No dia
seguinte, Pollyanna não viu o rapaz. Estava a chover e não pôde ir
ao jardim. No outro dia também choveu. Nem sequer no terceiro dia.
Apesar de o Sol ter voltado a brilhar e embora ela tenha ido ao
princípio da tarde para o jardim e ter esperado bastante, ele não
apareceu. Mas no quarto dia, sim, ele lá estava no lugar do costume
e Pollyanna apressou-se a ir cumprimentá-lo alegremente.
- Estou
tão contente por o ver! Onde esteve? Não tem vindo.
- Não
pude. Tive muitas dores - explicou o rapaz bastante pálido.
- Teve
dores? - inquiriu Pollyanna cheia de pena.
- Sim,
tenho-as sempre - respondeu o rapaz, com naturalidade. Quase sempre
consigo suportá-las e, então, venho cá. Só quando pioro, como
nestes dias, é que não venho.
- Mas
como aguenta as dores sempre?
- Tenho
que aguentar - respondeu o rapaz, abrindo mais os olhos. - As coisas
são como são e não podem ser de outro modo. Para que serve
imaginar que poderiam ser diferentes? De resto, quanto mais dói num
dia, mais agradável se torna no dia seguinte, quando dói menos.
- Eu sei.
É como o jogo... - ia Pollyanna a dizer, mas o rapaz interrompeu-a.
- Hoje,
trouxe muita comida? - perguntou ele ansioso. - Espero que sim! Eu
não consegui trazer nada. O Jerry não conseguiu poupar um centavo e
esta manhã não havia comida suficiente para eu trazer.
Pollyanna
olhou cada vez mais comovida.
- E o que
faz quando não tem nada para comer?
- Passo
fome!
- Nunca
conheci ninguém que não tivesse nada para comer - disse Pollyanna
com voz trémula. - É claro que o pai e eu éramos pobres, e
tínhamos de comer feijões e pastéis de peixe quando o que nos
apetecia era peru. Mas tínhamos sempre alguma coisa. Porque não se
queixa você às pessoas que vivem aqui nestas casas?
- Ora,
não servia de nada!
- Como
assim, não lhe dariam alguma coisa? O rapaz voltou a rir, mas agora
de modo estranho.
-
Ninguém, que eu conheça, deita fora carne assada e bolos com natas!
Além disso, se nunca passarmos fome, não sabemos como é bom
saborear batatas e leite e não teria grande coisa para escrever no
meu Livro das Alegrias.
-
Escrever onde?
O rapaz
riu embaraçadamente e corou.
-
Esqueça! Pensava que falava com a Mumsey ou o Jerry.
- Mas o
que é o seu Livro das Alegrias? - insistiu Pollyanna. - Conte-me,
por favor. Os cavaleiros, os lordes e as damas entram nesse livro?
O rapaz
disse que não com a cabeça. Os olhos deixaram de sorrir e assumiu
uma expressão triste.
- Não,
antes estivessem! - disse ele, suspirando tristemente. - Bem vê,
quando não podemos andar, também não podemos combater nem ter
damas que nos dêem a espada e concedam talismãs. - Os olhos do
rapaz iluminaram-se com um brilho súbito. Ergueu o queixo
altivamente. Depois, também com rapidez, o brilho esmoreceu e o
rapaz caiu de novo na sua tristeza.
- Não
podemos fazer nada - concluiu ele, desanimadamente. - Só podemos
sentar-nos e pensar, às vezes até com pensamentos desagradáveis.
Eu queria ir à escola e aprender mais coisas do que a Mumsey me pode
ensinar. Penso muito nisso. Queria correr, e jogar à bola com os
outros rapazes. Também penso nisso. Queria ir para a rua vender
jornais com o Jerry. Não queria que tomassem conta de mim por toda a
vida. enfim, penso nisso tudo!
- Eu
também sei isso - disse Pollyanna suspirando. - Eu também perdi as
minhas pernas durante algum tempo.
- Perdeu?
Então deve saber alguma coisa. Mas recuperou-as. e eu não - disse o
rapaz com um ar ainda mais sombrio.
-
Voltando atrás: ainda não me contou sobre o Livro das Alegrias -
insistiu Pollyanna.
O rapaz
riu, um pouco envergonhado.
- Sabe,
não é grande coisa, a não ser para mim. Para si não deve ter
grande importância. Comecei a escrevê-lo há um ano. Nesse dia
sentia-me especialmente mal. Nada corria bem. Não parava de me
lamentar. Então, agarrei num dos livros do pai e tentei lê-lo. A
primeira coisa que li, foi isto, que decorei:
"Os
prazeres são mais intensos
Onde
parecem não existir
Não há
uma folha que caia no solo
Que não
tenha uma alegria de silêncio ou de som"
(Blanchard,
"Alegrias Ocultas" - in Ofertas Liricas )
- Fiquei
fulo. Queria ver o tipo que escreveu aquilo no meu lugar e ver que
tipo de alegria ele podia encontrar nas minhas "folhas".
Estava tão zangado, que decidi demonstrar que ele não sabia o que
dizia, e, assim, comecei a procurar as alegrias nas minhas "folhas".
Peguei num pequeno bloco-notas vazio, que o Jerry me tinha dado, e
decidi escrevê-las. Tudo o que tivesse a ver com alguma coisa de que
eu gostasse, escrevia no livro. Poderia desse modo saber quantas
"alegrias" eu tinha.
- Sim,
sim! - exclamou Pollyanna interessadíssima, quando o rapaz fez uma
pausa para respirar.
- Bem,
não estava à espera de arranjar muitas, mas ainda arranjei
bastantes. Em quase tudo havia sempre alguma coisa de que eu gostava
um pouco e, assim, tinha quase sempre assunto para escrever.
Primeiro, foi o próprio livro, o fato de o ter arranjado e ter
decidido escrever nele. Depois, uma pessoa ofereceu-me uma flor num
vaso, e o Jerry encontrou um bom livro no metropolitano. A partir daí
tornou-se-me divertidíssimo procurar motivos de alegria e
encontrava-os nos lugares mais estranhos. Um dia, o Jerry descobriu o
bloco-notas e percebeu o que era. Desde então, ficou a ser o Livro
das Alegrias. E é tudo.
- Tudo? -
exclamou Pollyanna, deliciada e surpreendida, procurando
controlar-se. - Calcule, isso é o mesmo que o meu jogo! Você está
a jogar o "Jogo do Contente" sem o conhecer. Bem, talvez
esteja a jogá-lo melhor do que eu! Penso que o não conseguiria
jogar, se não tivesse que comer e não pudesse mesmo andar - disse
ela comovida.
- Jogo?
Que jogo? Não conheço jogo nenhum! disse o rapaz, franzindo a
testa.
Pollyanna
bateu as palmas.
- Eu sei
que não conhece e é por isso que é tão bonito! Mas ouça: vou
explicar-lhe o que é o jogo.
E ela
explicou.
- Ah! -
exclamou o rapaz, satisfeito, quando ela acabou. - Quem diria!
- E você
aí está a jogar o meu jogo, melhor do que toda a gente que conheço,
e eu ainda nem sequer sei o seu nome! - exclamou Pollyanna, em tom
quase escandalizado. - Quero saber tudo a seu respeito e desse famoso
Livro das Alegrias.
- Só que
não há mais nada para saber. Além disso está aqui o pobre Sir
Lancelot e os outros à espera de comida - concluiu ele.
- É
verdade, aqui estão eles - disse Pollyanna, suspirando e olhando
impaciente para as criaturas que se agitavam em torno deles. Com
decisão, virou o saco de pernas para o ar e espalhou o que trazia
aos quatro ventos. - Pronto, já está. Agora podemos conversar outra
vez - disse ela, contente. - E há uma quantidade de coisas que eu
quero saber. Primeiro, por favor, como se chama? Só sei que não é
Sir James.
O rapaz
sorriu.
- Não
sou de fato, mas é assim que o Jerry quase sempre me chama. Mumsey e
os outros chamam- me Jamie.
- Jamie!
- Pollyanna conteve a respiração, com um brilho de esperança a
cintilar-lhe nos olhos. Mas quase de seguida sentiu-se assaltada pela
dúvida.
- Mumsey
significa mãe?
- Claro!
Pollyanna
descontraiu-se. Se Jamie tinha uma mãe, não podia ser o mesmo Jamie
de Mrs. Carew, cuja mãe morrera há muito tempo. Mas se fosse ele,
que interessante que era.
- Onde
vive? Tem mais alguém de família, para além de sua mãe e do
Jerry? Vem para aqui todos os dias? Onde está o seu Livro das
Alegrias? Posso vê-lo? Os médicos já o desiludiram de voltar a
andar? Onde disse que arranjou esta cadeira de rodas?
O rapaz
respondeu troçando.
- Tantas
perguntas! Quer que comece por qual? Bem, vou começar pela última,
portanto do fim para o princípio. Assim talvez não me esqueça de
nenhuma. Arranjei esta cadeira de rodas há um ano. Jerry conhece um
jornalista que escreveu sobre mim, dizendo que eu não podia andar,
etc. e falava do Livro das Alegrias. Logo apareceu uma quantidade de
homens e mulheres com esta cadeira de rodas para mim. Disseram-me que
tinham lido tudo acerca de mim e que queriam que eu ficasse com ela
para me recordar deles.
- Mas que
contente deve ter ficado!
- É
verdade! Gastei uma página inteira do Livro das Alegrias para contar
tudo sobre a cadeira.
- Mas
nunca mais pode voltar a andar? - os olhos de Pollyanna estavam rasos
de lágrimas.
-
Infelizmente, disseram que não.
- Também
me disseram isso, mas depois mandaram-me para o Dr. Ames, onde fiquei
quase um ano, e ele pôs-me a andar. Talvez que ele pudesse fazer o
mesmo consigo!
O rapaz
fez que não com a cabeça.
- Oh, não
podia! De qualquer maneira não podia lá ir tratar-me. Devia custar
muito dinheiro. Já me convenci de que nunca mais voltarei a andar.
Paciência! - e o rapaz atirou a cabeça para trás num gesto de
impaciência. - Procuro não pensar nisso. Sabe como é quando o
nosso pensamento começa a trabalhar.
- Sim,
claro, e eu a falar disso! - exclamou Pollyanna, arrependida. - Já
lhe disse que sabe jogar o jogo melhor do que eu. Continue, pois
ainda nem sequer me contou metade. Onde vive? E o Jerry, é o único
irmão que tem?
Uma
expressão doce surgiu no rosto do rapaz. Os olhos brilharam-lhe.
- Ele não
é da família, nem a Mumsey! Oh, mas têm sido tão bons para mim!
- O quê?
- perguntou Pollyanna, imediatamente alerta. - Então essa tal
"Mumsey" não é a sua mãe?
- Não.
- E não
tem mãe? - perguntou Pollyanna cada vez mais agitada.
- Não,
não me lembro de alguma vez ter tido mãe, e o pai morreu há seis
anos.
- Que
idade tinha?
- Não
sei. Era pequeno. A Mumsey diz que eu tinha uns seis anos. Foi nessa
altura que ficaram comigo.
- E
chama-se Jamie? - Pollyanna continha a respiração.
- Sim, já
lhe disse.
- Mas com
certeza tem outro nome!
- Não
sei.
- Não
sabe?
- Não me
lembro. Era demasiado pequeno e nem os Murphys sabem. Só me
conheceram por Jamie.
Uma
expressão de grande desapontamento surgiu no rosto de Pollyanna, mas
quase de imediato um novo pensamento afastou-lhe as sombras.
- Se não
sabe qual é o seu sobrenome também não pode saber se é ou não
Kent! - exclamou ela.
- Kent? -
perguntou o rapaz, confuso.
- Sim -
respondeu Pollyanna, excitadíssima. Sabe, é que há um rapazinho
chamado Jamie Kent que. - ela parou de repente e mordeu o lábio.
Ocorrera
a Pollyanna que não seria simpático dar a conhecer ao rapaz a sua
esperança de que ele fosse o desaparecido Jamie. Era preferível que
ela se certificasse antes de suscitar quaisquer expectativas, pois de
outro modo podia causar mais tristeza do que alegria.
- Bom,
esqueçamos isso do Jamie Kent. Fale-me antes de si, por quem estou
mais interessada.
- Não há
mais nada a contar. Não sei nada de interessante - disse o rapaz
hesitante. - Disseram-me que o meu pai era estranho e nunca falava. E
que nem sequer sabiam como se chamava. Todos lhe chamavam "o
professor". Mumsey diz que ele e eu vivíamos num pequeno quarto
das traseiras, no último andar de uma casa em Lowell, e que eramos
pobres, mas não tanto como agora. O pai de Jerry era vivo nessa
altura e tinha um emprego.
- Sim,
sim, continue - instou Pollyanna.
- Bem, a
Mumsey diz que o meu pai estava bastante doente e se tornou cada vez
mais estranho, de maneira que, por isso, tinham-me com eles uma boa
parte do tempo. Nessa altura eu conseguia andar um pouco, mas as
minhas pernas já não estavam bem. Brincava com o Jerry e com a
menina que morreu. Entretanto, o meu pai morreu e não havia ninguém
que tomasse conta de mim. Foi então que umas pessoas queriam pôr-me
num orfanato, mas a Mumsey disse que ficava comigo e o Jerry esteve
de acordo. E assim fiquei com eles. A menina tinha morrido e eles
disseram que eu podia tomar o lugar dela. Desde então têm tomado
conta de mim. Depois caí e fiquei pior. Agora eles são muitíssimo
pobres porque o pai de Jerry morreu. Mas continuam a tomar conta de
mim. Não são tão bons?
- Sim,
sim - exclamou Pollyanna. - Mas hão-de ter a sua recompensa. Tenho a
certeza, serão recompensados!
Pollyanna
tremia agora toda de satisfação. A última dúvida tinha
desaparecido. Encontrara o desaparecido Jamie. Tinha a certeza. Mas,
prudentemente, não devia ainda falar. Mrs. Carew devia vê-lo
primeiro. Depois... Bem, nem a imaginação de Pollyanna conseguia
visualizar a imagem do feliz reencontro de Mrs. Carew com Jamie!
Pôs-se
de pé de repente, com desrespeito manifesto por Sir Lancelot, que
tinha voltado e estava a meter o nariz no colo dela à procura de
mais nozes.
- Bom,
tenho de me ir embora já, mas amanhã volto. Talvez traga comigo uma
senhora que, julgo, gostará de o conhecer. Você também volta cá
amanhã? - quis ela saber, ansiosa.
- Sim.
Jerry traz-me cá quase todas as manhãs. Eles preparam as coisas
para mim de maneira a eu trazer o meu almoço e ficar até às quatro
da tarde. O Jerry é muito bom para mim!
- Eu sei,
eu sei - assentiu Pollyanna. - Entretanto, talvez eu encontre outra
pessoa boa para si!
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