Enquanto
o comboio se aproximava de Beldingsville, Pollyanna observava
atentamente a tia. Durante todo o dia Mrs. Chilton dera sinais de
cada vez mais desassossego e tristeza. Pollyanna receava o que
poderia acontecer à chegada a casa.
A
sobrinha comovia-se sempre que olhava para a tia. Não imaginava que
fosse possível uma pessoa mudar e envelhecer tanto em apenas seis
meses. Os olhos de Mrs. Chilton haviam perdido o brilho, o seu rosto
era agora pálido e triste, e a fronte apresentava fundas e inúmeras
linhas. A boca descaía nos cantos e o cabelo estava penteado e
apanhado atrás da mesma maneira pouco elegante que usava
antigamente. Toda a doçura com que o casamento a dotara desaparecera
completamente, regressando a antiga e habitual amargura de Mrs. Polly
Harrington, de má memória.
-
Pollyanna! - chamou Mrs. Chilton, incisivamente.
A
sobrinha olhou-a com ar comprometido. Sentiu-se desconfortável ao
pensar que a tia podia estar a ler-lhe os pensamentos.
- Sim,
tia.
- Onde
está o saco pequeno, preto?
- Está
aqui.
- Queria
que me trouxesses o véu negro. Estamos quase lá.
- Mas é
tão quente e espesso, tia!
-
Pollyanna, pedi-te o meu véu negro. Queres fazer o favor de cumprir
o que te peço, sem contrariar? Ser-me-ia bem mais fácil. Quero o
véu. Não me estás a ver proporcionar a todos de Beldingsville a
oportunidade de me ver sofrer, pois não?
- Oh!
tia! Estão agora as pessoas a pensar dessa forma! - protestou
Pollyanna, apressando-se a ir buscar o saco para lhe dar o véu. -
Além disso, ninguém estará à nossa espera.
- Está
bem. Não dissemos a ninguém para nos vir esperar, mas demos
instruções a Mrs. Durgin... Achas que ela guardou essa informação
apenas para si? Não me parece. Metade da cidade deve saber que
chegamos hoje e uma dúzia ou mais de pessoas hão de estar na
estação. Eu conheço-os! Hão de querer ver o aspecto de Polly
Harrington pobre. Eles...
- Oh!
tia, tia! - exclamou Pollyanna, de lágrimas nos olhos.
- Se não
estivesse tão só, se meu marido continuasse connosco, e... - parou
de falar, virando a cara para o lado, com os lábios a tremerem-lhe
convulsivamente. - Onde está esse véu? - perguntou irritada.
- Aqui
está ele, minha tia - disse Pollyanna, confortando-a e apressando-se
a entregar o véu. - Estamos quase a chegar. Que bom que era que o
velho Tom ou o Thimoty estivessem à nossa espera!
-
Levando-nos a casa, como se pudéssemos dar-nos ao luxo de ter esses
cavalos e charretes! Sabendo como sabes, que amanhã os vamos vender!
Não, obrigada, Pollyanna, prefiro usar o transporte público a essa
circunstância!
- Eu sei,
mas... - o comboio estacara e Pollyanna concluiu a frase com um
suspiro.
Quando as
duas mulheres desceram para a plataforma, Mrs. Chilton, de véu
negro, não olhava nem para a esquerda nem para a direita. Pollyanna,
porém, fez justamente o contrário e ao dar meia dúzia de passos
deu consigo a olhar para um rosto ao mesmo tempo familiar e estranho.
- Não é
o... Jimmy? - indagou, ao mesmo tempo que lhe estendia cordialmente a
mão. - É mesmo. Creio que devo antes chamar-lhe Mr. Pendleton -
retificou ela com um sorriso tímido e adiantando: - Mas que alto e
bonito está!
- Estou
feliz em vê-la - disse o jovem com um sorriso brejeiro, muito à
maneira do Jimmy, virando-se a seguir para Mrs. Chilton, que, de cara
coberta, já ia mais adiante.
Voltou-se
então para Pollyanna, de olhar perturbado mas com simpatia, dizendo:
- Por
favor, venham ambas por aqui - instou ele apressadamente. - Thimoty
está aqui com a charrete.
- Ah, que
simpatia da parte dele! - exclamou Pollyanna, olhando ansiosamente
para a figura sombria e velada e dizendo timidamente à tia, a quem
pegou no braço: - Tia, o Thimoty está aqui. Trouxe a charrete. Está
daquele lado. E este é Jimmy Bean, tia. Lembra-se do Jimmy Bean?
No seu
nervosismo e embaraço, Pollyanna nem reparou que estava a chamar ao
jovem o antigo nome de infância. Mrs. Chilton, porém, reparou
evidentemente nisso. Com nítida relutância, virou-se e
cumprimentou-o, inclinando ligeiramente a cabeça.
- Mr.
Pendleton, foi muito simpático da sua parte, mas não queria
incomodar nem a si nem o Thimoty - disse friamente.
- Não
incomoda nada, que ideia! - disse o jovem - rindo, procurando ocultar
o seu embaraço. - Agora, dêem-me os vossos bilhetes, para eu poder
ir buscar a bagagem.
- Muito
obrigada - começou Mrs. Chilton por dizer -, mas tem a certeza de
que podemos...
Só que
Pollyanna já se antecipara e passara-lhe os bilhetes, e a dignidade
exigia que Mrs. Chilton não dissesse mais nada.
O trajeto
fez-se praticamente em silêncio. Thimoty, vagamente sentido pela
recepção fria da sua antiga patroa, ia sentado à frente, direito e
rígido, com os lábios tensos. Mrs. Chilton insistia na sua
soturnidade.
Pollyanna
não estava tensa nem triste. De olhos ávidos, embora lacrimosos,
observava as ruas por que passavam. Só falou uma vez e foi para
dizer:
- O Jimmy
está bonito! Como ele cresceu!
A tia nem
lhe deu resposta.
Thimoty
estava demasiado sentido e receoso para dizer a Mrs. Chilton o que a
esperava em casa. Assim, as janelas abertas, os quartos enfeitados
com flores e Nancy à espera no alpendre foram uma surpresa total
para Mrs. Chilton e Pollyanna.
- Oh,
Nancy, mas que bonito! - exclamou Pollyanna rindo. - Tia, a Nancy
está aqui para nos receber. Veja só como ela pôs as coisas
bonitas!
A voz de
Pollyanna era deliberadamente alegre, embora um pouco trémula. Este
regresso a casa sem o seu querido tio não era fácil para ela. E não
o sendo para ela, muito pior seria para a tia. Sabia também que ela
receava chorar diante de Nancy. Por detrás do pesado véu negro, os
olhos estavam semicerrados e os lábios tremiam. Na realidade, não a
surpreendia que a tia aproveitasse a primeira oportunidade para
descarregar a sua ira, procurando assim esconder a sua comoção. Daí
que Pollyanna não ficasse espantada ao ouvir a tia cumprimentar
Nancy com breves e frias palavras, dizendo depois rispidamente:
"Claro que tudo isto foi muito simpático da sua parte, Nancy,
mas realmente preferia que não o tivesse feito."
Toda a
alegria se esvaiu do rosto de Nancy, que ficou muito magoada.
- Mas,
Miss Polly, quero dizer, Mrs. Chilton, eu não podia entregar-lhe a
casa como.
- Não
interessa, Nancy - interrompeu Mrs. Chilton - Não quero falar disso.
De cabeça
orgulhosamente levantada, saiu da sala. Um minuto depois ouviram
bater a porta no quarto.
Nancy
virou-se para Pollyanna, desolada.
- Miss
Pollyanna, que se passa? Que fiz eu de mal? Da minha parte só houve
boas intenções!
- Claro
que sim! - disse Pollyanna, deixando escapar uma lágrima. - Foi tão
bom que o tivesse feito!
- Mas
Mrs. Chilton não gostou.
- Gostar,
gostou, não quis foi mostrá-lo. Mrs. Chilton estava com medo de
mostrar outras coisas. Oh Nancy, Nancy! Estou tão contente, que me
apetece chorar! - o que fez, apoiando a cabeça no ombro de Nancy.
- Pronto,
pronto, querida menina - procurava Nancy acalmá-la, dispensando-lhe
todo o carinho.
- Sabe, é
que eu não devo chorar diante dela. Foi difícil chegar aqui.
- Claro,
claro, pobre cordeirinha! E eu que havia de fazer as coisas de modo a
irritá-la!
- Nada
disso! - retificou Pollyanna agitada. É a maneira dela, Nancy! Ela
não quer mostrar como sofre. E depois, com medo de se trair,
aproveita tudo como desculpa para. também faz isso comigo. Eu
conheço-a bem, está a perceber?
- Sim,
assim, quase percebo... - dizia Nancy enquanto apertava ainda mais os
lábios e acariciava Pollyanna. - Pobre cordeirinha, ainda bem que eu
vim por vossa causa!
- Sim, eu
também estou contente por ter vindo - disse Pollyanna, afastando-se
gentilmente e enxugando os olhos. - Já me sinto melhor. Agradeço-lhe
muito por tudo, Nancy, agora não se prenda mais connosco.
- Eu
pensava ficar uma semana, para ajudar - disse Nancy, fungando.
- Ficar?
Porquê, Nancy? Pensei que tinha casado! Não casou com o Thimoty?
- Sim,
mas ele não se importa. Ele prefere que eu fique por vossa causa.
- Mas,
Nancy, não podemos ter cá ninguém agora. Eu vou fazer todo o
trabalho. Até sabermos exatamente como estão as coisas, vamos viver
com grandes economias. Foi o que disse a tia Polly.
- Ai, se
eu tivesse dinheiro... - começou Nancy por dizer, mas, ao ver a
expressão de Pollyanna, parou e saiu apressadamente da sala para ir
ver a galinha que estava no forno do fogão.
Só
depois de terminado o jantar e de ter posto tudo em ordem, é que
Mrs. Thimoty Durgin consentiu em ir-se embora com o marido. E fê-lo
com manifesta relutância, depois de pedir inúmeras vezes para que a
deixassem vir dar uma ajudinha de vez em quando.
Logo que
Nancy se foi embora, Pollyanna dirigiu- se à sala onde Mrs. Chilton
estava sentada, com a mão encobrindo os olhos.
- Posso
acender a luz? - perguntou Pollyanna.
- Não
vejo inconveniente.
- Não
acha que foi tão simpático da parte da Nancy arranjar as coisas tão
bem?
Não
ouviu resposta.
- Onde
conseguiu ela arranjar tantas flores? Todas as salas e até os dois
quartos as têm.
Continuou
sem ouvir resposta.
Pollyanna
olhou disfarçadamente para o rosto grave da tia. Daí a pouco,
recomeçou, esperançada.
- Sabe,
vi o velho Tom no jardim. Pobre homem, está muito pior do
reumatismo. Muito mais curvado. Ele perguntou por si, e...
Mrs.
Chilton interrompeu-a severamente.
-
Pollyanna, que vamos fazer?
- Fazer?
Ora, faremos o melhor que pudermos, minha querida tia.
Mrs.
Chilton fez um gesto de impaciência.
- Vamos
lá, Pollyanna, fala a sério ao menos uma vez. Tens de perceber
rapidamente que isto é muito sério. O que vamos nós realmente
fazer? Como sabes, os meus rendimentos quase se acabaram. Eu sei que
algumas das coisas ainda têm algum valor, embora Mr. Hurt me tivesse
dito que pouco resta que valha algo que se veja. Temos algum dinheiro
no banco e um pequeno rendimento, evidentemente. E também esta casa.
Mas para que serve esta casa? Não a podemos comer nem vestir. É
demasiado grande para nós e para o modo como teremos de viver. Ainda
se houvesse alguém interessado nela, por um preço razoável!
-
Vendê-la! Oh tia, não pode vender esta casa maravilhosa, cheia de
coisas tão lindas!
- Mas, se
calhar temos de o fazer, Pollyanna. Sem comer é que não
sobrevivemos.
- Eu sei.
E eu estou sempre com tanta fome! lamentou-se Pollyanna, com uma
risada insípida. Mesmo assim, não vou ficar pesarosa por ter tanto
apetite.
- Acho
bom. Sempre tinhas de encontrar alguma coisa para estar contente.
Mas, responde-me, menina, que vamos fazer? Não conseguirás falar a
sério durante um minuto?
O rosto
de Pollyanna mudou rapidamente.
- Vou
falar a sério, tia Polly. Estive a pensar e gostava de conseguir
ganhar algum dinheiro.
- Quem me
havia de dizer, minha querida, que teria de te ouvir dizer isso! -
lamentou-se a senhora. - Uma filha dos Harrington, ter que trabalhar
para ganhar o seu pão!
- Não
deve é ver as coisas assim - disse Pollyanna.
- Seria
muito melhor comprazer-se por ver uma filha dos Harrington capaz de
ganhar o seu pão! Aliás, como qualquer mortal! Portanto, não é
desgraça nenhuma, tia Polly.
- Talvez
não. Mas lá que amachuca o orgulho de uma pessoa, amachuca,
principalmente devido à posição que sempre tivemos em
Beldingsville. Tens de convir, Pollyanna, que não é agradável.
Pollyanna
parecia não ter ouvido. Tinha o olhar fixo.
- Se eu
ao menos tivesse algum talento! Se ao menos soubesse fazer alguma
coisa melhor do que os outros - disse ela a suspirar. - Sei cantar um
pouco, tocar um pouco, bordar um pouco, mas qualquer delas
insuficientemente para ser paga por isso. Acho que do que gosto mais
é de cozinhar - concluiu por fim - e tomar conta de uma casa. Gostei
de o fazer naquele Inverno, na Alemanha, quando a Gretchen esteve
doente. Mas não sei se teria coragem de o fazer em casa de outras
pessoas.
- Como se
eu te deixasse, Pollyanna!
- Mas a
trabalhar apenas na nossa cozinha não dá dinheiro nenhum - lamentou
Pollyanna. - E é de dinheiro que precisamos.
- Sim, na
realidade, é disso mesmo que precisamos - confirmou a tia Polly
suspirando.
Fez-se um
longo silêncio, finalmente quebrado por Pollyanna.
- A tia
que tanto fez por mim! E eu, agora, sem saber como ajudar! Porque não
nasci eu com qualquer coisa que valesse dinheiro?
- Deixa
lá, querida, não penses mais nisso! Se o tio Thomas.
-
Pollyanna olhou para a tia com vivacidade e pôs-se de pé.
- Ouça,
minha tia, isso não serve de nada! - exclamou ela, mudando
totalmente de atitude. - Não se atormente, tia. Quer apostar em como
hei-de desenvolver um talento maravilhoso, um destes dias? Além
disso, acho tudo isto verdadeiramente entusiasmante, mesmo com tanta
incerteza. É muito mais divertido precisar das coisas e ficar na
expectativa. Saber de antemão que teremos tudo o que queremos é uma
rotina enfadonha. - Concluiu ela, com uma gargalhada.
Mrs.
Chilton, porém, não se riu. Apenas suspirou e disse:
- Querida
Pollyanna, que criança tu és!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados