Toda a
cidade de Beldingsville fervilhava de excitação. Desde que
Pollyanna Whitier chegou do Sanatório a andar nunca houve tanta
conversa nos quintais e nas ruas. Também hoje, o centro de interesse
era Pollyanna. Mais uma vez regressava a casa. Mas seria uma
Pollyanna muito diferente e também um regresso diferente!
Pollyanna
tinha agora vinte anos. Durante seis, passara os Invernos na Alemanha
e os Verões a viajar preguiçosamente com o Dr. Chilton e a tia
Polly. Só uma vez em todo esse tempo estivera em Beldingsville, num
curto período de quatro semanas, no Verão em que tinha dezasseis
anos. Agora regressava a casa para ficar, segundo se dizia, ela e a
tia Polly.
O médico
não viria com elas. Seis meses antes a cidade recebera, consternada,
a notícia de que ele tinha morrido subitamente. Beldingsville
esperara então que Mrs. Chilton e Pollyanna regressassem
imediatamente ao velho lar, mas não. Soube-se, sim, que a viúva e a
sobrinha permaneceriam no estrangeiro durante mais tempo. Até se
disse que Mrs. Chilton procurava, assim, esquecer a sua grande dor.
Porém,
em breve começaram a correr rumores pela cidade de que
financeiramente as coisas não corriam bem para Mrs. Polly Chilton.
Certas ações que se sabia serem a base da propriedade dos
Harrington tinham-se desvalorizado drasticamente. Outros
investimentos, de acordo com as informações existentes, estavam em
condições muito precárias. Da propriedade do médico pouco se
podia esperar. Ele nunca fora um homem rico e as suas despesas tinham
sido bastante pesadas nos últimos seis anos. Por isso, Beldingsville
não ficou surpreendida ao saber que Mrs. Chilton e Pollyanna iam
regressar a casa a menos de seis meses após a morte do médico.
Voltou o
velho solar de Harrington, há tanto tempo fechado e silencioso, a
apresentar-se de janelas e portas abertas. Também Nancy, que agora
se chamava Mrs. Thimoty Durgin, se aplicou a limpar o pó e puxar o
lustro até a velha casa se apresentar impecável.
- Não,
não tenho nenhumas instruções para fazer isto. - Explicou Nancy
aos amigos e vizinhos curiosos que paravam no portão ou se atreviam
a entrar no pátio.
Nancy
tinha a chave, evidentemente, e fora arejar a casa e pôr as coisas
em ordem. Mrs. Chilton tinha escrito a Mrs. Durgin, dizendo que ela e
Miss Pollyanna chegavam na sexta-feira seguinte, e pedindo-lhe o
favor de arejar os quartos e as roupas e deixar a chave debaixo do
tapete da porta.
-
Imagine-se, debaixo do tapete! Como se pudesse deixá-las chegar cá,
com tudo abandonado e eu longe daqui, sentada no meu alpendre como se
fosse uma pessoa importante e sem coração! Como se elas, coitadas,
não tivessem já sofrido bastante e a dor de chegarem a esta casa
sozinhas, sem o médico! E ainda por cima sem dinheiro. É o que se
diz! Como me faz pena! Nem quero imaginar Miss Polly, quero dizer
Mrs. Chilton, ficar pobre! Não consigo pensar nisso. Não me
conformo, pronto!
Talvez
Nancy nunca tivesse falado disto a ninguém com tanto interesse como
o fez com um jovem de boa aparência, alto, de olhar franco e sorriso
encantador, que bateu à porta às dez da manhã na quinta-feira.
Apesar de se sentir embaraçada, sem saber como o tratar, pois ainda
hesitava entre Mr. Jimmy, ou Mr. Bean, ou Mr. Pendleton. Até pôs o
jovem a rir com o seu nervosismo.
- Não
interessa, Nancy! Chame-me como lhe der mais jeito - brincou ele. -
Já sei o que queria saber, ou seja, que Mrs. Chilton e a sobrinha
são esperadas amanhã.
- Sim
senhor, é verdade - respondeu Nancy. Nem calcula como estou contente
por voltar a vê- las, apesar de não virem nas melhores condições.
- Sim, eu
sei, compreendo - concordou o jovem gravemente. - Suponho que quanto
a esse aspecto não podemos fazer nada. Mas estou satisfeito por você
estar a fazer o que faz. Isso ajudará muito - concluiu ele com um
sorriso, afastando-se montado no seu cavalo.
Nas
escadas, Nancy dizia para consigo própria: "não estou nada
admirada, Mr. Jimmy", enquanto olhava a figura simpática do
jovem montado a afastar-se. "Não me admira nada que ande à
procura de Miss Pollyanna. Já há muito que eu disse que havia de
chegar a altura. E então agora que se tornou tão simpático e alto.
Espero que venha a ser como eu penso, como consta dos livros. É
claro, se casar com ele e forem viver para o solar de Mr. Pendleton.
Quem havia de dizer, ser este o pequeno Jimmy Bean de antes! Nunca vi
uma mudança tão grande em ninguém " e foi assim que concluiu
o pensamento num último olhar para a figura que desaparecia lá
longe, na estrada.
Pensamentos
semelhantes atravessaram o espírito de John Pendleton, pouco depois,
ainda nessa manhã, quando da varanda da sua grande casa cinzenta, em
Pendleton Hill, observava o cavaleiro que se aproximava. Nos seus
olhos via-se uma expressão muito semelhante à de Mrs. Nancy Durgin.
E também dos seus lábios se ouviu a exclamação: "Mas que
bela figura!", quando cavalo e cavaleiro se encaminhavam para o
estábulo. Após breves minutos, o jovem contornava o canto da casa e
subia as escadas.
- Então,
meu rapaz, é verdade que sempre vêm? - perguntou o senhor, com
manifesto interesse.
- Sim.
- Quando?
- Amanhã!
- rematou o jovem, ao deixar-se cair numa cadeira.
Face à
tensão que se notava na resposta, John Pendleton franziu a testa.
Olhou de relance para o rosto do jovem, hesitou por momentos e depois
perguntou abruptamente:
- O que
é, filho, que se passa?
- O que
se passa? Oh... nada!
- Não
sejas tolo! Sei muito bem! Saíste daqui há uma hora, tão ansioso
que nem os novos cavalos foram motivo para te reter aqui. Agora aí
estás, sentado, desanimado, e, na mesma, sem que os cavalos te
entusiasmem. Se não te conhecesse bem, era capaz de pensar que
estarias descontente por as nossas amigas regressarem.
Fez uma
pausa à espera de resposta, que, porém, não obteve.
- Então,
Jimmy, enganei-me, ou estás contente por elas virem?
O jovem
riu, mas o seu olhar era desassossegado.
- Sim,
claro.
- No
entanto, não é isso que parece.
Ele riu
de novo, agora com algum rubor nas faces.
- É que
estava a pensar em Pollyanna.
- Em
Pollyanna, porquê? Não fizeste mais nada senão falar dela desde
que vieste de Boston e até descobriste que estava para chegar. Será
que estás mesmo morto por ver Pollyanna?
O rapaz
inclinou-se para a frente, com uma expressão curiosa.
- É, é
exatamente isso! É como se ontem nada pudesse impedir-me de ver
Pollyanna, e hoje, que sei que ela vem, estou assim a modos que
perplexo.
- Mas
porquê, Jimmy?
Perante a
incredulidade de John Pendleton, o jovem encostou-se à cadeira,
rindo embaraçadamente.
- Bem, é
tudo muito estranho e não espero que compreenda. Sei lá,
parece-me
que queria que Pollyanna não crescesse. Achava-a tão querida, tal
como era! Como gosto de pensar nela tal como a vi da última vez, com
a sua carinha séria e cheia de sardas, os seus totós de cabelo
loiro dizendo com lágrimas nos olhos: "Sim, estou contente por
ir, mas acho que ainda ficarei mais contente quando regressar".
Foi há quatro anos que a vi pela última vez.
- Eu sei.
Compreendo o que queres dizer. Acho que senti o mesmo até vê-la no
último Inverno em Roma.
O jovem
voltou-se apressadamente.
- Viu-a?
Então fale-me dela.
Uma
expressão divertida espelhou-se nos olhos de John Pendleton.
- E eu a
julgar que não querias saber de Pollyanna já crescida.
Com uma
careta, o jovem disfarçou.
- É
bonita?
- Ai, os
jovens! - disse John Pendleton, brincando. - É sempre a sua primeira
pergunta!
- É ou
não é? - insistiu o jovem.
- Hás-de
julgar por ti próprio. Mas, pensando bem, creio que não é. Podias
ficar desapontado. Para o meu gosto, Pollyanna não é bonita no
sentido convencional do termo. Com efeito, tanto quanto sei, um dos
problemas dela é mesmo o de saber que não é bonita. Em tempos
disse-me que uma das coisas que gostava de ter, quando fosse para o
Céu era cabelo negro encaracolado; e no último ano, em Roma,
disse-me ainda outra coisa. que não era de todo esclarecedora, mas
em que detectei um certo desgosto velado. Disse que gostaria que
alguém escrevesse um romance com uma heroína que tivesse cabelo
liso e uma sarda no nariz, mas que, apesar de tudo, pensava ser
preferível que as moças de quem se escrevia nos livros não os
tivessem.
- Isso é
mesmo da Pollyanna que eu conheço.
- Ah,
deixa, vais reconhecê-la - sorriu o senhor, com ar curioso. - Bem,
agora desdigo-me, eu acho que ela é bonita. Tem uns olhos adoráveis
e é a perfeita imagem da saúde. Detém toda a alegria primaveril da
juventude e todo o rosto se ilumina maravilhosamente quando fala, de
tal modo que faz esquecer se as suas feições são ou não
regulares.
- Ela
continua a jogar o jogo?
John
Pendleton sorriu.
- Calculo
que sim, embora já não fale muito disso. Pelo menos a mim, das duas
ou três vezes que a vi, não falou.
Fez-se um
breve silêncio e depois, calmamente, o jovem Pendleton disse:
- Isso
era uma das coisas que me preocupava. Por ser um jogo que representou
tanto para muita gente, em toda a cidade! Não me conformava que ela
tivesse desistido dele; e, ao mesmo tempo, não conseguia imaginar
uma Pollyanna crescida a dizer constantemente às pessoas para se
alegrarem com alguma coisa! De algum modo, como disse, não queria
considerá-la crescida.
- Se
fosse a ti, não me preocupava com isso - disse o senhor, com um
sorriso brincalhão. - Com Pollyanna sempre houve alegria, e não me
enganarei que ela continue a viver segundo o mesmo princípio,
embora, talvez, não exatamente da mesma forma. Pobre moça! Receio
que necessite de algum jogo, para tornar a existência tolerável
durante algum tempo, pelo menos.
- Está-se
a referir ao fato de Mrs. Chilton estar em dificuldades? Ficaram
mesmo pobres?
- Penso
que sim. Estão com sérios problemas quanto a dinheiro, tanto quanto
sei. A fortuna pessoal de Mrs. Chilton foi drasticamente reduzida e
os bens de Tom eram escassos. Ele endividou-se por causa de serviços
que nunca lhe foram pagos nem nunca o serão. Tom nunca se recusava
quando era solicitado e todos os caloteiros da cidade o sabiam e
abusavam. Ultimamente teve muitas despesas. Depositava grandes
esperanças no seu regresso, quando tivesse concluído a
especialização na Alemanha. Partiu sempre do princípio que sua
mulher e Pollyanna dispunham de meios mais que suficientes,
provenientes da propriedade dos Harrington e nunca se preocupou com
isso.
- Estou a
perceber. Foi pena!
- Não é
tudo. Dois meses depois da morte de Tom, vi Mrs. Chilton e Pollyanna
em Roma. Mrs. Chilton estava em péssimo estado. Para além da
tristeza, em resultado da morte do marido, começava a ter noção
dos seus problemas financeiros e estava quase fora de si. Recusava-se
a regressar a casa e afirmava que nunca mais queria ver Beldingsville
nem ninguém daqui. Como sempre foi uma mulher orgulhosa, o
infortúnio afetou-a de modo curioso. Foi Pollyanna quem me disse que
a tia estava obcecada com a ideia de que Beldingsville jamais
aprovara o seu casamento com o Dr. Chilton e agora, com ele morto,
ela sentia que não estariam solidários com a sua dor. Ressentia-se
também pelo fato de saberem que agora, para além de pobre, também
era viúva. Em suma, mergulhara num estado extremamente mórbido e
infeliz, que tinha tanto de irracional como de horrível. Pobre
Pollyanna! Surpreendia-me como ela aguentava! Se Mrs. Chilton
continua no mesmo estado a moça vai-se abaixo. Daí que eu diga que
Pollyanna deve precisar do jogo.
- Como me
entristece que isso esteja a acontecer a Pollyanna! - exclamou o
jovem, com voz pouco firme.
- Sim,
estou em crer que as coisas ainda não melhoraram, pela maneira como
vêm hoje. Tão silenciosamente, sem dizerem nada a ninguém! É
mesmo típico de Polly Chilton! Não quer que ninguém a espere. Só
assim se compreende que tenha escrito somente à mulher do velho
Thimoty, Mrs. Durgin, que olhava pela casa.
- Sim, a
Nancy contou-me. É uma boa criatura! Abriu a casa toda e tem-se
ocupado dela para não parecer um túmulo de esperanças vãs e
prazeres perdidos. Mesmo os jardins apresentam bom aspecto, visto o
velho Tom não os ter desprezado. Mas fiquei comovido com aquilo.
Veio
depois um longo silêncio, até John Pendleton sugerir:
- Devia
ir alguém esperá-las. Porque não vais tu à estação?
- Então
vou.
- Sabes
em que comboio chegam?
- Não.
Nem a Nancy sabe.
- Então
como vai ser?
- Vou
para lá de manhã e nalgum comboio hão-de chegar! - resignou-se o
jovem.
- O
Thimoty também vai com a charrete da família. No fim de contas, não
são assim tantos os comboios.
- Eu sei
- disse John Pendleton.
- Olha,
Jimmy, admiro os teus sentimentos mas não o teu discernimento.
Alegra-me que sigas os teus sentimentos e não a tua razão. No
entanto, desejo-te boa sorte.
-
Obrigado, senhor - disse o jovem, com um sorriso triste. - Bem
preciso que me deseje sorte.
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