quarta-feira, 2 de outubro de 2013

46 - UM FANTASMA EM WINTERFELL


O morto foi encontrado na base da muralha interior, com o pescoço quebrado e apenas a perna esquerda aparecendo através da neve que o enterrara durante a noite.
Se as cadelas de Ramsay não o tivessem desenterrado, ele poderia ter ficado lá até a primavera. Quando Ben Ossos o puxou, Jeyne Cinza havia comido tanto do rosto do morto que meio dia se passou antes que soubessem com certeza quem era: um homem em armas de quarenta e quatro anos que marchara para o Norte com Roger Ryswell.
- Um bêbado - Ryswell declarou. - Mijando da muralha, aposto. Escorregou e caiu. - Ninguém discordou. Mas Theon Greyjoy se perguntou por que um homem subiria por degraus escorregadios de neve até as ameias, na escuridão da noite, apenas para mijar.
Enquanto a guarnição quebrava o jejum naquela manhã com pão velho frito na gordura de toicinho (os senhores e cavaleiros comiam o toicinho), as conversas pelas mesas giravam em torno do cadáver.
- Stannis tem amigos dentro do castelo - Theon ouviu um oficial resmungar. Era um velho Tallhart, três árvores costuradas em sua túnica esfarrapada. O turno acabara de mudar. Homens vinham do frio, batendo os pés para tirar a neve das botas e dos calções, enquanto a refeição do meio-dia era servida; chouriço, alho-poró e pão preto ainda quente do forno.
- Stannis? - riu um dos homens de Roose Ryswell. - Stannis está com neve até as orelhas agora. Ou então fugiu de volta para a Muralha, com o rabo congelado entre as pernas.
- Ele pode estar acampado a um metro e meio das nossas muralhas, com cem mil homens - disse um arqueiro vestindo as cores Cerwyn. - Não veríamos nenhum deles através desta tempestade.
Interminável, incessante, impiedosa, a neve caía dia e noite. Montes se acumulavam nas muralhas e enchiam as ameias, cobertores brancos cobriam todos os telhados, tendas desabavam sob o peso da neve. Cordas foram amarradas entre um salão e outro para ajudar os homens a não se perder enquanto cruzavam o pátio. Sentinelas lotavam as torres de guarda para aquecer mãos semicongeladas em braseiros incandescentes, deixando as rondas na muralha para as sentinelas de neve que os escudeiros haviam feito, e que ficavam maiores e mais estranhas a cada noite, conforme o vento e o clima agiam sobre elas. Barbas irregulares de gelo cresciam sob as lanças enfiadas nos punhos dos bonecos. Pelo menos um homem de Hosteen Frey, que fora ouvido rosnando que não temia um pouco de neve, perdeu uma orelha por causa do congelamento.
Os cavalos no pátio eram os que mais sofriam. Os cobertores colocados sobre eles para mantê-los aquecidos ficavam ensopados e congelavam se não fossem trocados regularmente. Quando fogueiras eram acesas para manter o frio afastado, causavam mais danos do que benefícios. Os cavalos de guerra tinham medo das chamas e lutavam para fugir, machucando a si mesmos e aos outros cavalos enquanto se retorciam em suas rédeas amarradas. Apenas os cavalos nos estábulos estavam seguros e aquecidos, mas os estábulos já estavam superlotados.
- Os deuses se viraram contra nós - ouviram o velho Lorde Locke dizer no Grande Salão. - Esta é a ira deles. Um vento tão frio quanto o próprio inferno e neve que nunca acaba. Estamos amaldiçoados.
- Stannis está amaldiçoado - insistiu um homem do Forte do Pavor. - É ele quem está lá fora, na tempestade.
- Lorde Stannis pode estar mais aquecido do que pensamos - argumentou um tolo mercenário. - A feiticeira dele pode convocar o fogo. O deus vermelho dela poderia derreter estas neves.
Aquilo fora imprudente, Theon soube na hora. O homem falara muito alto, e ao alcance da audição de Caralho Amarelo, Alyn Azedo e Ben Ossos. Quando a história chegou a Lorde Ramsay, ele enviou os Rapazes do Bastardo para prender o homem e arrastá-lo pela neve.
- Como você parece gostar tanto de Stannis, vou mandá-lo para ele - disse Ramsay. Damon Dance-para-Mim deu algumas chibatadas no mercenário com seu longo chicote besuntado. Então, enquanto Peleiro e Caralho Amarelo faziam apostas sobre quão rápido seu sangue congelaria, Ramsay fez o homem ser arrastado até o Portão das Ameias.
Os grandes portões principais de Winterfell estavam fechados e lacrados, e tão travados com gelo e neve que as pontes levadiças tinham que ser escavadas para serem soltas, antes de serem movidas. Quase a mesma coisa acontecia no Portão do Caçador, embora ao menos o gelo não fosse um problema, uma vez que o portão fora usado recentemente. O Portão da Estrada do Rei estava sem uso havia um tempo, e o gelo congelara as correntes da ponte, endurecendo-as como pedras. Com isso, sobrava o Portão das Ameias, uma pequena passagem arqueada na muralha interior. Era apenas metade de um portão, na verdade, com uma ponte que atravessava o fosso congelado, mas sem portão correspondente na muralha exterior, oferecendo acesso à muralha externa, mas não ao mundo exterior.
O mercenário ferido foi carregado pela ponte e pelos degraus, ainda protestando. Então Peleiro e Alyn Azedo seguraram seus braços e pernas e o atiraram da muralha, em uma queda de mais de vinte metros até o chão. Os montes de neve estavam tão altos que engoliram o corpo do homem ... mas arqueiros nas ameias afirmaram que o viram algum tempo depois, arrastando uma perna quebrada pela neve. Um deles acertou seu traseiro com uma flecha enquanto ele se contorcia.
- Estará morto em uma hora - prometeu Lorde Ramsay.
- Ou estará chupando o pau de Lorde Stannis antes que o sol se ponha - Terror-das-Rameiras Umber retrucou.
- É melhor tomar cuidado para não quebrá-lo - riu Rickard Ryswell. - Qualquer homem lá fora, neste tempo, estará com o pau congelado.
- Lorde Stannis está perdido na tempestade - disse a Senhora Dustin. - Está a quilômetros de distância, morto ou moribundo. Deixe o inverno fazer o pior. Alguns poucos dias e as neves enterrarão ele e seu exército.
E nós também, pensou Theon, impressionado com a tolice da mulher. A Senhora Barbrey era do Norte e deveria saber mais. Os velhos deuses estariam ouvindo.
A ceia foi mingau de ervilha e pão amanhecido, o que causou resmungos entre os homens comuns; nas mesas principais, os senhores e os cavaleiros foram vistos comendo presunto.
Theon estava encurvado sobre uma tigela de madeira, terminando sua porção de mingau de ervilha, quando um leve toque em seu ombro o fez derrubar a colher.
- Nunca me toque - disse, contorcendo-se para apanhar o utensílio caído no chão antes que uma das garotas de Ramsay o pegasse. - Nunca me toque.
Ela se sentou perto dele, perto demais; outra das lavadeiras de Abel. Esta era jovem, quinze ou dezesseis anos, com um cabelo desgrenhado precisando de uma boa lavada e um par de lábios carnudos precisando de um bom beijo.
- Algumas garotas gostam de tocar - ela disse com um sorrisinho. - Se for do agrado do meu senhor, sou Holly.
Holly, a puta, ele pensou, mas era bem bonita. No passado, ele teria rido e puxado a moça para seu colo, mas esses dias acabaram.
- O que você quer?
- Ver aquelas criptas. Onde estão elas, 'nhor? Poderia me mostrar? - Holly brincou com uma mecha de seus cabelos, enrolando-a no mindinho. - Profundas e escuras, dizem. Um bom lugar para se tocar. Todos os reis mortos assistindo.
- Abel mandou você até mim?
- Talvez. Talvez tenha vindo por conta própria. Mas se é Abel que está esperando, posso trazer ele. Ele cantará uma bela canção para o 'nhor.
Cada palavra que ela dizia convencia Theon de que aquilo tudo era uma jogada. Mas de quem e para quê? O que Abel poderia querer com ele? O homem era só um cantor, um alcoviteiro com um alaúde e um sorriso falso. Ele quer saber como tomei o castelo, mas não é para fazer uma canção sobre isso. E a resposta lhe ocorreu. Ele quer saber como entrei, para que possa sair. Lorde Bolton tinha Winterfell apertado como os cueiros de um bebê. Ninguém entrava ou saía sem sua permissão. Ele quer fugir, ele e sua lavadeira. Theon não podia culpá-lo. Mesmo assim, disse:
- Não quero conversa com Abel, com você ou com nenhuma das suas irmãs. Apenas me deixem em paz.
Do lado de fora, a neve girava, dançando. Theon tateou seu caminho até a muralha, então seguiu até o Portão das Ameias. Poderia ter tomado os guardas por dois bonecos de neve do Pequeno Walder, se não tivesse visto o vapor branco de suas respirações.
- Quero caminhar nas muralhas - disse para eles, sua própria respiração congelando no ar.
- Está um frio maldito lá - um deles avisou.
- Está um frio maldito aqui - falou o outro - mas faça como quiser, Vira-Casaca. - Acenou para Theon através do portão.
Os degraus estavam cobertos de neve e escorregadios, traiçoeiros no escuro. Assim que chegou à passarela da muralha, não demorou muito para encontrar o lugar de onde atiraram o mercenário. Derrubou a neve recém-caída que enchia as ameias e debruçou-se entre os merlões. Eu poderia pular, pensou. Ele sobreviveu, por que eu não poderia? Poderia pular e... E o quê? Quebrar uma perna e morrer sob a neve? Arrastar-me por aí até morrer congelado?
Era loucura. Ramsay o caçaria com as garotas. Jeyne Vermelha, Jez e Helicent o fariam em pedaços, se os deuses fossem bons. Ou, pior, ele podia ser trazido com vida.
- Tenho que lembrar meu nome - sussurrou.
Na manhã seguinte, o escudeiro grisalho de Sor Aenys Frey foi encontrado nu e morto pela exposição ao tempo no velho cemitério do castelo, seu rosto tão obscurecido pela geada que parecia usar uma máscara. Sor Aenys afirmou que o homem havia bebido demais, também, e se perdera na tempestade, embora ninguém pudesse explicar por que estaria sem roupas na intempérie. Outra bebedeira, Theon pensou. O vinho podia afogar uma série de suspeitas.
Então, antes que o dia acabasse, um besteiro juramentado dos Flint apareceu nos estábulos com o crânio quebrado. Escoiceado por um cavalo, Lorde Ramsay declarou. Parece mais um clube, Theon decidiu.
Tudo parecia tão familiar, como um espetáculo de pantomimeiros que ele já vira antes. Só que os pantomimeiros haviam mudado. Roose Bolton desempenhava o papel que antes fora de Theon, e os mortos faziam os papéis de Aggar, Gynir Rednose e Gelmarr, o Cruel. Fedor estava ali também, ele se lembrava, mas era um Fedor diferente, um Fedor com mãos ensanguentadas e mentiras escorrendo de seus lábios, doces como mel. Fedor, Fedor, rima com traidor.
As mortes fizeram os senhores de Roose Bolton brigarem abertamente no Grande Salão. Alguns estavam ficando sem paciência.
- Quanto tempo ficaremos sentados esperando por este rei que nunca vem? - Sor Hosteen Frey exigiu saber. - Podemos levar a luta até Stannis e dar um fim nele.
- Deixar o castelo? - resmungou Harwood Stout. Seu tom sugeria que preferia ter o restante de seu braço decepado. - Quer nos levar cegamente pela neve?
- Para lutar com Lorde Stannis, temos que encontrá-lo primeiro - Roose Ryswell observou. - Nossos batedores saíram pelo Portão do Caçador, mas até agora nenhum deles retornou.
Lorde Wyman Manderly bateu em sua enorme barriga.
- Porto Branco não tem medo de cavalgar com você, Sor Hosteen. Lidere-nos, e meus cavaleiros estarão atrás de você.
Sor Hosteen virou-se para o homem gordo.
- Perto o suficiente para enfiar uma lança pelas minhas costas, sim. Onde estão meus irmãos, Manderly? Diga-me. Seus convidados, aqueles que trouxeram seu filho de volta para você.
- Os ossos dele, você quer dizer. - Manderly espetou um pedaço de presunto com sua adaga. - Lembro-me bem deles. Rhaegar, o de ombros redondos e língua fluente. O ousado Sor Jared, tão rápido para desembainhar seu aço. Symond, o mestre da espionagem, sempre tilintando moedas. Trouxeram os ossos de Wendel para casa. Foi Tywin Lannister quem me devolveu Wylis, são e salvo, como prometera. Um homem de palavra, Lorde Tywin, que os Sete salvem sua alma. - Lorde Wyman enfiou a carne na boca, mastigou ruidosamente, estalou os lábios e disse: - A estrada tem muitos perigos, sor. Dei a seus irmãos presentes de convidados quando deixaram Porto Branco. Prometemos que nos encontraríamos novamente no casamento. Muitos, e ainda mais, foram testemunhas da nossa despedida.
- Muitos e ainda mais? - zombou Aenys Frey. - Ou você e os seus?
- O que está sugerindo, Frey? - O Senhor de Porto Branco secou a boca com a manga. - Não gosto do seu tom, sor. Não, nem um maldito bocado.
- Vá para o pátio, seu saco de sebo, e eu servirei todos os malditos bocados que seu estômago aguentar - disse Sor Hosteen.
Wyman Manderly riu, mas meia dúzia de seus cavaleiros ficou em pé ao mesmo tempo. Coube a Roger Ryswell e Barbrey Dustin acalmá-los com palavras apaziguadoras. Roose Bolton não disse nada. Mas Theon Greyjoy viu um olhar em seus olhos claros que nunca vira antes - uma inquietação e, até mesmo, uma pitada de temor.
Naquela noite, o novo estábulo ruiu sob o peso da neve que o enterrava. Vinte e seis cavalos e dois cavalariços morreram esmagados pelo telhado que caíra ou sufocados pela neve. Levaram a maior parte da manhã para desenterrar seus corpos. Lorde Bolton apareceu rapidamente na ala externa para inspecionar a cena e ordenou que os cavalos restantes fossem levados para dentro, juntamente com os animais que ainda estavam amarrados do lado de fora. Nem bem os homens haviam desenterrado os mortos e destroçado os cavalos, e outro cadáver foi encontrado.
Essa morte não podia ser explicada pelo tombo de um bêbado ou pelo coice de um cavalo. O morto era um dos favoritos de Ramsay, o atarracado, o escrofuloso, o feio homem em armas chamado Caralho Amarelo. Se seu caralho tinha realmente sido amarelo, era difícil de determinar, já que alguém o cortara e o enfiara na boca da vítima com tanta força que quebrara três de seus dentes. Quando os cozinheiros o encontraram do lado de fora da cozinha, tanto o caralho quanto o homem estavam azuis de frio.
- Queimem o corpo - Roose Bolton ordenou - e assegurem-se de não falar sobre isso. Não quero essa história espalhada.
A história se espalhou do mesmo jeito. Lá pela metade do dia, a maior parte de Winterfell já a ouvira, muitos dos lábios de Ramsay Bolton, de quem Caralho Amarelo fora um dos “Rapazes”.
- Quando encontrarmos o homem que fez isso - Lorde Ramsay prometeu - vou esfolar a pele dele, fritá-la até ficar crocante e fazer que ele a coma, pedaço por pedaço. - E correu a notícia de que o nome do assassino valeria um dragão de ouro.
O fedor dentro do Grande Salão era palpável à tardinha. Com centenas de cavalos, cães e homens se espremendo sob o mesmo telhado, o piso escorregadio com lama e neve derretida, merda de cavalo, cocô de cachorro e até fezes humanas, o ar impregnado com os cheiros de cachorro molhado, de lã molhada e dos cobertores encharcados dos cavalos, não havia como achar conforto entre os bancos lotados. Mas havia comida. Os cozinheiros serviram grandes travessas de carne de cavalo fresca, bem passadas por fora, sangrentas por dentro, com cebolas assadas e rabanetes ... e, pelo menos desta vez, os soldados comuns comeram tão bem quanto os senhores e os cavaleiros.
A carne de cavalo era dura demais para os dentes arruinados de Theon. Suas tentativas de mastigá-la lhe causaram uma dor excruciante. Então esmagou os rabanetes e as cebolas com a lâmina da adaga e fez um purê, depois cortou a carne em pedaços muito pequenos, chupou cada pedaço e cuspiu. Pelo menos tinha um pouco do gosto e algum nutriente da gordura e do sangue. O osso estava além de suas capacidades, então atirou-o para os cães e assistiu Jeyne Cinza fugir com ele enquanto Sara e Willow seguiam em seus calcanhares.
Lorde Bolton ordenou que Abel tocasse para eles enquanto comiam. O bardo cantou Lanças de Ferro, e então A Donzela do Inverno. Quando Barbrey Dustin pediu por algo mais alegre, deu-lhes A Rainha Tirou a Sandália, o Rei Tirou a Coroa e O Urso e a Bela Donzela. Os Frey se juntaram à canção e até mesmo alguns nortenhos batiam os punhos na mesa com o refrão, gritando Um urso! Um urso! Mas o barulho assustou os cavalos, então os cantores logo pararam e a música morreu.
Os Rapazes do Bastardo estavam reunidos debaixo de um candeeiro na parede, onde uma tocha queimava produzindo muita fumaça. Luton e Peleiro jogavam dados. Grunhido tinha uma mulher no colo, um peito dela na mão. Damon Dance-para-Mim estava sentado, passando óleo em seu chicote.
- Fedor - chamou. Bateu o chicote contra a panturrilha, como um homem faria para chamar seu cão. - Está começando a feder novamente, Fedor.
Theon não tinha resposta para aquilo, além de um suave “Sim”.
- Lorde Ramsay pretende cortar seus lábios quando tudo isto acabar - disse Damon, esfregando seu chicote com um trapo gorduroso.
Meus lábios estiveram entre as pernas da senhora dele. Essa insolência não pode ficar sem punição.
- Se é o que diz.
Luton gargalhou.
- Acho que ele quer isso.
- Vá embora, Fedor - falou Peleiro. - Seu cheiro me embrulha o estômago. - Os demais riram.
Ele fugiu rapidamente, antes que mudassem de ideia. Seus algozes não o seguiriam do lado de fora. Não enquanto houvesse comida e bebida lá dentro, mulheres dispostas e fogueiras para aquecê-los. Quando deixou o salão, Abel estava cantando As Donzelas que Florescem na Primavera.
Lá fora, a neve caía tão pesada que Theon não conseguia ver mais do que um metro adiante. Encontrou-se sozinho em um deserto branco, paredes de neve se erguendo de todos os lados até quase a altura de seu peito. Quando ergueu a cabeça, os flocos de neve roçaram em sua face como suaves beijos gelados. Podia ouvir o som da música no salão atrás de si. Uma canção suave, agora, e triste. Por um momento, sentiu-se quase em paz.
Mais adiante, cruzou com um homem que vinha na direção oposta, uma capa com capuz agitando-se atrás dele. Quando se encontraram frente a frente, seus olhos se encontraram brevemente. O homem colocou a mão na adaga.
- Theon Vira-Casaca. Theon assassino de parentes.
- Não sou. Eu nunca ... eu era um homem de ferro.
- Falso é tudo o que você era. Como é que ainda está respirando?
- Os deuses não terminaram comigo - Theon respondeu, perguntando-se se aquele poderia ser o assassino, o caminhante noturno que enfiara o pau de Caralho Amarelo em sua boca e empurrara o homem de Roger Ryswell das ameias. Estranhamente, não estava com medo. Puxou a luva da mão esquerda. - Lorde Ramsay não terminou comigo.
O homem olhou e riu.
- Deixo-o para ele, então.
Theon marchou pela tempestade até que os braços e as pernas ficassem endurecidos pela neve, e as mãos e os pés dormentes pelo frio, então subiu até as ameias da muralha interior de novo. Lá em cima, a trinta metros de altura, um vento leve soprava, espalhando a neve. Todas as ameias estavam cheias de neve. Theon teve que bater em uma parede de neve para fazer um buraco ... apenas para descobrir que não podia ver depois do fosso. Além da muralha exterior, nada permanecera, exceto uma sombra vaga e algumas luzes opacas flutuando na escuridão.
O mundo se foi. Porto Real, Correrrio, Pyke e as Ilhas de Ferro, todos os Sete Reinos, cada lugar que havia conhecido, cada lugar sobre o qual já lera ou com o qual sonhara, tudo se fora. Apenas Winterfell permanecia.
Estava preso ali, com os fantasmas. Os velhos fantasmas das criptas e os mais novos, que ele mesmo fizera, Mikken e Farlen, Gynir Rednose, Aggar, Gelmarr, o Cruel, a esposa do moleiro em Água de Bolotas e seus dois jovens filhos, e todos os demais. Minha obra. Meus fantasmas. Estão todos aqui, e estão zangados. Pensou na cripta e nas espadas desaparecidas.
Theon voltou para seu próprio aposento. Estava tirando as roupas molhadas quando Walton Pernas de Aço o encontrou.
- Venha comigo, Vira-Casaca. Sua senhoria quer falar com você.
Ele não tinha roupas secas limpas, então se contorceu de volta para os mesmos trapos úmidos e o seguiu. Pernas de Aço o levou pelo Grande Salão, até o solar que certa vez fora de Eddard Stark. Lorde Bolton não estava sozinho. A Senhora Dustin estava sentada com ele, o rosto pálido e severo; um broche de ferro com o formato de uma cabeça de cavalo prendia a capa de Roger Ryswell; Aenys Frey estava em pé perto do fogo, as bochechas vermelhas com o frio.
- Me contaram que você anda vagando pelo castelo - Lorde Bolton começou. - Homens reportaram terem visto você nos estábulos, nas cozinhas, nos barracões, nas ameias. Foi observado perto das ruínas das torres caídas, do lado de fora do velho septo da Senhora Catelyn, indo e vindo do bosque sagrado. Nega isso?
- Não, 'nhor. - Theon fez questão de falar mal a palavra. Sabia que aquilo agradava Lorde Bolton. - Não consigo dormir, 'nhor. Eu caminho. - Manteve a cabeça baixa, olhos fixos nas velhas tábuas corridas no chão. Não seria sábio olhar sua senhoria no rosto. - Eu era um garoto aqui antes da guerra. Um protegido de Eddard Stark.
- Você era um refém - Bolton o corrigiu.
- Sim, 'nhor. Um refém. - Mas esta era minha casa. Não uma casa de verdade, mas a melhor que já conheci.
- Alguém está matando meus homens.
- Sim, 'nhor.
- Não é você, imagino? - A voz de Bolton ficou ainda mais suave. - Você não pagaria minha gentileza com tal traição.
- Não, 'nhor, eu não. Eu não faria. E ... apenas caminho, é tudo.
A Senhora Dustin falou.
- Tire as luvas.
Theon levantou os olhos bruscamente.
- Por favor, não. Eu ... eu ...
- Faça como ela diz - disse Sor Aenys. - Mostre-nos suas mãos.
Theon tirou as luvas e estendeu as mãos para que eles as vissem. Não é como se eu estivesse nu diante deles. Não é tão ruim quanto isso. Sua mão esquerda tinha três dedos, a direita, quatro. Ramsay tirara o mindinho de uma, o anelar e o indicador da outra.
- O Bastardo fez isso com você - a Senhora Dustin falou.
- Se me permite, 'nhora, eu ... eu pedi para ele. - Ramsay sempre o fazia pedir. Ramsay sempre me faz implorar.
- Por que você faria isso?
- Eu ... eu não precisava de tantos dedos.
- Quatro é o suficiente. - Sor Aenys passou os dedos pela barba rala que brotava de seu queixo, fina como a cauda de um rato. - Quatro na mão direita. Ele ainda poderia segurar uma espada. Uma adaga.
A Senhora Dustin riu.
- Todos os Frey são tão tolos assim? Olhe para ele! Segurar uma adaga? Ele dificilmente tem forças para segurar uma colher. Você realmente acredita que ele atacou a desagradável criatura do Bastardo e enfiou a masculinidade dele pela garganta?
- Esses mortos eram todos homens fortes - disse Roger Ryswell - e nenhum deles foi apunhalado. O Vira-Casaca não é nosso assassino.
Os olhos claros de Roose Bolton estavam fixos em Theon, tão afiados quanto a faca de esfola do Peleiro.
- Estou inclinado a concordar. Além da questão da força, ele não tem capacidade de trair meu filho.
Roger Ryswell grunhiu.
- Se não é ele, quem é? Stannis tem algum homem dentro do castelo, isso está claro.
Fedor não é homem. Não Fedor. Não eu. Ele se perguntava se a Senhora Dustin contara sobre as criptas e as espadas desaparecidas.
- Temos que olhar para Manderly - murmurou Sor Aenys Frey. - Lorde Wyman não tem amor por nenhum de nós.
Ryswell não estava convencido.
- Ele, no entanto, ama seus bifes, costelas e tortas de carne. Rondar o castelo na escuridão exigiria que deixasse a mesa. O único momento em que faz isso é quando procura a latrina para uma de suas longas horas agachado.
- Não afirmo que Lorde Wyman agiu por conta própria. Trouxe trezentos homens com ele. Uma centena de cavaleiros. Um deles poderia ...
- Trabalho noturno não é trabalho de cavaleiro - a Senhora Dustin disse. - E Lorde Wyman não é o único homem que perdeu um parente em seu Casamento Vermelho, Frey. Acha que o Terror-das-Rameiras tem algum bom sentimento por você? Se vocês não tivessem prendido Grande-Jon, ele teria arrancado suas entranhas e feito vocês comê-las, como a Senhora Hornwood comeu seus dedos. Flint, Cerwyn, Tallhart, Slate... todos tinham homens com o Jovem Lobo.
- A Casa Ryswell também - disse Roger Ryswell.
- Até os Dustin fora de Vila Acidentada - a Senhora Dustin separou seus lábios em um sorriso fino e selvagem. - O Norte se lembra, Frey.
A boca de Aenys Frey tremia de indignação.
- O Stark nos desonrou. É disso que vocês, nortenhos, deviam se lembrar.
Roose Bolton esfregou os lábios rachados.
- Estas brigas não vão resolver. - Balançou os dedos para Theon. - É livre para ir. Tome cuidado por onde caminha. Pode ser que encontremos você pela manhã, sorrindo um sorriso vermelho.
- Como quiser, 'nhor. - Theon vestiu as luvas sobre as mãos mutiladas e saiu, mancando com seu pé mutilado.
A hora do lobo o encontrou ainda acordado, enrolado em camadas de pesada lã e pele engordurada, dando outra volta nas muralhas interiores, com a esperança de ficar cansado o suficiente para dormir. Suas pernas estavam cobertas de neve até os joelhos, a cabeça e os ombros envoltos em branco. Nesse trecho da muralha, o vento soprava em seu rosto e derretia a neve que caía em suas bochechas como lágrimas geladas.
Então ouviu o berrante.
O lamento baixo e longo parecia subir pelas ameias, pairando no ar negro, entrando fundo nos ossos de cada homem que o ouviu. Ao longo das muralhas do castelo, sentinelas se viravam para o som, as mãos apertando as lanças com força. Nos salões e torres arruinados de Winterfell, senhores calavam outros senhores, cavalos relinchavam e dorminhocos se agitavam em seus cantos escuros. Nem bem o som do berrante de guerra tinha morrido e um tambor começou a bater: BUM bum BUM bum BUM bum. E um nome passava dos lábios de cada homem para o seguinte, escrito em pequenas baforadas brancas de respiração. Stannis, sussurravam, Stannis está aqui, Stannis chegou, Stannis, Stannis, Stannis.
Theon estremeceu. Baratheon ou Bolton, não fazia diferença para ele. Stannis fizera causa comum com Jon Snow na Muralha, e Jon arrancaria sua cabeça em um segundo. Arrancado das garras de um bastardo para morrer nas mãos de outro, que piada. Theon teria gargalhado, se lembrasse como fazer isso.
O rufar parecia estar vindo da Matadelobos, além do Portão do Caçador. Estão do lado de fora das muralhas. Theon fez seu caminho ao longo das passarelas da muralha, um homem a mais entre um bando que fazia o mesmo. Mas, mesmo quando alcançaram as torres que flanqueavam o próprio portão, não havia nada para ser visto além do véu branco.
- Será que pretendem derrubar nossas muralhas no sopro? - brincou um Flint, quando o berrante de guerra soou mais uma vez. - Talvez ele ache que encontrou o Berrante de Joramun.
- Será que Stannis é tolo o suficiente para invadir o castelo? - uma sentinela perguntou.
- Ele não é Robert - declarou um homem de Vila Acidentada. - Ele sentará e esperará, veja se não. Vai tentar nos matar de fome.
- As bolas dele vão congelar antes - outra sentinela disse.
- Devíamos levar a luta até ele - declarou um Frey.
Faça isso, pensou Theon. Cavalgue para a neve e morra. Deixe Winteifell para mim e para os fantasmas. Roose Bolton receberia bem uma luta dessas, ele sentia. Ele precisa de um fim para isso. O castelo estava lotado demais para suportar um cerco longo, e muitos senhores eram de lealdade duvidosa. O gordo Wyman Manderly, o Terror-das-Rameiras Umber, os homens da Casa Hornwood e da Casa Tallhart, os Locke, os Flint e os Ryswell, todos eram nortenhos, juramentados à Casa Stark por gerações além da conta. Era a garota quem os mantinha ali, o sangue de Lorde Eddard, mas a garota era apenas um truque de pantomimeiro, uma ovelha na pele de um lobo gigante. Então por que não enviar os nortenhos adiante, para a batalha contra Stannis, antes que a farsa fosse revelada? Abate na neve. E cada homem caído é um inimigo a menos para o Forte do Pavor.
Theon se perguntava se teria permissão para lutar. Então, ao menos, poderia ter uma morte de homem, com a espada na mão. Era um presente que Ramsay nunca lhe daria, mas Lorde Roose talvez. Se eu implorar para ele. Fiz tudo o que me pediu, desempenhei meu papel, conduzi a garota.
A morte era a mais doce libertação que poderia esperar.
No bosque sagrado, a neve ainda se dissolvia quando tocava a terra. Vapor subia das piscinas quentes, perfumadas com o cheiro de musgo, lama e decadência. Uma neblina quente pairava no ar, transformando as árvores em sentinelas, altos soldados envoltos em mantos de trevas. Durante as horas de luz do dia, o bosque fumegante estava frequentemente cheio de nortenhos que vinham rezar para os velhos deuses, mas nesse horário Theon Greyjoy encontrou o lugar todo para si.
E, no coração do bosque, o represeiro esperava com seus conhecidos olhos vermelhos. Theon parou na beira da lagoa e abaixou a cabeça diante da face vermelha esculpida. Mesmo ali era possível ouvir o rufar dos tambores, bum BUM bum BUM bum BUM bum BUM. Como um trovão distante, o som parecia vir de todas as direções ao mesmo tempo.
A noite estava sem vento, a neve caía direto de um frio céu negro e, mesmo assim, as folhas da árvore-coração farfalhavam seu nome. Theon, elas pareciam sussurrar, Theon.
Os velhos deuses, ele pensou. Eles me conhecem. Sabem meu nome. Eu era Theon da Casa Greyjoy. Era um protegido de Eddard Stark, um amigo e irmão de seus filhos.
- Por favor - caiu de joelhos. - Uma espada, é tudo o que peço. Deixem-me morrer como Theon, não como Fedor. - Lágrimas escorriam por seu rosto, impossivelmente quentes. - Eu era um homem de ferro. Um filho ... um filho de Pyke, das ilhas.
Uma folha caiu, roçando em sua testa e pousando na lagoa. Flutuou na água, vermelha, cinco dedos, como uma mão ensanguentada .... Bran, a árvore murmurou.
Eles sabem. Os deuses sabem. Eles viram o que eu fiz. E por um estranho momento parecia que era o rosto de Bran escavado no tronco pálido do represeiro, encarando-o com olhos vermelhos, sábios e tristes. O fantasma de Bran, ele pensou, mas aquilo era loucura. Por que Bran iria querer assombrá-lo? Ele sempre gostara do menino e nunca lhe fizera nenhum mal. Não foi Bran quem nós matamos. Não foi Rickon. Eram apenas filhos do moleiro, do moinho em Água de Bolotas.
- Eu tinha que ter duas cabeças, senão teriam zombado de mim ... teriam rido de mim ... eles ...
Uma voz disse:
- Com quem você está falando?
Theon virou, aterrorizado que Ramsay o tivesse encontrado, mas eram apenas as lavadeiras; Holly, Rowan e uma cujo nome ele não sabia.
- Os fantasmas - desabafou. - Eles sussurram para mim. Eles ... eles sabem meu nome.
- Theon Vira-Casaca. - Rowan agarrou a orelha dele, torcendo-a. - Você tinha que ter duas cabeças, não é?
- Senão os homens teriam rido dele - disse Holly.
Elas não entendem. Theon se libertou da mulher.
- O que vocês querem? - perguntou.
- Você - disse a terceira lavadeira, uma mulher mais velha, com voz profunda e listras cinzentas no cabelo.
- Eu lhe disse. Quero tocar você, Vira-Casaca. - Holly sorriu. Em sua mão, uma lâmina apareceu.
Eu posso gritar, Theon pensou. Alguém ouvirá. O castelo está cheio de homens armados. Certamente estaria morto antes que o alcançassem, seu sangue encharcando o solo para alimentar a árvore-coração. E o que haveria de errado nisso?
- Toquem-me - ele disse. - Matem-me. - Havia mais desespero do que desafio em sua voz. - Vão em frente. Façam comigo o mesmo que fizeram com os outros. Caralho Amarelo e os demais. Foram vocês.
Holly gargalhou.
- Como poderíamos ser nós? Somos mulheres. Tetas e bocetas. Estamos aqui para sermos fodidas, não temidas.
- O Bastardo machucou você? - Rowan perguntou. - Picou seus dedos, foi? Tirou a pele do seu negocinho de fazer pipi? Arrancou seus dentes? Pobre rapaz. - Deu um tapinha na bochecha dele. - Não haverá mais disso, eu prometo. Você rezou, e os deuses nos mandaram. Quer morrer como Theon? Daremos isso para você. Uma morte rápida e agradável, na qual mal seja ferido. - Ela sorriu. - Mas não até que tenha cantado para Abel. Ele está esperando por você. 

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