sexta-feira, 4 de outubro de 2013

EPÍLOGO


- Não sou um traidor - o Cavaleiro de Poleiro do Grifo declarou. - Sou homem do Rei Tommen, e seu.
Um constante pinga-pinga pontuava suas palavras, enquanto a neve derretida escorria de seu manto para empoçar no chão. A neve caíra em Porto Real a maior parte da noite; do lado de fora, os montes estavam na altura do tornozelo. Sor Kevan Lannister puxou o manto contra o corpo.
- Assim você diz, sor. Palavras são vento.
- Deixe-me provar a verdade delas com minha espada. - A luz das tochas transformava em chama a barba e os cabelos compridos vermelhos de Ronnet Connington. - Envie-me contra meu tio e eu lhe trarei a cabeça dele, e a cabeça desse falso dragão também.
Lanceiros Lannister, com mantos carmesins e meios-elmos com leões em cima estavam parados ao longo da parede ocidental da sala do trono. Guardas Tyrell, em mantos verdes, estavam de frente para eles, na parede oposta. O frio da sala do trono era palpável. Embora nem a Rainha Cersei nem a Rainha Margaery estivessem entre eles, a presença de ambas podia ser sentida envenenando o ar, como fantasmas em um banquete.
Atrás da mesa onde os cinco membros do pequeno conselho do rei estavam sentados, o Trono de Ferro se acocorava como uma grande besta negra, suas farpas, garras e lâminas semiocultas na sombra. Kevan Lannister podia senti-lo em suas costas, uma coceira entre as omoplatas. Era fácil imaginar o velho Rei Aerys empoleirado lá, sangrando por algum corte recente, olhando furiosamente para baixo. Mas, hoje, o trono estava vazio. Não via razão para Tommen se juntar a eles. Era mais gentil deixar o menino ficar com a mãe. Apenas os Sete sabiam quanto tempo filho e mãe teriam juntos antes do julgamento de Cersei ... e possivelmente sua execução.
Mace Tyrell estava falando.
- Vamos lidar com seu tio e esse garoto forjado em seu devido tempo. - A nova Mão do Rei estava sentada em um trono de carvalho esculpido no formato de uma mão, uma vaidade absurda que sua senhoria apresentara no dia em que Sor Kevan concordara em lhe conceder o cargo tão cobiçado. - Você esperará aqui, até que estejamos prontos para marchar. Então terá a oportunidade de provar sua lealdade.
Sor Kevan não tinha nenhum problema com isso.
- Escoltem Sor Ronnet de volta aos seus aposentos - disse. E garantam que permaneça lá ficou sem ser dito. Apesar de seus altos protestos, o Cavaleiro do Poleiro do Grifo continuava sendo suspeito. Supostamente, os mercenários que haviam desembarcado no sul eram comandados por um de seu próprio sangue.
Quando os ecos dos passos de Connington desapareceram, Grande Meistre Pycelle sacudiu pesadamente a cabeça.
- Certa vez, o tio dele ficou parado bem ali onde o garoto estava agora e disse ao Rei Aerys que lhe entregaria a cabeça de Robert Baratheon.
É isso que acontece quando um homem fica tão velho quanto Pycelle. Tudo o que vê ou escuta o recorda de algo que viu ou escutou quando era jovem.
- Quantos homens em armas acompanharam Sor Ronnet à cidade? - Sor Kevan perguntou.
- Vinte - disse Lorde Randyll Tarly - a maioria deles do antigo grupo de Gregor Clegane. Seu sobrinho, Jaime, os deu a Connington. Para livrar-se deles, aposto. Eles não tinham estado em Lagoa da Donzela um dia antes de um matar um homem e outro ser acusado de estupro. Tive que enforcar o primeiro e castrar o segundo. Se fosse por mim, enviaria todos eles para a Patrulha da Noite, e Connington com eles. A Muralha é o lugar ao qual essa escória pertence.
- Um cão faz o que seu mestre manda - declarou Mace Tyrell. - Mantos negros cairiam bem neles, concordo. Não suportaria tais homens na patrulha da cidade. - Uma centena de homens do Jardim de Cima havia sido somada aos mantos dourados, mesmo assim, claramente, sua senhoria pretendia resistir a qualquer tipo de equilíbrio com os homens do oeste.
Quanto mais dou, mais ele quer. Kevan Lannister começara a entender por que Cersei ficara tão ressentida com os Tyrell. Mas esse não era o momento de provocar uma dispura aberta. Randyll Tarly e Mace Tyrell tinham ambos trazido exércitos a Porto Real, enquanto a melhor parte da força da Casa Lannister permanecera nas terras fluviais, desaparecendo rapidamente.
- Os homens da Montanha sempre foram lutadores - disse, em tom conciliatório - e podemos precisar de cada espada contra esses mercenários. Se esta realmente é a Companhia Dourada, como os murmuradores de Qyburn insistem ...
- Chame-os como quiser - disse Randyll Tarly. - Ainda não são mais do que aventureiros.
- Talvez - Sor Kevan falou. - Mas quanto mais ignoramos esses aventureiros, mais fortes eles ficam. Temos um mapa preparado, um mapa de incursões. Grande Meistre?
O mapa era bonito, pintado pelas mãos de um meistre em uma folha do mais fino papel vegetal, tão grande que cobria a mesa.
- Aqui. - Pycelle apontou com a mão manchada. Onde a manga de sua túnica se ergueu, uma aba de carne pálida pôde ser vista dançando sob seu antebraço. - Aqui e aqui. Ao longo de toda a costa e nas ilhas. Tarth, Passopedra, até mesmo Estermonte. E agora temos relatos de que Connington se dirige para Ponta Tempestade.
- Se for mesmo Jon Connington - comentou Randyll Tarly.
- Ponta Tempestade. - Lorde Mace grunhiu as palavras. - Ele não pode tomar Ponta Tempestade. Nem se fosse Aegon, o Conquistador. E se tomar, e daí? Stannis mantém o lugar agora. Deixe o castelo passar de um pretendente para outro, por que isso deveria nos incomodar? Eu o recapturarei depois que a inocência de minha filha for provada.
Como você pode recapturá-lo se, para começar, não o capturou?
- Eu entendo, meu senhor, mas ...
Tyrell não o deixou terminar.
- Essas acusações contra minha filha são mentiras imundas. Pergunto novamente, por que devemos encenar essa farsa de pantomimeiros - Que o Rei Tommen declare a inocência da minha filha, sor, e colocaremos um fim a essa loucura aqui e agora.
Faça isso, e os murmúrios acompanharão Margaery o resto de sua vida.
- Nenhum homem duvida da inocência de sua filha, meu senhor - Sor Kevan mentiu - mas Sua Alta Santidade insiste em um julgamento.
Lorde Randyll bufou.
- O que nos tornamos, quando reis e grandes senhores precisam dançar conforme o piado de pardais?
- Temos inimigos por todos os lados, Lorde Tarly - Sor Kevan o recordou. - Stannis no norte, homens de ferro no oeste, mercenários no sul. Desafie o Alto Septão, e teremos sangue correndo nas sarjetas de Porto Real também. Se formos vistos indo contra os deuses, isso apenas levará os piedosos para os braços de um ou de outro desses aspirantes a usurpador.
Mace Tyrell permaneceu impassível.
- Assim que Paxter Redwyne varrer os homens de ferro para os mares, meus filhos retomarão os Escudos. As neves cuidarão de Stannis, ou Bolton o fará. E quanto a Connington ...
- Se for ele - Lorde Randyll disse.
- ... quanto a Connington - Tyrell repetiu - que vitórias ele já conquistou para que o temamos? Ele podia ter acabado com a Rebelião de Robert no Septo de Pedra. Falhou. Exatamente como a Companhia Dourada tem sempre falhado. Alguns podem correr para se juntar a eles, sim. E bom para o reino se livrar de tais tolos.
Sor Kevan desejava poder partilhar dessas certezas. Conhecera Jon Connington ligeiramente - um jovem orgulhoso, o mais teimoso do bando de jovens fidalgotes que se reunira em torno do Príncipe Rhaegar Targaryen, competindo pelo favor real. Arrogante, mas capaz e enérgico. Aquilo e sua habilidade com as armas fizeram com que o Rei Louco Aerys o nomeasse Mão. A inércia do velho Lorde Merryweather havia permitido que a rebelião se enraizasse e se espalhasse, e Aerys queria alguém jovem e vigoroso para enfrentar a juventude e o vigor do próprio Robert.
- Muito cedo - Lorde Tywin Lannister declarara quando a notícia da escolha do rei chegara a Rochedo Casterly. - Connington é muito jovem, muito ousado, muito sedento de glória.
A Batalha dos Sinos provara a verdade daquilo. Sor Kevan esperara que, depois disso, Aerys não tivesse outra escolha que não convocar Tywin mais uma vez ... mas o Rei Louco se voltara para os Lordes Chelsted e Rossard, e pagou com sua vida e sua coroa. Mas isso foi há muito tempo. Se este é realmente Jon Connington, ele será um homem diferente. Mais velho, mais duro, mais experiente... mais perigoso.
- Connington pode ter mais do que a Companhia Dourada. Dizem que tem um pretendente Targaryen.
- Um menino forjado é o que ele é - disse Randyll Tarly.
- Pode ser que sim. Ou não. - Kevan Lannister tinha estado ali, naquele mesmo salão, quando Tywin colocara o corpo dos filhos do Príncipe Rhaegar aos pés do Trono de Ferro e enrolara-os em mantos carmesins. A garota era reconhecidamente a Princesa Rhaenys, mas o menino... um horror de ossos, cérebro e sangue coagulado, sem rosto, poucas meadas do belo cabelo. Nenhum de nós olhou por muito tempo. Tywin disse que era o Príncipe Aegon, e confiamos em sua palavra. - Temos essas histórias vindas do leste também. Uma segunda Targaryen, e uma cujo sangue nenhum homem pode questionar. Daenerys Nascida da Tormenta.
- Tão louca quanto o pai - declarou Lorde Mace Tyrell.
Que seria o mesmo pai que Jardim de Cima e a Casa Tyrell apoiaram até o amargo fim e muito além.
- Ela pode ser louca - Sor Kevan disse - mas com tanta fumaça à deriva no oeste, certamente há algum fogo queimando no leste.
Grande Meistre Pycelle balançou a cabeça.
- Dragões. Essas mesmas histórias alcançaram Vilavelha. Demasiadas para não serem levadas em conta. Uma rainha de cabelos prateados com três dragões.
- Do outro lado do mundo - falou Mace Tyrell. - Rainha na Baía dos Escravos, sim. Seremos gratos se ficar por lá.
- Nisso concordamos - disse Sor Kevan - mas a garota é do sangue de Aegon, o Conquistador, e não acho que ficará satisfeita em permanecer em Meereen para sempre. Se ela alcançar esta costa e unir forças a Lorde Connington e esse príncipe dele, falso ou não ... devemos destruir Connington e seu pretendente agora, antes que Daenerys Nascida da Tormenta venha para o oeste.
Mace Tyrell cruzou os braços.
- Pretendo fazer exatamente isso, sor. Depois dos julgamentos.
- Mercenários lutam por dinheiro - declarou o Grande Meistre Pycelle. - Com ouro suficiente, podemos persuadir a Companhia Dourada a entregar Lorde Connington e o pretendente.
- Sim, se tivéssemos ouro - Sor Harys Swyft disse. - Ai de mim, meus senhores, nossos cofres têm apenas ratos e baratas. Escrevi novamente para os banqueiros de Myr. Se eles concordarem em assumir a dívida da coroa com os bravosis e nos estender um novo empréstimo, talvez não tenhamos que aumentar os impostos. Caso contrário ...
- Os magísteres de Pentos são conhecidos por emprestar dinheiro também - lembrou Sor Kevan. - Tente com eles. - Os pentoshis gostariam ainda menos de prestar ajuda, mas o esforço devia ser feito. A menos que um novo recurso de dinheiro fosse encontrado, ou o Banco de Ferro persuadido a ceder, ele seria obrigado a pagar a dívida da coroa com ouro Lannister. Não se atreveria a recorrer a novos impostos, não com os Sete Reinos se arrastando em rebelião. Metade dos senhores do reino podia não distinguir tributação de tirania e se agarraria ao usurpador mais próximo em um piscar de olhos se isso lhe salvasse uns cobres cortados. - Se isso falhar, você deve ir a Bravos, negociar pessoalmente com o Banco de Ferro.
Sor Harys fraquejou.
- Devo?
- Você é o mestre da moeda - Lorde Randyll disse rispidamente.
- Sou. - O tufo de cabelo branco na ponta do queixo de Swyft tremeu de indignação. - Devo lembrar ao meu senhor que este problema não é feito meu? E nem todos nós tivemos a oportunidade de reabastecer nossos cofres com os saques de Lagoa da Donzela e Pedra do Dragão.
- Eu me ressinto de sua insinuação, Swyft - Mace Tyrell disse, enfurecido. - Nenhuma riqueza foi encontrada em Pedra do Dragão, eu lhe garanto. Os homens do meu filho procuraram em cada centímetro daquela ilha úmida e triste e voltaram com não mais do que uma simples pedra preciosa ou uma pitada de ouro. Nenhum sinal daquele fabuloso tesouro escondido de ovos de dragão.
Kevan Lannister vira Pedra do Dragão com os próprios olhos. Duvidava muito que Loras Tyrell tivesse procurado em cada centímetro da antiga fortaleza. Os valirianos a tinham erguido, afinal de contas, e todas as suas obras cheiravam a feitiçaria. E Sor Loras era jovem, propenso a todos os juízos temerários da juventude e, além disso, fora gravemente ferido no assalto ao castelo. Mas isso não faria Tyrell recordar que seu filho era falível.
- Se houvesse alguma riqueza em Pedra do Dragão, Stannis a teria encontrado - declarou Sor Kevan. - Vamos em frente, meus senhores. Temos duas rainhas para julgar por alta traição, como devem se lembrar. Minha sobrinha escolheu julgamento por combate, segundo me informou. Sor Robert Forte será seu campeão.
- O gigante silencioso. - Lorde Randyll fez uma careta.
- Diga-me, sor, de onde veio esse homem? - exigiu saber Mace Tyrell. - Por que nunca ouvimos seu nome antes? Ele não fala, não mostra seu rosto, nunca é visto sem sua armadura. Sabemos com certeza que é mesmo um cavaleiro?
Não sabemos nem se está vivo. Meryn Trant afirmava que Forte nunca comia ou bebia, e Boros Blount ia além, dizendo que nunca vira o homem usar a latrina. Por que deveria? Mortos não cagam. Kevan Lannister tinha uma forte suspeita de quem este Sor Robert realmente era embaixo daquela reluzente armadura branca. Uma suspeita que Mace Tyrell e Randyll Tarly sem dúvida partilhavam. Qualquer que fosse o rosto escondido atrás do elmo do Forte, devia permanecer oculto por enquanto. O gigante silencioso era a única esperança de sua sobrinha. E rezemos para que seja tão formidável quanto parece.
Mas Mace Tyrell não conseguia ver além da ameaça à sua própria filha.
- Sua Graça nomeou Sor Robert para a Guarda Real - Sor Kevan o recordou - e Qyburn atesta pelo homem também. Seja como for. Precisamos que Sor Robert prevaleça, meus senhores. Se minha sobrinha for considerada culpada por essas traições, a legitimidade de seus filhos será colocada em questão. Se Tommen deixar de ser rei, Margaery deixará de ser rainha. - Deixou Tyrell remoer aquilo por um momento. - O que quer que Cersei tenha feito, ainda é uma filha do Rochedo e do meu próprio sangue. Não deixarei que morra como traidora, mas me assegurei de remover suas presas. Todos os guardas dela foram dispensados e substituídos pelo meus homens. No lugar de suas antigas damas de companhia, ela passará a ser atendida por uma septã e três noviças escolhidas pelo Alto Septão. Não tem mais voz no governo do reino, nem na educação de Tommen. Pretendo que ela retorne a Rochedo Casterly depois do julgamento e vou garantir para que permaneça lá. É o suficiente.
O resto, deixou sem ser dito. Cersei era mercadoria suja agora, seu poder se acabara. Todo padeiro e pedinte na cidade havia visto sua vergonha, e cada vendedor de tortas e curtidor da Baixada da Pulga à Curva do Mijaguado vira sua nudez, seus olhos ansiosos se arrastando por seus seios, barriga e partes femininas. Nenhuma rainha esperava governar novamente depois daquilo. Em ouro, seda e esmeraldas, Cersei fora uma rainha, a coisa mais próxima de uma deusa; nua, era apenas uma mulher, uma mulher de idade com estrias na barriga e tetas que começavam a ceder... como as megeras na multidão haviam ficado felizes em apontar para seus maridos e amantes. Melhor viver na vergonha do que morrer orgulhosa, Sor Kevan disse a si mesmo.
- Minha sobrinha não causará mais nenhum mal - prometeu para Mace Tyrell. - Tem minha palavra nisso, meu senhor.
Tyrell deu um aceno relutante.
- Como quiser. Minha Margaery prefere ser julgada pela Fé, então o reino inteiro poderá testemunhar sua inocência.
Se sua filha é tão inocente quanto você quer que acreditemos, por que precisa ter seu exército presente quando ela encarar seus acusadores? Sor Kevan podia ter perguntado.
- Em breve, espero - disse, em vez disso, antes de se virar para o Grande Meistre Pycelle. - Há mais alguma coisa?
O Grande Meistre consultou seus papéis.
- Devíamos endereçar a herança de Rosby. Seis petições foram colocadas ...
- Podemos tratar de Rosby em alguma data futura. O que mais?
- Preparativos devem ser feitos para a Princesa Myrcella.
- É isso que dá em se tratar com os dornenses - Mace Tyrell disse. - Certamente, um partido melhor pode ser encontrado para a garota.
Como seu próprio filho Willas, talvez? Ela, desfigurada por um dornense, ele, aleijado por outro?
- Sem dúvida - Sor Kevan disse - mas temos inimigos suficientes sem ofender Dorne. Se Doran Martell unir suas forças às de Connington e apoiar esse falso dragão, as coisas ficarão feias para todos nós.
- Talvez possamos persuadir nossos amigos dornenses a lidar com Lorde Connington - Sor Harys Swyft sugeriu com um irritante riso manso. - Isso pouparia um tanto de sangue e problemas.
- Pode ser - Sor Kevan disse, cansado. Era hora de colocar um fim naquilo. - Obrigado, meus senhores. Nos reuniremos novamente daqui a seis dias. Após o julgamento de Cersei.
- Como quiser. Que o Guerreiro dê forças aos braços de Sor Robert. - As palavras eram de má vontade, a inclinação de queixo que Mace Tyrell deu ao Senhor Regente a mais superficial das mesuras. Mas era algo, e, por esse tanto, Sor Kevan Lannister estava grato.
Randyll Tarly deixou o salão com seu senhor suserano, os lanceiros de mantos verdes atrás deles. Tarly é o perigo real, Sor Kevan refletiu enquanto via a partida dos dois. Um homem estrito, mas de vontade férrea e astuto, e tão bom soldado quanto a Campina pode se gabar. Mas como posso ganhá-lo para nosso lado?
- Lorde Tyrell não gosta de mim - o Grande Meistre Pycelle disse em tom sombrio quando a Mão partiu. - Essa questão do chá da lua ... eu nunca devia ter falado sobre isso, mas a Rainha Viúva me ordenou! Se for do agrado do Senhor Regente, eu dormiria mais profundamente se pudesse me emprestar alguns de seus guardas.
- Lorde Tyrell pode levar a mal.
Sor Harys Swyft puxou a barba do queixo.
- Também preciso de guardas para mim. Esses são tempos perigosos.
Sim, pensou Kevan Lannister, e Pycelle não é o único membro do conselho que nossa Mão gostaria de substituir. Mace Tyrell tinha seu próprio candidato para mestre do tesouro: seu tio, Senhor Senescal de Jardim de Cima, aquele a quem os homens chamavam de Garth, o Grosso. A última coisa que preciso é de outro Tyrell no pequeno conselho. Ele já estava em desvantagem. Sor Harys era pai de sua esposa, e Pycelle podia ser contado ao seu favor, também. Mas Tarly era juramentado ao Jardim de Cima, assim como Paxter Redwyne, senhor almirante e mestre dos navios, atualmente navegando com sua frota ao redor de Dorne para lidar com os homens de Euron Greyjoy. Uma vez que Redwyne retornasse a Porto Real, o conselho ficaria três a três, Lannister e Tyrell.
A sétima voz seria a da mulher dornense que agora escoltava Myrcella para casa. A Senhora Nym. Que não é nenhuma senhora, se metade do que Qyburn relatou for verdade. Uma filha bastarda da Víbora Vermelha, quase tão famosa quanto o pai e com a intenção de reivindicar o assento no conselho que o próprio Víbora Vermelha ocupara tão brevemente. Sor Kevan ainda não julgara adequado informar Mace Tyrell da chegada dela. A Mão, ele sabia, não ficaria satisfeita. O homem que precisamos é Mindinho. Petyr Baelish tem o dom de conjurar dragões do ar.
- Contrate os homens da Montanha - Sor Kevan sugeriu. - Ronnet Vermelho não terá mais utilidade para eles. - Não achava que Mace Tyrell seria tão tosco para tentar matar Pycelle ou Swyft, mas se guardas os fariam se sentir melhor, que tivessem guardas.
Os três homens saíram juntos da sala do trono. Do lado de fora, a neve estava rodopiando na ala externa, uma besta enjaulada uivando para ser libertada.
- Já sentiram tal frio? - perguntou Sor Harys.
- A hora para falar do frio - disse o Grande Meistre Pycelle - não é quando estamos parados nele. - Cruzou lentamente a ala externa, de volta a seus aposentos.
Os outros permaneceram um momento nos degraus da sala do trono.
- Não coloco fé nesses banqueiros de Myr - Sor Kevan disse para o sogro. - É melhor você se preparar para ir a Bravos.
Sor Harys não pareceu feliz com a perspectiva.
- Se eu devo ... Mas, digo novamente, esse problema não é feito meu.
- Não. Foi Cersei quem decidiu que o Banco de Ferro esperaria pelo que lhes é devido. Devo mandá-la para Bravos?
Sor Harys piscou.
- Sua Graça ... isso ... isso ...
Sor Kevan o salvou.
- Era uma brincadeira. Uma péssima brincadeira. Vá e encontre uma fogueira quente. Pretendo fazer o mesmo. - Puxou as luvas e começou a cruzar o pátio, inclinando-se com dificuldade contra o vento, enquanto seu manto batia e rodopiava atrás dele.
O fosso seco que cercava a Fortaleza de Maegor tinha quase um metro de neve, e as pontas de ferro que se alinhavam nele brilhavam com a geada. O único meio de entrar ou sair de Maegor era cruzando a ponte levadiça que passava por cima do fosso. Um cavaleiro da Guarda Real estava sempre postado na outra extremidade. Esta noite, o dever havia ficado com Sor Meryn Trant. Com Balon Swann caçando o desonesto cavaleiro Estrela Negra em Dorne, Loras Tyrell gravemente ferido em Pedra do Dragão, e Jaime desaparecido nas terras fluviais, apenas quatro das Espadas Brancas permaneciam em Porto Real, e Sor Kevan jogara Osmund Kettleblack (e seu irmão Osfryd) nos calabouços na mesma hora em que Cersei confessara que tomara os dois homens como amantes. Aquilo deixava apenas Trant, o fraco Boros Blount e o monstro mudo de Qyburn, Robert Forte, para proteger o jovem rei e a família real.
Preciso encontrar algumas espadas novas para a Guarda Real. Tommen devia ter sete bons cavaleiros com ele. No passado, a Guarda Real servia a vida toda, mas aquilo não impedira Joffrey de dispensar Sor Barristan Selmy para conseguir um lugar para seu cão, Sandor Clegane. Kevan podia se utilizar desse precedente. Poderia colocar Lancel em um manto branco, ele refletiu. Há mais honra nisso do que ele jamais encontrará nos Filhos do Guerreiro.
Kevan Lannister pendurou a capa encharcada pela neve dentro de seu solar, tirou as botas e ordenou ao seu servo que buscasse um pouco de lenha fresca para o fogo.
- Uma taça de vinho quente com especiarias também cairia bem - disse, enquanto se acomodava ao lado da lareira. - Providencie isso.
O fogo logo o descongelou, e o vinho aqueceu suas entranhas agradavelmente. Também o deixou com sono, então não ousou tomar outra taça. Seu dia estava longe de acabar. Tinha relatos para ler, cartas para escrever. E cear com Cersei e o rei. Sua sobrinha tinha estado subjugada e submissa desde a caminhada de expiação, graças aos deuses. As noviças que a atendiam relatavam que ela passava um terço de suas horas desperta com o filho, outro terço em oração e o resto na banheira. Estava se banhando quatro ou cinco vezes ao dia, esfregando-se com escovas de crina de cavalo e um sabão forte de lixívia, como se pretendesse arrancar a pele.
Ela nunca mais tirará a mancha, não importa o quão forte se esfregue. Sor Kevan se lembrava da garota que fora, tão cheia de vida e travessuras. E quando florescera, ahhh ... teria havido donzela mais doce de se olhar? Se Aerys tivesse concordado em casá-la com Rhaegar, quantas mortes poderiam ter sido evitadas? Cersei poderia ter dado ao príncipe os filhos que ele queria, leões com olhos púrpura e jubas prateadas ... e, com tal esposa, Rhaegar nunca teria olhado duas vezes para Lyanna Stark. A garota nortenha tinha uma beleza selvagem, ele se lembrava, mas por mais brilhante que uma tocha queimasse, nunca corresponderia ao sol nascente.
Mas de nada adiantava cismar com batalhas perdidas e trilhas não percorridas. Isso era um vício de velhos homens feitos. Rhaegar havia se casado com Elia de Dome, Lyanna Stark morrera, Robert Baratheon tomara Cersei como noiva, e aqui estavam eles. E esta noite, seu próprio caminho o levaria para os aposentos da sobrinha, e cara a cara com Cersei.
Não tenho motivos para me sentir culpado, Sor Kevan disse para si mesmo. Tywin entenderia isso, certamente. Foi sua filha quem trouxe a vergonha para nosso nome, não eu. O que eu fiz foi para o bem da Casa Lannister.
Não era como se seu irmão nunca tivesse feito isso. Nos últimos anos de vida do pai deles, depois que a mãe morrera, o velho Lorde Tytos tomara a formosa filha de um fabricante de velas como amante. Não era incomum que um senhor viúvo mantivesse uma garota do povo para aquecer sua cama... mas Lorde Tytos logo começara a sentar a mulher ao lado dele no salão, a cobri-la com presentes e honras, e até mesmo perguntava sua opinião em assuntos de estado. Em um ano, ela estava dispensando servos, dando ordens nos cavaleiros da casa, chegando a falar por sua senhoria quando ele estava indisposto. Ela ficara tão influente que se dizia, em Lannisporto, que qualquer homem que desejasse que sua petição fosse ouvida deveria se ajoelhar diante dela e falar em voz alta para seu colo... pois as orelhas de Tytos Lannister estavam entre as pernas de sua senhora. Ela até passara a usar as joias da mãe deles.
Isso fora até o dia em que o coração do senhor seu pai estourara no peito enquanto ele subia um lance íngreme de degraus para a cama dela. Todos aqueles que haviam se autointitulado amigos dela e cultivado seus favores a abandonaram rapidamente quando Tywin a deixou despida e a fez desfilar através de Lannisporto até as docas, como uma puta comum. Embora nenhum homem tivesse colocado a mão nela, aquela caminhada significava o fim de seu poder. Certamente Tywin jamais sonhara que o mesmo destino aguardava sua filha dourada.
- Teve que ser - Sor Kevan murmurou diante do último gole de vinho. Sua Alta Santidade ficara satisfeito. Tommen precisava da Fé ao seu lado nas batalhas que viriam. E Cersei... a menina dourada se transformara em uma mulher vaidosa, tola, gananciosa. Se deixada no governo, teria arruinado Tommen como fizera com Joffrey.
Do lado de fora, o vento aumentava, arranhando as janelas de seus aposentos. Sor Kevan ficou em pé. Hora de encarar a leoa em sua toca. Arrancamos suas garras. Jaime, no entanto... Mas, não, não ficaria remoendo isso.
Vestiu um gibão velho e bem cortado, caso sua sobrinha tivesse em mente jogar outra taça de vinho em seu rosto, mas deixou o cinturão da espada pendurado na parte de trás da cadeira. Apenas os cavaleiros da Guarda Real tinham permissão de manter espadas na presença de Tommen.
Sor Boros Blount atendia ao rei menino e sua mãe quando Sor Kevan entrou nos aposentos reais. Blount usava escamas esmaltadas, manto branco e meio-elmo. Não parecia bem. Ultimamente, Boros ficara notavelmente mais pesado no rosto e na barriga, e sua cor não era boa. Estava apoiado contra a parede atrás dele, como se ficar em pé tivesse se tornado um grande esforço.
A refeição foi servida pelas três noviças, garotas bem limpas, de bom nascimento, com idade entre doze e dezesseis anos. Em suas suaves lãs brancas, cada uma parecia mais inocente e irreal do que a anterior, mesmo assim, o Alto Septão insistira que cada garota não passasse mais do que sete dias a serviço da rainha, para que Cersei não as corrompesse. Elas cuidavam do guarda-roupa da rainha, preparavam seu banho, serviam-lhe vinho, mudavam as roupas de cama pela manhã. Uma dividia a cama com a rainha todas as noites, para assegurar-se de que ela não teria outra companhia; as outras duas dormiam no quarto ao lado com a septã que as vigiava.
Uma garota alta como uma cegonha e com o rosto coberto de marcas o escoltou até a presença real. Cersei se levantou quando ele entrou e o beijou suavemente no rosto.
- Querido tio. É tão bom que tenha vindo cear conosco. - A rainha estava vestida tão modestamente quanto qualquer matrona, em um vestido marrom-escuro abotoado até o pescoço e um manto com capuz verde que cobria sua cabeça raspada. Antes da caminhada, ela teria ostentado a calvície embaixo de uma coroa. - Venha se sentar - ela disse. - Gostaria de vinho?
- Uma taça. - Ele se sentou, ainda cauteloso.
Uma noviça sardenta encheu as taças com vinho quente com especiarias.
- Tommen me disse que Lorde Tyrell pretende reconstruir a Torre da Mão - comentou Cersei.
Sor Kevan assentiu.
- A nova torre será duas vezes mais alta que aquela que você queimou, ele diz.
Cersei deu uma risada gutural.
- Longas lanças, altas torres ... Lorde Tyrell está insinuando alguma coisa?
Aquilo o fez sorrir. É bom que ela ainda se lembre de como rir. Quando perguntou se ela tinha tudo o que precisava, a rainha respondeu:
- Estou bem servida. As garotas são doces, e a boa septã se assegura de que eu diga minhas orações. Mas, uma vez que minha inocência seja provada, me deixaria satisfeita se Taena Merryweather pudesse me atender novamente. Ela traria o filho à corte. Tommen precisa de outro garoto com ele, amigos de nascimento nobre.
Era um pedido modesto. Sor Kevan não via nenhuma razão pela qual não pudesse ser concedido. Ele mesmo podia adotar o menino Merryweather, enquanto a Senhora Taena acompanhava Cersei de volta a Rochedo Casterly.
- Eu a buscarei após o julgamento - prometeu.
A ceia começou com carne e sopa de aveia, seguidas por um par de codornas e um assado no espeto de quase noventa centímetros de comprimento, com nabos, cogumelos, e diversos pães quentes e manteiga. Sor Boros provava cada prato que era enviado antes do rei. Um dever humilhante para um cavaleiro da Guarda Real, mas talvez tudo o que Blount fosse capaz de fazer naqueles dias ... e sábio, depois da maneira como o irmão de Tommen morrera.
O rei parecia mais feliz do que Kevan Lannister vira durante muito tempo. Da sopa ao doce, Tommen balbuciou sobre as façanhas de seus filhotes, enquanto os alimentava com pedaços do espeto tirados de seu prato real.
- O gato mau estava do lado de fora da minha janela noite passada - contou para Kevan a determinada altura - mas Sor Salto sibilou para ele e ele fugiu pelo telhado.
- O gato mau? - Sor Kevan disse, divertido. Ele é um menino doce.
- Um velho gato preto com uma orelha rasgada - Cersei contou para ele. - Uma coisa imunda e mal-humorada. Arranhou a mão de Joff uma vez. - Ela fez uma careta. - Os gatos mantêm os ratos afastados, eu sei, mas esse aí... ele é conhecido por atacar os corvos no viveiro.
- Pedirei para os caçadores de ratos colocarem uma armadilha para ele. - Sor Kevan não se lembrava de ter visto a sobrinha tão tranquila, tão submissa, tão reservada. Tudo para o bem, ele supôs. Mas aquilo também o deixava triste. Seu fogo está apagado, ela que costumava queimar tão radiante. - Você não me perguntou sobre seu irmão - disse, enquanto esperavam pelos bolos de creme. Bolos de creme eram os favoritos do rei.
Cersei ergueu o queixo, os olhos verdes brilhando sob a luz das velas.
- Jaime? Você teve notícias?
- Nenhuma. Cersei, você precisa se preparar para ...
- Se ele estivesse morto, eu saberia. Viemos para este mundo juntos, Tio. Ele não partiria sem mim. - Ela tomou um gole de vinho. - Tyrion pode partir quando desejar. Tampouco teve notícias dele, suponho.
- Ninguém tentou nos vender a cabeça de um anão ultimamente, não.
Ela assentiu.
- Tio, posso lhe fazer uma pergunta?
- O que quiser.
- Sua esposa ... pretende trazê-la à corte?
- Não. - Dorna era uma alma gentil, nunca à vontade, exceto em casa, com amigos e parentes ao redor dela. Cuidara bem de seus filhos, sonhava em ter netos, rezava sete vezes ao dia, amava bordados e flores. Em Porto Real, seria tão feliz quanto um dos gatinhos de Tommen em um poço de víboras. - A senhora minha esposa não gosta de viagens. O lugar dela é em Lannisporto.
- É sábia a mulher que conhece seu lugar.
Ele não gostou de como aquilo soou.
- Explique o que quer dizer.
- Eu pensei que soubesse. - Cersei pegou sua taça. A garota sardenta a encheu novamente. Os bolos de creme apareceram, então, e a conversa tomou um rumo mais leve. Apenas depois que Tommen e seus gatinhos foram escoltados até o quarto de dormir real por Sor Boros, a conversa deles se voltou para o julgamento da rainha.
- Os irmãos de Osney não ficarão de braços cruzados vendo-o morrer - Cersei o advertiu.
- Nem esperava que ficassem. Tenho os dois presos.
Aquilo pareceu surpreendê-la.
- Por qual crime?
- Fornicação com a rainha. Sua Alta Santidade diz que você confessou ter dormido com ambos. Você se esqueceu?
O rosto dela corou.
- Não. O que fará com eles?
- A Muralha, se admitirem sua culpa. Se a negarem, podem encarar Sor Robert. Tais homens nunca deviam ter sido erguidos tão alto.
Cersei abaixou a cabeça.
- Eu ... eu os julguei mal.
- Você julgou mal bons homens também, pelo que parece.
Ele teria mais a comentar, mas a noviça de cabelos escuros e rosto redondo voltou para dizer:
- Meu senhor, minha senhora, sinto interromper, mas há um rapaz lá embaixo. O Grande Meistre Pycelle implora o favor da presença do Senhor Regente imediatamente.
Asas escuras, palavras escuras, Sor Kevan pensou. Será que Ponta Tempestade caiu? Ou será que as notícias são de Bolton, no Norte?
- Podem ser notícias de Jaime - a rainha falou.
Só havia um jeito de saber. Sor Kevan se levantou.
- Por favor, me dê licença. - Antes de sair, apoiou-se em um joelho e beijou a sobrinha na mão. Se seu gigante silencioso falhasse, aquele poderia ser o último beijo que ela receberia.
O mensageiro era um garoto de oito ou nove anos, tão empacotado em pele que parecia um filhote de urso. Trant o deixara esperando na ponte levadiça em vez de admiti-lo no Maegor.
- Vá procurar uma fogueira, rapaz - Sor Kevan disse para ele, colocando uma moeda de um dinheiro em sua mão. - Conheço o caminho para o viveiro bem o bastante.
A neve finalmente parara de cair. Atrás de um véu de nuvens esfarrapadas, uma lua cheia flutuava gorda como uma bola de neve. As estrelas brilhavam frias e distantes. Enquanto Sor Kevan seguia pela ala interna, o castelo parecia um lugar estranho, onde em cada fortaleza e torre haviam crescido dentes congelados, e todos os caminhos familiares haviam desaparecido sob um lençol branco. Um pingente longo como uma lança caiu para se espatifar a seus pés. Outono em Porto Real, ele meditou. Como deve ser na Muralha?
A porta foi aberta por uma serva, uma coisa magrela em uma túnica forrada de pele grande demais para ela. Sor Kevan sacudiu a neve de suas botas, tirou o manto e entregou-o à garota.
- O grande meistre está me esperando - anunciou. A menina acenou com a cabeça, solene e silenciosa, e apontou para os degraus.
Os aposentos de Pycelle ficavam embaixo do viveiro, um espaçoso conjunto de quartos cheios de prateleiras de ervas e pomadas, e estantes repletas de livros e pergaminhos. Sor Kevan sempre achara o local desconfortavelmente quente. Não nessa noite. Uma vez atravessada a porta do aposento, o frio era palpável. Cinza negra e brasas morrendo era tudo o que restava de uma fogueira. Algumas velas tremeluzindo lançavam luzes fracas aqui e ali.
O resto estava envolto em sombras ... exceto sob a janela aberta, onde nuvens de cristais de gelo brilhavam à luz da lua, rodopiando ao vento. No banco sob a janela, um corvo perambulava, claro, imenso, com as penas eriçadas. Era o maior corvo que Kevan Lannister já vira. Maior do que qualquer falcão de caça em Rochedo Casterly; maior do que a maior coruja. Neve soprada pelo vento dançava ao redor dele, e a lua o pintava de prateado. Não prateado. Branco. O pássaro é branco.
Os corvos brancos da Cidadela não carregavam mensagens, como seus primos escuros faziam. Quando deixavam Vilavelha, era apenas com um propósito: anunciar a mudança da estação.
- Inverno - disse Sor Kevan. A palavra formou uma névoa branca no ar. Deu as costas para a janela.
Então algo o acertou no peito entre as costelas, duro como o punho de um gigante. Aquilo o fez perder o ar e o fez cambalear para trás. O corvo branco saiu voando, as asas claras batendo sobre sua cabeça. Sor Kevan meio sentou e meio caiu no banco sob a janela. O que... quem ... Uma seta estava afundada quase até a altura das penas em seu peito. Não. Não, foi assim que meu irmão morreu. Sangue escorria em volta da haste.
- Pycelle - murmurou, confuso. - Ajude-me... eu ...
Então ele viu. O Grande Meistre Pycelle estava sentado em sua mesa, a cabeça apoiada em um grande tomo encadernado de couro diante dele. Dormindo, Kevan pensou ... até que piscou e viu o profundo corte vermelho no crânio sarapintado do velho, e o sangue empoçado sob sua cabeça, manchando as páginas do livro. Ao redor de sua vela havia pedaços de ossos e cérebro, ilhas em um lago de cera derretida.
Ele queria guardas, Sor Kevan pensou. Eu devia ter enviado guardas para ele. Poderia Cersei estar certa o tempo todo? Isso seria trabalho de seu sobrinho?
- Tyrion - chamou. - Onde... ?
- Muito longe - uma voz meio familiar respondeu.
Ele estava parado na sombra de uma estante de livros, gordo, rosto pálido, ombros redondos, segurando uma besta nas suaves mãos empoadas. Chinelos de seda envolviam seus pés.
- Varys?
O eunuco abaixou a besta.
- Sor Kevan. Perdoe-me, se puder. Não lhe tenho nenhum ressentimento. Isso não foi feito com malícia. Foi pelo reino. Pelas crianças.
Eu tenho crianças. Tenho uma esposa. Oh, Dorna. A dor o encobriu. Fechou os olhos e os abriu novamente.
- Há ... Há centenas de guardas Lannister neste castelo.
- Mas nenhum neste quarto, felizmente. Isso me dói, meu senhor. Você não merece morrer sozinho em uma noite escura e fria como esta. Há muitos como você, bons homens a serviço de causas más ... mas você estava tramando para desfazer todo o bom trabalho da rainha, queria reconciliar Jardim de Cima e Rochedo Casterly, ligar a Fé ao seu pequeno rei, unir os Sete Reinos sob o governo de Tommen. Então ...
Uma rajada de vento soprou. Sor Kevan tremeu violentamente.
- Está com frio, meu senhor? - perguntou Varys. - Perdoe-me. O Grande Meistre se sujou enquanto morria, e o fedor estava tão abominável que pensei que fosse asfixiar.
Sor Kevan tentou se levantar, mas sua força o deixara. Não conseguia sentir as pernas.
- Achei a besta adequada. Você partilhou tanto com Lorde Tywin, por que não isso? Sua sobrinha pensará que os Tyrell o assassinaram, talvez com a conivência do Duende. Os Tyrell suspeitarão dela. Alguém, de alguma forma, encontrará uma maneira de culpar os dornenses. Dúvida, divisão e desconfiança vão roer o chão por baixo do seu rei Tommen, enquanto Aegon levanta seu estandarte sobre Ponta Tempestade e os senhores do reino se reúnem em torno dele.
- Aegon? - Por um momento, ele não entendeu. Então se lembrou. Um bebê envolto em um manto carmesim, o tecido manchado com o sangue e o cérebro dele. - Morto. Ele está morto.
- Não. - A voz do eunuco pareceu mais profunda. - Ele está aqui. Aegon tem sido moldado para governar desde antes que pudesse andar. Foi treinado em armas, como convém a um cavaleiro, mas esse não foi o fim de sua educação. Ele lê e escreve, fala diversas línguas, estudou história, leis e poesia. Uma septã o instruiu nos mistérios da Fé desde que teve idade suficiente para entendê-los. Viveu com pescadores, trabalhou com as próprias mãos, nadou em rios, remendou redes e aprendeu a lavar as próprias roupas na necessidade. Ele consegue pescar, cozinhar e curar uma ferida, sabe como é sentir fome, ser caçado, sentir medo. Tommen tem sido ensinado que a realeza é o direito dele. Aegon sabe que a realeza é seu dever, que um rei deve colocar seu povo em primeiro lugar, e viver e governar para eles.
Kevan Lannister tentou gritar... para seus guardas, a esposa, o irmão ... mas as palavras não saíram. Sangue escorreu de sua boca. Estremeceu violentamente.
- Sinto muito. - Varys torceu as mãos. - Você está sofrendo, eu sei, e eu aqui continuando a falar como uma velha tola. É tempo de pôr um fim nisso. - O eunuco franziu os lábios e deu um pequeno assobio.
Sor Kevan estava frio como gelo, e cada respiração ofegante enviava uma nova pontada de dor por seu corpo. Ele vislumbrou um movimento, ouviu o som suave de passos de um chinelo se arrastando na pedra. Uma criança saiu de uma poça de escuridão, um garoto pálido em uma túnica esfarrapada, com não mais do que nove ou dez anos. Outro se ergueu de trás da cadeira do grande meistre. A garota que abrira a porta para ele estava ali também. Estavam todos ao redor dele, meia dúzia deles, crianças de rosto branco e olhos escuros, meninos e meninas juntos.
E, em suas mãos, as adagas. 

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