e pretendiam selá-lo com um casamento.
Davos sentiu como se o senhor o tivesse esmurrado na barriga. Se ele diz a verdade, meu rei está perdido. Stannis Baratheon precisava desesperadamente de Porto Branco. Se Winterfell era o coração do Norte, Porto Branco era a boca. Seu estuário permanecera livre de gelo mesmo em pleno inverno por séculos. Com o inverno que ali chegava, aquilo podia significar muito e ainda mais. A cidade valeria mais que prata. Os Lannister tinham todo o ouro de Rochedo Casterly e se aliaram com a opulência de Jardim de Cima. Os cofres do Rei Stannis estavam exauridos. Preciso tentar, pelo menos. Deve haver um meio de impedir esse casamento.
- Preciso chegar a Porto Branco - disse. - Sua senhoria, eu imploro, me ajude.
Lorde Godric começou a comer o pão onde estava o ensopado, desmanchando-o com suas grandes mãos. O ensopado amolecera o pão velho.
- Não tenho nenhum amor pelos nortenhos - anunciou. - Os meistres dizem que o Estupro das Três Irmãs aconteceu há dois mil anos, mas Vilirmã ainda não esqueceu. Éramos um povo livre antes disso, com nossos reis nos governando. Depois, tivemos que nos ajoelhar para que o Ninho da Águia expulsasse os nortenhos. O lobo e o falcão disputaram por milhares de anos em nosso nome, até que ambos tivessem roído toda a carne e a gordura dos ossos destas pobres ilhas. Já seu Rei Stannis, quando era mestre dos navios de Robert, enviou uma frota para meu porto sem minha permissão e me fez enforcar uma dúzia de bons amigos. Homens como você. Ele chegou a ameaçar que me enforcaria também se acontecesse de algum navio encalhar porque a Lamparina da Noite estava apagada. Tive que engolir a arrogância dele. - Comeu um pouco do pão amolecido. - Agora ele vem para o Norte humilhado, com o rabo entre as pernas. Por que devo dar qualquer tipo de ajuda para ele? Responda-me isso.
Porque ele é seu rei por direito, Davos pensou. Porque ele é um homem forte e justo, o único que pode restaurar o reino e nos defender contra os perigos que chegam do Norte. Porque ele tem uma espada mágica que brilha com a luz do sol. As palavras ficaram em sua garganta. Nenhuma delas causaria algum efeito sobre o Senhor de Doceirmã. Nenhuma delas o deixaria um centímetro mais perto de Porro Branco. Que resposta ele quer? Devo prometer ouro que não temos? Um marido de alto nascimento para a filha de sua filha? Terras, honrarias, títulos? Lorde Alester Florent tentara jogar esse jogo e o rei o queimara por isso.
- Parece que a Mão perdeu a língua. Não aprecia o ensopado, ou a verdade. - Godric limpou a boca.
- O leão está morto - Davos disse, lentamente. - Aí está sua verdade, senhor. Tywin Lannister está morro?
- E daí?
- Quem governa agora em Porto Real? Não é Tommen, ele é apenas uma criança. É Sor Kevan?
A luz das velas brilhava nos olhos negros de Lorde Godric.
- Se fosse, você estaria acorrentado. É a rainha quem governa.
Davos entendeu. Ele nutre dúvidas. Não quer estar do lado perdedor.
- Stannis manteve Ponta Tempestade contra os Tyrell e os Redwyne. Tomou Pedra do Dragão dos últimos Targaryen. Esmagou a Frota de Ferro na Ilha Leal. Esse rei criança não prevalecerá contra ele.
- Este rei criança comanda a riqueza de Rochedo Casterly e o poder de Jardim de Cima. E tem os Bolton e os Frey. - Lorde Godric coçou o queixo. - Ainda assim ... neste mundo apenas o inverno é certo. Ned Stark disse isso para meu pai, aqui neste mesmo salão.
- Ned Stark esteve aqui?
- No alvorecer da Rebelião de Robert. O Rei Louco exigiu que o Ninho da Águia lhe mandasse a cabeça de Stark, mas Jon Arryn respondeu, desafiando-o. Apesar disso, Vila Gaivotas permaneceu leal ao trono. Para chegar em casa e convocar seus vassalos, Stark teve que atravessar as montanhas até os Dedos e encontrar um pescador que o levasse através da Dentada. Uma tempestade os pegou no caminho. O pescador se afogou, mas sua filha trouxe Stark para as Irmãs antes que o barco afundasse. Dizem que ele a deixou com uma sacola de prata e um bastardo na barriga. Jon Snow, ela o chamou, por causa de Arryn.
- Seja como for. Meu pai estava sentado aqui onde estou quando Lorde Eddard veio para Vilirmã. Nosso meistre nos exortou a enviar a cabeça de Stark para Aerys, para provar nossa lealdade. Isso teria significado uma rica recompensa. O Rei Louco era mão-aberta com aqueles que o agradavam. Mas então já sabíamos que Jon Arryn tomara Vila Gaivotas. Robert fora o primeiro homem a escalar a Muralha e matou Marq Grafton com suas próprias mãos. Este Baratheon é destemido, eu disse. Luta como um rei deve lutar. Nosso meistre riu de mim e nos disse que certamente o Príncipe Rhaegar derrotaria esse rebelde. Foi então que Stark disse. Neste mundo somente o inverno é certo. Podemos perder nossas cabeças, é verdade ... mas e se prevalecermos? Meu pai o enviou para seu destino com a cabeça ainda sobre os ombros. Se você perder, disse para Lorde Eddard, você nunca esteve aqui.
- Não mais do que eu estive - disse Davos Seaworth. 

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