Pollyanna
estava tão contente nessa noite depois de ter enviado a carta a
Jimmy, que não conseguiu ficar calada. Como sempre, antes de se ir
deitar, subiu ao quarto da tia. Nessa noite, após as perguntas
habituais, ia a apagar a luz quando um impulso súbito a levou a
sentar-se na cama da tia.
- Tia
Polly, estou tão contente, tão contente, que tenho de dizer- lhe
uma coisa. Posso?
- Tens de
me dizer uma coisa! Claro que sim. São boas notícias, não?
- Sim,
tia, acho que sim - corou Pollyanna. Espero que fique contente. Claro
que o Jimmy também lho há-de dizer um dia, mas eu quero fazê-lo
primeiro.
- Jimmy?
- o rosto de Mrs. Chilton alterou-se perceptivelmente.
- Sim,
quando ele me pedir em casamento - disse Pollyanna, hesitante e
visivelmente corada. - A minha felicidade é tal que tinha de
dizer-lhe.
-
Pedir-te em casamento? - Mrs. Chilton sentou-se na cama. - Queres
dizer que há alguma coisa de sério entre ti e o Jimmy Bean?
Pollyanna
sentiu-se desolada.
- Porquê,
tia, pensei que gostava do Jimmy!
- Eu
gosto, no seu devido lugar. E esse lugar não é o de marido da minha
sobrinha.
- Tia
Polly!
- Vamos
lá menina, não te surpreendas. Isso é um disparate e ainda bem que
estou a tempo de impedir que isso vá mais longe!
- Mas,
tia Polly, já vamos longe. Eu já... Quero dizer, gosto muito dele.
- Então
tens de deixar de gostar, Pollyanna, pois nunca permitirei que cases
com Jimmy Bean.
- Mas
porquê, tia?
-
Primeiro e principalmente porque não sabemos nada dele.
- Mas,
tia Polly, nós o conhecemos há imenso tempo, desde que eu era
pequenina!
- Sim, e
o que era ele? Um fugido do orfanato! Não sabemos nada da sua
família.
- Mas eu
não vou casar com a família dele! - Com uma exclamação
impaciente, a tia deixou-se cair na almofada.
-
Pollyanna, estás a fazer- me mal. O meu coração está a palpitar.
Já não vou conseguir dormir esta noite. Não podes deixar isto para
amanhã?
Pollyanna
pôs-se imediatamente de pé perturbada e arrependida.
- Sim,
claro, tia! Amanhã vai pensar de maneira diferente, tenho a certeza!
- disse a moça, com voz trémula indo apagar a luz.
Mas a tia
Polly não se sentiu "diferente" na manhã seguinte. A sua
opinião, se possível, era ainda mais determinada. Pollyanna
argumentava em vão. Bem procurou explicar, inutilmente, que a sua
felicidade estava em jogo! A tia, porém, obstinadamente, não
aceitava a ideia, sequer. Chegou até a avisar Pollyanna da gravidade
quanto aos possíveis malefícios da hereditariedade, dados os
perigos em casar com uma pessoa cuja família não era conhecida.
Apelou mesmo para o seu sentido do dever e gratidão quanto a ela
própria, recordando-lhe como a acolhera naquela casa e avisando-a de
que destroçaria o seu coração com tal casamento, conforme o fizera
sua mãe.
Quando o
próprio Jimmy, radiante, chegou às dez horas, encontrou uma
Pollyanna chorosa e assustada, surpreendentemente a tentar evitar que
ele entrasse.
Pálido,
segurando-a com ternura, ele quis uma explicação.
-
Pollyannna, minha querida, que se passa?
- Oh!
Jimmy, Jimmy! Porque vieste? Ia escrever- te a... - lamentou
Pollyanna.
- Mas já
me escreveste, querida. Recebi a carta ontem à tarde, ainda a tempo
de apanhar, felicíssimo, o comboio.
- Não...
Nessa altura eu não sabia que não podia...
- Não
podias o quê? Não me vais dizer agora que existe outra pessoa que
gosta de ti e que vou ter de esperar... - perguntou ele, segurando-a.
- Não,
não, Jimmy! Não me olhes assim. Não suporto...
-
Explica-te! Pollyanna! Diz- me o que se passa, por favor!
- Não
posso casar contigo.
-
Pollyanna, não me amas?
- Sim.
Oh, sim.
- Então
vais casar comigo! - vociferou Jimmy triunfante, envolvendo-a nos
braços outra vez.
- Não,
não, Jimmy, não compreendes. É por causa da tia Polly - disse
Pollyanna, tentando libertar-se.
- A tia
Polly?
- Sim,
ela não me deixa!
- Oh!
Não! - Jimmy inclinou a cabeça para trás com uma gargalhada. -
Temos de tratar da tia Polly. Deve julgar que vai perder a sua
menina, e temos de mentalizá-la que vai antes ganhar um novo
sobrinho! - concluiu, com ar importante.
Mas
Pollyanna não sorriu e abanou a cabeça desesperadamente.
- Não,
não, Jimmy! Não compreendes! Ela. como te hei-de dizer? Ela opõe-se
a ti, por minha causa.
Os braços
de Jimmy afrouxaram um pouco e os seus olhos pestanejaram.
- Acho
que não a posso censurar. Claro que não sou um deslumbramento -
admitiu ele constrangido - no entanto esforçar-me-ei por te fazer
muito feliz.
-
Acredito que sim. Eu sei que sim - protestou Pollyanna, cheia de
lágrimas.
- Então
porque não me dás uma oportunidade, Pollyanna? Mesmo que ela, de
princípio, não aprove? Talvez com o tempo, já casados, a possamos
conquistar.
- Mas eu
nunca poderia fazer isso - lamentou-se Pollyanna -, depois do que ela
me disse. O seu consentimento é indispensável... Fez tanto por mim
e depende muito de mim! Ela agora não está nada bem, Jimmy.
Ultimamente tem sido tão querida e tem-se esforçado tanto por jogar
o jogo, apesar de toda a sua infelicidade. E até chorou e me pediu
que não lhe destroçasse o coração como a minha mãe lhe fez há
muito tempo. Pois é, Jimmy, eu não posso contrariá-la depois de
tudo o que ela fez por mim.
Pollyanna
fez uma pausa e depois, com um rubor muito nítido na fronte,
continuou.
- Jimmy,
se pudesses dizer alguma coisa à tia Polly sobre o teu pai e a tua
família...
Jimmy
deixou cair os braços. Deu um passo atrás.
As cores
abandonaram-lhe o rosto.
- É por
causa disso? - perguntou.
- É sim
- Pollyanna aproximou-se e tocou timidamente no braço dele.
- Não
penses que sou eu que me preocupo com isso, Jimmy. Eu não me
preocupo. Nada disso. Eu sei que o teu pai e a tua família eram
pessoas de bem. Mas ela... Jimmy, oh Jimmy, não me olhes assim!
Jimmy,
com um murmúrio em voz baixa, afastou- se dela e abandonou a casa.
Depois de
abandonar o solar dos Harrington, Jimmy foi diretamente para casa e
procurou John Pendleton. Descobriu-o na grande biblioteca onde,
alguns anos antes, Pollyanna procurara, receosa, "o armário
onde John Pendleton tinha guardado o seu esqueleto".
- Tio
John, lembra-se do pacote que meu pai me deixou? - perguntou Jimmy.
- Sim,
que se passa filho? - disse John Pendleton assustadoramente
surpreendido ao ver a expressão de Jimmy.
- Tenho
de abrir esse pacote.
- Mas. e
as condições?
- Tem
mesmo de ser. Quer fazer-me esse favor?
- Sim,
meu filho, claro, se insistes! Mas...
- Tio
John, como já deve ter adivinhado, eu amo Pollyanna. Pedi-a em
casamento e ela aceitou.
O senhor
deu uma exclamação de satisfação, mas o jovem não alterou a sua
expressão grave.
- Ela diz
agora que não pode casar comigo. porque Mrs. Chilton se opõe.
Opõe-se a mim.
- Opõe-se
a ti? - os olhos de John Pendleton brilharam de fúria.
- Sim.
Descobri a razão quando Pollyanna me perguntou se eu não sabia nada
sobre meu pai e minha família.
- Que
disparate! Pensei que Polly Chilton fosse mais sensata. Isso é mesmo
do carácter dela! Os Harrington sempre foram preconceituosos e
orgulhosos, doentiamente tradicionalistas e conservadores.
- Eu ia
contar a Pollyanna como meu pai era bom, mas depois lembrei-me de
repente do pacote e do que estava escrito nele. Porém, não me
atrevi a dizer uma palavra sem saber o que continha aquele
"envelope". Havia qualquer coisa que o meu pai não queria
que eu soubesse antes de fazer trinta anos, idade em que eu seria
totalmente adulto e poderia aguentar fosse o que fosse. Percebe?
Existe um segredo, algures, nas nossas vidas. Tenho de conhecer esse
segredo e tem de ser já.
- Mas,
Jimmy, não sejas tão trágico! Pode ser um bom segredo! Talvez seja
algo que gostes de saber!
- Talvez.
Mas algo de importante conterá para que quisesse que o abrisse só
depois de fazer trinta anos! Não, tio John, inclino-me para que
seja... sei lá! Só sei que me quis poupar até eu ter idade
suficiente para suportar... Não quero culpar meu pai! Seja o que
for, é alguma coisa que ele não podia deixar de fazer, tenho a
certeza. Mas, a sua memória que me perdoe, tenho mesmo de saber o
que é. Importa-se de o ir buscar?
John
Pendleton levantou-se imediatamente.
- Vou
buscá-lo - disse. Três minutos depois Jimmy tinha-o nas suas mãos.
-
Preferia que fosse o senhor a ler, por favor. Depois conte-me.
- Mas
Jimmy, eu... Está bem. - Com um gesto decidido, John Pendleton
agarrou numa faca, abriu o "envelope" e retirou o conteúdo.
Era um conjunto de vários documentos atados e uma folha dobrada,
aparentemente uma carta. John Pendleton abriu primeiro essa carta.
Enquanto a lia, Jimmy, tenso e contendo a respiração observava o
rosto dele. E assim viu-lhe um olhar de espanto, de alegria e mais
qualquer outra coisa que não soube definir na expressão de John
Pendleton.
- Tio
John, o que é? Diga-me o que é. Já!
- É
melhor que leias tu próprio - respondeu o senhor, estendendo a carta
a Jimmy. E Jimmy leu o seguinte:
" Os
documentos aqui incluídos são a prova legal de que o meu filho
Jimmy é realmente James Kent, filho de John Kent, que casou com
Doris Wetherby, filha de William Wetherby, de Boston. Existe também
uma carta, na qual explico a meu filho porque o mantive afastado da
família de sua mãe, durante todos estes anos. Se este envelope for
aberto por ele, aos trinta anos, ele lerá esta carta e espero que
perdoará a um pai que receou perdê-lo completamente, e por isso
adotou esta medida drástica para o conservar. Se o envelope for
aberto por estranhos, devido à sua morte, peço que a família da
mãe em Boston seja notificada imediatamente e o mesmo lhe seja
entregue.
John Kent
"
Jimmy
estava pálido e abalado quando voltou a olhar para John Pendleton.
- Sou eu,
então eu sou o desaparecido Jamie? - disse gaguejando.
- Essa
carta diz que tens documentos que o provam.
- Então
sou sobrinho de Mrs. Carew.
- Claro.
- Mas
custa-me a crer! - fez- se uma pausa antes de o rosto de Jimmy ser
inundado por uma nova expressão de alegria. - Ah, agora sei quem
sou! Já posso falar a Mrs. Chilton da minha família.
- Acho
que sim - retorquiu John Pendleton secamente. - Os antepassados dos
Wetherbys de Boston remontam ao tempo das cruzadas. Isso deve
satisfazê-la. Quanto a teu pai, ele também era de boas famílias,
disse-me Mrs. Carew. Apesar de ser bastante estranho e de a família
não gostar dele.
- Sim.
Pobre pai! E que vida deve ter passado comigo durante todos aqueles
anos, receando sempre a perseguição da família. Agora compreendo
muitas coisas, que me confundiam antes. Uma vez, uma mulher chamou-me
Jamie e ele ficou furioso! Agora percebo porque é que ele se foi
logo embora nessa noite sem sequer esperar pelo jantar. Pobre pai!
Foi logo a seguir a isso que ele ficou doente.
Não
conseguia mexer as mãos nem os pés, e em breve deixou de conseguir
falar. Lembro-me que quando morreu tentou dizer-me qualquer coisa.
Agora, posso presumir que quisesse falar-me disto, aconselhando-me
talvez a ir ter com a família de minha mãe, mas, na altura, pensei
que me estava a dizer apenas para guardar bem o "envelope".
Foi o que eu lhe prometi. E por isso é que ele não ficou
satisfeito, parecia antes ter ficado mais preocupado. Eu não
compreendi. Pobre pai!
- Vamos
ver esses documentos - sugeriu John Pendleton. - Olha, há também
uma carta dirigida a ti. Não a queres ler?
- Sim,
claro. - O jovem riu um pouco envergonhado e olhou para o relógio. -
Estava a pensar quando é que poderia voltar ao solar para contar a
Pollyanna.
John
Pendleton fez uma expressão de reflexão. Depois, olhando para
Jimmy, hesitou e disse:
- Sei que
queres ver Pollyanna e não te critico, mas parece-me que, dadas as
circunstâncias, deves primeiro ir ter com Mrs. Carew e mostrar-lhe
estes documentos - estendeu-lhos.
Jimmy
concordou resignado.
- Está
bem, é isso que farei.
- E se
não te importas, eu vou contigo. Além disso, tenho uma pequena
questão a tratar com tua tia. Vamos no comboio das três?
- Vamos
sim senhor! Então sou o Jamie! Ainda não estou convencido! -
exclamou o jovem, caminhando incansavelmente de um lado para o outro
da sala. - Acha que... - interrompeu ele corado. - Acha que a tia
Ruth se vai importar muito?
John
Pendleton abanou a cabeça. Nos seus olhos surgiu um pouco da antiga
melancolia.
- Claro
que não, meu rapaz! Estou a pensar em mim...
- Em si!
Acha que alguma coisa faria com que eu me desligasse de si? Não tem
que se preocupar com isso. E ela também não se vai importar. Tem o
Jamie e... - uma expressão de desânimo abateu-se sobre ele. - Tio
John, esquecia- me do Jamie. Isto vai ser difícil para ele!
- Já
pensei nisso. Será inevitável. No entanto, ele foi adotado
legalmente, não é verdade?
- Sim,
sim, isso não está em causa. É só por não ser o verdadeiro Jamie
e ser aleijado! Ficará destroçado. Ouvi-o falar. Além disso,
Pollyanna e Mrs. Carew, as duas, quase me asseveraram estar certas de
ser ele o Jamie. Que hei-de eu fazer?
- Não
sei, meu rapaz. Mas creio que não poderás fazer outra coisa.
Calaram-se
ambos. Jimmy parou de andar de um lado para o outro. Até que, de
repente, virou-se animado e adiantou:
- Há uma
maneira e vou segui-la. Tenho a certeza de que Mrs. Carew há-de
concordar. Não lhe contaremos a ele! Diremos a Mrs. Carew, a
Pollyanna e à tia. A ela é que não pode deixar de ser.
- Boa
ideia, meu rapaz. Quanto ao resto. - John Pendleton fez uma pausa de
dúvida.
- Ninguém
tem nada com isso!
- O
sacrifício vai ser grande. Pondera bem!
-
Ponderar? Já o fiz e não vai ter importância. Com Jamie no outro
prato da balança é que não o poderia ser. É tudo!
- Não te
critico e penso que estás certo. Além disso, creio que Mrs. Carew
concordará assim que souber que encontrou finalmente o verdadeiro
Jamie.
- Não é
verdade o que sempre disse que me vira algures? - rematou Jimmy, a
brincar. - Quanto tempo falta para o comboio partir? Estou pronto!
- Eu
ainda não - riu John Pendleton. - Só daqui a algumas horas
partiremos - concluiu ele, enquanto se levantava e saía da sala.
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