quinta-feira, 19 de setembro de 2013

12 - CERSEI



Oh, rezo aos Sete para que não permitam que chova na boda do rei - disse Jocelyn Swyft enquanto apertava os cordões do vestido da rainha.
- Ninguém quer chuva - Cersei respondeu. Quanto a ela, queria tempestade e gelo, ventos uivantes, trovões que abalassem as próprias pedras da Fortaleza Vermelha. Queria uma tempestade comparável à sua raiva. Mas, a Jocelyn disse: - Mais apertado. Mais apertado, sua tolinha afetada.
Era o casamento que a enfurecia, embora a garota Swyft de espírito lento fosse um alvo mais seguro. A posse do Trono de Ferro por Tommen não era suficientemente sólida para que se arriscasse a ofender Jardim de Cima. E assim não seria enquanto Stannis Baratheon controlasse Pedra do Dragão e Ponta Tempestade, enquanto Correrrio permanecesse em desafio, enquanto os homens de ferro percorressem os mares como lobos. Por isso Jocelyn teria de comer a refeição que Cersei teria preferido servir a Margaery Tyrell e à sua hedionda e encarquilhada avó.
Para quebrar o jejum, a rainha mandou pedir às cozinhas dois ovos cozidos, uma fatia de pão e um pote de mel. Mas, quando abriu o primeiro ovo e encontrou um pinto ensanguentado e meio formado lá dentro, sentiu o estômago agitar-se.
- Leve isto daqui e traga-me vinho quente com especiarias - ordenou a Senelle. O ar frio estava se instalando em seus ossos, e tinha um longo e desagradável dia à sua frente.
Jaime tampouco ajudou seu humor quando apareceu todo de branco, e ainda com a barba por fazer, para lhe contar como planejava evitar que o filho fosse envenenado.
- Terei homens nas cozinhas observando a preparação de cada prato - disse. - Os homens de manto dourado de Sor Addam escoltarão os criados quando trouxerem a comida para a mesa, para se certificarem de que nada foi adulterado no caminho. Sor Boros provará todos os pratos antes de Tommen pôr uma garfada na boca. E se tudo isso falhar, Meistre Ballabar estará sentado ao fundo do salão, com laxantes e antídotos para vinte venenos comuns. Tommen estará a salvo, eu lhe prometo.
- A salvo - as palavras tinham um gosto amargo na sua língua, Jaime não compreendia. Ninguém compreendia. Só Melara estivera na tenda para ouvir as ameaças resmungadas da velha bruxa, e agora estava, havia muito, morta. - Tyrion não matará da mesma forma duas vezes. É muito astucioso para isso. Pode estar debaixo do chão agora mesmo, escutando cada palavra que dizemos e fazendo planos para abrir a goela de Tommen.
- Supondo que estivesse - Jaime cogitou - quaisquer que sejam os planos que ele faça, continuará a ser pequeno e deformado. Tommen estará cercado pelos melhores cavaleiros de Westeros. A Guarda Real o protegerá.
Cersei lançou um relance para onde a manga da túnica branca do irmão fora pregada por cima do seu coto.
- Lembro-me de como esses seus magníficos cavaleiros guardaram bem Joffrey. Quero que fique com Tommen a noite toda, entendido?
- Porei um guarda à sua porta.
Ela pegou-lhe o braço:
- Um guarda, não. Você. E dentro do quarto.
- Para o caso de Tyrion sair engatinhando da lareira? Não o fará.
- Isto é o que você diz. Vai me dizer que encontrou todos os túneis secretos que há nessas paredes? -ambos sabiam que não. - Não deixarei Tommen sozinho com Margaery nem por meio segundo.
- Eles não estarão a sós. As primas dela estarão com eles.
- E você também. Eu ordeno, em nome do rei - Cersei não queria que Tommen e a esposa sequer partilhassem uma cama, mas os Tyrell tinham insistido.
“Marido e mulher devem dormir juntos” disse a Rainha dos Espinhos, “mesmo que não façam mais do que dormir. Certamente a cama de Sua Graça é suficientemente grande para dois” A Senhora Alerie servira de eco à sogra.
“Que os pequenos se aqueçam durante a noite. Isto os aproximará. Margaery partilha frequentemente as mantas com as primas. Cantam e brincam e murmuram segredos umas às outras quando as velas são apagadas."
“Que delícia” disse Cersei,“Que continuem assim, à vontade. Na Arcada das Donzelas."
“Tenho certeza de que Sua Graça sabe o que é melhor” disse a Senhora Olenna à Senhora Alerie. "Afinal de contas, é a mãe do garoto, disto temos todos certeza. E certamente podemos concordar quanto à noite da boda? Um homem não deve dormir separado de sua esposa na noite do casamento. Se o fizerem, trará má sorte à união.”
Um dia ainda hei de lhe ensinar o significado de “má sorte , a rainha jurou.
“Margaery pode partilhar o quarto de Tommen por essa noite” foi forçada a dizer. “Mas nada mais.”
“Vossa Graça é tão graciosa", respondeu a Rainha dos Espinhos, e todos trocaram sorrisos.
Os dedos de Cersei estavam enterrados no braço de Jaime com força suficiente para deixar manchas negras.
- Preciso de olhos dentro daquele quarto -ela disse.
- Para ver o quê? - ele quis saber. - Não pode haver perigo de uma consumação. Tommen está longe de ter idade para isto.
- E Ossifer Plumm estava, de longe, morto demais, mas isto não o impediu de gerar um filho, não é mesmo?
O irmão fez uma expressão de incompreensão:
- Quem foi Ossifer Plumm? O pai do Lorde Philip, ou... quem?
Ele é quase tão ignorante quanto Robert. Tinha todos os miolos na mão da espada.
- Esqueça Plumm, lembre-se só do que lhe disse. Jure que ficará ao lado de Tommen até o sol nascer.
- Às ordens - ele respondeu, como se seus medos fossem infundados. - Ainda pretende continuar com o incêndio da Torre da Mão?
- Depois do banquete - era a única parte das festividades do dia que Cersei achava que apreciaria. - O senhor nosso pai foi assassinado naquela torre. Não suporto olhá-la. Se os deuses forem bons, o fogo poderá fazer sair umas tantas ratazanas das ruínas.
Jaime fez rolar os olhos:
- Tyrion, você quer dizer.
- Ele, Lorde Varys e o tal carcereiro.
- Se algum dos três estivesse escondido na torre, já o teríamos encontrado. Tive um pequeno exército atacando-a com picaretas e martelos. Derrubamos paredes, arrancamos soalhos, e descobrimos meia centena de passagens secretas.
- E tanto quanto sabe pode haver mais meia centena - algumas das galerias secretas tinham se revelado tão pequenas que Jaime necessitara de pajens e moços de estrebaria para explorá-las. Tinha sido encontrada uma passagem até as celas negras e um poço de pedra que parecia não ter fundo. Encontraram um aposento cheio de crânios e ossos amarelecidos, e quatro sacos de baças moedas de prata do reinado do primeiro Rei Viserys, e ainda mil ratazanas... Mas nem Tyrion nem Varys faziam parte desse número, e, por fim, Jaime insistira em pôr termo à busca. Um rapaz tinha ficado entalado numa passagem estreita e precisou ser puxado pelos pés, aos gritos. Outro caíra por um poço e quebrara as pernas. Dois guardas desapareceram ao explorar um túnel lateral, e alguns dos outros juravam que conseguiam ouvir seus tênues chamados através da pedra, mas quando os homens de Jaime deitaram abaixo a parede, descobriram apenas terra e pedra solta do outro lado - O Duende é pequeno e astucioso. Pode ainda estar nas paredes. Se estiver, o fogo o fará sair.
- Mesmo se Tyrion ainda estiver escondido no castelo, não estará na Torre da Mão. Nós a reduzimos a uma casca.
- Bem, gostaria que pudéssemos fazer o mesmo com o resto desta porcaria de castelo - Cersei retrucou. - Depois da guerra, pretendo construir um novo palácio na outra margem do rio - sonhara com aquilo na noite da antevéspera, um magnífico castelo branco rodeado por bosques e jardins, a longas léguas dos maus cheiros e do ruído de Porto Real. - Esta cidade é uma fossa. Por moeda de prata, mudava a corte para Lanisporto e governaria a partir de Rochedo Casterly.
- Isto seria uma loucura ainda maior do que queimar a Torre da Mão. Enquanto Tommen estiver sentado no Trono de Ferro, o reino o vê como o verdadeiro rei. Esconda-o por baixo do Rochedo e ele se transformará em mais um pretendente ao trono, igualzinho a Stannis.
- Estou consciente disto - a rainha falou em tom penetrante. - Disse que queria mudar a corte para Lanisporto, não que o faria. Sempre foi assim tão lento, ou será que perder uma mão o deixou estúpido?
Jaime ignorou aquilo:
- Se as chamas se espalharem para lá da torre, podem acabar queimando o castelo, quer queira quer não. O fogovivo é traiçoeiro.
- Lorde Hallyne assegurou-me de que seus piromantes são capazes de controlar o fogo - a Guilda dos Alquimistas andava fazendo mais fogovivo havia uma quinzena. - Que todo o Porto Real veja as chamas. Será uma lição para nossos inimigos.
- Agora soa como Aerys.
As narinas de Cersei dilataram-se:
- Cuidado com a língua, sor.
- Também te amo, querida irmã.
Com o pude alguma vez amar essa miserável criatura? Perguntou a si mesma depois de Jaime ter ido embora. Ele era seu gêmeo, sua sombra, sua outra metade, sussurrou outra voz. Outrora, talvez, pensou. Mas não mais. Transformou-se num estranho para mim.
Comparado com a magnificência das bodas de Joffrey, o casamento do Rei Tommen foi uma coisa modesta e pequena. Ninguém desejava outra cerimônia suntuosa, especialmente a rainha, e ninguém queria pagá-la, principalmente os Tyrell. E, assim, o jovem rei tomou Margaery Tyrell como esposa no septo real da Fortaleza Vermelha, com menos de cem convidados presentes, em vez dos milhares que tinham visto o irmão unir-se à mesma mulher.
A noiva estava encantadora, alegre e bela, o noivo ainda tinha cara de bebê e era rechonchudo. Recitou os votos numa voz aguda e infantil, prometendo seu amor e devoção à filha duas vezes viúva de Mace Tyrell. Margaery trazia o mesmo vestido que usara para se casar com Joffrey, uma confecção arejada de pura seda de cor marfim, renda de Myr, e pérolas. Cersei, por seu lado, ainda estava de negro, em sinal de luto pelo primogênito assassinado. Sua viúva podia ficar satisfeita com os risos, as bebidas e as danças e com pôr de lado todas as memórias de Joff, mas a mãe não o esqueceria com tanta facilidade.
Isto está errado, pensou. Foi cedo demais. Um ano, dois anos poderiam ser tempo suficiente. Jardim de Cima devia ter se contentado com um noivado. Cersei fitou o local onde Mace Tyrell se encontrava entre a esposa e a mãe. Forçou-me a essa caricatura de casamento, senhor, e disto não esquecerei.
Quando chegou o momento de trocar os mantos, a noiva caiu graciosamente sobre os joelhos e Tommen a cobriu com a pesada monstruosidade de pano de ouro com que Robert cobrira Cersei no dia de seu casamento, com o veado coroado de Baratheon trabalhado nas costas em contas de ônix. Cersei quis empregar o belo manto de seda vermelha que Joffrey usara.
“Foi o manto que o senhor meu pai usou quando se casou com a senhora minha mãe” explicou aos Tyrell, mas a Rainha dos Espinhos também a isto levantou obstáculos.
“ Aquela coisa velha?” disse a velha. “ mim parece bastante desfiado... e, se me perdoa o atrevimento, de mau agouro. E não seria um veado mais apropriado para o filho legítimo do Rei Robert? No meu tempo, uma noiva punha as cores do marido, não da senhora sua sogra.”
Graças a Stannis e à sua nojenta carta, já havia rumores demais a propósito da linhagem de Tommen. Cersei não se atrevia a atiçar as fogueiras insistindo que envolvesse a noiva no carmesim Lannister, e, portanto, cedeu com a maior simpatia que conseguiu arranjar. Mas a visão de todo aquele ouro e ônix ainda a enchia de ressentimento. Quanto mais der a esses Tyrell, mais eles exigirão de nós.
Quando todos os votos foram proferidos, o rei e sua nova rainha saíram do septo para aceitar felicitações.
- Westeros tem agora duas rainhas, e a nova é tão bela quanto a velha - trovejou Lyle Crakehall, um palerma de um cavaleiro que frequentemente fazia Cersei se lembrar de seu falecido e não lamentado marido. Teve vontade de esbofeteá-lo. Gyles Rosby fez menção de lhe beijar a mão, e conseguiu apenas tossir-lhe nos dedos. Lorde Redwyne beijou-a numa bochecha e Mace Tyrell em ambas. O Grande Meistre Pycelle disse a Cersei que não perdera um filho, mas ganhara uma filha. Pelo menos foi poupada dos abraços lacrimosos da Senhora Tanda. Nenhuma das mulheres Stokeworth aparecera, e pelo menos por isso a rainha sentia-se grata.
Entre os últimos encontrava-se Kevan Lannister.
- Ouvi dizer que pretende nos deixar para outro casamento - disse-lhe a rainha.
- Pedra-Dura expulsou os desertores do castelo de Darry - respondeu-lhe o tio. - A noiva de Lancel nos espera lá.
- A senhora sua esposa irá se juntar ao senhor para as núpcias?
- As terras fluviais estão ainda muito perigosas. A escumalha de Vargo Hoat continua a monte, e Beric Dondarrion tem andado a enforcar Freys. É verdade que Sandor Clegane se juntou a ele?
Como ele sabe disso?
- Há quem diga que sim. Os relatórios são confusos - a ave tinha chegado na noite anterior, vinda de uma septeria erguida numa ilha situada perto da foz do Tridente. A vila vizinha de Salinas fora selvaticamente atacada por um bando de fora da lei, e alguns dos sobreviventes afirmavam que um brutamontes rugidor, com um elmo em forma de cabeça de cão, encontrava-se entre os assaltantes. Ele teria supostamente matado uma dúzia de homens e violado uma garota de doze anos. - Sem dúvida Lancel estará ansioso para dar caça quer a Clegane, quer a Lorde Beric, a fim de restaurar a paz do rei nas terras fluviais.
Sor Kevan fitou-a nos olhos por um momento:
- Meu filho não é homem para lidar com Sandor Clegane.
Pelo menos nisso concordamos.
- O pai dele poderia ser.
A boca do tio endureceu:
- Se meu serviço não é necessário no Rochedo...
Seu serviço era necessário aqui. Cersei nomeara o primo Damion Lannister castelão para o Rochedo, e outro primo, Sor Daven Lannister, Protetor do Oeste. A insolência tem seu preço, tio.
- Traga-nos a cabeça de Sandor, e sei que Sua Graça ficará muito grato. Joff talvez gostasse do homem, mas Tommen sempre teve medo dele... com bons motivos, ao que parece.
- Quando um cão se torna mau, a culpa é do dono - Sor Kevan observou. Então se virou e foi embora.
Jaime a acompanhou até o Pequeno Salão, onde o banquete estava sendo preparado.
- Eu o culpo por tudo isso - murmurou enquanto caminhavam. - Que casem, disse. Margaery devia estar de luto por Joffrey, e não se casando com o irmão. Devia estar tão doente de dor como eu. Não acredito que seja donzela. Renly tinha um pau, não tinha? Era irmão de Robert, com certeza tinha um pau. Se aquela velha repugnante acha que vou permitir que meu filho...
- Vai se ver livre da Senhora Olenna bem depressa - Jaime a interrompeu calmamente. - Vai regressar a Jardim de Cima amanhã.
- Isto é o que ela diz - Cersei não confiava em nenhuma promessa Tyrell.
- Ela vai embora - o irmão insistiu. - Mace levará metade das forças Tyrell para Ponta Tempestade, e a outra metade regressará à Campina com Sor Garlan, para concretizar sua pretensão a Águas Claras. Mais alguns dias e as únicas rosas que restarão em Porto Real serão Margaery e suas senhoras, e mais alguns guardas.
- E Sor Loras. Ou será que se esqueceu de seu Irmão Juramentado?
- Sor Loras é um cavaleiro da Guarda Real.
- Sor Loras é tão Tyrell que mija água de rosas. Nunca devia ter lhe sido dado um manto branco.
- Eu não o teria escolhido, admito. Ninguém se incomodou em me consultar. Loras servirá suficientemente bem, penso eu. Depois de um homem envergar aquele manto, este muda aquele.
- Certamente mudou você, e não foi para melhor.
- Também te amo, querida irmã - segurou a porta para ela entrar e a levou para a mesa elevada e para sua cadeira ao lado do rei. Margaery ficaria do outro lado de Tommen, no lugar de honra. Quando entrou, de braço dado com o pequeno rei, fez questão de parar para beijar Cersei no rosto e de atirar os braços em volta dela.
- Vossa Graça - disse a garota, com um descaramento do tamanho do mundo - sinto-me como se agora tivesse uma segunda mãe. Rezo para que nos tornemos muito próximas, unidas pelo amor por seu querido filho.
- Eu amei ambos os meus filhos.
- Joffrey também se encontra nas minhas preces - disse Margaery. - Amei-o muito, embora nunca tenha tido oportunidade de conhecê-lo.
Mentirosa, a rainha pensou. Se o tivesse amado nem que fosse por um instante, não teria tido essa pressa indecorosa em se casar com o irmão. A coroa dele foi tudo o que alguma vez quis. Por moeda de prata, teria esbofeteado a corada noiva ali mesmo no estrado, à vista de metade da corte.
Tal como o serviço religioso, o banquete de casamento foi modesto. A Senhora Alerie encarregara-se de todos os preparativos; Cersei não teve estômago para voltar a enfrentar aquela intimidante tarefa, depois do modo como terminara o casamento de Joffrey. Só foram servidos sete pratos. O Abetouro e o Rapaz Lua entretiveram os convidados entre os pratos, e músicos tocaram enquanto comiam. Ouviram flautistas e rabequistas, um alaúde e um pífaro, uma harpa vertical. O único cantor era um favorito qualquer da Senhora Margaery, um fogoso jovem galo cantante todo vestido em tons de azulão que chamava a si mesmo Bardo Azul. Cantou algumas canções de amor e se retirou.
- Que desapontamento - protestou a Senhora Olenna em voz alta. - Esperava ouvir “ Chuvas de Castamere”
Sempre que Cersei olhava para a velha, o rosto de Maggy, a Rã, parecia pairar diante de seus olhos, enrugada, terrível e sábia. Todas as velhas se parecem umas com as outras, tentou dizer a si mesma, é só isso. Na verdade, a feiticeira corcunda não se parecia em nada com a Rainha dos Espinhos, mas de algum modo a visão do desagradável sorrisinho da Senhora Olenna era o bastante para levar Cersei de volta à tenda de Maggy. Ainda conseguia se lembrar do cheiro, recendente de estranhas especiarias orientais, e da moleza das gengivas de Maggy quando sugara o sangue do dedo de Cersei. Rainha será, prometera a velha, com os lábios ainda úmidos, vermelhos e brilhantes, até chegar outra, mais jovem e bela, para te derrubar e tirar tudo aquilo que lhe é querido.
Cersei lançou um relance para além de Tommen, para onde Margaery encontrava-se sentada, rindo com o pai. Ela é bastante bonita, teve de admitir, mas a maior parte daquilo é juventude. Até as garotas do campo são bonitas numa certa idade, quando ainda são frescas, inocentes e intactas, e a maior parte delas tem os mesmos cabelos e olhos castanhos que ela possui. Só um tolo afirmaria alguma vez que é mais bela do que eu. Contudo, o mundo estava cheio de tolos. E a corte do filho também.
Seu humor não melhorou quando Mace Tyrell ergueu-se para dar início aos brindes. Levantou bem alto um cálice de ouro, sorrindo para sua filhinha bonita, e, numa voz trovejante, disse:
- Ao rei e à rainha! - todas as outras ovelhas baaaaaaliram com ele.
- Ao rei e à rainha! - gritaram, batendo as taças. - Ao rei e à rainha! - Cersei não teve alternativa exceto beber com eles, enquanto desejava que os convivas não tivessem mais do que um único rosto, para que lhes pudesse atirar o vinho aos olhos e lhes lembrasse de que ela era a verdadeira rainha. O único dos bajuladores Tyrell que pareceu se lembrar dela foi Paxter Redwyne, que se ergueu para fazer seu brinde, cambaleando um pouco.
- A ambas as nossas rainhas! - chilreou. - À rainha nova e à velha!
Cersei bebeu várias taças de vinho e foi fazendo a comida dar voltas em um prato de ouro, Jaime comeu ainda menos, e raramente se dignou a ocupar seu lugar no estrado. Está tão ansioso quanto eu, compreendeu a rainha enquanto o observava percorrendo o salão, afastando as tapeçarias com a mão boa a fim de se assegurar de que ninguém estava escondido atrás delas. Ela sabia que havia Lanceiros Lannister a postos em volta do edifício. Sor Osmund Kettleblack guardava um a porta, Sor Meryn Trant a outra. Balon Swann estava em pé atrás da cadeira do rei, e Loras Tyrell atrás da da rainha. Não tinham sido autorizadas espadas no banquete, salvo aquelas que os cavaleiros brancos traziam.
Meu filho está em segurança, disse Cersei a si mesma. Ninguém pode vir atacá-lo, aqui não, não agora. M as todas as vezes que olhava para Tommen, via Joffrey arranhando a garganta. E quando o garoto começou a tossir, o coração da rainha parou de bater por um momento. Na pressa de chegar até ele, atirou ao chão uma criada.
- Foi só um pouco de vinho que desceu pelo lugar errado - garantiu-lhe Margaery Tyrell, sorrindo. Pôs a mão de Tommen entre as suas e beijou-lhe os dedos. - O meu amorzinho tem de beber golinhos pequenos. Viu? Quase matou sua mãe de susto.
- Lamento, mãe -Tommen desculpou-se, envergonhado.
Aquilo era mais do que Cersei conseguia suportar. Não posso deixar que me vejam chorar, pensou, quando sentiu as lágrimas subindo-lhe aos olhos. Passou por Sor Meryn Trant e saiu para a passagem dos fundos. Sozinha, sob uma vela de sebo, permitiu-se um soluço trêmulo e depois outro. Uma mulher pode chorar, mas uma rainha não.
- Vossa Graça? - disse uma voz atrás dela. - Intrometo-me?
Era um a voz de mulher, temperada com os sotaques do leste. Por um instante, temeu que Maggy, a Rã, estivesse falando-lhe do túmulo. Mas era apenas a esposa de Merryweather, a beldade de olhos escuros e oblíquos que Lorde Orton tinha desposado durante seu exílio e que trouxera consigo para Mesalonga.
- O Pequeno Salão está tão abafado - Cersei ouviu-se falando. - A fumaça estava fazendo meus olhos lacrimejar.
- Os meus também, Vossa Graça - a Senhora Merryweather era tão alta quanto a rainha, mas em vez de ser clara, era escura, com cabelos de corvo, pele cor de oliva e uma década mais nova. Ofereceu à rainha um lenço azul-claro de seda e renda. - Também tenho um filho. Sei que chorarei rios no dia em que ele se casar.
Cersei limpou o rosto, furiosa por ter deixado que lhe vissem as lágrimas.
- Obrigada - disse friamente.
- Vossa Graça, eu... - a mulher de Myr abaixou a voz. - Há algo que deve saber. Sua aia foi comprada e paga. Ela conta à Senhora Margaery tudo o que faz.
- Senelle? - uma fúria súbita retorceu a barriga da rainha. Não haveria ninguém em que pudesse confiar? - Tem certeza disso?
- Mandei-a seguir. Margaery nunca se encontra diretamente com ela. As primas são seus corvos, levam-lhe mensagens. Por vezes Elinor, por vezes Alia, por vezes Megga. Todas são próximas a Margaery como irmãs. Encontram-se no septo e fingem rezar. Coloque um homem seu amanhã na galeria e verá Senelle sussurrar a Megga sob o altar da Donzela.
- Se isto for verdade, por que resolveu me contar? É uma das companheiras de Margaery. Por que haveria de traí-la? - Cersei aprendera a suspeitar no colo do pai; aquilo podia perfeitamente ser alguma armadilha, uma mentira destinada a semear a discórdia entre o leão e a rosa.
- Mesalonga pode estar juramentada a Jardim de Cima - respondeu a mulher, com uma sacudidela em seus cabelos negros - mas eu sou de Myr, e minha lealdade pertence ao meu marido e ao meu filho. Quero tudo o que for melhor para eles.
- Estou vendo - na proximidade da passagem, a rainha conseguia sentir o cheiro do perfume da outra mulher, um odor almiscarado que falava de musgo, de terra e de flores silvestres. Por baixo, cheirou-lhe a ambição. Ela prestou testemunho no julgamento de Tyrion, Cersei lembrou-se de súbito. Viu o Duende pôr o veneno na taça de Joff, e não teve medo de dizê-lo, - Examinarei este assunto - prometeu. - Se o que diz for verdade, será recompensada - e se estiver mentido, mandarei que te cortem a língua, e ficarei também com as terras e o ouro do senhor seu marido.
- Vossa Graça é gentil. E bela - Senhora Merryweather sorriu. Tinha dentes brancos, e lábios cheios e escuros.
Quando a rainha regressou ao Pequeno Salão, foi encontrar o irmão andando inquieto de um lado para o outro.
- Foi só um gole de vinho que seguiu pelo lugar errado. Embora também tenha me sobressaltado.
- Tenho na barriga um nó tão apertado que não consigo comer - rosnou-lhe. - O vinho conhece a bílis. Este casamento foi um erro.
- Este casamento foi necessário. O garoto está em segurança.
- Idiota. Nunca ninguém que use uma coroa está em segurança - lançou um olhar pelo salão. Mace Tyrell ria entre seus cavaleiros. Lorde Redwyne e Lorde Rowan conversavam com ar furtivo. Sor Kevan encontrava-se sentado ao fundo do salão, cismando, de olhos fitos no vinho, enquanto Lancel murmurava qualquer coisa a um septão. Senelle deslocava-se ao longo da mesa, enchendo as taças das primas da rainha com vinho vermelho como sangue. O Grande Meistre Pycelle adormecera. Não há ninguém com quem possa contar, nem mesmo Jaime, compreendeu sombriamente. Terei de varrer todos para longe e cercar o rei de gente minha.
Mais tarde, depois de terem sido servidos os doces, as nozes e o queijo, e de a mesa ter sido limpa, Margaery e Tommen deram início às danças, parecendo mais do que um pouco ridículos enquanto rodopiavam pelo salão. A garota Tyrell era uns bons quarenta e cinco centímetros mais alta do que seu pequeno marido, e Tommen era, quando muito, um dançarino desastrado, sem nenhuma da graça fácil de Joffrey. Contudo, fez sinceramente seu melhor e pareceu não se dar conta do espetáculo que estava dando. Assim que a Donzela Margaery o despachou, apareceram as primas, uma atrás da outra, insistindo que Sua Graça também tinha de dançar com elas. Antes de acabarem , hão de fazê-lo tropeçar e arrastar os pés como um bobo, Cersei pensou com ressentimento enquanto observava. Metade da corte rirá dele às suas costas.
Enquanto Alia, Elinor e Megga se revezavam com Tommen, Margaery deu uma volta pelo salão com o pai, e depois outra com o irmão Loras. O Cavaleiro das Flores vestia seda branca, com um cinto de rosas douradas na cintura e uma rosa de jade prendendo-lhe o manto. Podiam ser gêmeos, pensou Cersei ao vê-los. Sor Loras era um ano mais velho do que a irmã, mas tinha os mesmos grandes olhos castanhos, os mesmos densos cabelos castanhos que lhes caíam em grandes cachos até os ombros, a mesma pele lisa e imaculada. Uma bela colheita de espinhas lhe ensinaria alguma humildade. Loras era mais alto e tinha uns traços de macia penugem castanha no rosto, e Margaery tinha formas de mulher, mas, fora isso, eram mais parecidos do que ela e Jaime. Isto também a aborreceu.
Seu próprio gêmeo interrompeu-lhe o devaneio.
- Vossa Graça honraria seu cavaleiro branco com uma dança?
Cersei lançou-lhe um olhar fulminante:
- E tê-lo apalpando-me com esse coto? Não. Mas vou deixar que me encha a taça de vinho. Se achar que consegue fazer sem derramar.
- Um aleijado como eu? Não é provável - ele se afastou e fez outro circuito pelo salão.
Cersei teve de encher sua taça ela mesma.
Também negou uma dança a Mace Tyrell, e mais tarde a Lancel. Os outros entenderam a sugestão, e mais ninguém a abordou. Nossos firmes amigos e leais senhores. Nem sequer podia confiar nos ocidentais, espadas e vassalos juramentados ao pai. Se seu próprio tio andava conspirando com seus inimigos...
Margaery dançava com a prima Alia, Megga com Sor Tallad, o Alto. A outra prima, Elinor, partilhava uma taça de vinho com o jovem e atraente Bastardo de Derivamarca, Aurane Waters. Não era a primeira vez que a rainha reparava em Waters, um jovem esguio com olhos cinza-esverdeados e longos cabelos loiros prateados. Na primeira vez que o viu, durante meio segundo quase pensou que Rhaegar voltara das cinzas. É o cabelo, disse a si mesma. Não tem nem metade da beleza que Rhaegar tinha. O rosto é muito estreito, e tem aquela cova no queixo. Todavia, os Velaryon provinham de antiga linhagem valiriana, e alguns possuíam os mesmos cabelos prateados dos reis-dragão de antigamente.
Tommen regressou ao seu lugar e pôs-se a mordiscar um bolinho de maçã. O lugar do tio encontrava-se vazio. A rainha finalmente o descobriu a um canto, numa intensa conversa com o filho de Mace Tyrell, Garlan. O que eles têm para discutir? A Campina podia chamar galante Sor Garlan, mas Cersei não confiava mais nele do que em Margaery ou em Loras. Não esquecera a moeda de ouro que Qyburn descobrira debaixo do penico do carcereiro. Uma mão de ouro de Jardim de Cima. E Margaery anda me espionando. Quando Senelle apareceu para lhe encher a taça de vinho, a rainha teve de resistir à tentação de agarrá-la pela garganta e esganá-la. Não ouse sorrir para mim, sua cadelinha traiçoeira. Antes de acabar com você, vai suplicar por misericórdia.
- Parece-me que Sua Graça já bebeu vinho suficiente para uma noite - ouviu o irmão Jaime dizer.
Não, pensou a rainha. Nem todo o vinho do mundo seria suficiente para me ajudar a passar por este casamento. Ergueu-se tão depressa que quase caiu. Jaime a pegou pelo braço e a equilibrou. Ela se soltou e bateu palmas. A música morreu, as vozes aquietaram-se.
- Senhores e senhoras - chamou Cersei em voz alta - se tiverem a bondade de ir até lá fora comigo, acenderemos uma vela para celebrar a união de Jardim de Cima e Rochedo Casterly, e uma nova era de paz e abundância para nossos Sete Reinos.
A Torre da Mão erguia-se escura e abandonada, mostrando apenas buracos escancarados onde outrora tinham estado portas de carvalho e janelas providas de portadas. Mas mesmo arruinada e desrespeitada, dominava o pátio exterior. Enquanto os convivas jorravam do Pequeno Salão, passavam por sua sombra. Quando Cersei olhou para cima, viu as ameias fortificadas da torre abocanhando uma lua cheia de outono e sentiu uma curiosidade momentânea de saber quantas Mãos de quantos reis teriam feito dela seu lar durante os últimos três séculos.
A cem metros da torre, inspirou fundo para impedir a cabeça de girar.
- Lorde Hallyne! Pode começar.
Hallyne, o piromante, disse “Hmmmmmm" e brandiu o archote que trazia. Os arqueiros nas muralhas retesaram seus arcos e dispararam uma dúzia de flechas incendiárias através das janelas escancaradas.
A torre incendiou-se com um uoch. Em meio segundo, seu interior ficou vivo de luz, vermelha, amarela, laranja... e verde, um verde-escuro de mau agouro, a cor da bílis, do jade e do mijo de piromante. “Substância” era o nome que os alquimistas lhe davam, mas as pessoas comuns chamavam-lhe fogovivo. Cinquenta jarros tinham sido colocados dentro da Torre da Mão, com lenha e barris de piche, e a maior parte das posses terrenas de um anão chamado Tyrion Lannister.
A rainha conseguia sentir o calor daquelas chamas verdes. Os piromantes diziam que só três coisas ardiam com mais calor do que sua substância: o fogo de dragão, os fogos subterrâneos e o sol de verão. Algumas das senhoras arfaram quando as primeiras chamas surgiram nas janelas, lambendo as paredes exteriores como longas línguas verdes. Outros soltaram vivas e fizeram brindes.
E belo, pensou, tão belo como Joffrey, quando o puseram em meus braços. Nunca nenhum homem a fizera se sentir tão bem como se sentira quando ele abocanhou seu mamilo para mamar.
Tommen fitava o incêndio de olhos esbugalhados, tão fascinado quanto assustado, até que Margaery lhe sussurrou qualquer coisa ao ouvido e o fez rir. Alguns dos cavaleiros puseram-se a fazer apostas quanto ao tempo que a torre demoraria para ruir. Lorde Hallyne murmurava consigo mesmo e balançava sobre os calcanhares.
Cersei pensou em todas as Mãos do Rei que conhecera ao longo dos anos: Owen Merryweather, Jon Connington, Qarlton Chelsted, Jon Arryn, Eddard Stark, o irmão Tyrion. E o pai, Lorde Tywin Lannister, acima de todos, o pai. Estão todos agora ardendo, disse a si mesma, saboreando a ideia. Estão mortos e ardem , todos eles, com todas as suas tramas, maquinações e traições. Este é o meu dia. É o meu castelo, e o meu reino.
A Torre da Mão soltou um súbito gemido, tão forte que todas as conversas pararam abruptamente. Pedra rachou e fendeu-se, e parte das ameias superiores caiu e atingiu o chão com um estrondo que abalou a colina, gerando uma nuvem de poeira e fumo. Quando o ar fresco penetrou pela alvenaria quebrada, o fogo cresceu para o alto. Chamas verdes saltaram para o céu e rodopiaram em volta umas das outras. Tommen encolheu-se, até que Margaery pegou sua mão e disse:
- Olhe, as chamas estão dançando. Tal como nós fizemos, meu amor.
- Estão mesmo - a voz do garoto estava cheia de espanto. - Mãe, olhe, elas estão dançando.
- Estou vendo. Lorde Halline, o incêndio durará quanto tempo?
- Toda a noite, Vossa Graça.
- Faz uma vela bonita, admito - disse a Senhora Olenna Tyrell, apoiada à bengala entre o Esquerdo e o Direito. - Emana luz suficiente para irmos dormir em segurança, julgo eu. Ossos velhos cansam-se, e esses jovens já tiveram excitação suficiente para uma noite. Está na hora de o rei e a rainha serem postos na cama.
- Sim - Cersei chamou Jaime com um gesto. - Senhor Comandante, escolte Sua Graça e sua pequena rainha para suas almofadas, por favor.
- As suas ordens. Você também?
- Não é necessário - Cersei sentia-se demasiado viva para dormir. O fogovivo a purificava, queimava sua raiva e seu medo, enchendo-a de resolução. - As chamas são tão bonitas. Quero admirá-las durante algum tempo.
Jaime hesitou:
- Não devia ficar sozinha.
- Não estarei sozinha. Sor Osmund pode ficar comigo e manter-me a salvo. O seu Irmão Juramentado.
- Se agradar a Vossa Graça - Kettleblack dispôs-se.
- Agrada-me - Cersei deu-lhe o braço, e, lado a lado, ficaram olhando a fúria do fogo.  

Um comentário:

  1. Cersei é estupida dando toda essa bola com o Sor Osmund na frente do Jamie.

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