segunda-feira, 12 de agosto de 2013

23 - DAENERYS


O Mar Dothraki - disse Sor Jorah Mormont ao puxar as rédeas do cavalo e parar ao lado dela no topo da colina.
A seus pés, a planície estendia-se imensa e vazia, uma vasta extensão plana que atingia e ultrapassava o horizonte distante. Foi um mar, pensou Dany. Para lá do lugar onde estavam não havia colinas nem montanhas, nem árvores, cidades ou estradas, apenas a mata sem fim, cujas folhas altas ondulavam como ondas quando o vento soprava.
- É tão verde - ela admirou.
- Aqui e agora - concordou Sor Jorah. - Tem de vê-lo quando floresce, flores vermelhas escuras de horizonte a horizonte, como um mar de sangue. E quando chega a estação seca, o mundo fica da cor de bronze velho. E isto é apenas a grama, menina. Há ali cem tipos de plantas, amarelas como limão-siciliano e escuras como índigo, azuis e cor de laranja, e as que são como arco-íris. E dizem que nas Terras das Sombras, para lá de Asshai, há oceanos de erva-fantasma, mais alta que um homem a cavalo e com caules tão claros como vidro leitoso. Mata todas as outras plantas e brilha no escuro com os espíritos dos condenados. Os dothrakis dizem que um dia a erva-fantasma cobrirá o mundo inteiro, e então toda a vida terminará.
Essa idéia fez Dany se arrepiar.
- Não quero falar disso agora - ela retrucou - Isto aqui é tão lindo que não quero pensar na morte de tudo.
- Como desejar, Khaleesi - Sor Jorah disse respeitosamente.
Dany ouviu o som de vozes e virou-se para olhar para trás. Ela e Mormont tinham se distanciado do resto da comitiva, e agora os outros vinham subindo a colina lá embaixo. Os movimentos da criada Irri e dos jovens arqueiros de seu khas eram fluidos como centauros, mas Viserys ainda lutava com os estribos curtos e a sela plana. O irmão era infeliz ali. Nunca deveria ter vindo. Magíster Illyrio insistira com ele para que esperasse em Pentos, oferecera-lhe a hospitalidade de sua mansão, mas Viserys nem quisera ouvir falar do assunto. Queria ficar com Drogo até que a dívida fosse paga, até ter a coroa que lhe fora prometida. "E se ele tentar me enganar, aprenderá, para sua desgraça, o que significa acordar o dragão", ele garantira, pousando a mão na espada emprestada. Illyrio pestanejara ao ouvir aquilo e lhe desejara boa sorte.
Dany percebeu que naquele momento não desejava ouvir nenhuma das queixas do irmão. O dia estava bastante perfeito. O céu era de um azul profundo, e muito acima deles um falcão caçador voava em círculos. O mar de plantas oscilava e suspirava a cada sopro do vento, o ar batia-lhe morno no rosto, e Dany sentia-se em paz. Não deixaria que Viserys estragasse tudo.
- Espere aqui - disse Dany a Sor Jorah. - Diga a todos para ficar. Diga que eu estou ordenando.
O cavaleiro sorriu. Sor Jorah não era um homem bonito. Tinha pescoço e ombros de touro e rudes pelos negros cobriam-lhe os braços e o pescoço de uma forma tão densa que nada restava rara a cabeça. Mas seus sorrisos davam conforto a Dany.
- Está aprendendo a falar como uma rainha, Daenerys.
- Uma rainha, não - ela respondeu. - Uma Khaleesi - fez girar o cavalo e galopou sozinha pela encosta abaixo.
A descida era íngreme e rochosa, mas Dany cavalgou destemidamente, e o júbilo e o perigo daquilo eram uma canção no seu coração. Por toda sua vida Viserys lhe dissera que era uma princesa, mas só quando montou sua prata é que Daenerys Targaryen se sentira como uma.
A princípio não fora fácil. O khalasar levantara o acampamento na manhã seguinte ao casamento, dirigindo-se para leste em direção a Vaes Dothrak, e no terceiro dia Dany pensou que ia morrer. Feridas provocadas pela sela abriram-se no seu traseiro, hediondas e sangrentas. As coxas ficaram em carne viva, as rédeas fizeram nascer bolhas nas mãos, e os músculos das pernas e das costas estavam de tal forma doloridos que quase não era capaz de se sentar. Quando caía o crepúsculo, as criadas tinham de ajudá-la a desmontar. Nem mesmo as noites traziam alívio. Khal Drogo ignorava-a enquanto viajavam, tal como a ignorara durante o casamento, e passava o começo da noite bebendo com seus guerreiros e companheiros de sangue, competindo com seus melhores cavalos, vendo mulheres dançar e homens morrer. Dany não tinha lugar naquelas partes de sua vida. Era abandonada para jantar sozinha ou com Sor Jorah e o irmão, para depois chorar até adormecer. Mas todas as noites, em algum momento antes da alvorada, Drogo vinha à sua tenda e a acordava na escuridão para montá-la tão implacavelmente como montava seu garanhão. Possuía-a sempre por trás, à moda dothraki, e Dany sentia-se grata por isso; dessa maneira, o senhor seu marido não podia ver as lágrimas que lhe molhavam o rosto, e podia usar a almofada para abafar seus gritos de dor. Quando acabava, ele fechava os olhos e começava a ressonar baixinho, e Dany se deitava ao seu lado, com o corpo dolorido e machucado, com dores demais para dormir.
Os dias seguiram-se a outros, e as noites seguiram-se a outras, até Dany compreender que não conseguia suportar aquilo nem mais um momento. Uma noite decidiu que preferia se matar em vez de continuar...
Mas, quando conseguiu adormecer nessa noite, voltou a sonhar o sonho do dragão. Daquela vez Viserys não estava nele. Só ela e o dragão. Suas escamas eram negras como a noite, mas luzidias de sangue. Dany sentiu que aquele sangue era dela. Os olhos do animal eram lagoas de magma derretido e, quando abriu a boca, a chama surgiu, rugindo, num jato quente. Dany podia ouvi-lo cantar para ela.
Abriu os braços ao fogo, acolheu-o, para que ele a engolisse inteira e a lavasse, temperasse e polisse até ficar limpa. Podia sentir sua carne secar, enegrecer e descamar-se, sentia o sangue ferver e transformar-se em vapor, mas não havia nenhuma dor. Sentia-se forte, nova e feroz.
E no dia seguinte, estranhamente, pareceu-lhe que não doía tanto. Foi como se os deuses a tivessem escutado e se tivessem apiedado. Até as criadas repararam na mudança.
- Khaleesi - disse Jhiqui - que se passa? Está doente?
- Estava - ela respondeu, em pé junto aos ovos de dragão que Illyrio lhe oferecera quando se casara.
Tocou um deles, o maior dos três, fazendo correr a mão sobre a casca. Negro e escarlate, pensou, como o dragão no meu sonho, A pedra parecia estranhamente quente sob seus dedos... ou estaria ainda sonhando? Retirou a mão, nervosamente.
Daquela hora em diante, cada dia foi mais fácil que o anterior. As pernas ficaram mais fortes; as bolhas arrebentaram e as mãos ganharam calos; as moles coxas enrijeceram, flexíveis como couro.
O khal ordenara à criada Irri que ensinasse Dany montar à moda dothraki, mas sua verdadeira professora era a potranca. A égua parecia conhecer-lhe os estados de alma, como se partilhassem uma mente única. A cada dia que passava, Dany sentia-se mais segura sobre a sela. Os dothrakis eram um povo duro e sem sentimentalismos, e não tinham o costume de dar nomes aos animais; portanto, Dany pensava no animal apenas como a prata. Nunca amara tanto coisa alguma.
À medida que a viagem foi deixando de ser uma provação, Dany começou a reparar nas belezas da terra que a rodeava. Cavalgava à frente do khalasar com Drogo e seus companheiros de sangue, e assim encontrava todas as regiões frescas e intactas. Atrás deles, a grande horda podia rasgar a terra e enlamear os rios e levantar nuvens de pó que dificultavam a respiração, mas os campos à sua frente estavam sempre viçosos e verdejantes.
Atravessaram as colinas onduladas de Norvos, deixando para trás fazendas de campos amurados e pequenas aldeias onde o povo observava ansioso, de cima de muros brancos de estuque. Atravessaram pelo vau três largos rios plácidos e um quarto que era rápido, estreito e traiçoeiro, acamparam ao lado de uma grande catarata azul e rodearam as ruínas tombadas de uma vasta cidade morta, onde se dizia que os fantasmas gemiam por entre enegrecidas colunas de mármore. Correram por estradas valirianas com mil anos de idade, retas como uma seta dothraki. Ao longo de meia lua, atravessaram a Floresta de Qohor, onde as folhas formavam uma abóbada dourada muito acima deles e os troncos das árvores eram tão largos como portões de uma cidade.
Havia grandes alces naqueles bosques, tigres malhados e lêmures de pelo prateado e enormes olhos púrpuros, mas todos fugiram antes que o khalasar se aproximasse e Dany não chegou a vislumbrá-los. Por essa altura, sua agonia era uma memória que se desvanecia. Ainda sentia-se dolorida depois de um longo dia de viagem, mas, de algum modo, a dor incorporava agora certa doçura, e ela subia de boa vontade para a sela todas as manhãs, ansiosa por saber que maravilhas a esperavam nas terras que se estendiam à frente. Começou a encontrar prazer até mesmo nas noites, e embora ainda gritasse quando Drogo a possuía, nem sempre era de dor.
Na base da colina, as plantas ergueram-se à sua volta, altas e flexíveis. Trotando, Dany penetrou na planície, deixando-se perder na relva, abençoadamente só. No khalasar nunca estava só. Khal Drogo só vinha encontrá-la depois de o sol se pôr, mas as criadas a alimentavam, a banhavam e dormiam junto à porta de sua tenda; os companheiros de sangue de Drogo e os homens de seu khas nunca estavam muito distantes, e o irmão era uma sombra indesejada, dia e noite. Dany conseguia ouvi-lo no topo da colina, com a voz esganiçada de raiva enquanto gritava a Sor Jorah. Ela avançou, submergindo-se mais profundamente no Mar Dothraki.
O verde a engoliu. O ar estava enriquecido com os odores da terra e das plantas, misturados com o cheiro do cavalo, do suor de Dany e do óleo em seu cabelo. Cheiros dothrakis. Pareciam pertencer àquele lugar. Dany respirou tudo aquilo, rindo. Teve uma súbita vontade de sentir o chão debaixo dos pés, de fechar os dedos sobre aquele espesso solo negro.
Desmontando, deixou a prata pastando enquanto descalçava as botas de cano alto. Viserys chegou junto dela tão subitamente como uma tempestade de verão, com o cavalo se empinando quando puxou as rédeas com demasiada força.
- Como se atrevei - ele gritou com ela. - Dar ordens a mim? A mim? - saltou do cavalo, tropeçando ao pisar no chão. Seu rosto estava corado quando se pôs em pé. Agarrou-a e a sacudiu. - Esqueceu-se de quem é? Olhe para você. Olhe para você!
Dany não precisava se olhar. Estava descalça, com o cabelo oleado, usando couros dothrakis de montar e um vestido pintado que lhe fora dado como presente de noivado. Parecia pertencer àquele lugar. Viserys estava sujo e enodoado, vestido com suas sedas citadinas e cota de malha.
Ele ainda gritava.
- Você não dá ordens ao dragão. Entende isto? Eu sou o Senhor dos Sete Reinos, não receberei ordens de uma puta qualquer de chefe de horda, está ouvindo? - introduziu a mão sob o decote dela, enterrando dolorosamente os dedos no seio. - Está ouvindo?
Dany o afastou com um forte empurrão. Viserys a fitou, com os olhos lilás incrédulos. Ela nunca o desafiara. Nunca lutara. A raiva distorceu-lhe as feições. Ela sabia que ele agora a machucaria, e muito. Crac.
O chicote fez um som de trovão. A ponta enrolou-se no pescoço de Viserys e o atirou para trás. Ele se estatelou na relva, atordoado e estrangulado. Os cavaleiros dothrakis gritavam enquanto ele lutava por se libertar. O dono do chicote, o jovem Jhogo, arriscou uma pergunta. Dany não compreendeu suas palavras, mas então Irri chegou, com Sor Jorah e o resto de seu khas.
- Jhogo pergunta se deve matá-lo, Khaleesi - disse Irri.
- Não - Dany respondeu. - Não.
Jhogo compreendeu aquilo. Um dos outros ladrou um comentário, e os dothrakis riram. Irri disse a Viserys:
- Quaro pensa que deve cortar uma orelha para lhe ensinar respeito.
O irmão estava de joelhos, com os dedos enterrados sob os anéis de couro, gritando incoerentemente, lutando por ar. O chicote enrolava-se apertado na traqueia,
- Diga-lhes que não o quero ferido - disse Dany.
Irri repetiu suas palavras em dothraki. Jhogo deu um puxão no chicote, sacudindo Viserys como uma marionete na ponta de uma corda. Ele se estatelou de novo, livre do abraço de couro, com uma fina linha de sangue sob o queixo, no local onde o chicote cortara profundamente a pele.
- Eu o preveni do que aconteceria, senhora - disse Sor Jorah Mormont. - Disse-lhe para ficar na colina, conforme havia ordenado.
- Eu sei que sim - respondeu Dany, observando Viserys, que jazia no chão, inspirando ruidosamente ar, corado e soluçando. Era uma coisa digna de pena. Sempre fora. Por que nunca antes tinha compreendido? Havia um lugar oco dentro dela, o lugar onde estivera seu medo.
- Tome o cavalo dele - ordenou Dany a Sor Jorah. Viserys a olhou de boca aberta. Não conseguia acreditar no que ouvia; e Dany tampouco conseguia acreditar bem no que dizia. No entanto, as palavras vieram. - Que meu irmão caminhe atrás de nós até o khalasar - entre os dothrakis, o homem que não monta a cavalo não é homem nenhum, o mais vil dos seres vis, sem honra nem orgulho. - Que todos o vejam tal como é.
- Não! - Viserys gritou. Virou-se para Sor Jorah, suplicando na língua comum, com palavras que os cavaleiros não compreenderiam. - Bata-lhe, Mormont. Fira-a. É seu rei que está ordenando. Mate estes cães dothrakis e dê-lhe uma lição.
Os olhos do cavaleiro exilado saltaram de Dany para o irmão; ela de pés nus, com terra entre os dedos dos pés e óleo no cabelo, ele com suas sedas e seu aço.
Dany conseguiu ver a decisão no rosto do homem.
- Ele andará, Khaleesi - Sor Jorah decidiu. Agarrou as rédeas do cavalo do irmão, enquanto Dany montava sua prata.
Viserys o olhou de boca aberta e sentou-se na terra. Manteve-se em silêncio, mas recusou-se a andar, e seus olhos estavam cheios de veneno ao vê-los se afastar. Em breve estava perdido por entre as plantas altas. Quando deixaram de vê-lo, Dany ficou com receio.
- Ele conseguirá descobrir o caminho de volta - perguntou a Sor Jorah enquanto caminhavam.
- Mesmo um homem tão cego como seu irmão deve ser capaz de seguir nosso rastro - respondeu o cavaleiro.
- Ele é orgulhoso. Pode se sentir muito envergonhado para regressar.
Jorah soltou uma gargalhada.
- Para onde mais pode ir? Se não conseguir encontrar o khalasar, certamente o khalasar o encontrará. É difícil morrer afogado no Mar Dothraki, menina.
Dany compreendeu a verdade daquelas palavras. O khalasar era como uma cidade em marcha, mas não marchava às cegas. Batedores patrulhavam o terreno bem à frente da coluna principal, alerta a qualquer sinal de caça ou inimigos, enquanto os outros guardavam os flancos. Não deixavam passar nada, especialmente ali, naquela terra, naquele lugar que lhes dera origem. Aquelas planícies eram uma parte deles... e agora também dela.
- Eu enfrentei ele - disse ela, com espanto na voz. Agora que o confronto terminara, parecia um estranho sonho que tinha tido. - Sor Jorah, pense... ele estará tão zangado quando regressar... - estremeceu. - Acordei o dragão, não acordei?
Sor Jorah resfolegou.
- E capaz de acordar os mortos, pequena? Seu irmão Rhaegar foi o último dragão e morreu no Tridente. Viserys é menos que a sombra de uma serpente.
Aquelas palavras bruscas sobressaltaram-na. Era como se tudo aquilo em que sempre acreditara fosse subitamente posto em causa.
- O senhor... lhe prestava vassalagem...
- É verdade, pequena - disse Sor Jorah. - E se seu irmão é a sombra de uma serpente, em que é que isso transforma os seus servos? - a voz dele soava amarga.
- Ele ainda é o verdadeiro rei. Ele é...
Jorah puxou as rédeas do cavalo e olhou para ela.
- Agora a verdade. Gostaria de ver Viserys sentado num trono?
Dany refletiu sobre a ideia.
- Não seria um rei lá muito bom, não é?
-Já houve piores..., mas não muitos - o cavaleiro esporeou o cavalo e retomou a viagem. Dany seguiu logo atrás dele.
- Mas, mesmo assim - disse - o povo o espera. Magíster Illyrio diz que o povo borda estandartes do dragão e reza para que Viserys regresse através do mar estreito para libertá-lo.
- O povo reza por chuva, filhos saudáveis e um verão que nunca termine - disse-lhe Sor Jorah. - Não lhe interessa se os grandes senhores lutam suas guerras de tronos, desde que seja deixado em paz - encolheu os ombros. - E nunca é.
Dany seguiu em silêncio durante algum tempo, trabalhando as palavras do companheiro como se fossem um quebra-cabeça. Pensar que o povo podia se importar tão pouco se seu soberano era um rei verdadeiro ou um usurpador ia contra tudo o que Viserys lhe dissera. Mas quanto mais refletia sobre as palavras de Jorah, mais lhe soavam a verdade.
- E por quem reza o senhor, Sor Jorah? - perguntou.
- Pela pátria - disse ele, a voz carregada de saudade.
- Eu também rezo pela pátria - disse ela, acreditando no que dizia.
Sor Jorah soltou uma gargalhada.
- Então olhe em volta, Khaleesi.
Mas não foram as planícies que Dany viu então. Foi Porto Real e a grande Fortaleza Vermelha que Aegon, o Conquistador, tinha construído. Foi Pedra do Dragão, onde nascera. No olho de sua mente, esses lugares ardiam com mil luzes, um fogo em brasa em cada janela. No olho de sua mente, todas as portas eram vermelhas.
- Meu irmão nunca recuperará os Sete Reinos - ela disse, compreendendo que já sabia disso havia muito. Soubera-o por toda a vida. Nunca se permitira dizer as palavras, nem mesmo num sussurro, mas dizia-as agora para que Jorah Mormont e todo mundo as ouvisse.
Sor Jorah enviou-lhe um olhar avaliador.
- Pensa que não?
- Ele não lideraria um exército mesmo se o senhor meu marido lhe oferecesse - Dany respondeu. - Não tem nem uma moeda, e o único cavaleiro que o segue o insulta dizendo que é menos que uma serpente. Os dothrakis zombam de sua fraqueza. Ele nunca nos levará para casa.
- Criança sensata - o cavaleiro sorriu.
- Não sou criança nenhuma - disse-lhe com ferocidade.
Apertou com os calcanhares os flancos de sua montaria, pondo a prata a galope. Correu mais e mais depressa, deixando Jorah, Irri e os outros muito para trás, com o vento quente no cabelo e o sol que se punha vermelho no rosto. Quando alcançou o khalasar, o crepúsculo já chegara.
Os escravos tinham erguido sua tenda junto à margem de uma lagoa alimentada por uma nascente. Ouviam-se vozes rudes vindas do palácio de folhas trançadas, na colina. Em breve se ouviriam gargalhadas, quando os homens de seu khas contassem a história que acontecera na base da colina. Quando Viserys chegasse, coxeando, todos os homens, mulheres e crianças do acampamento o reconheceriam como um caminhante. Não havia segredos no khalasar.
Dany entregou prata aos escravos para que dela tratassem e entrou em sua tenda. Sob a seda fazia frio, e estava escuro. Ao deixar cair a porta de pano atrás das costas, Dany viu um dedo de poeirenta luz vermelha estender-se para tocar os ovos de dragão do outro lado da tenda. Por um instante, mil gotículas de chama escarlate nadaram perante seus olhos. Pestanejou, e elas desapareceram.
Pedra, disse a si própria. São apenas pedra, até Illyrio lhe dissera, os dragões estão todos mortos. Pousou a palma da mão no ovo negro, com os dedos suavemente espalhados pela curva da casca. A pedra estava morna. Quase quente.
- O sol - sussurrou Dany. - O sol os aqueceu durante a viagem.
Ordenou às criadas que lhe preparassem um banho. Doreah fez uma fogueira fora da tenda, enquanto Irri e Jhiqui foram buscar a grande banheira de cobre - outro presente de noivado - montadas em cavalos de carga, e trouxeram água da lagoa.
Quando o banho começou a fumegar, Irri a ajudou a entrar e também entrou logo a seguir.
-Já viu alguma vez um dragão? - perguntou, enquanto Irri lhe esfregava as costas e Jhiqui lhe lavava abundantemente o cabelo com água para tirar a areia. Ouvira dizer que os primeiros dragões tinham vindo do leste, das Terras das Sombras para lá de Asshai e das ilhas do Mar de Jade. Talvez alguns ainda aí vivessem, em reinos estranhos e selvagens.
- Dragões já não há, Khaleesi - disse Irri.
- Estão mortos - concordou Jhiqui. - Há muitos, muitos anos.
Viserys dissera-lhe que os últimos dragões Targaryen não tinham morrido há mais de século e meio, durante o reinado de Aegon III, conhecido como Desgraça dos Dragões. E, para ela, não parecia tanto tempo assim.
- Em toda a parte? - perguntou, desapontada. - Mesmo no leste? - a magia morrera no Oeste quando a Perdição caíra sobre Valíria e as Terras do Longo Verão, e nem o aço forjado com feitiços, nem os cantores de tempestade, nem os dragões conseguiram afastá-la, mas Dany sempre ouvira dizer que o leste era diferente. Diziam que manticoras percorriam as ilhas do Mar de Jade, que basiliscos infestavam as selvas de Yi Ti, que encantadores, feiticeiros e aeromantes praticavam abertamente suas artes em Asshai, ao passo que magos negros e de sangue construíam terríveis feitiçarias na escuridão da noite. Por que não haveria de ter também dragões?
- Dragão, não - disse Irri. - Bravos homens os matam, porque dragões são terríveis, animais malvados. É sabido.
- É sabido - concordou Jhiqui.
- Um mercador de Qarth disse-me uma vez que os dragões vinham da Lua - disse a loura Doreah enquanto aquecia uma toalha perto da fogueira.
Jhiqui e Irri eram da mesma idade de Dany, jovens dothrakis tomadas como escravas quando Drogo destruiu o khalasar do pai delas. Doreah era mais velha, com quase vinte anos. Magíster Illyrio a encontrara num palácio dos prazeres em Lys. Molhados cabelos prateados caíram-lhe em frente aos olhos quando Dany virou a cabeça, curiosa.
- Da Lua?
- Ele disse-me que a Lua era um ovo, Khaleesi - respondeu a jovem lysena. - Antes havia duas luas no céu, mas uma delas se aproximou demais do Sol e rachou com o calor. Mil milhares de dragões jorraram de dentro dela e beberam o fogo do Sol. É por isso que os dragões exalam chamas. Um dia esta Lua também beijará o Sol, e então rachará e os dragões regressarão.
As duas jovens dothrakis riram.
- É uma tola escrava de cabelos de palha - disse Irri.
- Lua não é ovo. Lua é deus, mulher esposa do Sol. Todos sabem.
- Todos sabem - Jhiqui concordou.
A pele de Dany estava corada e cor-de-rosa quando saiu da banheira. Jhiqui a deitou para olear seu corpo e limpar os poros. Depois disso, Irri aspergiu-a com flor-de-especiaria e canela. Enquanto Doreah lhe escovava o cabelo até brilhar como seda fiada, Dany refletiu sobre a Lua, os ovos e os dragões.
O jantar foi uma simples refeição de frutas, queijo e pão frito, com um cântaro de vinho com mel para acompanhar.
- Doreah, fique e coma comigo - ordenou Dany quando mandou embora as outras criadas. A lysena tinha cabelo da cor de mel e olhos que eram como o céu do verão.
Ela abaixou os olhos quando ficaram sós.
- Honra-me, Khaleesi - disse, mas não era honra alguma, apenas serviço. Ficaram sentadas, juntas, até muito depois de a lua nascer, conversando.
Naquela noite, quando Khal Drogo chegou, Dany o esperava. Ele parou à porta da tenda e a olhou, surpreso. Ela se levantou devagar, abriu suas sedas de dormir e as deixou cair ao chão.
- Esta noite, devemos ir lá para fora, meu senhor - disse-lhe, pois os dothrakis acreditavam que todas as coisas com importância na vida de um homem devem ser feitas a céu aberto.
Khal Drogo a seguiu para a luz cio luar, com os sinos no cabelo a tilintar baixinho. A alguns metros da tenda havia uma cama com um mole colchão de ervas, e foi para lá que Dany o puxou. Quando ele tentou virá-la, ela pôs-lhe a mão no peito.
- Não. Esta noite quero olhá-lo no rosto.
Não há privacidade no coração do khalasar, Dany sentiu olhos sobre ela enquanto o despia, ouviu vozes baixas enquanto fazia as coisas que Doreah lhe dissera para fazer. Não tinha importância. Não era a khaleesi? Os dele eram os únicos olhos que importavam, e quando o montou viu algo neles que nunca vira antes. Cavalgou-o com tanto vigor como já cavalgara a sua prata, e quando chegou o momento do prazer, Khal Drogo gritou seu nome.
Estavam no lado mais distante do Mar Dothraki quando Jhiqui afagou com os dedos o suave inchaço na barriga de Dany e disse:
- Khaleesi, está à espera de um bebê.
- Eu sei - Dany respondeu.
Isso aconteceu no décimo quarto dia do seu nome.  

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