A
porca tinha um temperamento mais doce do que alguns cavalos que
cavalgara.
Paciente
e com os pés firmes, ela aceitou Tyrion sem quase nenhum guincho
quando ele subiu em suas costas, e ficou imóvel enquanto ele pegava
o escudo e a lança. Apenas quando ele agarrou as rédeas e
pressionou os pés nas laterais do seu corpo, a porca se moveu. Seu
nome era Bonita, uma diminuição para Porca Bonita, e fora treinada
com rédeas e freios desde que era uma leitoa.
A
armadura de madeira pintada fazia barulho enquanto Bonita trotava
pelo convés. As axilas de Tyrion estavam irritadas pela
transpiração, e uma gota de suor escorreu por sua cicatriz, sob o
elmo superdimensionado que não lhe servia direito. Mesmo assim, por
um absurdo momento, sentiu-se quase como Jaime, cavalgando em uma
pista de torneio, com uma lança na mão e a armadura dourada
reluzindo ao sol.
Quando
as risadas começaram, o sonho de dissipou. Ele não era um campeão,
apenas um anão em um porco, segurando uma vara, saltando para a
diversão de alguns marinheiros insones encharcados de rum, na
esperança de melhorar o humor deles. Em algum lugar do inferno, seu
pai fervia de ódio e Joffrey estava rindo. Tyrion podia sentir os
frios olhos mortos deles observando seu rosto de pantomimeiro, tão
ávidos quanto a tripulação do Selaesori Qhoran.
E
lá vinha o inimigo. Merreca cavalgava o grande cão cinzento, sua
lança listrada balançando tropegamente enquanto o animal avançava
pelo convés. O escudo e a armadura dela eram pintados de vermelho,
embora a tinta estivesse lascada e desbotada; a armadura dele era
azul. Não minha. Do Tostão. Nunca será minha, espero.
Tyrion
apertou as ancas de Bonita para aumentar a velocidade, enquanto os
marinheiros o instigavam com vaias e assobios. Se gritavam
encorajamentos ou zombavam dele, não poderia dizer com certeza,
embora tivesse alguma noção. Por que me permiti ser convencido a
entrar nesta farsa?
Mas
sabia a resposta. Por doze dias, o navio flutuara na calmaria do
Golfo da Mágoa. O humor da tripulação estava péssimo, e ficaria
ainda pior quando a ração diária de rum secasse. Só o que havia
eram tantas horas que um homem podia dedicar a remendar velas,
calafetar vazamentos e pescar. Jorah Mormont ouvira reclamações
sobre como a sorte do anão falhara. Enquanto o cozinheiro do navio
ainda dava uns esfregões na cabeça de Tyrion de tempos em tempos,
na esperança de que aquilo poderia trazer algum vento, os outros
lhes davam olhares venenosos todas as vezes que cruzavam seus
caminhos. A situação de Merreca era ainda pior, desde que o
cozinheiro espalhara a ideia de que espremer o seio de uma anã
poderia trazer a sorte de volta. Ele também começara a se referir à
Porca Bonita como Toicinho, uma piada que parecera muito mais
engraçada quando Tyrion a fizera.
-
Temos que fazê-los rir - disse Merreca, suplicando. - Temos que
fazê-los gostar de nós. Se dermos um espetáculo para eles, isso os
ajudará a esquecer. Por favor, meu senhor. - E de algum modo, de
alguma maneira e em algum grau, ele consentiu. Deve ter sido o rum. O
vinho do capitão fora a primeira coisa a acabar. E era possível
ficar bêbado muito mais facilmente com rum do que com vinho, Tyrion
Lannister descobrira.
E,
então, ele se encontrara vestido na armadura de madeira pintada de
Tostão, montado na porca de Tostão, enquanto a irmã de Tostão o
instruía sobre os aspectos mais delicados da justa de mentirinha que
havia sido seu pão e sal. Havia certa ironia nisso, considerando que
Tyrion quase perdera a cabeça uma vez por se recusar a montar no cão
para divertimento distorcido de seu sobrinho. Mesmo assim, de alguma
maneira, achava difícil apreciar o humor de tudo aquilo montado nas
costas da porca.
A
lança de Merreca desceu bem a tempo da ponta cega raspar no ombro
dele; a lança de Tyrion balançou enquanto ele a abaixava e acertava
ruidosamente o canto do escudo dela. Ela continuou sobre a sela. Ele
caiu. Mas era o que devia fazer. Fácil como cair de um porco ...
embora cair desse porco em particular fosse mais difícil do que
parecia. Tyrion enrolou-se enquanto tombava, recordando suas aulas,
mas, mesmo assim, acertou o convés com um baque sólido e mordeu a
língua com tanta força que experimentou o gosto de sangue.
Sentia-se como se tivesse doze anos novamente; dando cambalhotas
sobre a mesa principal do grande salão de Rochedo Casterly. Naquela
ocasião, seu tio Gerion estivera por perto para elogiar seus
esforços, no lugar de marinheiros mal-humorados. As risadas deles
pareciam esparsas e tensas, em comparação à grande excitação que
recebera o espetáculo bizarro de Tostão e Merreca na festa de
casamento de Joffrey, e alguns assobiavam para ele com raiva.
-
Sem-Nariz, você cavalga do mesmo jeito que sua aparência, horrível
- um homem gritou do castelo de popa. - Não deve ter bolas, para
deixar uma garota bater em você. - Ele deve ter apostado uma moeda
em mim, Tyrion imaginou. Deixou o insulto passar direto. Ouvira
coisas piores em outra época.
A
armadura de madeira tornava incômodo se levantar. Ficou se debatendo
como uma tartaruga de costas. Isso, pelo menos, levou alguns
marinheiros às gargalhadas. Uma pena que não tenha quebrado a
perna, isso os deixaria uivando. E, se estivessem naquela latrina
quando acertei meu pai nas entranhas, teriam rido até cagar nos
calções, junto com ele. Aias qualquer coisa para manter os malditos
bastardos amáveis.
Jorah
Mormont finalmente ficou com pena dos esforços de Tyrion e o colocou
em pé.
-
Você parecia um tolo.
Essa
era a intenção.
-
É difícil parecer um herói quando se está montado em um porco.
-
Deve ser por isso que fico longe de porcos.
Tyrion
soltou o elmo, tirou-o da cabeça e cuspiu um bocado de catarro
ensanguentado de lado.
-
Sinto como se tivesse atravessado metade da língua com minha
mordida.
-
Da próxima vez, morda mais forte. - Sor Jorah deu de ombros. -
Verdade seja dita, já vi justas piores.
Isso
era um elogio?
-
Caí do maldito porco e mordi a língua. O que poderia ser pior do
que isso?
-
Conseguir um estilhaço enfiado no olho e morrer.
Merreca
saltara do cão, um cinzento grande e estúpido chamado Triturador.
-
O negócio não é disputar a justa bem, Hugor. - Ela sempre tinha o
cuidado de chamá-lo de Hugor onde alguém pudesse estar ouvindo. - O
negócio é fazê-los rir e jogar moedas.
Um
pagamento pobre para o sangue e os hematomas, Tyrion pensou, mas
guardou o pensamento para si.
-
Falhamos nisso também. Ninguém jogou moedas. - Nenhuma merreca, por
mais ínfima que fosse.
-
Jogarão, quando ficarmos melhores. - Merreca tirou o elmo. Seu
cabelo castanho-rato se espalhou até as orelhas. Os olhos dela eram
castanhos também, sob grossas sobrancelhas, e as bochechas eram
suaves e coradas. Ela pegou algumas bolotas de um saco de couro para
Porca Bonita. A porca comeu-as em sua mão, guinchando de alegria.
-
Quando nos apresentarmos para a Rainha Daenerys, a prata vai chover,
você verá.
Alguns
marinheiros gritavam para eles, e batiam os calcanhares no convés,
exigindo outra disputa. O cozinheiro do navio era o mais barulhento,
como sempre. Tyrion aprendera a desprezar aquele homem, ainda que
fosse o único jogador meio decente de cyvasse do navio.
-
Vê, eles gostam de nós - disse Merreca, com um pequeno sorriso
esperançoso. - Vamos novamente, Hugor?
Ele
estava a ponto de recusar, quando o grito de um dos imediatos o
poupou. Era meio da manhã, e o capitão queria os botes fora
novamente. A imensa vela listrada do navio pendia frouxamente do
mastro, como estivera por dias, mas ele tinha esperança de encontrar
um vento em algum lugar ao norte. Aquilo significava remar. Mas os
botes eram pequenos e o navio era grande; rebocá-lo era um trabalho
quente, suado e exaustivo, que deixava as mãos cobertas de bolhas e
as costas doendo, e não resolvia nada. A tripulação odiava isso.
Tyrion não podia culpá-los.
-
A viúva deveria ter nos colocado em uma galé - murmurou
amargamente. - Se alguém puder me ajudar com estas malditas placas,
eu ficaria grato. Acho que posso ter uma farpa na virilha.
Mormont
cumpriu a função, ainda que com pouca elegância. Merreca pegou o
cão e o porco e levou ambos para baixo.
-
Você deveria dizer para sua senhora manter a porta fechada e
trancada quando está lá dentro - disse Sor Jorah, enquanto desatava
as fivelas das faixas que juntavam as placas de madeira do peito e
das costas. - Tenho ouvido conversas demais sobre costelas, presuntos
e toicinhos.
-
Aquele porco é metade do sustento dela.
-
Uma tripulação ghiscari comeria o cão também. - Mormont separou
as placas do peito e das costas. - Apenas diga para ela.
-
Como quiser. - Sua túnica estava encharcada de suor e grudada ao
peito. Tyrion a arrancou, desejoso por um pouco de brisa. A armadura
de madeira era tão quente e pesada quanto desconfortável. Metade
dela parecia ter tinta velha, camada sobre camada sobre camada de uma
centena de repinturas passadas. Na festa de casamento de Joffrey, ele
se lembrava, um cavaleiro trazia o lobo gigante de Robb Stark, o
outro as armas e as cores de Stannis Baratheon. - Precisaremos dos
dois animais, se vamos fazer uma disputa para a Rainha Daenerys. -
disse. Se os marinheiros colocassem na cabeça matar Porca Bonita,
nem ele nem Merreca podiam ter esperança de detê-los ... mas a
espada longa de Sor Jorah os faria dar uma parada, pelo menos.
-
É assim que pretende manter sua cabeça, Duende?
-
Sor Duende, se me permite. E sim. Uma vez que Sua Graça conheça meu
real valor, ela me amará. Sou um sujeitinho adorável, afinal de
contas, e sei muitas coisas úteis sobre meus parentes. Mas, até
chegar esse momento, é melhor que eu a mantenha entretida.
-
Dê cambalhotas, como você gosta, isso não lavará seus crimes.
Daenerys Targaryen não é uma criança tola para ser divertida com
gracejos e tombos. Ela lidará com você com justiça.
Ah,
espero que não. Tyrion estudou Mormont com seus olhos de cores
distintas.
-
E como ela irá recebê-lo, esta rainha tão justa? - Ele sorriu do
óbvio desconcerto do cavaleiro. - Realmente espera que eu acredite
que você estava tratando de assuntos da rainha naquele puteiro?
Defendendo-a, a meio mundo de distância? Ou pode ser que estivesse
fugindo, que sua rainha o expulsou de seu convívio? Mas por que ela
... oh, espere, você a estava espionando. - Tyrion fez um tsc com a
boca. - Você espera me usar para comprar um lugar ao lado dela
novamente. Um plano irrefletido, eu diria. Alguém até poderia
pensar que é um ato de desespero de um bêbado. Talvez, se eu fosse
Jaime... mas Jaime matou o pai dela, eu só matei o meu. Você acha
que Daenerys vai me executar e perdoá-lo, mas o inverso é mais
provável. Talvez você deva subir naquele porco, Sor Jorah. Colocar
uma roupa de pedaços de ferro, como Florian, o...
O
soco que o grande cavaleiro lhe deu estalou por toda a sua cabeça e
o derrubou de lado com tanta força, que a cabeça ricocheteou no
convés. Sangue escorria de sua boca, enquanto ele cambaleava para
ficar de joelhos. Cuspiu um dente quebrado. Ficando mais bonito a
cada dia, mas acho que cutuquei uma ferida.
-
O anão disse algo que o ofendeu, sor? - Tyrion perguntou
inocentemente, limpando bolhas de sangue do lábio ferido com as
costas da mão.
-
Estou cansado da sua boca, anão - disse Mormont. - Ainda tem alguns
dentes que lhe restaram. Se quiser mantê-los, fique longe de mim o
restante desta viagem.
-
Isso pode ser difícil. Nós compartilhamos uma cabine.
-
Você pode encontrar outro lugar para dormir. Lá embaixo, no porão,
aqui no convés, não importa. Apenas fique longe da minha vista.
Tyrion
ficou em pé.
-
Como desejar - respondeu, com a boca cheia de sangue, mas o grande
cavaleiro já havia ido embora, as botas batendo com força contra as
tábuas do chão do convés.
Tyrion
estava na cozinha, enxaguando a boca com rum e água e se contraindo
de dor, quando Merreca o encontrou.
-
Soube o que aconteceu. Oh, está machucado?
Ele
deu de ombros.
-
Um pouco de sangue e um dente quebrado. - Mas acredito que o feri
mais. - E ele se diz um cavaleiro. Sinto dizer, eu não contaria com
Sor Jorah se precisarmos de proteção.
-
O que você fez? Oh, seus lábios estão sangrando. - Ela arrancou um
pedaço de sua manga e o limpou. - O que você disse?
-
Algumas verdades que Sor Bezoar não gostou de ouvir.
-
Você não devia zombar dele. Você não sabe nada? Não pode falar
desse jeito com uma pessoa grande. Ela pode ferir você. Sor Jorah
podia ter jogado você no mar. Os marinheiros teriam rido vendo você
se afogar. Precisa ser cuidadoso perto de pessoas grandes. Seja
alegre e brincalhão com eles, mantenha-os sorrindo, faça-os rir,
era o que meu pai sempre dizia. Seu pai nunca falou para você como
agir com pessoas grandes?
-
Meu pai os chamava de camponeses - disse Tyrion - e ele não era o
que você chamaria de um homem alegre. - Tomou outro gole de rum
aguado, bochechou e cuspiu. - Mesmo assim, entendi seu ponto de
vista. Tenho que aprender a ser um anão. Talvez você possa ser boa
o suficiente para me ensinar. entre as justas e a corrida de porco.
-
Ensinarei, meu senhor. Alegremente. Mas ... que verdades foram essas?
Por que Sor Jorah bateu em você com tanta força?
-
Ora, por amor. A mesma razão pela qual cozinhei aquele cantor. -
Pensou em Shae e no olhar que ela lhe deu enquanto apertava a
corrente em volta do seu pescoço, torcendo-a com o punho. Uma
corrente de mãos douradas. Por que mãos de ouro são sempre. frias,
mas há calor em mãos de mulher. - Você é donzela, Merreca?
Ela
corou.
-
Sim. É claro. Quem iria ...
-
Continue assim. Amor é loucura, e luxúria é veneno. Mantenha sua
virgindade. Ficará feliz com isso, e é menos provável que você se
encontre em algum bordel sujo no Roine, com uma puta que se parece um
pouco com seu amor perdido. - Ou que percorra meio mundo, esperando
descobrir para onde as putas vão. - Sor Jorah sonha em resgatar sua
rainha dragão e gozar da gratidão dela, mas sei uma coisa ou duas a
respeito da gratidão dos reis, e eu prefiro ter um palácio em
Valíria. - Parou repentinamente o que estava falando. - Sentiu isso?
O navio se moveu.
-
Senti. - A face de Merreca se iluminou de alegria. - Estamos nos
movendo novamente. O vento ... - Correu em direção à porta. -
Quero ver. Venha, vamos ver quem chega lá em cima primeiro. - E lá
se foi ela.
Ela
é jovem, Tyrion teve que lembrar a si mesmo, enquanto Merreca corria
da cozinha, em direção aos degraus de madeira, subindo o mais
rápido que suas perninhas permitiam. Quase uma criança. Mesmo
assim, divertia-o ver a excitação dela. Seguiu-a para cima.
A
vela ganhara vida novamente, erguendo-se, abaixando-se, erguendo-se
novamente, as listras vermelhas no tecido serpenteando como cobras.
Marinheiros corriam por todo o convés, puxando as cordas com força,
enquanto os imediatos gritavam ordens na língua da Antiga Volantis.
Os remadores nos botes soltavam as cordas de reboque e as
arremessavam de volta para dentro do navio, com duras pancadas. O
vento soprava do oeste, rodopiando e em rajadas, agarrando-se às
cordas e aos mantos como uma criança travessa. O Selaesori Qhoran
estava a caminho.
Pode
ser que cheguemos a Meereen, depois de tudo, Tyrion pensou.
Mas
quando subiu pela escada de mão até o castelo de popa e olhou para
fora, seu sorriso vacilou. Céu azul e mar azul aqui, mas para
oeste... Nunca vi um céu desta cor. Uma faixa grossa de nuvens
percorria o horizonte.
-
Uma barra sinistra - disse para Merreca, apontando.
-
O que aquilo significa? - ela perguntou.
-
Significa que algum grande bastardo está avançando furtivamente por
trás de nós.
Ficou
surpreso em descobrir que Moqorro e dois de seus dedos ardentes
haviam se juntado a eles no castelo de popa. Era apenas meio-dia e,
normalmente, o sacerdote vermelho e seus homens não apareciam antes
do crepúsculo. O sacerdote lhe deu um aceno solene com a cabeça.
-
Lá você vê, Hugor Hill. A ira de deus. O Senhor da Luz não será
zombado.
Tyrion
não tinha uma boa intuição sobre isso.
-
A viúva disse que este navio nunca alcançaria seu destino. Imaginei
que isso significava que, uma vez que estivéssemos em alto-mar, fora
do alcance da tríade, o capitão mudaria o curso para Meereen. Ou
que talvez você pudesse tomar o navio com sua Mão Ardente e nos
levar para Daenerys. Mas não foi nada disso que seu alto sacerdote
viu, não é?
-
Não. - A voz profunda de Moqorro soou tão solene quanto um sino de
funeral.
-
Foi isso o que ele viu. - O sacerdote vermelho ergueu seu bastão e
inclinou a cabeça para oeste.
Merreca
estava perdida.
-
Não entendo. O que isso significa?
-
Significa que é melhor irmos para baixo. Sor Jorah me exilou da
nossa cabine. Posso me esconder na sua, quando a hora chegar?
-
Sim - ela disse. - Você pode... oh ...
Durante
a maior parte das três horas seguintes, correram à frente do vento,
enquanto a tempestade se aproximava. O céu ocidental ficou verde,
depois cinza e, então, negro. Uma parede de nuvens escuras assomava
atrás deles, transbordando como uma chaleira de leite deixada muito
tempo no fogo. Tyrion e Merreca observavam debruçados sobre a figura
de popa, de mãos dadas, tomando cuidado para ficar fora do caminho
do capitão e da tripulação.
A
última tempestade fora estimulante, inebriante, uma tormenta
repentina que o deixara se sentindo limpo e refrescado. Esta parecia
diferente desde o início. O capitão percebera também. Mudou o
curso de norte para nordeste, tentando escapar do caminho do
temporal.
Era
um esforço inútil. A tempestade era grande demais. A água ao redor
deles ficava mais agitada. O vento começava a uivar. O Intendente
Fedorento subia e descia, enquanto as ondas arrebentavam contra seu
casco. Atrás deles, relâmpagos cruzavam o céu. cegando com faíscas
púrpura que dançavam pelo mar em teias de luz. O trovão veio na
sequência.
-
E hora de nos escondermo. - Tyrion pegou Merreca pelo braço e a
levou para a cabine.
Bonita
e Triturador estavam meio loucos de medo. O cão latia, latia, latia.
Pulou sobre Tyrion assim que entraram. A porca havia defecado por
todo lado. Tyrion limpou o melhor que pôde, enquanto Merreca tentava
acalmar os animais. Então prenderam ou jogaram fora qualquer coisa
que estivesse solta.
-
Estou assustada - Merreca confessou. A cabine começara a se inclinar
e a pular, indo para esse lado ou para o outro, conforme as ondas
martelavam o casco do navio.
Há
maneiras piores de se morrer do que afogado. O irmão dela aprendeu
isso, e também, o senhor meu pai. E Shae, aquela boceta mentirosa.
Mãos de ouro são sempre frias, mas mãos de mulher são quentes.
-
Devíamos jogar alguma coisa - Tyrion sugeriu. - Pode ajudar a tirar
nossos pensamentos da tempestade.
-
Não cyvasse - ela disse, de cara.
-
Não cyvasse - Tyrion concordou, enquanto o convés se erguia. Isso
apenas faria as peças voarem violentamente pela cabine, caindo sobre
a porca e o cão. - Quando você era uma garotinha, alguma vez jogou
venha-para-meu-castelo?
-
Não. Pode me ensinar?
Ele
poderia? Tyrion hesitou. Anão idiota. É claro que ela nunca jogou
venha-para-meu-castelo. Ela nunca teve um castelo.
Venha-para-meu-castelo era um jogo para crianças bem-nascidas, com a
intenção de ensinar-lhes cortesia, heráldica e uma ou duas coisas
sobre os amigos e inimigos dos senhores seus pais.
-
Esse não ... - ele começou. O convés deu outro solavanco violento,
jogando um contra o outro. Merreca deu um grito de medo. - Esse jogo
não dá - Tyrion falou, rangendo os dentes. - Desculpe. Não conheço
um jogo...
-
Eu conheço. - Merreca o beijou.
Foi
um beijo estranho, apressado, desajeitado. Mas o pegou completamente
desprevenido. Ele ergueu as mãos e a segurou pelos ombros, pronto
para empurrá-la. Em vez disso, hesitou, e então a puxou mais para
perto, dando-lhe um abraço. Os lábios dela eram secos, duros e
estavam tão fechados quanto a bolsa de um avarento. Uma pequena
misericórdia, pensou Tyrion. Isso não era nada do que queria.
Gostava de Merreca, tinha pena de Merreca, até admirava Merreca de
certo modo, mas não a desejava. Mas não queria magoá-la; os deuses
e sua doce irmã já haviam lhe garantido dor suficiente. Então
deixou o beijo continuar, segurando-a gentilmente pelos ombros. Seus
próprios lábios permaneceram firmemente fechados. O Selaesori
Qhoran girava e estremecia ao redor deles.
Finalmente
ela se afastou um centímetro ou dois. Tyrion podia ver seu próprio
reflexo nos olhos dela. Olhos bonitos, pensou, mas viu outras coisas,
também. Muito medo, uma pequena esperança... mas nada de luxúria.
Ela não me quer, não mais do que eu a quero.
Quando
Merreca abaixou a cabeça, ele segurou seu queixo e ergueu o rosto
dela novamente.
-
Não podemos jogar esse jogo, minha senhora. - Acima deles, um trovão
explodiu, dessa vez bem próximo.
-
Nunca quis ... nunca beijei um rapaz antes, mas ... só pensei que,
se nos afogarmos, e eu ... eu ...
-
Foi doce - mentiu Tyrion - mas sou casado. Ela estava comigo no
banquete, você deve se lembrar. A Senhora Sansa.
-
Era sua esposa? Ela ... ela era muito bonita ...
E
falsa. Sansa, Shae, todas as minhas mulheres ... Tysha foi a única
que realmente me amou. Para onde as putas vão?
-
Uma garota adorável- disse Tyrion - e estamos unidos diante dos
olhos dos deuses e dos homens. Pode ser que esteja perdida para mim,
mas, até ter certeza, devo ser fiel a ela.
-
Entendo. - Merreca afastou seu rosto do dele.
Minha
mulher perfeita, Tyrion pensou, amargamente. Uma ainda jovem o
suficiente para acreditar nessas mentiras descaradas.
O
casco rangia, o convés se movia, e Bonita gritava de aflição.
Merreca rastejou pelo chão da cabine, de gatinhas, e enrolou os
braços na cabeça da porca, murmurando palavras de confiança.
Olhando as duas, era difícil saber quem confortava quem. A visão
era tão grotesca que poderia ter sido hilária, mas Tyrion não
conseguiu encontrar nem mesmo um sorriso. A garota merece mais do que
um porco, pensou. Um beijo sincero, um pouco de gentileza, todo mundo
merece isso, seja grande ou pequeno. Procurou por sua taça, mas,
quando a encontrou, todo o rum havia sido derramado. Afogar-se já é
ruim o suficiente, refletiu amargamente, mas se afogar triste e
sóbrio é cruel demais.
No
fim, eles não se afogaram ... embora, em alguns momentos, a
perspectiva de um belo e pacífico afogamento tivesse um certo apelo.
A tempestade durou o resto daquele dia e seguiu noite adentro. Ventos
molhados uivavam ao redor deles, e ondas erguiam-se como punhos de
gigantes adormecidos para esmagar o convés. Em cima, souberam mais
tarde, um imediato e dois marinheiros tinham sido arrastados ao mar,
o cozinheiro do navio ficara cego quando uma chaleira de gordura
quente voou em seu rosto, e o capitão fora arremessado do castelo de
popa para o convés principal tão violentamente que quebrara as duas
pernas. Lá embaixo, Triturador uivara, latira e mordera Merreca, e
Porca Bonita começara a defecar novamente, transformando a cabine
apertada e úmida em um chiqueiro. Tyrion conseguira não vomitar
diante de tudo isso, principalmente graças à falta de vinho.
Merreca não tivera tanta sorte, mas ele a segurara assim mesmo,
enquanto o casco no navio rangia e gemia de forma alarmante em torno
deles, como um barril prestes a explodir.
Perto
de meia-noite, os ventos finalmente cederam e o mar ficou calmo o
suficiente para que Tyrion subisse ao convés. O que viu ali não o
tranquilizou. O navio estava à deriva em um mar de vidro de dragão
sob uma tigela de estrelas, porém, por todos os lados, a tempestade
se alastrava. Leste, oeste, norte, sul, para onde quer que olhasse,
as nuvens se erguiam como montanhas negras, com encostas íngremes e
penhascos colossais, repletas de relâmpagos azuis e púrpura.
Nenhuma chuva caía, mas, sob seus pés, o convés estava
escorregadio e molhado.
Tyrion
podia ouvir alguém gritando lá embaixo, uma voz fina e alta,
histérica de medo. Pôde ouvir Moqorro também. O sacerdote vermelho
estava no castelo de popa, encarando a tempestade, o bastão erguido
sobre a cabeça enquanto trovejava uma oração. No meio do navio,
uma dúzia de marinheiros e dois dedos ardentes lutavam com linhas
emaranhadas e lona encharcada, mas se estavam tentando erguer a vela
ou baixá-la, Tyrion não sabia dizer. O que quer que estivessem
fazendo, parecia uma má ideia. E realmente era.
O
vento retornou com um sussurro de aviso, frio e úmido, passando por
seu rosto, batendo a vela molhada, torcendo e enrolando a túnica
escarlate de Moqorro. Algum tipo de instinto fez Tyrion agarrar o
parapeito mais próximo, bem a tempo. No espaço de três segundos, a
pequena brisa se transformou em um vendaval ululante. Moqorro gritou
alguma coisa, e chamas verdes se ergueram da boca do dragão na ponta
de seu bastão para desaparecer na noite. Então a chuva veio, negra
e cegante, e os castelos de popa e de proa sumiram atrás de paredes
de água. Algo imenso voou sobre as cabeças, Tyrion olhou para cima
e ainda conseguiu ver a vela voando com o vento, com dois homens
ainda balançando nas linhas. Então ouviu um estalido. Oh, maldito
inferno, teve tempo de pensar, deve ter sido o mastro.
Encontrou
uma corda e a puxou, lutando em direção à escotilha para tentar
sair da tempestade, mas uma rajada de vento o fez perder o
equilíbrio, e uma segunda o fez se chocar contra o parapeito, onde
se agarrou. A chuva açoitava seu rosto, cegando-o. Sua boca estava
cheia de sangue novamente. O navio resmungava e gemia sob ele, como
um gordo constipado fazendo força para evacuar.
Então
o mastro se partiu.
Tyrion
não chegou a ver, mas ouviu. O estalido novamente e, então, um
grito de madeira torturada, e repentinamente o ar estava cheio de
pedaços e lascas. Um errou seu olho por um centímetro, o segundo
acertou sua bochecha, um terceiro atingiu a virilha, botas, calção
e tudo mais. Ele gritou. Mas continuou segurando a corda, mantendo-a
com uma força desesperada que não sabia possuir. A viúva disse que
este navio jamais chegaria a seu destino, lembrou-se. Então
gargalhou e gargalhou, selvagem e histérico, enquanto trovões
estouravam, madeira gemia e ondas arrebentavam ao seu redor.
Quando
a tempestade finalmente amainou e os passageiros c a tripulação
sobreviventes rastejaram de volta ao convés, como pálidos vermes
rosados que vêm a superfície depois da chuva, o Selaesori Qhoran
era uma coisa destruída, flutuando suavemente na água, inclinado
dez graus para a esquerda, o casco rachado em meia centena de
lugares, o compartimento de carga inundado de água do mar, o mastro
uma ruína estilhaçada da altura de um anão. Nem mesmo a figura de
proa escapara: um de seus braços se quebrara, o que segurava o
pergaminho. Nove homens tinham desaparecido, incluindo um imediato,
dois dedos ardentes e o próprio Moqorro.
Será
que Benerro viu isso em suas chamas? Tyrion se perguntou, quando
percebeu que o enorme sacerdote vermelho se fora. Será que Moqorra
viu?
-
Uma profecia é como uma mula semi treinada - reclamou para Jorah
Mormont. - Parece que será útil, mas no momento em que você confia
nela, ela o chuta na cabeça. A maldita viúva sabia que o navio
nunca chegaria ao seu destino, ela nos avisou sobre isso, disse que
Benerro viu em suas chamas, só que achei que isso significava ...
bem, o que importa? - Sua boca se contorceu. - O que realmente
significava era que alguma maldita tempestade gigante transformaria
nosso mastro em gravetos e nos deixaria à deriva no Golfo da Mágoa
até nossa comida acabar e começarmos a comer uns aos outros. Quem
você acha que eles vão trinchar primeiro ... o porco, o cão, ou
eu?
-
O mais barulhento, eu diria.
O
capitão morreu no dia seguinte, o cozinheiro do navio, três noites
mais tarde. Tudo o que a tripulação restante podia fazer era manter
os destroços flutuando. O imediato que assumiu o comando avaliou que
estavam em algum lugar no extremo sul da Ilha de Cedros. Quando
baixou os botes do navio para rebocá-los até a terra mais próxima,
um deles afundou, e os homens no outro cortaram a corda e remaram
para o norte, abandonando o barco e seus companheiros.
-
Escravos - disse Jorah Mormont, desdenhoso.
O
grande cavaleiro dormira durante a tempestade, conforme ele mesmo
contara.
Tyrion
tinha suas dúvidas, mas as manteve para si. Um dia poderia querer
morder a perna de alguém, e precisaria de dentes para isso. Mormont
parecia satisfeito em ignorar o desentendimento deles, então Tyrion
decidiu fingir que nada acontecera.
Por
dezenove dias estiveram à deriva, enquanto a comida e a água
diminuíam. O sol batia neles, implacável. Merreca aconchegava-se na
cabine, com o cão e o porco, e Tyrion levava comida para ela,
mancando com sua coxa enfaixada e cheirando a ferida à noite. Quando
não tinha nada mais para fazer. cutucava os dedos das mãos e dos
pés. Sor Jorah fazia questão de afiar sua espada todos os dias,
amolando a ponta até deixá-la brilhante. Os três dedos ardentes
que sobraram acendiam as tochas noturnas quando o sol se punha, mas
vestiam suas armaduras ornamentadas enquanto deixavam a tripulação
rezando, e deixavam as lanças sempre à mão. E nem um único
marinheiro tentou esfregar a cabeça de qualquer anão.
-
Devemos disputar uma justa para eles, novamente? - Merreca perguntou
certa noite.
-
Melhor não - respondeu Tyrion. - Isso só serviria para que
lembrassem que temos um belo porco redondo. - Embora Bonita estivesse
ficando menos redonda a cada dia, e Triturador estivesse pele e
ossos.
Naquela
noite, ele sonhou que estava novamente em Porto Real, uma besta em
sua mão.
-
Para onde quer que as putas vão - Lorde Tywin disse, mas quando o
dedo de Tyrion se fechou e a corda da arma disparou, era Merreca com
um dardo atravessado na barriga.
Ele
acordou ao som de gritos.
O
convés se movia embaixo dele, e, por meio segundo, ficou tão
confuso que pensou estar de volta ao Donzela Tímida. Uma lufada de
merda de porco trouxe seus sentidos de volta. Os Sofrimentos estavam
para trás agora, a meio mundo de distância, assim como as alegrias
daquela época. Ele se lembrava quão doce Lemore parecia depois de
seus banhos matinais, com contas de água brilhando em sua pele nua,
mas a única donzela aqui era sua pobre Merreca, a pequena anã
atrofiada.
Alguma
coisa estava acontecendo. Tyrion escorregou da rede de dormir,
bocejando, e procurou as botas. E, por mais louco que fosse, procurou
pela besta também, mas é claro que não havia nenhuma para ser
encontrada. Uma pena, devaneou, ela poderia ser de alguma utilidade
quando as pessoas grandes vierem me comer. Colocou as botas e subiu
ao convés, para ver por que estavam gritando. Merreca chegara antes
dele, seus olhos arregalados de espanto.
-
Uma vela - ela gritou - ali, ali, vê? Uma vela, e já nos viram. Uma
vela.
Dessa
vez, ele a beijou ... uma vez em cada bochecha, uma vez na testa, e
uma última vez na boca. Ela estava corada e rindo pelo último
beijo, repentinamente tímida novamente, mas não importava. Outro
navio se aproximava. Uma grande galé, ele podia ver. Seus remos
deixavam um longo rastro branco para trás.
-
Que navio é? - Tyrion perguntou para Sor Jorah Morrnont. - Você
consegue ler o nome?
-
Não preciso ler o nome. Estamos a favor do vento. Posso cheirá-lo.
- Mormont desembainhou sua espada. - São traficantes de escravos.
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