terça-feira, 1 de outubro de 2013

40 - TYRION


A porca tinha um temperamento mais doce do que alguns cavalos que cavalgara.
Paciente e com os pés firmes, ela aceitou Tyrion sem quase nenhum guincho quando ele subiu em suas costas, e ficou imóvel enquanto ele pegava o escudo e a lança. Apenas quando ele agarrou as rédeas e pressionou os pés nas laterais do seu corpo, a porca se moveu. Seu nome era Bonita, uma diminuição para Porca Bonita, e fora treinada com rédeas e freios desde que era uma leitoa.
A armadura de madeira pintada fazia barulho enquanto Bonita trotava pelo convés. As axilas de Tyrion estavam irritadas pela transpiração, e uma gota de suor escorreu por sua cicatriz, sob o elmo superdimensionado que não lhe servia direito. Mesmo assim, por um absurdo momento, sentiu-se quase como Jaime, cavalgando em uma pista de torneio, com uma lança na mão e a armadura dourada reluzindo ao sol.
Quando as risadas começaram, o sonho de dissipou. Ele não era um campeão, apenas um anão em um porco, segurando uma vara, saltando para a diversão de alguns marinheiros insones encharcados de rum, na esperança de melhorar o humor deles. Em algum lugar do inferno, seu pai fervia de ódio e Joffrey estava rindo. Tyrion podia sentir os frios olhos mortos deles observando seu rosto de pantomimeiro, tão ávidos quanto a tripulação do Selaesori Qhoran.
E lá vinha o inimigo. Merreca cavalgava o grande cão cinzento, sua lança listrada balançando tropegamente enquanto o animal avançava pelo convés. O escudo e a armadura dela eram pintados de vermelho, embora a tinta estivesse lascada e desbotada; a armadura dele era azul. Não minha. Do Tostão. Nunca será minha, espero.
Tyrion apertou as ancas de Bonita para aumentar a velocidade, enquanto os marinheiros o instigavam com vaias e assobios. Se gritavam encorajamentos ou zombavam dele, não poderia dizer com certeza, embora tivesse alguma noção. Por que me permiti ser convencido a entrar nesta farsa?
Mas sabia a resposta. Por doze dias, o navio flutuara na calmaria do Golfo da Mágoa. O humor da tripulação estava péssimo, e ficaria ainda pior quando a ração diária de rum secasse. Só o que havia eram tantas horas que um homem podia dedicar a remendar velas, calafetar vazamentos e pescar. Jorah Mormont ouvira reclamações sobre como a sorte do anão falhara. Enquanto o cozinheiro do navio ainda dava uns esfregões na cabeça de Tyrion de tempos em tempos, na esperança de que aquilo poderia trazer algum vento, os outros lhes davam olhares venenosos todas as vezes que cruzavam seus caminhos. A situação de Merreca era ainda pior, desde que o cozinheiro espalhara a ideia de que espremer o seio de uma anã poderia trazer a sorte de volta. Ele também começara a se referir à Porca Bonita como Toicinho, uma piada que parecera muito mais engraçada quando Tyrion a fizera.
- Temos que fazê-los rir - disse Merreca, suplicando. - Temos que fazê-los gostar de nós. Se dermos um espetáculo para eles, isso os ajudará a esquecer. Por favor, meu senhor. - E de algum modo, de alguma maneira e em algum grau, ele consentiu. Deve ter sido o rum. O vinho do capitão fora a primeira coisa a acabar. E era possível ficar bêbado muito mais facilmente com rum do que com vinho, Tyrion Lannister descobrira.
E, então, ele se encontrara vestido na armadura de madeira pintada de Tostão, montado na porca de Tostão, enquanto a irmã de Tostão o instruía sobre os aspectos mais delicados da justa de mentirinha que havia sido seu pão e sal. Havia certa ironia nisso, considerando que Tyrion quase perdera a cabeça uma vez por se recusar a montar no cão para divertimento distorcido de seu sobrinho. Mesmo assim, de alguma maneira, achava difícil apreciar o humor de tudo aquilo montado nas costas da porca.
A lança de Merreca desceu bem a tempo da ponta cega raspar no ombro dele; a lança de Tyrion balançou enquanto ele a abaixava e acertava ruidosamente o canto do escudo dela. Ela continuou sobre a sela. Ele caiu. Mas era o que devia fazer. Fácil como cair de um porco ... embora cair desse porco em particular fosse mais difícil do que parecia. Tyrion enrolou-se enquanto tombava, recordando suas aulas, mas, mesmo assim, acertou o convés com um baque sólido e mordeu a língua com tanta força que experimentou o gosto de sangue. Sentia-se como se tivesse doze anos novamente; dando cambalhotas sobre a mesa principal do grande salão de Rochedo Casterly. Naquela ocasião, seu tio Gerion estivera por perto para elogiar seus esforços, no lugar de marinheiros mal-humorados. As risadas deles pareciam esparsas e tensas, em comparação à grande excitação que recebera o espetáculo bizarro de Tostão e Merreca na festa de casamento de Joffrey, e alguns assobiavam para ele com raiva.
- Sem-Nariz, você cavalga do mesmo jeito que sua aparência, horrível - um homem gritou do castelo de popa. - Não deve ter bolas, para deixar uma garota bater em você. - Ele deve ter apostado uma moeda em mim, Tyrion imaginou. Deixou o insulto passar direto. Ouvira coisas piores em outra época.
A armadura de madeira tornava incômodo se levantar. Ficou se debatendo como uma tartaruga de costas. Isso, pelo menos, levou alguns marinheiros às gargalhadas. Uma pena que não tenha quebrado a perna, isso os deixaria uivando. E, se estivessem naquela latrina quando acertei meu pai nas entranhas, teriam rido até cagar nos calções, junto com ele. Aias qualquer coisa para manter os malditos bastardos amáveis.
Jorah Mormont finalmente ficou com pena dos esforços de Tyrion e o colocou em pé.
- Você parecia um tolo.
Essa era a intenção.
- É difícil parecer um herói quando se está montado em um porco.
- Deve ser por isso que fico longe de porcos.
Tyrion soltou o elmo, tirou-o da cabeça e cuspiu um bocado de catarro ensanguentado de lado.
- Sinto como se tivesse atravessado metade da língua com minha mordida.
- Da próxima vez, morda mais forte. - Sor Jorah deu de ombros. - Verdade seja dita, já vi justas piores.
Isso era um elogio?
- Caí do maldito porco e mordi a língua. O que poderia ser pior do que isso?
- Conseguir um estilhaço enfiado no olho e morrer.
Merreca saltara do cão, um cinzento grande e estúpido chamado Triturador.
- O negócio não é disputar a justa bem, Hugor. - Ela sempre tinha o cuidado de chamá-lo de Hugor onde alguém pudesse estar ouvindo. - O negócio é fazê-los rir e jogar moedas.
Um pagamento pobre para o sangue e os hematomas, Tyrion pensou, mas guardou o pensamento para si.
- Falhamos nisso também. Ninguém jogou moedas. - Nenhuma merreca, por mais ínfima que fosse.
- Jogarão, quando ficarmos melhores. - Merreca tirou o elmo. Seu cabelo castanho-rato se espalhou até as orelhas. Os olhos dela eram castanhos também, sob grossas sobrancelhas, e as bochechas eram suaves e coradas. Ela pegou algumas bolotas de um saco de couro para Porca Bonita. A porca comeu-as em sua mão, guinchando de alegria.
- Quando nos apresentarmos para a Rainha Daenerys, a prata vai chover, você verá.
Alguns marinheiros gritavam para eles, e batiam os calcanhares no convés, exigindo outra disputa. O cozinheiro do navio era o mais barulhento, como sempre. Tyrion aprendera a desprezar aquele homem, ainda que fosse o único jogador meio decente de cyvasse do navio.
- Vê, eles gostam de nós - disse Merreca, com um pequeno sorriso esperançoso. - Vamos novamente, Hugor?
Ele estava a ponto de recusar, quando o grito de um dos imediatos o poupou. Era meio da manhã, e o capitão queria os botes fora novamente. A imensa vela listrada do navio pendia frouxamente do mastro, como estivera por dias, mas ele tinha esperança de encontrar um vento em algum lugar ao norte. Aquilo significava remar. Mas os botes eram pequenos e o navio era grande; rebocá-lo era um trabalho quente, suado e exaustivo, que deixava as mãos cobertas de bolhas e as costas doendo, e não resolvia nada. A tripulação odiava isso. Tyrion não podia culpá-los.
- A viúva deveria ter nos colocado em uma galé - murmurou amargamente. - Se alguém puder me ajudar com estas malditas placas, eu ficaria grato. Acho que posso ter uma farpa na virilha.
Mormont cumpriu a função, ainda que com pouca elegância. Merreca pegou o cão e o porco e levou ambos para baixo.
- Você deveria dizer para sua senhora manter a porta fechada e trancada quando está lá dentro - disse Sor Jorah, enquanto desatava as fivelas das faixas que juntavam as placas de madeira do peito e das costas. - Tenho ouvido conversas demais sobre costelas, presuntos e toicinhos.
- Aquele porco é metade do sustento dela.
- Uma tripulação ghiscari comeria o cão também. - Mormont separou as placas do peito e das costas. - Apenas diga para ela.
- Como quiser. - Sua túnica estava encharcada de suor e grudada ao peito. Tyrion a arrancou, desejoso por um pouco de brisa. A armadura de madeira era tão quente e pesada quanto desconfortável. Metade dela parecia ter tinta velha, camada sobre camada sobre camada de uma centena de repinturas passadas. Na festa de casamento de Joffrey, ele se lembrava, um cavaleiro trazia o lobo gigante de Robb Stark, o outro as armas e as cores de Stannis Baratheon. - Precisaremos dos dois animais, se vamos fazer uma disputa para a Rainha Daenerys. - disse. Se os marinheiros colocassem na cabeça matar Porca Bonita, nem ele nem Merreca podiam ter esperança de detê-los ... mas a espada longa de Sor Jorah os faria dar uma parada, pelo menos.
- É assim que pretende manter sua cabeça, Duende?
- Sor Duende, se me permite. E sim. Uma vez que Sua Graça conheça meu real valor, ela me amará. Sou um sujeitinho adorável, afinal de contas, e sei muitas coisas úteis sobre meus parentes. Mas, até chegar esse momento, é melhor que eu a mantenha entretida.
- Dê cambalhotas, como você gosta, isso não lavará seus crimes. Daenerys Targaryen não é uma criança tola para ser divertida com gracejos e tombos. Ela lidará com você com justiça.
Ah, espero que não. Tyrion estudou Mormont com seus olhos de cores distintas.
- E como ela irá recebê-lo, esta rainha tão justa? - Ele sorriu do óbvio desconcerto do cavaleiro. - Realmente espera que eu acredite que você estava tratando de assuntos da rainha naquele puteiro? Defendendo-a, a meio mundo de distância? Ou pode ser que estivesse fugindo, que sua rainha o expulsou de seu convívio? Mas por que ela ... oh, espere, você a estava espionando. - Tyrion fez um tsc com a boca. - Você espera me usar para comprar um lugar ao lado dela novamente. Um plano irrefletido, eu diria. Alguém até poderia pensar que é um ato de desespero de um bêbado. Talvez, se eu fosse Jaime... mas Jaime matou o pai dela, eu só matei o meu. Você acha que Daenerys vai me executar e perdoá-lo, mas o inverso é mais provável. Talvez você deva subir naquele porco, Sor Jorah. Colocar uma roupa de pedaços de ferro, como Florian, o...
O soco que o grande cavaleiro lhe deu estalou por toda a sua cabeça e o derrubou de lado com tanta força, que a cabeça ricocheteou no convés. Sangue escorria de sua boca, enquanto ele cambaleava para ficar de joelhos. Cuspiu um dente quebrado. Ficando mais bonito a cada dia, mas acho que cutuquei uma ferida.
- O anão disse algo que o ofendeu, sor? - Tyrion perguntou inocentemente, limpando bolhas de sangue do lábio ferido com as costas da mão.
- Estou cansado da sua boca, anão - disse Mormont. - Ainda tem alguns dentes que lhe restaram. Se quiser mantê-los, fique longe de mim o restante desta viagem.
- Isso pode ser difícil. Nós compartilhamos uma cabine.
- Você pode encontrar outro lugar para dormir. Lá embaixo, no porão, aqui no convés, não importa. Apenas fique longe da minha vista.
Tyrion ficou em pé.
- Como desejar - respondeu, com a boca cheia de sangue, mas o grande cavaleiro já havia ido embora, as botas batendo com força contra as tábuas do chão do convés.
Tyrion estava na cozinha, enxaguando a boca com rum e água e se contraindo de dor, quando Merreca o encontrou.
- Soube o que aconteceu. Oh, está machucado?
Ele deu de ombros.
- Um pouco de sangue e um dente quebrado. - Mas acredito que o feri mais. - E ele se diz um cavaleiro. Sinto dizer, eu não contaria com Sor Jorah se precisarmos de proteção.
- O que você fez? Oh, seus lábios estão sangrando. - Ela arrancou um pedaço de sua manga e o limpou. - O que você disse?
- Algumas verdades que Sor Bezoar não gostou de ouvir.
- Você não devia zombar dele. Você não sabe nada? Não pode falar desse jeito com uma pessoa grande. Ela pode ferir você. Sor Jorah podia ter jogado você no mar. Os marinheiros teriam rido vendo você se afogar. Precisa ser cuidadoso perto de pessoas grandes. Seja alegre e brincalhão com eles, mantenha-os sorrindo, faça-os rir, era o que meu pai sempre dizia. Seu pai nunca falou para você como agir com pessoas grandes?
- Meu pai os chamava de camponeses - disse Tyrion - e ele não era o que você chamaria de um homem alegre. - Tomou outro gole de rum aguado, bochechou e cuspiu. - Mesmo assim, entendi seu ponto de vista. Tenho que aprender a ser um anão. Talvez você possa ser boa o suficiente para me ensinar. entre as justas e a corrida de porco.
- Ensinarei, meu senhor. Alegremente. Mas ... que verdades foram essas? Por que Sor Jorah bateu em você com tanta força?
- Ora, por amor. A mesma razão pela qual cozinhei aquele cantor. - Pensou em Shae e no olhar que ela lhe deu enquanto apertava a corrente em volta do seu pescoço, torcendo-a com o punho. Uma corrente de mãos douradas. Por que mãos de ouro são sempre. frias, mas há calor em mãos de mulher. - Você é donzela, Merreca?
Ela corou.
- Sim. É claro. Quem iria ...
- Continue assim. Amor é loucura, e luxúria é veneno. Mantenha sua virgindade. Ficará feliz com isso, e é menos provável que você se encontre em algum bordel sujo no Roine, com uma puta que se parece um pouco com seu amor perdido. - Ou que percorra meio mundo, esperando descobrir para onde as putas vão. - Sor Jorah sonha em resgatar sua rainha dragão e gozar da gratidão dela, mas sei uma coisa ou duas a respeito da gratidão dos reis, e eu prefiro ter um palácio em Valíria. - Parou repentinamente o que estava falando. - Sentiu isso? O navio se moveu.
- Senti. - A face de Merreca se iluminou de alegria. - Estamos nos movendo novamente. O vento ... - Correu em direção à porta. - Quero ver. Venha, vamos ver quem chega lá em cima primeiro. - E lá se foi ela.
Ela é jovem, Tyrion teve que lembrar a si mesmo, enquanto Merreca corria da cozinha, em direção aos degraus de madeira, subindo o mais rápido que suas perninhas permitiam. Quase uma criança. Mesmo assim, divertia-o ver a excitação dela. Seguiu-a para cima.
A vela ganhara vida novamente, erguendo-se, abaixando-se, erguendo-se novamente, as listras vermelhas no tecido serpenteando como cobras. Marinheiros corriam por todo o convés, puxando as cordas com força, enquanto os imediatos gritavam ordens na língua da Antiga Volantis. Os remadores nos botes soltavam as cordas de reboque e as arremessavam de volta para dentro do navio, com duras pancadas. O vento soprava do oeste, rodopiando e em rajadas, agarrando-se às cordas e aos mantos como uma criança travessa. O Selaesori Qhoran estava a caminho.
Pode ser que cheguemos a Meereen, depois de tudo, Tyrion pensou.
Mas quando subiu pela escada de mão até o castelo de popa e olhou para fora, seu sorriso vacilou. Céu azul e mar azul aqui, mas para oeste... Nunca vi um céu desta cor. Uma faixa grossa de nuvens percorria o horizonte.
- Uma barra sinistra - disse para Merreca, apontando.
- O que aquilo significa? - ela perguntou.
- Significa que algum grande bastardo está avançando furtivamente por trás de nós.
Ficou surpreso em descobrir que Moqorro e dois de seus dedos ardentes haviam se juntado a eles no castelo de popa. Era apenas meio-dia e, normalmente, o sacerdote vermelho e seus homens não apareciam antes do crepúsculo. O sacerdote lhe deu um aceno solene com a cabeça.
- Lá você vê, Hugor Hill. A ira de deus. O Senhor da Luz não será zombado.
Tyrion não tinha uma boa intuição sobre isso.
- A viúva disse que este navio nunca alcançaria seu destino. Imaginei que isso significava que, uma vez que estivéssemos em alto-mar, fora do alcance da tríade, o capitão mudaria o curso para Meereen. Ou que talvez você pudesse tomar o navio com sua Mão Ardente e nos levar para Daenerys. Mas não foi nada disso que seu alto sacerdote viu, não é?
- Não. - A voz profunda de Moqorro soou tão solene quanto um sino de funeral.
- Foi isso o que ele viu. - O sacerdote vermelho ergueu seu bastão e inclinou a cabeça para oeste.
Merreca estava perdida.
- Não entendo. O que isso significa?
- Significa que é melhor irmos para baixo. Sor Jorah me exilou da nossa cabine. Posso me esconder na sua, quando a hora chegar?
- Sim - ela disse. - Você pode... oh ...
Durante a maior parte das três horas seguintes, correram à frente do vento, enquanto a tempestade se aproximava. O céu ocidental ficou verde, depois cinza e, então, negro. Uma parede de nuvens escuras assomava atrás deles, transbordando como uma chaleira de leite deixada muito tempo no fogo. Tyrion e Merreca observavam debruçados sobre a figura de popa, de mãos dadas, tomando cuidado para ficar fora do caminho do capitão e da tripulação.
A última tempestade fora estimulante, inebriante, uma tormenta repentina que o deixara se sentindo limpo e refrescado. Esta parecia diferente desde o início. O capitão percebera também. Mudou o curso de norte para nordeste, tentando escapar do caminho do temporal.
Era um esforço inútil. A tempestade era grande demais. A água ao redor deles ficava mais agitada. O vento começava a uivar. O Intendente Fedorento subia e descia, enquanto as ondas arrebentavam contra seu casco. Atrás deles, relâmpagos cruzavam o céu. cegando com faíscas púrpura que dançavam pelo mar em teias de luz. O trovão veio na sequência.
- E hora de nos escondermo. - Tyrion pegou Merreca pelo braço e a levou para a cabine.
Bonita e Triturador estavam meio loucos de medo. O cão latia, latia, latia. Pulou sobre Tyrion assim que entraram. A porca havia defecado por todo lado. Tyrion limpou o melhor que pôde, enquanto Merreca tentava acalmar os animais. Então prenderam ou jogaram fora qualquer coisa que estivesse solta.
- Estou assustada - Merreca confessou. A cabine começara a se inclinar e a pular, indo para esse lado ou para o outro, conforme as ondas martelavam o casco do navio.
Há maneiras piores de se morrer do que afogado. O irmão dela aprendeu isso, e também, o senhor meu pai. E Shae, aquela boceta mentirosa. Mãos de ouro são sempre frias, mas mãos de mulher são quentes.
- Devíamos jogar alguma coisa - Tyrion sugeriu. - Pode ajudar a tirar nossos pensamentos da tempestade.
- Não cyvasse - ela disse, de cara.
- Não cyvasse - Tyrion concordou, enquanto o convés se erguia. Isso apenas faria as peças voarem violentamente pela cabine, caindo sobre a porca e o cão. - Quando você era uma garotinha, alguma vez jogou venha-para-meu-castelo?
- Não. Pode me ensinar?
Ele poderia? Tyrion hesitou. Anão idiota. É claro que ela nunca jogou venha-para-meu-castelo. Ela nunca teve um castelo. Venha-para-meu-castelo era um jogo para crianças bem-nascidas, com a intenção de ensinar-lhes cortesia, heráldica e uma ou duas coisas sobre os amigos e inimigos dos senhores seus pais.
- Esse não ... - ele começou. O convés deu outro solavanco violento, jogando um contra o outro. Merreca deu um grito de medo. - Esse jogo não dá - Tyrion falou, rangendo os dentes. - Desculpe. Não conheço um jogo...
- Eu conheço. - Merreca o beijou.
Foi um beijo estranho, apressado, desajeitado. Mas o pegou completamente desprevenido. Ele ergueu as mãos e a segurou pelos ombros, pronto para empurrá-la. Em vez disso, hesitou, e então a puxou mais para perto, dando-lhe um abraço. Os lábios dela eram secos, duros e estavam tão fechados quanto a bolsa de um avarento. Uma pequena misericórdia, pensou Tyrion. Isso não era nada do que queria. Gostava de Merreca, tinha pena de Merreca, até admirava Merreca de certo modo, mas não a desejava. Mas não queria magoá-la; os deuses e sua doce irmã já haviam lhe garantido dor suficiente. Então deixou o beijo continuar, segurando-a gentilmente pelos ombros. Seus próprios lábios permaneceram firmemente fechados. O Selaesori Qhoran girava e estremecia ao redor deles.
Finalmente ela se afastou um centímetro ou dois. Tyrion podia ver seu próprio reflexo nos olhos dela. Olhos bonitos, pensou, mas viu outras coisas, também. Muito medo, uma pequena esperança... mas nada de luxúria. Ela não me quer, não mais do que eu a quero.
Quando Merreca abaixou a cabeça, ele segurou seu queixo e ergueu o rosto dela novamente.
- Não podemos jogar esse jogo, minha senhora. - Acima deles, um trovão explodiu, dessa vez bem próximo.
- Nunca quis ... nunca beijei um rapaz antes, mas ... só pensei que, se nos afogarmos, e eu ... eu ...
- Foi doce - mentiu Tyrion - mas sou casado. Ela estava comigo no banquete, você deve se lembrar. A Senhora Sansa.
- Era sua esposa? Ela ... ela era muito bonita ...
E falsa. Sansa, Shae, todas as minhas mulheres ... Tysha foi a única que realmente me amou. Para onde as putas vão?
- Uma garota adorável- disse Tyrion - e estamos unidos diante dos olhos dos deuses e dos homens. Pode ser que esteja perdida para mim, mas, até ter certeza, devo ser fiel a ela.
- Entendo. - Merreca afastou seu rosto do dele.
Minha mulher perfeita, Tyrion pensou, amargamente. Uma ainda jovem o suficiente para acreditar nessas mentiras descaradas.
O casco rangia, o convés se movia, e Bonita gritava de aflição. Merreca rastejou pelo chão da cabine, de gatinhas, e enrolou os braços na cabeça da porca, murmurando palavras de confiança. Olhando as duas, era difícil saber quem confortava quem. A visão era tão grotesca que poderia ter sido hilária, mas Tyrion não conseguiu encontrar nem mesmo um sorriso. A garota merece mais do que um porco, pensou. Um beijo sincero, um pouco de gentileza, todo mundo merece isso, seja grande ou pequeno. Procurou por sua taça, mas, quando a encontrou, todo o rum havia sido derramado. Afogar-se já é ruim o suficiente, refletiu amargamente, mas se afogar triste e sóbrio é cruel demais.
No fim, eles não se afogaram ... embora, em alguns momentos, a perspectiva de um belo e pacífico afogamento tivesse um certo apelo. A tempestade durou o resto daquele dia e seguiu noite adentro. Ventos molhados uivavam ao redor deles, e ondas erguiam-se como punhos de gigantes adormecidos para esmagar o convés. Em cima, souberam mais tarde, um imediato e dois marinheiros tinham sido arrastados ao mar, o cozinheiro do navio ficara cego quando uma chaleira de gordura quente voou em seu rosto, e o capitão fora arremessado do castelo de popa para o convés principal tão violentamente que quebrara as duas pernas. Lá embaixo, Triturador uivara, latira e mordera Merreca, e Porca Bonita começara a defecar novamente, transformando a cabine apertada e úmida em um chiqueiro. Tyrion conseguira não vomitar diante de tudo isso, principalmente graças à falta de vinho. Merreca não tivera tanta sorte, mas ele a segurara assim mesmo, enquanto o casco no navio rangia e gemia de forma alarmante em torno deles, como um barril prestes a explodir.
Perto de meia-noite, os ventos finalmente cederam e o mar ficou calmo o suficiente para que Tyrion subisse ao convés. O que viu ali não o tranquilizou. O navio estava à deriva em um mar de vidro de dragão sob uma tigela de estrelas, porém, por todos os lados, a tempestade se alastrava. Leste, oeste, norte, sul, para onde quer que olhasse, as nuvens se erguiam como montanhas negras, com encostas íngremes e penhascos colossais, repletas de relâmpagos azuis e púrpura. Nenhuma chuva caía, mas, sob seus pés, o convés estava escorregadio e molhado.
Tyrion podia ouvir alguém gritando lá embaixo, uma voz fina e alta, histérica de medo. Pôde ouvir Moqorro também. O sacerdote vermelho estava no castelo de popa, encarando a tempestade, o bastão erguido sobre a cabeça enquanto trovejava uma oração. No meio do navio, uma dúzia de marinheiros e dois dedos ardentes lutavam com linhas emaranhadas e lona encharcada, mas se estavam tentando erguer a vela ou baixá-la, Tyrion não sabia dizer. O que quer que estivessem fazendo, parecia uma má ideia. E realmente era.
O vento retornou com um sussurro de aviso, frio e úmido, passando por seu rosto, batendo a vela molhada, torcendo e enrolando a túnica escarlate de Moqorro. Algum tipo de instinto fez Tyrion agarrar o parapeito mais próximo, bem a tempo. No espaço de três segundos, a pequena brisa se transformou em um vendaval ululante. Moqorro gritou alguma coisa, e chamas verdes se ergueram da boca do dragão na ponta de seu bastão para desaparecer na noite. Então a chuva veio, negra e cegante, e os castelos de popa e de proa sumiram atrás de paredes de água. Algo imenso voou sobre as cabeças, Tyrion olhou para cima e ainda conseguiu ver a vela voando com o vento, com dois homens ainda balançando nas linhas. Então ouviu um estalido. Oh, maldito inferno, teve tempo de pensar, deve ter sido o mastro.
Encontrou uma corda e a puxou, lutando em direção à escotilha para tentar sair da tempestade, mas uma rajada de vento o fez perder o equilíbrio, e uma segunda o fez se chocar contra o parapeito, onde se agarrou. A chuva açoitava seu rosto, cegando-o. Sua boca estava cheia de sangue novamente. O navio resmungava e gemia sob ele, como um gordo constipado fazendo força para evacuar.
Então o mastro se partiu.
Tyrion não chegou a ver, mas ouviu. O estalido novamente e, então, um grito de madeira torturada, e repentinamente o ar estava cheio de pedaços e lascas. Um errou seu olho por um centímetro, o segundo acertou sua bochecha, um terceiro atingiu a virilha, botas, calção e tudo mais. Ele gritou. Mas continuou segurando a corda, mantendo-a com uma força desesperada que não sabia possuir. A viúva disse que este navio jamais chegaria a seu destino, lembrou-se. Então gargalhou e gargalhou, selvagem e histérico, enquanto trovões estouravam, madeira gemia e ondas arrebentavam ao seu redor.
Quando a tempestade finalmente amainou e os passageiros c a tripulação sobreviventes rastejaram de volta ao convés, como pálidos vermes rosados que vêm a superfície depois da chuva, o Selaesori Qhoran era uma coisa destruída, flutuando suavemente na água, inclinado dez graus para a esquerda, o casco rachado em meia centena de lugares, o compartimento de carga inundado de água do mar, o mastro uma ruína estilhaçada da altura de um anão. Nem mesmo a figura de proa escapara: um de seus braços se quebrara, o que segurava o pergaminho. Nove homens tinham desaparecido, incluindo um imediato, dois dedos ardentes e o próprio Moqorro.
Será que Benerro viu isso em suas chamas? Tyrion se perguntou, quando percebeu que o enorme sacerdote vermelho se fora. Será que Moqorra viu?
- Uma profecia é como uma mula semi treinada - reclamou para Jorah Mormont. - Parece que será útil, mas no momento em que você confia nela, ela o chuta na cabeça. A maldita viúva sabia que o navio nunca chegaria ao seu destino, ela nos avisou sobre isso, disse que Benerro viu em suas chamas, só que achei que isso significava ... bem, o que importa? - Sua boca se contorceu. - O que realmente significava era que alguma maldita tempestade gigante transformaria nosso mastro em gravetos e nos deixaria à deriva no Golfo da Mágoa até nossa comida acabar e começarmos a comer uns aos outros. Quem você acha que eles vão trinchar primeiro ... o porco, o cão, ou eu?
- O mais barulhento, eu diria.
O capitão morreu no dia seguinte, o cozinheiro do navio, três noites mais tarde. Tudo o que a tripulação restante podia fazer era manter os destroços flutuando. O imediato que assumiu o comando avaliou que estavam em algum lugar no extremo sul da Ilha de Cedros. Quando baixou os botes do navio para rebocá-los até a terra mais próxima, um deles afundou, e os homens no outro cortaram a corda e remaram para o norte, abandonando o barco e seus companheiros.
- Escravos - disse Jorah Mormont, desdenhoso.
O grande cavaleiro dormira durante a tempestade, conforme ele mesmo contara.
Tyrion tinha suas dúvidas, mas as manteve para si. Um dia poderia querer morder a perna de alguém, e precisaria de dentes para isso. Mormont parecia satisfeito em ignorar o desentendimento deles, então Tyrion decidiu fingir que nada acontecera.
Por dezenove dias estiveram à deriva, enquanto a comida e a água diminuíam. O sol batia neles, implacável. Merreca aconchegava-se na cabine, com o cão e o porco, e Tyrion levava comida para ela, mancando com sua coxa enfaixada e cheirando a ferida à noite. Quando não tinha nada mais para fazer. cutucava os dedos das mãos e dos pés. Sor Jorah fazia questão de afiar sua espada todos os dias, amolando a ponta até deixá-la brilhante. Os três dedos ardentes que sobraram acendiam as tochas noturnas quando o sol se punha, mas vestiam suas armaduras ornamentadas enquanto deixavam a tripulação rezando, e deixavam as lanças sempre à mão. E nem um único marinheiro tentou esfregar a cabeça de qualquer anão.
- Devemos disputar uma justa para eles, novamente? - Merreca perguntou certa noite.
- Melhor não - respondeu Tyrion. - Isso só serviria para que lembrassem que temos um belo porco redondo. - Embora Bonita estivesse ficando menos redonda a cada dia, e Triturador estivesse pele e ossos.
Naquela noite, ele sonhou que estava novamente em Porto Real, uma besta em sua mão.
- Para onde quer que as putas vão - Lorde Tywin disse, mas quando o dedo de Tyrion se fechou e a corda da arma disparou, era Merreca com um dardo atravessado na barriga.
Ele acordou ao som de gritos.
O convés se movia embaixo dele, e, por meio segundo, ficou tão confuso que pensou estar de volta ao Donzela Tímida. Uma lufada de merda de porco trouxe seus sentidos de volta. Os Sofrimentos estavam para trás agora, a meio mundo de distância, assim como as alegrias daquela época. Ele se lembrava quão doce Lemore parecia depois de seus banhos matinais, com contas de água brilhando em sua pele nua, mas a única donzela aqui era sua pobre Merreca, a pequena anã atrofiada.
Alguma coisa estava acontecendo. Tyrion escorregou da rede de dormir, bocejando, e procurou as botas. E, por mais louco que fosse, procurou pela besta também, mas é claro que não havia nenhuma para ser encontrada. Uma pena, devaneou, ela poderia ser de alguma utilidade quando as pessoas grandes vierem me comer. Colocou as botas e subiu ao convés, para ver por que estavam gritando. Merreca chegara antes dele, seus olhos arregalados de espanto.
- Uma vela - ela gritou - ali, ali, vê? Uma vela, e já nos viram. Uma vela.
Dessa vez, ele a beijou ... uma vez em cada bochecha, uma vez na testa, e uma última vez na boca. Ela estava corada e rindo pelo último beijo, repentinamente tímida novamente, mas não importava. Outro navio se aproximava. Uma grande galé, ele podia ver. Seus remos deixavam um longo rastro branco para trás.
- Que navio é? - Tyrion perguntou para Sor Jorah Morrnont. - Você consegue ler o nome?
- Não preciso ler o nome. Estamos a favor do vento. Posso cheirá-lo. - Mormont desembainhou sua espada. - São traficantes de escravos.

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