segunda-feira, 8 de julho de 2013

POLLYANNA - Capítulo XXII - Os sermões e a caixa de lenha


Na tarde em que Pollyanna falou de Jimmy Bean para John Pendleton, o reverendo Paul Ford percorria os bosques de Pendleton na esperança de que a beleza fulgurante da natureza de Deus acalmasse o tumulto que os Seus filhos tinham provocado.
O reverendo Paul Ford estava muito magoado. Mês após mês, havia já um ano, as condições na sua paróquia vinham piorando cada vez mais, até que, presentemente, para onde quer que se virasse, encontrava apenas discussões, maledicências, escândalos e inveja. Tinha procurado evitar tudo aquilo falando com as pessoas, predicando, mas era ignorado. Além disso, rezava fervorosamente na esperança das coisas melhorarem. Porém, chegara à conclusão de que nada melhorara, antes pelo contrário.
Dois dos seus diáconos tinham discutido por uma coisa sem importância; três das suas colaboradoras mais ativas da organização de Caridade se afastaram por causa das más línguas que tinham provocado um escândalo. O coro desorganizara-se em virtude de um solo dado a certa solista. Até mesmo a Sociedade do Esforço Cristão estava fervendo devido as críticas de dois dos seus ministros. Também a Escola Dominical estava em crise com a demissão de dois dos seus melhores professores. Esta fora a gota d’água que fizera transbordar o copo e o reverendo desanimado resolvera ir para o bosque rezar e meditar.
Sob a copa das árvores, o reverendo Ford encarava a situação. Na sua opinião, a crise chegara. Era preciso fazer alguma coisa, e logo. Todo o trabalho da paróquia estava parado. Os serviços dominicais, os encontros diários para oração, os chás missionários e até mesmo os frequentadores dos jantares beneficentes estavam se tornando cada vez mais raros. Os poucos colaboradores que restavam digladiavam-se entre si. Por causa de tudo isto, o reverendo sofria muito. Era preciso fazer alguma coisa, mas o quê?
O reverendo tirou do bolso as notas que já tinha feito para o sermão do próximo domingo. Com uma aparência carregada, a postura rigorosamente arrumada, e em voz alta, ele leu o que estava determinado a falar. Era um ataque violento aos maus, aos fariseus e aos hipócritas. O reverendo só enxergava esse tipo de gente na sua paróquia. Era uma denúncia amarga. Como só existiam árvores naqueles bosques, e até os pássaros e os esquilos haviam fugido, deixando tudo em silêncio, o ensaio geral deu ao reverendo uma vívida representação do que sucederia, no próximo domingo, com a audiência humana que esperava ter.
Seus paroquianos! O seu rebanho! Poderia falar-lhes como o fazia ali na floresta? Ousaria usar daquela sagrada indignação?
Ele havia rezado muito. Ele havia suplicado por ajuda, por orientação. Ele almejava - almejava com sinceridade! - tomar agora, durante esta crise, o caminho certo. Mas seria esse o caminho certo? Vagarosamente, o reverendo dobrou as anotações e as colocou de volta no bolso. Depois, com um suspiro que era quase um gemido, sentou-se ao pé de um tronco e escondeu o rosto entre as mãos.
Foi nesta atitude que Pollyanna o encontrou quando regressava para casa depois de ter estado na mansão Pendleton. Correu para ele dando um grito.
– Oh, Mr. Ford! O senhor também quebrou a perna?
O reverendo deixou cair as mãos e olhou para ela tentando sorrir.
– Não, menina, não! Estou só descansando.
– Ah, ainda bem – suspirou a menina com alívio. – É que Mr. Pendleton, quando o encontrei, tinha quebrado a perna. Mas ele estava deitado no chão e o senhor está sentado.
– Sim, estou sentado e não quebrei nada que os médicos possam consertar.
Estas últimas palavras foram ditas numa voz muito baixa, mas Pollyanna as ouviu. Os olhos dela brilharam de simpatia.
– Eu sei o que quer dizer, alguma coisa está aborrecendo-o. Meu pai costumava sentir-se assim muitas vezes. Quase todos os pastores, frequentemente, sentem-se assim. Eu sei, muitas exigências sobre eles, coitados!
O reverendo virou-se para ela surpreendido.
– Seu pai era pastor?
– Sim, não sabia? Pensei que todos soubessem. Ele se casou com a irmã da tia Polly, que era a minha mãe.
– Ah, entendo. Sabe, estou aqui há poucos anos e não conheço as histórias de todas as famílias.
– Sim, senhor – sorriu Pollyanna.
Fez-se um grande silêncio. O reverendo que continuava sentado junto a uma árvore, pareceu ter se esquecido da presença de Pollyanna. Tirou alguns papéis do bolso e os desdobrou, mas não olhava para eles. Na verdade, sua atenção estava numa folha caída da árvore, que nem mesmo era bonita.
Pollyanna, olhando-o, sentiu pena dele.
– Está... está fazendo um dia lindo – começou ela, esperançosa.
Por um momento não obteve resposta, depois o reverendo olhou para cima como que acordando de um sonho.
– O quê? Ah sim, está um lindo dia.
– E nem está frio, embora já estejamos em outubro – observou Pollyanna ainda mais esperançosa. – Mr. Pendleton tem uma lareira, mas diz que não precisa dela. É só para olhar. Eu gosto muito de ficar olhando o fogo, não gosta?
Desta vez não houve resposta, embora Pollyanna aguardasse pacientemente antes de tentar de novo, experimentando outro caminho.
– O senhor gosta de ser pastor?
O reverendo Paul Ford desta vez olhou para ela.
– Se eu gosto? Por que? Que pergunta estranha! Por que pergunta isso, minha menina?
– Nada. Por causa do seu olhar. Fez me lembrar do meu pai. Ele costumava ter esse olhar, às vezes.
– Ah, é? – a voz do reverendo era educada, mas tinha voltado a desviar os olhos para a folha caída.
– Sim, e eu costumava perguntar se ele gostava de ser pastor, tal como lhe perguntei agora.
O homem sorriu tristemente.
– E o que é que ele dizia?
– Claro que sempre dizia que sim, mas também dizia que não continuaria a ser pastor, nem um minuto a mais, se não fosse por causa dos textos alegres.
– Os quê? – os olhos do reverendo Ford deixaram a folha caída para se fixarem no rosto alegre de Pollyanna.
– Era assim que o pai costumava chamar-lhes – disse ela rindo. – É claro que na Bíblia não está escrito assim, mas são todos aqueles que começam com “Alegria”, “Sê contente no Senhor”, “Rejubila-te” ou “Cante de alegria”, e todos os outros, o senhor sabe mais do que eu. Uma vez, quando o pai se sentiu muito triste, contou todos. Existem mais de oitocentos desses textos.
– Oitocentos?
– Sim, textos que dizem para as pessoas ficarem contentes, para se alegrarem. Eram esses que papai chamava de textos alegres.
No rosto do reverendo estampou-se uma estranha expressão. Seus olhos caíram sobre o papel que tinha nas mãos que começava assim: “A maldição eterna desça sobre vós, escribas, fariseus e hipócritas!”
– Então o seu pai gostava desses textos alegres – murmurou ele.
– Sim – reafirmou Pollyanna enfaticamente. – Ele dizia que logo se sentia melhor desde o dia em que começou a procurá-los. Dizia que se Deus se deu ao incômodo de nos dizer oitocentas vezes para ficarmos contentes e alegres era porque desejava que fossemos alegres. E papai sentia-se envergonhado do tempo em que não era alegre. Depois disso, esses textos davam-lhe muito conforto quando as coisas corriam mal. Como por exemplo, quando as senhoras da Caridade se zangavam umas com as outras porque não concordavam com alguma coisa. E foram também esses textos que o fizeram pensar naquele jogo que começou a fazer comigo a propósito das muletas. Ele me disse que tinham sido os textos alegres que lhe tinham ensinado o jogo.
– E como é esse jogo? – perguntou o reverendo.
– O jogo consiste em encontrar sempre alguma coisa que nos faça ficar contentes. Como disse, comigo começou por causa das muletas.
E uma vez mais, Pollyanna contou a história dela e desta vez o homem a escutou muito atento, com olhos meigos.
Um pouco depois, Pollyanna e o reverendo desceram a colina de mãos dadas. Pollyanna estava radiante, gostava de conversar e estava muito contente por ter podido falar a vontade. O reverendo queria saber tantas coisas sobre o jogo, sobre o pai dela e sobre a sua antiga casa. Na base da colina, separaram-se. Pollyanna continuou por uma estrada e o reverendo por outra.
Nessa noite, o reverendo Paul Ford sentou-se no seu escritório para refletir. Sobre a mesa estavam muitas folhas de papel com as anotações do seu sermão. Diante dele tinha outra folha em branco onde pretendia escrever o sermão. Porém, o reverendo não estava pensando no que tinha escrito nem naquilo que pretendia escrever. A sua imaginação estava muito longe numa pequena cidade do oeste com um reverendo missionário pobre, doente, preocupado e quase só no mundo, mas que se debruçava sobre a Bíblia para descobrir quantas vezes Deus havia lhe dito para se “rejubilar e ficar contente”.
Passado um tempo, com um longo suspiro, o reverendo Paul Ford ergueu-se, regressando da longínqua cidade do oeste e preparou as folhas de papel para escrever.
“Mateus 23; 13-14 e 23” escreveu ele. Depois, com um gesto de impaciência, largou a caneta e pegou a revista deixada por sua mulher na mesa, alguns minutos antes. Os seus olhos cansados percorriam os vários parágrafos até que as seguintes palavras lhe prenderam a atenção:
“Um dia, um pai disse ao filho, depois de saber que ele tinha se recusado a ir buscar lenha para a mãe: ‘Tom, estou certo que ficarás muito contente em ir buscar lenha para a tua mãe.’ E, sem dizer mais nenhuma palavra, Tom foi. Por quê? Apenas porque o pai lhe manifestou diretamente que contava com que ele fizesse as coisas corretamente. Suponham que ele dissesse: ‘Tom, soube o que tu disseste à tua mãe esta manhã e me envergonho de ti. Vai buscar lenha imediatamente!’ Eu garanto que a caixa de lenha continuaria vazia.”
O reverendo continuou a ler, uma palavra aqui, outra linha ali, e logo adiante leu outro parágrafo assim: “O que os homens e as mulheres precisam é de encorajamento. A sua capacidade natural de resistência deve ser fortalecida e não enfraquecida. Em vez de acusar permanentemente uma pessoa pelos seus erros, fale antes das suas virtudes. Procure encorajá-la a abandonar os seus maus hábitos. Faça apelo às melhores qualidades, à verdadeira personalidade que saberá usar e vencer. A influência de uma personalidade cheia de esperança e de beleza, sempre disposta a ajudar, é contagiosa e pode revolucionar uma cidade inteira. As pessoas irradiam aquilo que está no seu espírito e nos seus corações. Se uma pessoa se sente boa e simpática, os seus vizinhos também se sentirão assim. Mas se ela xingar e criticar, os vizinhos retribuirão na mesma moeda e com maior intensidade. Se olhar para o que está mal, esperando o encontrar, é isso que obterá. Mas quando tiver certeza que o que vai encontrar será bom, também é isso que encontrará. Diga ao seu filho Tom que sabe que ele ficará contente em ir buscar lenha. Depois observe-o começar, satisfeito e interessado!”
O reverendo deixou cair a revista e levantou a cabeça. No momento seguinte estava de pé e percorria o quarto de um lado para outro. Passado um pouco, respirou fundo e sentou-se para escrever.
– Deus me ajudando, eu farei! Direi a todos os meus Toms que tenho certeza que eles ficarão muito contentes ao encher a caixa de lenha! Vou dar trabalho a todos e os deixar tão cheios de alegria que nem terão tempo de olhar para a caixa de lenha do vizinho!
Em seguida, pegou as anotações do sermão, rasgou todas as folhas, jogou-as para cima, de modo que no chão, ao lado da sua cadeira, podia se ler “A maldição eterna desça sobre vós...” e do outro lado “... escribas, fariseus e hipócritas!”, enquanto sobre o papel em branco na sua frente, sua caneta praticamente voava, escrevendo as primeiras frases do novo sermão.
Foi assim que o sermão do reverendo Paul Ford no domingo seguinte foi um verdadeiro apelo ao que havia de melhor em cada homem, cada mulher e cada criança que o ouviu. As palavras usadas no sermão eram de um trecho da Bíblia, um dos oitocentos que Pollyanna havia mencionado.

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