sexta-feira, 2 de agosto de 2013

13 - TYRION


O Norte parecia não ter fim. Tyrion Lannister conhecia os mapas tão bem como qualquer outra pessoa, mas uma quinzena no trilho irregular que naquela região se passava pela estrada do rei bem incutira nele a lição de que o mapa era uma coisa, mas o terreno, outra bem diferente.
Tinham partido de Winterfell no mesmo dia que o rei, entre toda a agitação da partida real, saindo ao som dos gritos dos homens e do resfolegar dos cavalos, entre a algazarra das carroças e os gemidos da enorme casa rolante da rainha, enquanto uma neve ligeira caía ao redor. A estrada do rei ficava logo à saída do castelo e da vila. Aí, os estandartes, as carroças e as colunas de cavaleiros da guarda e cavaleiros livres viraram para o sul, levando o tumulto com eles, enquanto Tyrion virava para o norte com Benjen Stark e o sobrinho.
Depois disso ficou mais frio, e muito mais silencioso. À oeste da estrada estendiam-se colinas de sílex, cinzentas e escarpadas, com altas torres de vigia erguidas nos seus cumes rochosos. Para leste o terreno era mais baixo, achatando-se até se transformar numa planície ondulada que se estendia até onde a vista alcançava. Pontes de pedra transpunham rios rápidos e estreitos, e pequenas chácaras espalhavam-se em anéis em torno de rastros com fortificações de madeira e pedra. A estrada tinha muito tráfego, e à noite, para seu conforto, podia-se encontrar rudes estalagens.
Mas após três dias de viagem de Winterfell, as terras de cultivo deram lugar à densa floresta, e a estrada do rei transformou-se num lugar solitário. As colinas de sílex tornavam-se mais altas e relvagens a cada milha, até se terem transformado em montanhas pelo quinto dia, gigantes frios, azuis-acinzentados, com promontórios irregulares e neve sobre os ombros. Quando o vento soprava do norte, longas plumas de cristais de gelo voavam dos picos mais altos como se fossem estandartes.
Com as montanhas a fazer às vezes de muro, a oeste, a estrada desviava-se para nor-nordeste através da floresta, uma mistura de carvalhos com sempre-verdes e sarças negras, que parecia mais antiga e sombria que qualquer outra que Tyrion tivesse visto. "Mata de lobos" chamara-lhe Benjen, e, de fato, as noites do grupo eram animadas com os uivos de alcateias distantes, e de outras não tanto assim. O lobo gigante albino de Jon Snow erguia as orelhas ao ouvir os uivos noturnos, mas nunca levantava a própria voz em resposta. Para Tyrion, havia qualquer coisa muito perturbadora naquele animal.
Aquela altura, o grupo era composto por oito membros, sem contar com o lobo, Tyrion viajara com dois de seus homens, como era próprio a um Lannister. Benjen Stark tinha apenas o sobrinho bastardo e algumas montarias novas para a Patrulha da Noite, mas no limite da mata de lobos haviam passado uma noite protegidos pelos muros de madeira de um castro de floresta e juntou-se a eles outro dos irmãos negros, um tal Yoren. Yoren era corcunda e sinistro, e escondia as feições atrás de uma barba tão negra como as roupas que trajava, mas parecia resistente como uma velha raiz e duro como pedra. Com ele estava um par de jovens camponeses esfarrapados originários dos Dedos.
- Violadores - disse Yoren com uma olhadela fria aos rapazes a seu cargo. Tyrion compreendeu. Dizia-se que a vida na Muralha era dura, mas era sem dúvida preferível à castração.
Cinco homens, três rapazes, um lobo gigante, vinte cavalos e uma gaiola com corvos oferecidos a Benjen Stark pelo Meistre Luwin. Sem dúvida que constituíam uma irmandade incomum, para a estrada do rei ou para qualquer outra.
Tyrion reparou que Jon Snow observava Yoren e os seus carrancudos companheiros com uma expressão estranha no rosto, que se parecia desconfortavelmente com desalento. Yoren tinha um ombro torcido e um cheiro fétido, os cabelos e a barba emaranhados, oleosos e cheios de piolhos, o vestuário era velho, remendado e raramente lavado. Os dois jovens recrutas cheiravam ainda pior, e pareciam tão estúpidos como cruéis.
Não havia dúvida de que o rapaz cometera o erro de pensar que a Patrulha da Noite era composta por homens como o tio. Se assim era, Yoren e os companheiros constituíam um rude acordar. Tyrion sentiu pena do rapaz. Escolhera uma vida dura... ou talvez fosse mais correto dizer que uma vida dura fora escolhida para ele. Tinha bastante menos simpatia pelo tio. Benjen Stark parecia partilhar do desagrado do irmão pelos Lannister e não ficara contente quando Tyrion lhe declarara suas intenções.
- Previno-lhe, Lannister, de que não irá encontrar estalagens na Muralha - dissera, olhando-o de cima de toda a sua altura.
- Não duvido de que encontrará algum lugar onde possa me enfiar - respondera Tyrion. - Como talvez tenha notado, sou pequeno.
Não se dizia não ao irmão da rainha, claro, e isso pusera um ponto final no assunto, mas Stark não ficara feliz.
- Não vai gostar da viagem, isso lhe asseguro - dissera ele de modo conciso, e desde o momento da partida fizera tudo o que pôde para cumprir a promessa.
Pelo fim da primeira semana, as coxas de Tyrion estavam em carne viva devido à dura cavalgada, as pernas ardiam de cãibras e sentia-se congelando até os ossos. Não se queixou. Que fosse maldito se desse a Benjen Stark essa satisfação.
Obteve uma pequena vingança com a pele de montar, uma coçada pele de urso, velha e malcheirosa. Stark lhe oferecera num excesso de galanteria ao jeito da Patrulha da Noite, sem dúvida à espera de vê-lo declinar com elegância. Tyrion a aceitara com um sorriso. Ao partir de Winterfell, trouxera consigo suas roupas mais quentes, e em breve descobriu que não eram, nem de longe, suficientes. Ali em cima fazia frio, e estava esfriando ainda mais. De noite, a temperatura descia agora bem abaixo do ponto de congelamento, e quando o vento soprava era como uma faca a trespassar suas lãs mais quentes. Decerto que Stark já se tinha arrependido de seu impulso cavalheiresco. Talvez tivesse aprendido uma lição. Os Lannister nunca declinavam, com ou sem elegância. Os Lannister aceitavam o que lhes era oferecido.
As chácaras e os castros eram cada vez mais escassos e menores à medida que prosseguiam para o norte, penetrando cada vez mais profundamente na escuridão da mata de lobos, até que finalmente deixou de haver tetos onde pudessem se abrigar, e foram atirados para a necessidade de se valerem de seus próprios recursos.
Tyrion nunca fora de grande utilidade para montar ou desmontar um acampamento. Pequeno demais, manco demais, demasiado no caminho dos demais. E assim, enquanto Stark, Yoren e os outros erguiam rudes abrigos, tratavam dos cavalos e faziam uma fogueira, tornou-se seu hábito pegar a pele e um odre de vinho e afastar-se sozinho para ler.
Na décima oitava noite da viagem, o vinho era um raro âmbar doce das Ilhas do Verão que trouxera consigo ao longo de toda a viagem para o norte desde Rochedo Casterly, e o livro, uma meditação sobre a história e as propriedades dos dragões. Com a autorização de Lorde Eddard Stark, Tyrion pedira emprestados alguns volumes raros da biblioteca de Winterfell e os empacotara para a viagem ao norte.
Encontrou um lugar confortável para lá do ruído do acampamento, ao lado de um córrego rápido cuja água era transparente e fria como gelo. Um carvalho grotescamente antigo o abrigava do vento cortante. Tyrion enrolou-se na sua pele com as costas apoiadas no tronco, bebeu um gole de vinho e pôs-se a ler acerca das propriedades do osso de dragão. O osso de dragão é negro devido à grande quantidade de ferro que contém, dizia o livro. É forte como aço, mas é também leve e muito mais flexível, e, claro, completamente à prova de fogo. Os arcos de osso de dragão são muito apreciados pelos dothrakis, e sem surpresa. Um arqueiro assim armado pode alcançar mais longe do que com qualquer arco de madeira.
Tyrion sentia um fascínio mórbido por dragões. Quando chegara pela primeira vez a Porto Real para o casamento da irmã com Robert Baratheon, fizera questão de procurar os crânios de dragão que haviam decorado as paredes da sala de trono dos Targaryen. O rei Robert os substituíra por estandartes e tapeçarias, mas Tyrion insistira, até que encontrou os crânios na cave úmida e fria onde tinham sido armazenados.
Esperava achá-los impressionantes, talvez mesmo assustadores, mas não belos. Porém, eram. Negros como ônix, polidos até ficarem lisos, o osso parecia tremeluzir à luz de seu archote. Sentiu que gostavam do fogo. Atirara o archote para dentro da boca de um dos crânios maiores e fizera as sombras saltar e dançar na parede atrás de si. Os dentes eram longas facas curvas de diamante negro. A chama do archote não era nada para eles; tinham-se banhado no calor de fogos muito maiores. Quando se afastou, Tyrion podia jurar que as órbitas vazias do animal o tinham visto partir.
Havia dezenove crânios. Os mais antigos tinham mais de três mil anos; os mais recentes, não mais de século e meio. Estes últimos eram também os menores: um par de crânios, não maiores que os de mastins, e estranhamente deformados, tudo o que restava das últimas duas crias nascidas em Pedra do Dragão. Eram os últimos dos dragões Targaryen, talvez os últimos dragões em todo o mundo, e não tinham vivido muito tempo.
A partir desses dois crânios, os outros aumentavam em tamanho até os três grandes monstros das canções e das histórias, os dragões que Aegon Targaryen e as irmãs tinham soltado sobre os Sete Reinos de antigamente. Os poetas tinham-lhes atribuído nomes de deuses: Balerion, Meraxes, Vhaghar. Tyrion estivera entre suas maxilas escancaradas, sem palavras e cheio de respeitoso temor. Podia ter entrado a cavalo pela garganta de Vhaghar, embora não fosse possível voltar a sair, Meraxes era ainda maior. E o maior de todos, Balerion, o Terror Negro, podia ter engolido um auroque inteiro, ou até mesmo um dos mamutes peludos que diziam viver nas frias extensões para lá do Porto de Ibben.
Tyrion ficou naquela cave úmida durante muito tempo, de olhos fixos no enorme crânio de olhos vazios de Balerion, até o archote se gastar, tentando abarcar o tamanho do animal vivo, imaginar a aparência que podia ter tido quando estendia as grandes asas negras e varria os céus, a exalar fogo.
Seu remoto antepassado, Rei Loren do Rochedo, tinha tentado lutar contra o fogo quando uniu forças com o Rei Mern, da Campina, a fim de se opor à conquista Targaryen.
Isso acontecera havia perto de trezentos anos, quando os Sete Reinos eram reinos, e não meras províncias de um reino mais vasto. Entre ambos, os dois Reis tinham seiscentos estandartes, cinco mil cavaleiros montados e dez vezes esse número em cavaleiros livres e homens de armas. Diziam os cronistas que Aegon, o Senhor dos Dragões, possuía talvez um quinto dessa força, e que a maioria de seus homens tinha sido recrutada das fileiras do último rei que matara, homens de fidelidade incerta.
As tropas encontraram-se nas planícies da Campina, entre campos dourados de milho pronto para a colheita. Quando os dois reis se apresentaram, o exército Targaryen tremeu, estilhaçou-se e começou a fugir. Por alguns momentos, escreviam os cronistas, a conquista esteve por um fio... mas só por esses breves momentos, antes que Aegon Targaryen e as irmãs se juntassem à batalha.
Foi a única vez que Vhaghar, Meraxes e Balerion foram todos soltos ao mesmo tempo. Os poetas os chamaram o Campo de Fogo. Quase quatro mil homens morreram queimados naquele dia, e entre eles contava-se o Rei Mern da Campina, Rei Loren escapou e viveu tempo suficiente para se render, prestar vassalagem aos Targaryen e gerar um filho, fato que deixava Tyrion devidamente grato.
- Por que lê tanto?
Tyrion ergueu os olhos ao ouvir aquela voz. Jon Snow estava a alguns pés de distância, olhando-o com curiosidade. Fechou o livro sobre um dedo e disse:
- Olhe-me e diga o que vê.
O rapaz olhou-o com suspeita.
- Isto é algum truque? Vejo você. Tyrion Lannister.
Tyrion suspirou.
- Você é notavelmente gentil para um bastardo, Snow. O que vê é um anão. Você tem o quê? Doze anos?
- Catorze - disse o rapaz.
- Catorze, e é mais alto do que alguma vez serei. Minhas pernas são curtas e tortas, e caminho com dificuldade. Necessito de uma sela especial para não cair do cavalo. Uma sela de minha própria concepção, talvez te interesse saber. Era isso ou montar um pônei. Meus braços são suficientemente fortes, mas, uma vez mais, demasiado curtos. Nunca serei um espadachim. Se tivesse nascido camponês, provavelmente me teriam expulsado para que morresse, ou vendido para a coleção de aberrações de algum negociante de escravos. Mas, ai de mim! Nasci um Lannister de Rochedo Casterly, e as coleções de aberrações são das mais pobres. Esperam-se coisas de mim. Meu pai foi Mão do Rei durante vinte anos. Aconteceu que, mais tarde, meu irmão matou esse mesmo rei, mas minha vida está cheia dessas pequenas ironias. Minha irmã casou-se com o novo rei e o meu repugnante sobrinho será rei depois dele. Devo cumprir minha parte pela honra da minha Casa, não concorda? Mas como? Bem, poderei ter as pernas pequenas demais para o corpo, mas minha cabeça é grande demais, embora eu prefira pensar que tem o tamanho certo para minha mente. Possuo um entendimento realista das minhas forças e fraquezas. A mente é a minha arma. Meu irmão tem a sua espada, o Rei Robert, o seu martelo de guerra, e eu tenho a mente... e uma mente necessita de livros da mesma forma que uma espada necessita de uma pedra de amolar se quisermos que se mantenha afiada - Tyrion deu uma palmada na capa de couro do livro. - Ê por isso que leio tanto, Jon Snow.
O rapaz absorveu tudo aquilo em silêncio. Possuía o rosto dos Stark, mesmo que não tivesse o nome: comprido, solene, reservado, um rosto que nada revelava. Quem quer que tenha sido sua mãe, pouco dela havia ficado no rapaz.
- E está lendo sobre o quê?
- Dragões - disse-lhe Tyrion.
- De que serve isso? Já não há dragões - disse o rapaz, com as fáceis certezas da juventude.
- É o que dizem - respondeu Tyrion. - É triste, não é? Quando tinha a sua idade, costumava sonhar em ter um dragão meu.
- Ah, sim? - perguntou o rapaz com suspeita na voz. Talvez pensasse que Tyrion estava zombando dele.
- Ah, sim. Até um rapazinho enfezado, torcido e feio pode olhar o mundo de cima quando está sentado no dorso de um dragão - Tyrion afastou a pele de urso e pôs-se de pé. - Costumava acender fogueiras nas entranhas de Rochedo Casterly e ficar horas olhando as chamas, fazendo de conta que eram fogos de dragão. Por vezes imaginava meu pai a arder. Outras, minha irmã - Jon Snow olhava-o fixamente, submerso em partes iguais de horror e fascínio, Tyrion soltou uma gargalhada rude. - Não me olhe assim, bastardo. Conheço o seu segredo. Você sonhou o mesmo tipo de sonhos.
- Não - Jon Snow rebateu, horrorizado. - Nunca sonharia...
- Não? Nunca? - Tyrion ergueu uma sobrancelha, - Bem, sem dúvida que os Stark foram ótimos para você. Estou certo de que a Senhora Stark o trata como se fosse um de seus filhos. E seu irmão Robb sempre foi amável. Por que não? Ele fica com Winterfell e você com a Muralha. E seu pai... deve ter bons motivos para enviá-lo para a Patrulha da Noite...
- Pare com isso - Jon Snow ordenou, o rosto escuro de ira. - A Patrulha da Noite é uma vocação nobre!
Tyrion deu uma risada.
- Você é demasiado esperto para acreditar nisso. A Patrulha da Noite é uma pilha de estrume para todos os inadaptados do reino. Vi-o olhando para Yoren e seus rapazes. São aqueles os seus novos irmãos, Jon Snow, que tal lhe parecem? Camponeses mal-humorados, devedores, caçadores furtivos, violadores, ladrões e bastardos como você acabam todos na Muralha, à espreita de gramequins e snarks e todos os outros monstros contra os quais a sua ama de leite lhe preveniu. A parte boa é que não existem gramequins nem snarks e, portanto, o trabalho pouco perigo oferece. A parte má é que por causa do frio torna-se estéril, mas como, seja como for, não está autorizado a se reproduzir, suponho que isso não importa.
- Pare com isso! - gritou o rapaz. Deu um passo em frente, com as mãos dobradas em punho, prestes a arrebentar em lágrimas.
De súbito, absurdamente, Tyrion sentiu-se culpado. Deu um passo em frente, tencionando dar ao rapaz uma palmada tranquilizadora no ombro ou murmurar uma palavra qualquer de desculpa.
Não chegou a ver o lobo, onde estava nem como se aproximou. Num momento caminhava para Snow e no seguinte estava caído de costas no duro chão pedregoso, com o livro a rodopiar para longe na queda, o fôlego a desaparecer com o súbito impacto, a boca cheia de terra, sangue e folhas apodrecidas. Quando tentou se colocar em pé, sentiu um doloroso espasmo nas costas. Devia tê-las torcido na queda. Rangeu os dentes com frustração, agarrou-se a uma raiz e conseguiu puxar-se até uma posição sentada.
- Ajude-me - pediu a Jon, estendendo uma mão.
E de repente o lobo estava entre eles. Não rosnou. A maldita coisa nunca soltava um som. Limitou-se a olhá-lo com aqueles brilhantes olhos vermelhos, mostrou-lhe os dentes, e isso foi mais que suficiente. Tyrion deixou-se cair de novo ao chão com um gemido.
- Pronto, não me ajude. Fico aqui sentado até que vá embora.
Jon Snow afagou o espesso pelo branco de Fantasma, agora com um sorriso.
- Peça-me com bons modos.
Tyrion Lannister sentiu a ira retorcer-se no seu interior, mas a esmagou com sua força de vontade. Não era a primeira vez na vida em que era humilhado, e não seria a última. Esta até talvez fosse merecida.
- Ficaria muito agradecido pela sua amável assistência, Jon - ele disse com uma voz branda,
- Para baixo, Fantasma - disse o rapaz. O lobo gigante sentou-se. Aqueles olhos vermelhos nunca deixaram Tyrion.
Jon veio por trás do anão, passou as mãos por baixo de seus braços e o pôs em pé com facilidade. Então pegou o livro e o entregou.
- Por que ele me atacou? - perguntou Tyrion com um olhar de relance ao lobo gigante. Limpou sangue e terra da boca com as costas da mão.
- Talvez tivesse pensado que você fosse um gramequim.
Tyrion lançou-lhe um olhar penetrante. Depois riu, um grosseiro resfólego divertido que saiu de suas narinas completamente sem sua autorização.
- Ah, deuses - ele disse, estrangulando o riso e abanando a cabeça. - Suponho que realmente me pareço bastante com um gramequim. O que ele faz aos snarks?
- Não vai querer saber - Jon recolheu a pele de urso e a entregou a Tyrion.
Tyrion puxou a rolha, inclinou a cabeça e despejou um longo jorro de vinho na boca. O vinho era como fogo frio a gotejar pela garganta abaixo e aqueceu-lhe a barriga. Depois, apresentou o odre a Jon Snow.
- Quer?
O rapaz pegou no odre e experimentou engolir um pouco, com cautela.
- É verdade, não é? - disse, quando terminou. - O que disse da Patrulha da Noite. Tyrion anuiu.
Jon Snow fez da boca uma linha severa.
- Se isso é o que ela é, então é isso que é.
Tyrion deu um sorriso.
- Isso é bom, bastardo. A maioria dos homens mais depressa nega uma verdade dura do que a enfrenta.
- A maior parte dos homens - Jon respondeu. - Mas não você.
- Não - admitiu Tyrion. - Eu não. Já raramente sonho com dragões. Não existem dragões - recolheu a pele de urso do chão. - Vem, é melhor regressarmos ao acampamento antes que seu tio chame os estandartes.
A caminhada era curta, mas o terreno que tinha sob os pés era irregular, e tinha as pernas cheias de cãibras quando regressaram. Jon Snow ofereceu-lhe uma mão para ajudá-lo a ultrapassar um espesso emaranhado de raízes, mas Tyrion recusou. Abriria seu próprio caminho, como fizera toda a vida. Apesar disso, ver o acampamento na sua frente foi agradável. Os abrigos tinham sido erguidos contra o muro em ruínas de um castro havia muito abandonado, um escudo contra o vento. Os cavalos tinham sido alimentados e uma fogueira feita. Yoren estava sentado numa pedra, esfolando um esquilo. O saboroso cheiro de guisado encheu as narinas de Tyrion.
Arrastou-se até onde um de seus homens, Morrec, estava cuidando da panela. Sem uma palavra, Morrec estendeu-lhe a concha. Tyrion provou e a devolveu.
- Mais pimenta - disse.
Benjen Stark emergiu do abrigo que partilhava com o sobrinho.
- Aí está você. Jon, que diabos, não desapareça sozinho dessa maneira. Pensei que os Outros o tivessem apanhado.
- Foram os gramequins - disse Tyrion, rindo. Jon Snow também sorriu. Stark deitou um olhar severo a Yoren. O homem mais velho grunhiu, encolheu os ombros e regressou ao seu sangrento trabalho.
O esquilo emprestou algum corpo ao guisado e, naquela noite, comeram-no com pão escuro e queijo duro à volta da fogueira. Tyrion partilhou seu odre de vinho, fazendo até mesmo Yoren relaxar. Um a um, os homens e rapazes foram se retirando para os abrigos e para o sono, todos, menos Jon Snow, que ficara com a primeira vigia da noite.
Tyrion foi o último a se retirar, como sempre. Quando entrou no abrigo que seus homens tinham construído, parou e olhou para Jon Snow. O rapaz estava em pé junto à fogueira, com o rosto imóvel e duro, e os olhos perdidos nas profundezas das chamas. Tyrion Lannister deu-lhe um sorriso triste e foi se deitar.  

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