Val
esperava no portão, no frio da madrugada, enrolada em uma capa de
pele de urso tão grande que poderia servir para Sam. Ao seu lado
estava um garrano, selado e com freios, um cinza hirsuto com apenas
um olho. Mully e Edd Doloroso estavam parados com ela, um par
improvável de guardas. Suas respirações congelavam no ar frio e
negro.
-
Deu a ela um cavalo cego? - perguntou Jon, incrédulo.
-
É apenas meio cego, senhor - respondeu Mully. - E, além disso, é
sólido o suficiente. - Deu um tapinha no pescoço do garrano.
-
O cavalo pode ser meio cego, mas eu não sou - disse Val. - Sei aonde
devo ir.
-
Minha senhora, você não tem que fazer isso. O risco ...
-
... é meu, Lorde Snow. E não sou uma senhora sulista, mas uma
mulher do povo livre. Conheço a floresta melhor do que todos os seus
patrulheiros de manto negro. Ela não tem fantasmas para mim.
Espero
que não. Jon contava com isso, acreditando que Val poderia ter êxito
onde Jack Negro Bulwer e seus companheiros falharam. Ela não
precisava ter medo de ser ferida pelo povo livre, ele esperava ...
mas ambos sabiam muito bem que os selvagens não eram os únicos
esperando na mata.
-
Tem comida suficiente?
-
Pão duro, queijo duro, bolos de aveia, bacalhau salgado, carne seca,
cordeiro salgado, e um odre de vinho doce para lavar todo o sal da
minha boca. Não morrerei de fome.
-
Então é hora de partir.
-
Tem minha palavra, Lorde Snow. Retornarei com Tormund ou sem ele. -
Val olhou o céu. A lua estava meio cheia. - Procure por mim no
primeiro dia da lua cheia.
-
Procurarei. - Não falhe comigo, pensou, ou Stannis terá minha
cabeça. “Tenho sua palavra de que manterá nossa princesa por
perto?”, o rei dissera, e Jon prometera que sim. Mas Val não é
nenhuma princesa. Disse isso a ele meia centena de vezes. Era uma
desculpa fraca, um triste farrapo enrolado em sua palavra quebrada.
Seu pai nunca teria aprovado aquilo. Sou a espada que guarda os
reinos dos homens, Jon recordou-se, no fim, isso deve valer mais do
que a honra de um homem.
O
caminho por baixo da Muralha era escuro e frio como as entranhas de
um dragão de gelo, e sinuoso como uma serpente. Edd Doloroso os
guiou com uma tocha na mão. Mully tinha as chaves dos três portões,
onde barras de ferro negro, tão grossas quanto o braço de um homem,
fechavam a passagem. Lanceiros em cada um dos portões inclinaram as
cabeças para Jon Snow, mas encararam abertamente Val em seu garrano.
Quando
saíram ao norte da Muralha, passando por um grosso portão feito de
madeira verde recém-cortada, a princesa selvagem parou por um
momento para olhar pelo campo coberto de neve onde o Rei Stannis
vencera sua batalha. Logo além, a floresta assombrada aguardava,
escura e silenciosa. A luz da meia-lua transformou o cabelo loiro-mel
de Val em prata-claro e deixou seu rosto tão branco quanto neve. Ela
respirou profundamente.
-
O ar tem gosto doce.
-
Minha língua é insensível demais para dizer. Tudo o que sinto é
frio.
-
Frio. - Val deu uma risada leve. - Não. Quando está frio, dói para
respirar. Quando os Outros vêm ...
O
pensamento era inquietante. Seis dos patrulheiros que Jon enviara
ainda estavam perdidos. É muito cedo. Eles podem estar voltando. Mas
outra parte dele insistia, Estão mortos, todos eles. Você os mandou
para a morte, e está fazendo o mesmo com Val.
-
Diga para Tormund o que eu lhe disse.
-
Ele pode não prestar atenção às suas palavras, mas as ouvirá. -
Val o beijou suavemente no rosto. - Tem minha gratidão, Lorde Snow.
Pelo cavalo meio cego, pelo peixe salgado, pelo ar fresco. Pela
esperança.
Suas
respirações se misturaram, uma névoa branca no ar. Jon Snow se
afastou e disse:
-
O único agradecimento que quero é...
-
Tormund Terror dos Gigantes. Sim. - Val puxou o capuz de sua pele de
urso. A pelagem marrom estava salpicada de cinza. - Antes que eu vá,
uma pergunta. Você matou Jarl, meu senhor?
-
A Muralha matou Jarl.
-
Foi o que ouvi dizer. Mas precisava ter certeza.
-
Tem minha palavra. Não o matei. - Embora pudesse ter matado, se as
coisas tivessem sido diferentes.
-
Esta é a despedida, então - ela disse, quase brincando.
Jon
não estava no clima para isso. Está muito frio e muito escuro para
brincar, e já está muito tarde.
-
Apenas por algum tempo. Você voltará. Pelo menino, se não por
outra razão.
-
O filho de Craster? - Val deu de ombros. - Ele não é meu parente.
-
Eu ouvi você cantando para ele.
-
Estava cantando para mim mesma. Tenho culpa se ele ouve? - Um leve
sorriso roçou seus lábios. - Isso o faz rir. Oh, está bem. Ele é
um monstrinho querido.
-
Monstro?
-
Seu nome de leite. Tenho que chamá-lo de alguma coisa. Assegure-se
de que esteja protegido e aquecido. Pelo bem da mãe dele, e pelo
meu. E o mantenha longe da mulher vermelha. Ela sabe quem ele é. Ela
vê coisas nas chamas.
Arya,
ele pensou, esperando que fosse assim.
-
Cinzas e brasas.
-
Reis e dragões.
Dragões
novamente. Por um momento, Jon quase os viu também, serpenteando na
noite, suas sombras escuras delineadas contra um mar de chamas.
-
Se ela soubesse, teria tirado o bebê de nós. O garoto de Goiva, não
seu monstro. Uma palavra no ouvido do rei teria sido o fim disso. - E
o meu. Stannis teria considerado isso traição. - Por que deixar
acontecer, se ela sabia?
-
Porque convinha a ela. O fogo é uma coisa inconstante. Ninguém sabe
o caminho que uma chama vai percorrer. - Val colocou um pé no
estribo, balançou a perna sobre o dorso do cavalo e, já na sela,
olhou para baixo. - Você se lembra do que minha irmã disse?
-
Sim. - Uma espada sem um cabo, sem uma maneira segura de segurá-la.
Mas Melisandre estava certa. Mesmo uma espada sem cabo era melhor do
que uma mão vazia quando os inimigos estão ao seu redor.
-
Bom. - Val virou o garrano na direção norte. - A primeira noite de
lua cheia, então.
Jon
a observou se afastar, sem saber se veria o rosto dela novamente. Não
sou uma senhora do Sul, podia ouvi-la dizer, mas uma mulher do povo
livre.
-
Não me importa o que ela diz - resmungou Edd Doloroso, enquanto Val
desaparecia atrás de uma fileira de pinheiros marciais. - O ar está
tão frio que dói respirar. Eu pararia, mas doeria mais. - Esfregou
as mãos. - Isso vai terminar mal.
-
Você diz isso de tudo.
-
Sim, meu senhor. Normalmente estou certo.
Mully
limpou a garganta.
-
Senhor? A princesa selvagem, deixar ela ir, os homens podem falar...
-
... que eu sou meio-selvagem também, um vira-casaca que pretende
vender o reino para nossos corsários, canibais ou gigantes. - Jon
não precisava ficar parado na frente de uma fogueira para saber o
que começavam a falar sobre ele. A pior parte era que não estavam
errados, não completamente. - Palavras são vento, e o vento está
sempre soprando na Muralha. Vamos.
Ainda
estava escuro quando Jon voltou para seus aposentos atrás do
arsenal. Reparou que Fantasma ainda não retornara. Ainda caçando. O
grande lobo gigante branco estava mais ausente do que presente
ultimamente, indo cada vez mais longe em busca de presas. Entre os
homens da Patrulha e os selvagens em Vila Toupeira, as colinas e os
campos próximos a Castelo Negro já não tinham mais caça e havia
pouco passatempo por ali. O inverno está chegando, refletiu Jon. E
logo, tão logo. Ele se perguntava se chegariam a ver uma primavera.
Edd
Doloroso fez uma visita às cozinhas, e logo estava de volta com uma
caneca de cerveja marrom e um prato coberto. Sob a tampa, Jon
descobriu três ovos de pata fritos, uma fatia de toicinho, duas
salsichas, um chouriço e metade de um pão ainda quente do forno.
Comeu o pão e metade de um ovo. Teria comido o toicinho, também,
mas o corvo fugiu com ele antes que tivesse chance.
-
Ladrão - reclamou Jon, enquanto a ave voava até o lintel sobre a
porta para devorar seu prêmio.
Ladrão,
a ave concordou.
Jon
experimentou um pedaço de salsicha. Estava lavando o gosto da boca
com um gole de cerveja, quando Edd voltou para dizer que Bowen Marsh
estava do lado de fora.
-
Othell está com ele, e o Septão Cellador.
Isso
foi rápido. Perguntava-se quem estaria contando histórias, e se
havia mais de um.
-
Mande-os entrar.
-
Sim, meu senhor. Mas é bom ter cuidado com suas salsichas com esse
pessoal. Eles têm um olhar faminto.
“Faminto”
não era a palavra que Jon teria usado. Septão Cellador parecia
confuso, cambaleante e na extrema necessidade de algumas escamas de
dragão que o inflamasse, enquanto o Primeiro Construtor Othell
Yarwyck parecia que tinha engolido algo que não conseguia digerir.
Bowen Marsh estava zangado. Jon podia ver em seus olhos, na boca
apertada, no rubor das bochechas. Esse vermelho não é do frio.
-
Por favor, sentem-se - disse. - Posso oferecer-lhes comida ou bebida?
-
Quebramos nosso jejum no salão comum - disse Marsh.
-
Posso comer mais. - Yarwyck soltou-se em uma cadeira. - Bom que tenha
oferecido.
-
Talvez um pouco de vinho? - disse o Septão Cellador.
Grão,
gritou a ave de cima do lintel. Grão, grão.
-
Vinho para o septão e um prato para nosso Primeiro Construtor - Jon
pediu para Edd Doloroso. - Nada para a ave. - Virou-se para seus
visitantes. - Estão aqui por causa de Val.
-
E outros assuntos - disse Bowen Marsh. - Os homens estão
preocupados, meu senhor.
E
quem o escolheu para falar por eles?
-
Assim como eu. Othell, como vai o trabalho em Fortenoite? Recebi uma
carta de Sor Axell Florent, que se auto denomina Mão da Rainha. Ele
diz que a Rainha Selyse não está satisfeita com seus alojamentos em
Atalaialeste do Mar e deseja mudar-se para a nova propriedade de seu
marido de uma vez. Isso será possível?
Yarwyck
deu de ombros.
-
Temos a maior parte da fortaleza restaurada e colocamos telhado nas
cozinhas. Ela precisará de comida, mobílias e lenha, note bem, mas
deve servir. Não há tanto conforto quanto em Atalaialeste,
certamente. E um longo caminho desde os navios, se Sua Graça desejar
deixar-nos, mas ... sim, ela poderia viver lá, embora possa levar
anos até que o lugar pareça realmente um castelo. Seria mais rápido
se tivéssemos mais construtores.
-
Posso lhe oferecer um gigante.
Aquilo
deu um susto em Othell.
-
O monstro no pátio?
-
O nome dele é Wun Weg Wun Dar Wun, Couros me contou. O suficiente
para dar um nó na língua, eu sei. Couros o chama de Wun Wun, e
parece funcionar. - Wun Wun era muito pouco parecido com os gigantes
dos contos da Velha Ama, aquelas imensas criaturas selvagens que
misturavam sangue ao mingau matutino e devoravam touros inteiros, com
pelos, couro e chifres. Este gigante não comia nenhum tipo de carne,
embora fosse um verdadeiro terror quando lhe serviam uma cesta de
raízes, triturando cebolas e nabos, e até mesmo duros rabanetes
crus entre seus grandes dentes quadrados. - Ele é um trabalhador
disposto, ainda que fazê-lo entender o que se quer nem sempre seja
fácil. Ele fala a Língua Antiga, depois de uma adaptação, mas
nada da Língua Comum. Mas é incansável, e sua força é
prodigiosa. Ele poderia fazer o trabalho de uma dúzia de homens.
-
Eu ... meu senhor, os homens nunca ... gigantes comem carne humana,
acho ... não, meu senhor, agradeço, mas não teria homens para
vigiar tal criatura, ele...
Jon
não estava surpreso.
-
Como desejar. Manteremos o gigante aqui. - Verdade seja dita, teria
detestado se separar de Wun Wun. Você não sabe nada, Jon Snow,
Ygritte poderia dizer, mas Jon conversava com o gigante sempre que
podia, através de Couros ou de alguém do povo livre que trouxera do
bosque, e estava aprendendo muito e ainda mais sobre seu povo e sua
história. Ele só queria que Sam estivesse aqui para escrever tudo
aquilo.
Isso
não queria dizer que estivesse cego para o perigo que Wun Wun
representava. O gigante atacaria violentamente se ameaçado, e
aquelas mãos imensas podiam rasgar um homem em pedaços. Ele fazia
Jon se lembrar de Hodor. Hodor era duas vezes maior, duas vezes mais
forte e metade esperto. Eis um pensamento que deixaria sóbrio até
Septão Cellador. Mas se Tormund tiver gigantes, Wun Weg Wun Dar Wun
pode nos ajudar a lidar com eles.
O
corvo de Mormont resmungou sua impaciência quando a porta se abriu
sob ele, anunciando o retorno de Edd Doloroso com um jarro de vinho e
um prato de ovos e salsichas. Bowen Marsh aguardava com impaciência
óbvia enquanto Edd servia, retomando o assunto apenas quando ele
partiu novamente.
-
Tollet é um bom homem, e muito querido, e Emmett de Ferro tem sido
um bom mestre em armas - disse, então. - Mesmo assim, dizem que você
pretende mandá-los embora.
-
Precisaremos de bons homens em Monte Longo.
-
O Buraco da Puta, os homens começaram a chamar a fortaleza - disse
Marsh - mas que seja. É verdade que pretende substituir Emmett por
esse feroz Couros como nosso mestre em armas? Este é um posto mais
reservado para cavaleiros, ou patrulheiros, ao menos.
-
Couros é feroz - Jon concordou suavemente. - Posso atestar isso. Eu
o testei no treino do pátio. É tão perigoso com um machado de
pedra quanto a maioria dos cavaleiros são com o aço forjado nos
castelos. Garanto para você, ele não é tão paciente quanto eu
gostaria, e alguns dos rapazes se sentem aterrorizados por ele... mas
isso não é de todo mau. Um dia, eles se encontrarão em uma luta
real, e uma certa familiaridade com o terror lhes servirá bem.
-
Ele é um selvagem.
-
Era, até dizer as palavras. Agora, é nosso irmão. Um que pode
ensinar aos rapazes mais do que esgrima. Ninguém vai se machucar em
aprender com ele algumas palavras na Língua Antiga, ou alguma coisa
dos costumes do povo livre.
Livre,
o corvo resmungou. Grão. Rei.
-
Os homens não confiam nele.
Quais
homens? Jon poderia ter perguntado. Quantos? Mas isso o levaria por
um caminho que não queria trilhar.
-
Sinto ouvir isso. Há mais algo?
Septão
Cellador falou.
-
Esse rapaz, Cetim. Dizem que você pretende torná-lo seu intendente
e escudeiro, no lugar de Tollett. Meu senhor, o garoto é um
prostituto ... um ... ouso dizer... um sodomita pintado dos bordéis
de Vilavelha.
E
você é um bêbado.
-
O que ele era em Vilavelha não nos diz respeito. Ele aprende rápido
e é muito esperto. Os outros recrutas começaram desprezando-o, mas
ele os conquistou e fez amizade com todos. É destemido em uma luta,
e consegue até ler e escrever após algum treino. Deverá ser capaz
de buscar minhas refeições e selar meu cavalo, não acha?
-
Como a maioria - disse Bowen Marsh, rosto endurecido - mas os homens
não gostam disso. Tradicionalmente, os escudeiros do senhor
comandante são rapazes de bom nascimento que são treinados para o
comando. Meu senhor acredita que os homens da Patrulha da Noite
seguirão um puto para a batalha?
O
temperamento de Jon se inflamou.
-
Já seguiram piores. O Velho Urso deixou para seu sucessor algumas
notas de advertência sobre certos homens. Temos um cozinheiro na
Torre Sombria que apreciava estuprar septãs. Queimava uma estrela de
sete pontas em sua própria carne para cada uma que reivindicava. Seu
braço esquerdo é coberto de estrelas do pulso ao cotovelo, e
estrelas marcam suas panturrilhas também. Em Atalaialeste temos um
homem que colocou fogo na casa do pai e trancou a porta. A família
inteira morreu queimada, todos os nove. O que quer que Cetim tenha
feito em Vilavelha, ele é nosso irmão agora, e será meu escudeiro.
Septão
Cellador tomou um pouco de vinho. Othell Yarwyck espetou uma salsicha
com sua adaga. Bowen Marsh ficou sentado, com o rosto vermelho. O
corvo bateu as asas e disse: Grão, grão, morte. Finalmente, o
Senhor Intendente limpou a garganta.
-
Sua senhoria sabe o que faz, tenho certeza. Posso perguntar sobre
esses cadáveres nas celas de gelo? Eles deixam os homens inquietos.
E mantê-los sob guarda? Certamente é um desperdício de dois bons
homens, a menos que tema que eles ...
-
... se levantem? Rezo para que sim.
Septão
Cellador empalideceu.
-
Sete, salvem-nos. - O vinho escorreu em seu queixo, em uma linha
vermelha. - Senhor comandante, criaturas são seres monstruosos, não
naturais. Abominações diante dos olhos dos deuses. Você ... você
não pode pretender tentar falar com eles?
-
Eles podem falar? - perguntou Jon Snow. - Acho que não, mas não
posso afirmar saber. Podem ser monstros, mas foram homens antes de
morrer. Quanto restou? Aquele que matei tinha a intenção de
assassinar o Senhor Comandante Mormont. Claramente se lembrava quem
ele era e onde encontrá-lo. - Meistre Aemon teria apoiado seu
propósito, Jon não duvidava; Sam Tarly teria ficado horrorizado,
mas teria entendido, também. - O senhor meu pai costumava dizer que
um homem deve conhecer seus inimigos. Entendemos pouco sobre as
criaturas, e menos ainda sobre os Outros. Precisamos aprender.
Aquela
resposta não agradou a nenhum deles. Septão Cellador segurou o
cristal que pendia em seu pescoço e disse:
-
Acho isso muito insensato, Lorde Snow. Rezarei para que a Velha
levante sua lanterna e leve-o pelo caminho da sabedoria.
A
paciência de Jon Snow estava esgotada.
-
Todos poderíamos aproveitar um pouco mais de sabedoria, tenho
certeza. - Você não sabe nada, Jon Snow. - Agora, vamos falar sobre
Val?
-
É verdade, então? - disse Marsh. - Você a libertou.
-
Para lá da Muralha.
Septão
Cellador puxou a respiração.
-
O prêmio do rei. Sua Graça ficará muito indignado quando descobrir
que ela se foi.
-
Val retornará. - Antes de Stannis, se os deuses forem bons.
-
Como sabe? - perguntou Bowen Marsh.
-
Ela disse que voltaria.
-
E se ela mentiu? E se ela se encontrar com alguma desventura?
-
Bem, então você terá a chance de escolher um senhor comandante
mais do seu agrado. Até lá, temo que terá que sofrer comigo. - Jon
tomou um gole de cerveja. - Eu a mandei em busca de Tormund Terror
dos Gigantes, para levar a ele minha oferta.
-
Se podemos saber, que oferta é essa?
-
A mesma oferta que fiz em Vila Toupeira. Comida, abrigo e paz, se ele
unir suas forças às nossas, lutar contra nosso inimigo comum e nos
ajudar a manter a Muralha.
Bowen
Marsh não pareceu surpreso.
-
Quer dizer, deixá-lo passar. - Sua voz sugeria que sabia disso o
tempo todo. - Abrir os portões para ele e seus seguidores. Centenas,
milhares.
-
Se ainda sobraram tantos.
Septão
Cellador fez o sinal da estrela. Othell Yarwyck grunhiu. Bowen Marsh
disse:
-
Alguns poderiam chamar isso de traição. Esses são selvagens.
Brutos, corsários, estupradores, mais animais do que homens.
-
Tormund não é nenhuma dessas coisas - disse Jon - não mais do que
Mance Rayder. Mas mesmo se cada palavra que você disse for verdade,
ainda são homens, Bowen. Homens vivos, humanos como você e eu. O
inverno está chegando, meus senhores, e quando chegar, nós, homens
vivos, precisamos nos unir contra os mortos.
Snow,
gritou o corvo de Lorde Mormont. Snow, Snow.
Jon
o ignorou.
-
Estivemos interrogando os selvagens que trouxemos do bosque. Muitos
deles nos contaram uma história interessante sobre uma feiticeira da
floresta a quem chamam de Mãe Toupeira.
-
Mãe Toupeira? - disse Bowen Marsh. - Um nome improvável.
-
Supostamente, ela fez sua casa em uma toca sob um buraco de árvore.
Qualquer que seja a verdade nisso, ela teve uma visão de uma frota
de navios que chegaria para levar o povo livre para a segurança,
para o outro lado do mar estreito. Milhares dos que fugiram da
batalha estavam desesperados o bastante para acreditar nela. Mãe
Toupeira os levou até Durolar, para rezar e esperar a salvação do
outro lado do mar.
Othell
Yarwyck fez uma careta.
-
Não sou patrulheiro, mas ... Durolar é um lugar profano, dizem.
Amaldiçoado. Até seu tio costumava dizer isso, Lorde Snow. Por que
iriam para lá?
Jon
tinha um mapa diante de si, sobre a mesa. Virou-o para que pudessem
ver.
-
Durolar está em uma baía protegida e tem um porto natural profundo
o suficiente para que os maiores navios flutuem. Madeira e pedra são
abundantes por ali. As águas são repletas de peixes, e há colônias
de focas e peixes-bois nas proximidades.
-
Tudo isso é verdade, não duvido - disse Yarwyck - mas não é um
lugar onde gostaria de passar uma noite. Você conhece a história.
Ele
conhecia. Durolar estivera a meio-caminho de se tornar uma cidade, a
única cidade verdadeira ao norte da Muralha, até a noite, seis
séculos atrás, em que foi engoli da pelo inferno. Seu povo fora
arrastado para a escravidão ou abatido para carne, dependendo de
qual versão da história se acreditava, suas casas e solares
consumidos em um incêndio que queimou tão quente que patrulheiros
na Muralha, bem longe ao sul, pensaram que o sol estava nascendo no
norte. Depois disso, cinzas choveram na floresta assombrada e no Mar
Tremente por quase meio ano. Comerciantes relataram encontrar apenas
uma devastação digna de pesadelo onde Durolar estivera, uma
paisagem de árvores carbonizadas e ossos queimados, águas repletas
de cadáveres inchados, gritos de gelar o sangue ecoando das bocas
das cavernas que crivavam o grande penhasco que assomava sobre a
colônia destruída.
Seis
séculos vieram e se foram desde aquela noite, mas Durolar ainda era
evitado. Os selvagens haviam retomado o lugar, Jon soubera, mas
patrulheiros afirmavam que as ruínas recobertas eram assombradas por
espíritos que atacam cadáveres, demônios e fantasmas ardentes com
um gosto doentio por sangue.
-
Não é o tipo de refúgio que eu escolheria também - disse Jon -
mas ouviram Mãe Toupeira pregar que o povo livre encontraria
salvação onde certa vez encontrou danação.
Septão
Cellador apertou os lábios.
-
A salvação só pode ser encontrada por meio dos Sete. Essa
feiticeira condenou todos eles.
-
E salvou a Muralha, talvez - disse Bowen Marsh. - Esses são os
inimigos dos quais falamos. Deixe-os rezar entre ruínas, e se os
deuses deles mandarem navios para levá-los para um mundo melhor,
muito bem. Neste mundo, não tenho comida para alimentá-los.
Jon
flexionou os dedos da mão da espada.
-
As galés de Cotter Pyke navegam por Durolar de tempos em tempos. Ele
me diz que não há abrigo lá além das cavernas. As cavernas que
gritam, seus homens as chamam. Mãe Toupeira e aqueles que a seguiram
perecerão ali, de frio e de fome. Centenas deles. Milhares.
-
Milhares de inimigos. Milhares de selvagens.
Milhares
de pessoas, Jon pensou. Homens, mulheres, crianças. A raiva cresceu
dentro dele, mas, quando falou, sua voz estava calma e fria.
-
São tão cegos assim, ou isso é algo que não desejam enxergar? O
que acham que vai acontecer quando todos esses inimigos estiverem
mortos?
Sobre
a porta, o corvo resmungou, Mortos, mortos, mortos.
-
Deixe-me falar o que acontecerá - disse Jon. - Os mortos se
levantarão novamente, em centenas e aos milhares. Eles se levantarão
como criaturas, com mãos negras e claros olhos azuis, e virão atrás
de nós. - Levantou-se, os dedos da mão da espada abrindo e
fechando. - Têm minha permissão para ir.
Septão
Cellador levantou-se com o rosto cinza e suando, Othell Yarwyck,
rigidamente, Bowen Marsh com os lábios apertados e pálido.
-
Obrigado pelo seu tempo, Lorde Snow.
Saíram
sem nenhuma outra palavra.
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