terça-feira, 13 de agosto de 2013

24 - BRAN


No pátio, lá embaixo, Rickon corria com os lobos. Bran observava, sentado em frente à janela. Onde quer que seu irmão fosse, Vento Cinzento estava lá primeiro, saltando na frente para lhe cortar o caminho, até que Rickon o via, gritava de alegria e desatava a correr em outra direção. Cão Felpudo corria logo atrás dele, rodopiando e mordendo se os outros lobos se aproximassem demais. Seu pelo tinha escurecido até se tornar todo negro, e seus olhos eram fogueiras verdes.
O Verão, de Bran, vinha por último. Era prata e fumo, com olhos amarelo-ouro que viam tudo, mas era menor que Vento Cinzento, e também mais cauteloso. Bran o achava o mais inteligente da ninhada. Ouvia o riso sem fôlego do irmão, enquanto corria pela terra batida com suas pequenas pernas de criança.
Seus olhos começaram a arder. Queria estar lá embaixo, rindo e correndo. Zangado com aquele pensamento, Bran esfregou as lágrimas antes que tivessem tempo de cair. O oitavo dia do seu nome tinha chegado e partido. Era agora quase um homem feito, velho demais para chorar.
- Era só uma mentira - ele falou amargamente, lembrando-se do corvo de seu sonho. - Não posso voar. Sequer posso correr.
- Os corvos são todos mentirosos - concordou a voz da Velha Ama da cadeira onde tricotava. - Conheço uma história sobre um corvo.
- Não quero mais histórias - Bran exclamou, com petulância na voz. Antes, ele gostava da Velha Ama e de suas histórias. Antes. Agora era diferente. Agora a deixavam junto dele o dia inteiro, para vigiá-lo, limpá-lo e evitar que se sentisse só, mas ela só tornava as coisas piores. - Detesto suas histórias estúpidas.
A velha mulher mostrou-lhe um sorriso sem dentes.
- Minhas histórias? Não, meu pequeno senhor, minhas, não. As histórias são, antes de mim e depois de mim, e antes de você também.
Ela era uma velha muito feia, pensou Bran rancorosamente; encolhida e enrugada, quase cega, demasiado fraca para subir escadas, sem lhe restarem mais que alguns fios de cabelo branco para cobrir um couro cabeludo cor-de-rosa e pintalgado. Ninguém sabia bem que idade tinha, mas o pai dizia que já a chamavam Velha Ama quando ele próprio ainda era rapaz.
Certamente era a pessoa mais velha de Winterfell, e talvez dos Sete Reinos. A Ama viera para o castelo como ama de leite de um Brandon Stark cuja mãe morrera ao dá-lo à luz, talvez o irmão mais velho de Lorde Rickard, o avô de Bran, ou o irmão mais novo, ou um irmão do pai de Lorde Rickard. Às vezes a Velha Ama contava a história de uma maneira, às vezes, de outra. Mas em todas o rapazinho morrera aos três anos de um resfriado de verão, mas a Velha Ama permanecera em Winterfell com seus próprios filhos. Perdera ambos os rapazes na guerra em que Rei Robert conquistara o trono, e o neto fora morto nas muralhas de Pyke durante a rebelião de Balon Breyjoy. As filhas já tinham se casado havia muito tempo, ido viver longe e morrido, Tudo o que restava de seu sangue era Hodor, o gigante simplório que trabalhava nas cavalariças, mas a Velha Ama vivia e continuava a viver, com suas agulhas e suas histórias.
- Não me interessa saber de quem são as histórias - Bran respondeu - eu as detesto - não queria as histórias e não queria a Velha Ama. Queria a mãe e o pai. Queria correr com Verão aos saltos a seu lado, subir a torre quebrada e dar milho aos corvos, voltar a montar seu pônei com os irmãos, e que tudo fosse como antes.
- Sei uma história sobre um rapaz que detestava histórias - a Velha Ama insistiu com seu sorrisinho estúpido, enquanto as agulhas se moviam, clic, clic, clic, e Bran sentiu-se capaz de gritar com ela.
Sabia que as coisas nunca voltariam a ser como antes. O corvo o levara para voar, ledo engano, mas, quando acordou, estava quebrado, e o mundo mudado. Tinham-no abandonado todos, o pai, a mãe, as irmãs e até o irmão bastardo Jon. O pai prometera levá-lo para Porto Real montado num cavalo verdadeiro, mas tinham partido sem ele.
Meistre Luwin enviara uma ave com uma mensagem para Lorde Eddard, outra para a mãe, e uma terceira para Jon, na Muralha, mas não houve respostas. "Muitas vezes as aves se perdem, criança", dissera-lhe o meistre. "Há muitas milhas e muitos falcões daqui a Porto Real, e a mensagem pode não ter chegado." Mas, para Bran, era como se tivessem todos morrido enquanto dormia... ou talvez ele tivesse morrido e todos o tinham esquecido. Jory, Sor Rodrik e Vayon Poole também tinham partido, e Hullen, Harwin e Gordo Tom, e um quarto da guarda.
Só restavam Robb e o bebê Rickon, e Robb estava mudado, era agora o Senhor, ou tentava sê-lo. Usava uma espada verdadeira e nunca sorria. Passava os dias exercitando a guarda e praticando esgrima, fazendo o pátio ressoar com o som do aço, enquanto Bran observava, desamparado, da janela, A noite fechava-se com Meistre Luwin, conversando, ou revendo os livros de contas. Por vezes saía a cavalo com Hallis Mollen e permanecia longe durante dias, visitando fortificações distantes. Sempre que estava longe por mais de um dia, Rickon chorava e perguntava a Bran se o irmão regressaria. E mesmo quando estava em Winterfell, Robb, o Senhor, parecia ter mais tempo para Hallis Mollen e Theon Greyjoy do que para os irmãos.
- Eu podia lhe contar a história de Brandon, o Construtor - disse a Velha Ama. - Esta sempre foi a sua favorita.
Milhares e milhares de anos antes, Brandon, o Construtor, erguera Winterfell e, segundo alguns diziam, a Muralha. Bran conhecia a história, mas nunca fora sua favorita. Talvez um dos outros Brandons tivesse gostado dela. Por vezes a Ama falava com ele como se fosse o seu Brandon, o bebê que amamentara há tantos anos, e por vezes o confundia com o tio Brandon, que tinha sido morto pelo Rei Louco antes de Bran nascer. Ela vivera tanto tempo, dissera-lhe sua mãe uma vez, que todos os Brandons Stark se tinham transformado numa só pessoa em sua cabeça.
- Esta não é a minha favorita - Bran respondeu. - Minhas favoritas são as assustadoras - ouviu uma agitação qualquer lá fora e voltou a se virar para a janela. Rickon corria para a guarita, com os lobos atrás, mas a torre ficava fora de seu campo de visão, por isso não podia ver o que estava acontecendo, e socou sua coxa, frustrado, mas não sentiu nada.
- Ah, minha querida criança de verão - disse a Velha Ama em voz baixa - que sabe de medo? O medo pertence ao inverno, meu pequeno senhor, quando as neves se acumulam até três metros de profundidade e o vento gelado uiva do norte. O medo pertence à longa noite, quando o sol esconde o rosto durante anos e as crianças nascem, vivem e morrem sempre na escuridão, enquanto os lobos gigantes se tornam magros e famintos, e os caminhantes brancos se movem pelos bosques.
- Você está falando dos Outros - Bran falou, como que se lamentando.
- Os Outros - concordou a Velha Ama. - Há milhares e milhares de anos, caiu um inverno que era mais frio, duro e infinito que qualquer outro na memória do homem. Chegou uma noite que durou uma geração, e tanto tremeram e morreram os reis em seus castelos como os criadores de porcos em suas cabanas. As mulheres preferiram asfixiar os filhos a vê-los passar fome, e choraram, e sentiram as lágrimas congelarem em seu rosto - a voz e as agulhas calaram-se, ela olhou Bran com seus olhos claros e velados e perguntou: - Então, criança? Este é o tipo de história de que gosta?
- Bem... - disse Bran com relutância - sim, só que...
A Velha Ama acenou com a cabeça.
- Nessa escuridão, os Outros vieram pela primeira vez - a velha começou, enquanto as agulhas faziam clic, clic, clic. - Eram coisas frias, mortas, que odiavam o ferro, o fogo, o toque do sol e todas as criaturas com sangue quente nas veias. Arrasaram fortificações, cidades e reinos, derrubaram heróis e exércitos às centenas, montando seus pálidos cavalos mortos e liderando hostes de assassinados. Nem todas as espadas dos homens juntas logravam deter seu avanço, e até donzelas e bebês de peito neles não encontravam piedade. Perseguiam as donzelas através de florestas congeladas e alimentavam seus servos mortos com a carne de crianças humanas.
A voz da Ama tinha se tornado muito baixa, quase um sussurro, e Bran deu por si inclinando-se para a frente para ouvir.
- Esses foram os tempos antes da chegada dos ândalos, e muito antes de as mulheres terem fugido das cidades do Roine através do mar estreito, e os cem reinos desses tempos eram os reinos dos Primeiros Homens, que tinham tomado estas terras dos filhos da floresta. Mas aqui e ali, nos bosques mais densos, os filhos ainda viviam em suas cidades de madeira e colinas ocas, e os rostos das árvores mantinham-se vigilantes. E assim, enquanto o frio e a morte enchiam a terra, o último herói decidiu procurar os filhos da floresta, na esperança de que sua antiga magia pudesse reconquistar aquilo que os exércitos dos homens tinham perdido. Partiu para as terras mortas com uma espada, um cavalo, um cão e uma dúzia de companheiros. Procurou durante anos, até perder a esperança de chegar algum dia a encontrar os filhos da floresta em suas cidades secretas. Um por um os amigos morreram, e também o cavalo, e por fim até o cão, e sua espada congelou tanto que a lâmina se quebrou quando tentou usá-la. E os Outros cheiraram nele o sangue quente e seguiram-lhe o rastro em silêncio, perseguindo-o com matilhas de aranhas brancas, grandes como cães de caça...
De repente a porta se abriu com um bang, e o coração de Bran saltou-lhe até a boca num medo súbito, mas era apenas Meistre Luwin, com Hodor parado na escada atrás dele.
- Hodor! - anunciou o cavalariço, como era seu costume, com um enorme sorriso para todos.
Meistre Luwin não estava sorrindo.
- Temos visitantes - anunciou - e sua presença é solicitada, Bran,
- Mas agora estou ouvindo uma história - o menino protestou,
- As histórias esperam, meu pequeno senhor, e quando regressar, elas estarão aqui - disse a Velha Ama. - Os visitantes não são assim tão pacientes, e muitas vezes trazem suas próprias histórias.
- Quem é? - Bran perguntou a Meistre Luwin.
- Tyrion Lannister e alguns homens da Patrulha da Noite, com notícias de seu irmão Jon. Robb os está recebendo. Hodor, ajude Bran a descer até o salão?
- Hodor! - o moço concordou alegremente e abaixou-se para passar sua grande cabeça desgrenhada pela porta, Hodor tinha quase dois metros e quinze. Era difícil acreditar que fosse parente da Velha Ama. Bran perguntou a si mesmo se, quando envelhecesse, encarquilharia até ficar tão pequeno como a bisavó.
Não parecia provável, mesmo que Hodor vivesse até os mil anos. Hodor levantou Bran tão facilmente como se fosse um pequeno amontoado de feno e aninhou-o no peito maciço. Hodor exalava um leve odor de cavalos, mas não era um cheiro desagradável. Seus braços eram grossos, cheios de músculos e atapetados com pelos castanhos.
- Hodor - o gigante disse uma vez mais. Theon Greyjoy comentara que Hodor não sabia muito, mas ninguém podia duvidar de que conhecesse seu nome. A Velha Ama cacarejara como uma galinha quando Bran lhe contou isso, e ela então confessou que o verdadeiro nome de Hodor era Walder. Ninguém sabia de onde viera "Hodor", ela disse, mas quando ele começou a repetir Hodor, começaram a chamá-lo por esse nome. Era a única palavra que o gigante conhecia.
Deixaram a Velha Ama no quarto da torre com suas agulhas e suas memórias. Hodor cantarolava desafinadamente enquanto carregava Bran pelos degraus e através da galeria, com Meistre Luwin atrás, esforçando-se para acompanhar as longas passadas do cavalariço.
Robb estava sentado no cadeirão do pai, usando cota de malha, couro fervido e o rosto severo como o de um Senhor. Theon Greyjoy e Hallis Mollen estavam em pé a seu lado. Uma dúzia de guardas estava disposta ao longo das paredes de pedra cinzenta, sob janelas altas e estreitas. No centro da sala, encontravam-se o anão com seus criados e quatro estranhos vestidos com o negro da Patrulha da Noite. Bran sentiu a ira que pairava no salão no momento em que Hodor o carregou pela porta.
- Qualquer homem da Patrulha da Noite é bem-vindo aqui em Winterfell pelo tempo que desejar ficar - seu irmão dizia com a voz de Robb, o Senhor. Tinha a espada pousada sobre os joelhos, mostrando o aço para que todo mundo visse. Até Bran sabia o que significava receber um hóspede com uma espada desembainhada.
- Qualquer homem da Patrulha da Noite - repetiu o anão - mas eu não, percebo bem o que quer dizer, meu rapaz?
Robb pôs-se de pé e apontou para o homenzinho com a espada.
- Eu aqui sou senhor enquanto minha mãe e meu pai estiverem fora, Lannister. Não sou seu rapaz.
- Se é um senhor, bem podia aprender a cortesia de um - respondeu o homenzinho, ignorando a ponta da espada apontando para sua cara. - Seu irmão bastardo ficou com toda a elegância do seu pai, ao que parece.
- Jon - Bran arquejou nos braços de Hodor.
O anão virou-se para olhá-lo.
- Então é verdade, o rapaz está vivo. Quase não acreditei. Vocês, os Stark, são difíceis de matar.
- E é bom que vocês, os Lannister, se lembrem disso - disse Robb, baixando a espada. - Hodor, traga meu irmão aqui.
- Hodor - o gigante repetiu, e trotou em frente, sorrindo, e pousou Bran no cadeirão dos Stark, onde os Senhores de Winterfell se sentavam desde os tempos em que chamavam a si próprios Reis do Norte. A cadeira era de pedra fria, polida por incontáveis traseiros; as cabeças esculpidas de lobos selvagens rosnavam nas pontas de seus maciços braços. Bran agarrou-as ao se sentar, com as inúteis pernas a balançar. O grande cadeirão o fez sentir-se quase como um bebê.
Robb pousou-lhe a mão no ombro.
- Você disse que tinha assuntos a tratar com Bran. Pois bem, aqui está ele, Lannister.
Bran estava desconfortavelmente consciente dos olhos de Tyrion Lannister. Um era negro e o outro, verde, e ambos o olhavam, estudando-o, pesando-o.
- Disseram-me que era um belo escalador, Bran - disse o homenzinho. - Diga-me, como caiu naquele dia?
- Eu nunca... - insistiu Bran. Ele nunca caía, nunca, nunca, nunca.
- O rapaz não se recorda nada da queda, nem da escalada que a precedeu - disse Meistre Luwin com gentileza.
- Curioso - Tyrion Lannister respondeu.
- Meu irmão não está aqui para responder a perguntas, Lannister - Robb foi conciso no aviso. - Trate logo do que o trouxe aqui e ponha-se a caminho.
- Tenho um presente para você - disse o anão a Bran. - Gosta de montar a cavalo, rapaz?
Meistre Luwin adiantou-se.
- Senhor, a criança perdeu o uso das pernas. Não pode se sentar sobre um cavalo.
- Besteira - Lannister respondeu, - Com o cavalo e a sela certos, até um aleijado pode montar.
A palavra foi como uma faca espetada no coração de Bran. Sentiu lágrimas a subir-lhe aos olhos sem serem convidadas.
- Eu não sou um aleijado!
- Neste caso, eu não sou um anão - retrucou o anão, torcendo a boca.
- Meu pai se alegrará quando souber - Greyjoy riu.
- Que tipo de cavalo e sela está sugerindo? - perguntou Meistre Luwin.
- Um cavalo inteligente - Lannister respondeu. - O rapaz não pode usar as pernas para dirigir o animal, portanto, tem de se ajustar o cavalo ao cavaleiro, ensinar-lhe a responder às rédeas, à voz. Eu começaria com um potro não domado de um ano, sem ensinamentos antigos - tirou do cinto um papel enrolado. - Entregue isto ao seu fabricante de selas. Ele tratará do resto.
Meistre Luwin recebeu o papel da mão do anão, curioso como um pequeno esquilo cinzento. Desenrolou-o e o estudou.
- Estou vendo. Desenha bem, senhor. Sim, isto deve funcionar. Deveria ter pensado nisto.
- Para mim é mais fácil, Meistre. Não é muito diferente das minhas selas.
- Serei mesmo capaz de montar? - perguntou Bran. Queria acreditar neles, mas tinha medo. Talvez fosse apenas mais uma mentira. O corvo prometera-lhe que poderia voar.
- Será - disse-lhe o anão. - E juro, meu rapaz, sobre o dorso de um cavalo, será tão alto como qualquer deles.
Robb Stark pareceu confuso.
- Isto é alguma armadilha, Lannister? O que Bran representa para você? Por que quer ajudá-lo?
- Seu irmão Jon me pediu. E tenho um ponto fraco no coração por aleijados, bastardos e coisas quebradas - Tyrion Lannister pôs a mão sobre o coração e mostrou os dentes.
A porta que dava para o pátio foi escancarada. A luz do sol jorrou pelo salão no momento em que Rickon entrou de repente, sem fôlego. Os lobos gigantes vinham com ele. O rapaz parou na porta, de olhos muito abertos, mas os lobos entraram. Seus olhos encontraram Lannister, ou talvez tivessem farejado seu odor. Verão foi o primeiro a começar a rosnar. Vento Cinzento juntou-se a ele. Aproximaram-se do homenzinho, um pela direita, o outro pela esquerda.
- Os lobos não apreciam seu cheiro, Lannister - comentou Theon Greyjoy.
- Talvez seja hora de me retirar - disse Tyrion. Deu um passo para trás... e Cão Felpudo saiu das sombras atrás dele, rosnando. Lannister recuou, e Verão precipitou-se sobre ele, vindo do outro lado.
Cambaleou para longe, sobre pernas instáveis, e Vento Cinzento atacou-lhe o braço, rasgando-lhe a manga com os dentes e arrancando um pedaço de pano.
- Não! - gritou Bran do cadeirão ao mesmo tempo em que os homens de Lannister agarraram as armas. - Verão, aqui. Verão, venha!
O lobo gigante ouviu a voz, deu uma olhadela em Bran, e de novo em Lannister. Rastejou para trás, para longe do homenzinho, e sentou-se sob os pés oscilantes de Bran.
Robb prendera a respiração. Largou-a num suspiro e chamou: "Vento Cinzento". Seu lobo gigante moveu-se em sua direção, rápido e silencioso.
Agora restava apenas Cão Felpudo rugindo ao pequeno homem, com os olhos ardendo como fogo verde.
- Rickon, chame-o - gritou Bran para o irmão mais novo, e Rickon, como que acordando, gritou:
- Para casa, Felpudo, anda, para casa - o lobo negro dirigiu a Lannister um último rosnado e saltou para Rickon, que lhe deu um abraço apertado em torno do pescoço.
Tyrion Lannister desenrolou o cachecol, limpou com ele a testa e disse em voz monocórdia:
- Que interessante.
- Está bem, senhor? - perguntou um de seus homens, de espada na mão. Olhava nervosamente os lobos gigantes enquanto falava.
- Tenho a manga rasgada e os calções úmidos por motivos inconfessáveis, mas nada foi ferido, além da minha dignidade.
Até Robb parecia abalado.
- Os lobos... não sei por que fizeram isso.
- Não há dúvida de que me confundiram com o jantar - Lannister fez uma reverência rígida a Bran. - Agradeço-lhe por tê-los chamado, meu jovem. Garanto-lhe que me teriam achado bastante indigesto. E agora, realmente, retiro-me.
- Um momento, senhor - disse Meistre Luwin.
Aproximou-se de Robb e os dois conferenciaram muito, aos sussurros. Bran tentou ouvir o que diziam, mas suas vozes eram baixas demais.
Robb Stark finalmente embainhou a espada:
- Eu... eu posso ter me precipitado com o senhor. Foi bondoso com Bran e, bem... - Robb reconciliava-se com esforço. - Ofereço-lhe a hospitalidade de Winterfell se assim desejar, Lannister.
- Poupe-me de sua falsa cortesia, rapaz. Não gosta de mim e não me quer aqui. Vi uma estalagem fora das suas muralhas, na vila de inverno. Encontrarei ali uma cama e ambos dormiremos mais facilmente. Por alguns cobres até talvez encontre uma mulher agradável que me aqueça os lençóis - virou-se para um dos irmãos negros, um homem idoso com a coluna torcida e a barba emaranhada. - Yoren, seguimos para o sul ao nascer do dia. Encontre-me na estrada - e retirou-se, atravessando o salão com dificuldade sobre as curtas pernas, passando por Rickon e pela porta. Seus homens o seguiram.
Os quatro da Patrulha da Noite ficaram. Robb virou-se para eles aparentando incerteza.
- Mandei preparar aposentos, e não lhes faltará água quente para lavar a poeira da estrada. Espero que nos honrem com sua presença à mesa esta noite - Robb disse aquelas palavras de forma tão desastrada que até Bran notou; era um discurso que tinha aprendido, não palavras que lhe viessem do coração, mas os irmãos negros agradeceram-lhe da mesma forma.
Verão seguiu pelos degraus da torre quando Hodor levou Bran de volta para sua cama. A Velha Ama tinha adormecido na cadeira. Hodor disse"Hodor", recolheu a bisavó e a levou, ressonando baixinho, deixando Bran com seus pensamentos. Robb lhe prometera que poderia participar do festim com a Patrulha da Noite no Salão Grande.
- Verão - ele chamou. O lobo saltou para junto da cama. Bran o abraçou com tanta força que sentiu o hálito quente do animal na bochecha. - Agora posso montar - sussurrou para o amigo. - Em breve poderemos ir caçar na floresta, espere e verá.
Não demorou e Bran adormeceu. No sonho estava de novo escalando, alçando-se para o alto numa velha torre sem janelas, forçando os dedos entre pedras enegrecidas, com os pés lutando por um ponto de apoio. Escalou mais alto, e mais alto ainda, atravessando as nuvens e penetrando no céu noturno, mas a torre continuava a erguer-se à sua frente. Quando fez uma pausa para olhar para baixo, sentiu a cabeça girar, entontecida, e seus dedos escorregarem. Bran gritou e agarrou-se à vida. A terra estava a mil milhas de seus pés, e ele não sabia voar. Não sabia voar. Esperou até que o coração parasse de saltar no peito, até poder respirar, e recomeçou a escalada. Não havia caminho que não fosse para cima. Bem alto, delineadas contra uma lua esbranquiçada, parecia poder ver as formas de gárgulas. Tinha os braços machucados, doendo, mas não se atrevia a descansar. Forçou-se a subir mais depressa. As gárgulas o observaram. Seus olhos brilhavam vermelhos como carvões quentes num braseiro. Talvez tivessem sido leões antes, mas agora estavam retorcidas e grotescas. Bran conseguia ouvi-las segredarem umas às outras em suaves vozes de pedra, terríveis de ouvir. Não devia ouvir, disse a si mesmo, não devia ouvir; desde que não as ouvisse, estaria a salvo. Mas, quando as gárgulas se libertaram da pedra e percorreram o lado da torre até onde Bran se agarrava, compreendeu que afinal não estava a salvo."Eu não ouvi" choramingou, enquanto elas se aproximavam cada vez mais."Eu não ouvi, não ouvi."
Acordou sem fôlego, perdido na escuridão, e viu uma vasta sombra que se erguia sobre ele.
- Não ouvi - sussurrou, tremendo de medo, mas então a sombra disse "Hodor" e acendeu a vela ao lado da cama, e Bran suspirou de alívio.
Hodor limpou-lhe o suor com um pano morno e úmido e o vestiu com mãos hábeis e gentis. Quando chegou a hora, transportou-o até o Salão Grande, onde uma longa mesa tinha sido montada perto da fogueira. O lugar do senhor à cabeceira da mesa estava vazio, mas Robb sentava-se à direita, com Bran à sua frente. Naquela noite, comeram leitão, torta de pombo e nabos nadando em manteiga, e, para depois, o cozinheiro prometera favos de mel.
Verão abocanhava restos da mesa que Bran lhe dava, enquanto Vento Cinzento e Cão Felpudo lutavam por um osso num canto. Os lobos de Winterfell já não vinham para junto da mesa. Bran achara aquilo estranho a princípio, mas já começava a se habituar, Yoren era o irmão negro de maior patente, e assim o intendente fizera-o sentar-se entre Robb e Meistre Luwin. O velho tinha um cheiro azedo, como se há muito não tomasse banho. Rasgava a carne com os dentes, quebrava as costeletas para sugar o tutano dos ossos, e encolheu os ombros quando o nome de Jon Snow foi mencionado.
- A desgraça de Sor Alliser - grunhiu, e dois de seus companheiros partilharam uma gargalhada que Bran não compreendeu. Mas, quando Robb lhes perguntou por notícias de seu tio Benjen, os irmãos negros fecharam-se num silêncio agourento.
- O que está acontecendo? - Bran perguntou.
Yoren limpou os dedos em suas vestes.
- Há más notícias, senhores, uma maneira cruel de retribuir-lhes a carne e o hidromel, mas o homem que faz a pergunta deve aguentar a resposta. O Stark desapareceu.
Um dos outros homens disse:
- O Velho Urso o enviou para o exterior em busca de Waymar Royce, e ele ainda não voltou, senhor.
- Está muito atrasado - disse Yoren. - O mais certo é que esteja morto.
- Meu tio não está morto - exclamou Robb Stark em voz alta e num tom irritado. Ergueu-se no banco e pousou a mão no cabo da espada. - Ouviram-me? Meu tio não está morto! - sua voz ressoou nas paredes de pedra, e Bran subitamente sentiu medo.
O velho e malcheiroso Yoren olhou para Robb sem se impressionar:
- Com certeza, senhor - respondeu, e sugou os dentes para soltar um fiapo de carne preso. O mais novo dos irmãos negros moveu-se desconfortavelmente no assento:
- Não há homem na Muralha que conheça a Floresta Assombrada melhor que Benjen Stark. Ele encontrará o caminho de volta.
- Bem - disse Yoren - talvez sim, talvez não. Já houve bons homens que entraram nesses bosques e jamais voltaram.
Tudo em que Bran conseguiu pensar foi na história da Velha Ama sobre os Outros e o último herói, perseguido através dos bosques brancos por mortos e aranhas tão grandes como cães de caça. Sentiu medo por um momento, até se lembrar de como a história terminava,
- Os filhos o ajudarão - Bran exclamou - os filhos da floresta!
Theon Greyjoy soltou um riso abafado, e Meistre Luwin disse:
- Bran, os filhos da floresta morreram e desapareceram há milhares de anos. Tudo o que deles resta são as caras nas árvores.
- Aqui pode ser que seja verdade, Meistre - Yoren respondeu - mas lá, depois da Muralha, quem pode dizer? Lá em cima, um homem nem sempre consegue saber o que está vivo e o que está morto.
Naquela noite, depois dos pratos retirados, Robb levou, ele próprio, Bran para a cama. Vento Cinzento abria caminho e Verão vinha logo atrás. O irmão era forte para a idade, e Bran era tão leve como uma trouxa de trapos, mas a escada era íngreme e estreita, e Robb resfolegava quando chegaram ao topo.
Robb colocou Bran na cama, cobriu-o e soprou a vela. Durante algum tempo, ficou sentado ao seu lado no escuro. Bran quis falar com ele, mas não soube o que dizer.
- Vamos encontrar um cavalo para você, prometo - Robb lhe disse finalmente.
- Será que eles algum dia voltarão? - Bran perguntou.
- Sim - Robb disse, com tamanha esperança na voz que Bran soube que estava ouvindo o irmão, e não apenas Robb, o Senhor. - Nossa mãe virá para casa em breve. Talvez possamos sair a cavalo ao seu encontro quando ela chegar. Não acha que a surpreenderia vê-lo montado? - mesmo no quarto escuro Bran podia sentir o sorriso do irmão. - E depois iremos para o norte, ver a Muralha. Nem sequer avisaremos Jon, um dia simplesmente chegaremos lá, você e eu. Será uma aventura.
- Uma aventura - repetiu Bran em tom ansioso.
Então ouviu seu irmão soluçar. O quarto estava tão escuro que não conseguia ver as lágrimas no rosto de Robb, por isso estendeu a mão e encontrou a do irmão. Seus dedos entrelaçaram-se.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados