quinta-feira, 19 de setembro de 2013

14 - BRIENNE



O muro de pedra era velho e em ruínas, mas vê-lo do outro lado do terreno fez os pelos da nuca de Brienne se arrepiarem.
Foi ali que os arqueiros se esconderam e mataram o pobre Cleos Frey, pensou... Mas, meia milha à frente passou por outro muro que se parecia muito com o primeiro, e já não tinha tanta certeza. A estrada sulcada virava-se e se torcia, e as árvores nuas e marrons pareciam diferentes das verdes de que se lembrava. Já teria passado pelo local onde Sor Jaime desembainhara a espada do primo? Onde estavam os bosques nos quais tinham lutado? E o riacho em que tinham chapinhado enquanto se golpeavam um ao outro até que o ruído fizera que os Bravos Companheiros caíssem sobre eles?
- Senhora? Sor? - Podrick nunca sabia bem como chamá-la. - O que procura?
Fantasmas.
- Um muro por onde passei há tempos. Não importa - isso aconteceu quando Sor Jaime ainda tinha ambas as mãos. Como o abominava, e a todos os seus sarcasmos e sorrisos. - Fique quieto, Podrick. Ainda pode haver fora da lei nesses bosques.
O garoto olhou as árvores nuas e marrons, as folhas úmidas, a estrada lamacenta que se estendia à frente.
- Eu tenho uma espada. Posso lutar.
Mas não suficientemente bem. Brienne não duvidava da coragem do garoto, apenas da sua prática. Podia ser um escudeiro, pelo menos no nome, mas os homens de quem fora escudeiro tinham-no servido mal.
Arrancara-lhe a história aos poucos ao longo da estrada desde Valdocaso. Pertencia a um ramo menor da Casa Payne, um rebento empobrecido que brotara das virilhas de um filho mais novo. O pai passara a vida como escudeiro de primos mais ricos e gerara Podrick na filha de um fabricante de velas com quem se casara antes de morrer na Rebelião Greyjoy. Quando tinha quatro anos, a mãe o abandonou com um desses primos, para poder correr atrás de um cantor ambulante que lhe tinha posto outro bebê na barriga. Podrick não se lembrava de sua aparência. Sor Cedric Payne foi a coisa mais parecida com um pai que o garoto conheceu, embora, por suas histórias gaguejadas, parecesse a Brienne que o primo Cedric tratara Podrick mais como um criado do que como um filho. Quando Rochedo Casterly convocou os vassalos, o cavaleiro levara-o consigo para tratar de seu cavalo e limpar sua cota de malha. Então, Sor Cedric foi morto nas terras fluviais enquanto lutava na hoste de Lorde Tywin,
Longe de casa, sozinho e sem vintém, o garoto ligara-se a um cavaleiro andante gordo chamado Sor Lorimer, o Barriga, que fazia parte do contingente de Lorde Lefford, encarregado da proteção do comboio logístico.
"Os rapazes que guardam a comida são sempre os que comem melhor” gostava de dizer Sor Lorimer, até ser descoberto com um pernil de porco salgado que roubara das reservas pessoais de Lorde Tywin. Tywin Lannister decidiu enforcá-lo como lição para os outros saqueadores. Podrick tinha partilhado o pernil, e podia ter também a corda, mas seu nome o salvou. Sor Kevan Lannister ficou a cargo dele, e algum tempo mais tarde pôs o garoto para servir de escudeiro ao sobrinho Tyrion.
Sor Cedric ensinara Podrick a cuidar de um cavalo e examinar as ferraduras em busca de pedras, e Sor Lorimer ensinara-lhe como roubar, mas nem um nem outro lhe dera grande treino com uma espada. O Duende, pelo menos, despachara-o para o mestre de armas da Fortaleza Vermelha quando chegaram à corte. Mas Sor Aron Santagar foi morto durante os tumultos do pão, o que foi o fim do treino para Podrick.
Brienne fez duas espadas com madeira de galhos caídos para ter uma ideia da perícia de Podrick. Gostou de ver que o garoto era lento na fala, mas não com as mãos. Embora destemido e atento, também estava desnutrido e era muito magro, nem perto de ter a força necessária. Se sobrevivera à Batalha da Água Negra, como afirmava, só podia ter sido porque ninguém tinha achado que valesse a pena matá-lo.
“Pode chamar a si mesmo de escudeiro” disse-lhe, "mas vi pajens com metade de sua idade que poderiam deixá-lo sangrando. Se ficar comigo, vai adormecer quase todas as noites com bolhas nas mãos e manchas negras nos braços, e ficará tão duro e dolorido que quase não dormirá. Não vai querer isso”
“Quero” insistiu o rapaz. “Quero isso mesmo. As manchas negras e as bolhas. Quer dizer, não quero, mas quero. Sor. Senhora.”
Até aquele momento, ele tinha permanecido fiel à palavra dada, e Brienne à sua. Podrick não se queixava. Todas as vezes que lhe aparecia uma bolha nova na mão da espada, sentia necessidade de mostrá-la com orgulho. E também cuidava bem dos cavalos. Ainda não é um escudeiro, lembrou a si mesma, mas não sou nenhum cavaleiro, por mais que ele me chame “sor”. Teria mandado o garoto embora, mas ele não tinha para onde ir. Além disso, e embora Podrick dissesse que não sabia para onde fora Sansa Stark, talvez soubesse mais do que o que tinha consciência. Algum comentário casual, meio lembrado, podia conter a chave para a demanda de Brienne.
- Sor? Senhora? - Podrick apontou. - Há um carro ali.
Brienne viu: um carro de bois de madeira, com duas rodas e flancos elevados. Um homem e uma mulher esforçavam-se com os tirantes, puxando o carro ao longo dos sulcos na direção de Lagoa da Donzela. Gente do campo, pelo aspecto.
- Agora, devagar - disse ao garoto. - Eles podem nos tomar por dois fora da lei. Não diga mais do que o necessário, e seja cortês.
- Vou ser, sor. Cortês. Senhora - o garoto pareceu quase satisfeito com a ideia de ser confundido com um fora da lei.
Os camponeses foram observando ambos com cautela enquanto se aproximavam a trote, mas depois de Brienne deixar claro que não lhes pretendiam fazer mal, permitiram que seguissem a seu lado.
- Nós tínhamos um boi - disse-lhe o velho enquanto abriam caminho por entre os campos afogados de ervas daninhas, lagos de lama mole e árvores queimadas e enegrecidas - mas os lobos levaram-no - o homem tinha o rosto vermelho do esforço de puxar o carro. - Também nos levaram a filha e com ela fizeram o que quiseram, mas ela voltou depois da batalha lá embaixo, em Valdocaso. O boi não. Os lobos o comeram, imagino.
A mulher tinha pouco a acrescentar. Era vinte anos mais nova do que o homem, mas não proferiu palavra, limitou-se a olhar para Brienne do mesmo modo como poderia ter olhado para um vitelo de duas cabeças. A Donzela de Tarth já vira tais olhares antes. A Senhora Stark fora gentil com ela, mas a maior parte das mulheres era tão cruel como os homens. Não saberia dizer o que a magoava mais, se as moças bonitas com suas línguas de vespa e gargalhadas estaladiças, ou se as senhoras de olhos frios que escondiam o desdém por trás de uma máscara de cortesia. E as mulheres comuns podiam ser piores do que ambas.
- Lagoa da Donzela estava toda em ruínas da última vez que a vi - disse. - Os portões estavam quebrados e metade da vila tinha sido queimada.
- Reconstruíram-na um pouco. Aquele Tarly é um homem duro, mas um lorde mais corajoso do que o Mooton. Ainda há bandos de fora da lei na floresta, mas não tantos como antes. Tarly capturou os piores, e os deixou uma cabeça mais curtos com aquela grande espada que tem - virou a cabeça e cuspiu. - Não viram algum fora da lei na estrada?
- Nenhum - desta vez. Quanto maior a distância para Valdocaso, mais vazia tinha estado a estrada. Os únicos viajantes que vislumbraram sumiram na floresta antes de se aproximarem deles, exceto um grande septão barbudo que encontraram caminhando com duas vintenas de seguidores de pés doloridos. As estalagens por que tinham passado tinham sido saqueadas e abandonadas, ou transformadas em fortificações. No dia anterior tinham encontrado uma das patrulhas de Lorde Randyll, eriçada de arcos e lanças. Os cavaleiros tinham cercado ambos enquanto seu capitão interrogava Brienne, mas, por fim, os deixaram seguir caminho.
“Tenha cautela, mulher. Os próximos homens que encontrar podem não ser tão honestos como meus rapazes. Cão de Caça atravessou o Tridente com uma centena de fora da lei, e diz-se que andam violando todas as moças que encontram e cortando-lhes as tetas como troféus.”
Brienne sentiu-se obrigada a transmitir aquele aviso ao agricultor e à mulher. O homem balançou a cabeça enquanto lhe contava a história, mas quando terminou voltou a cuspir e disse;
- Cães, lobos e leões, que os Outros os carreguem a todos. Esses fora da lei não se atreverão a chegar muito perto de Lagoa da Donzela. Pelo menos enquanto Lorde Tarly tiver o governo do lugar.
Brienne conhecia Lorde Randyll Tarly dos tempos passados na hoste do Rei Renly. Embora não conseguisse encontrar em si capacidade para gostar do homem, tampouco era capaz de esquecer a dívida que tinha para com ele. Se os deuses forem bons, passaremos por Lagoa da Donzela antes que ele saiba que lá estou.
- A vila será devolvida a Lorde Mooton depois da luta terminada - disse ao agricultor. - Sua senhoria foi perdoada pelo rei.
- Perdoado? - o velho soltou uma gargalhada - Por quê? Por ficar com o cu sentado na merda do seu castelo? Mandou homens a Correrrio para lutar, mas ele não foi. Os leões saquearam-lhe a vila, e depois os lobos fizeram o mesmo, e depois mercenários, e sua senhoria ficou sentadinho e em segurança atrás de suas muralhas. O irmão nunca se esconderia assim. Sor Myles foi duro como rocha até aquele Robert matá-lo.
Mais fantasmas, Brienne pensou.
- Ando à procura de minha irmã, uma bela donzela de treze anos. Talvez a tenha visto?
- Não vi donzelas, nem belas nem feias.
Ninguém viu. Mas tinha de continuar perguntando.
- A filha de Mooton, essa é uma donzela - prosseguiu o homem. - Pelo menos até as núpcias. Estes ovos são para o casamento dela. Ela e o filho de Tarly. Os cozinheiros hão de precisar de ovos para os bolos.
- Sim - o filho de Lorde Tarly. O jovem Dickon vai se casar. Tentou se lembrar da idade que ele teria; oito ou dez anos, pensava. Brienne fora prometida aos sete, a um homem três anos mais velho, o filho mais novo de Lorde Caron, um garoto tímido com um grande sinal por cima do lábio. Só se tinham encontrado uma vez, por ocasião de seu noivado. Dois anos mais tarde ele estava morto, levado pelo mesmo resfriado que levara o Lorde e a Senhora Caron e suas filhas. Se tivesse sobrevivido, teriam se casado um ano depois de sua primeira floração, e toda sua vida teria sido diferente. Não estaria ali naquele momento, envergando cota de malha masculina e carregando uma espada, à procura da filha de uma morta. O mais provável seria estar em Nocticantiga, trocando os cueiros de um bebê seu e dando de mamar a outro. Não era um pensamento novo para Brienne, Fazia-a sempre sentir-se um pouco triste, mas também um pouco aliviada.
O sol estava meio escondido por trás de algumas nuvens quando emergiram por entre as árvores enegrecidas para encontrar Lagoa da Donzela na sua frente, com as profundas águas da baía logo a seguir. Brienne viu de imediato que os portões da vila tinham sido reconstruídos e reforçados, e que besteiros patrulhavam outra vez as muralhas de pedra rosada. Por cima da casa do portão flutuava o estandarte real do Rei Tommen, um veado negro e um leão dourado beligerantes em fundo dividido de ouro e carmesim. Outros estandartes exibiam o caçador dos Tarly, mas o salmão vermelho da Casa Mooton flutuava apenas no castelo erguido em sua colina.
Junto à porta levadiça depararam com uma dúzia de guardas armados com alabardas. Suas divisas identificavam-nos como soldados da hoste de Lorde Tarly, embora nenhum deles fosse subordinado ao próprio Tarly. Brienne viu dois centauros, um relâmpago, um escaravelho azul e uma flecha verde, mas não o caçador andante de Monte Chifre. O sargento trazia um pavão no peito, com a cauda colorida desbotada pelo sol. Quando os agricultores se aproximaram com o carro, o homem assobiou:
- E isto agora é o quê? Ovos? - atirou um ao ar, apanhou-o e sorriu - Ficamos com eles.
O velho protestou:
- Nossos ovos são para o Lorde Mooton. Para os bolos de casamento e coisas assim.
- Coloque suas galinhas para pôr mais. Não como um ovo há meio ano. Toma, para não dizer que não foi pago - atirou um punhado de moedas aos pés do velho.
A mulher do agricultor interveio:
- Isto não é suficiente. Nem está perto.
- E eu digo que é - o sargento esbravejou. - Por esses ovos, e por você também. Traga-a cá, rapazes. Ela é nova demais para esse velho - dois dos guardas encostaram as alabardas à muralha e puxaram a mulher para longe do carro, à força. O agricultor ficou assistindo, de rosto cinzento, mas não se atreveu a se mover.
Brienne esporeou sua égua:
- Liberte-a.
Sua voz fez os guardas hesitarem tempo suficiente para que a mulher do agricultor batesse neles.
- Isso não lhe diz respeito - disse um dos homens. - Cuidado com a língua, moça.
Em vez de ter cuidado com a língua, Brienne desembainhou a espada.
- Ora, ora - disse o sargento - aço nu. Parece me cheirar a fora da lei. Sabe o que Lorde Tarly faz aos fora da lei? - ainda tinha o ovo que tirara do carro. A mão se fechou sobre ele, e a gema escorreu por entre os dedos.
- Eu sei o que Lorde Randyll faz aos fora da lei - Brienne rebateu. - Também sei o que faz a estupradores.
Esperava que o nome pudesse intimidá-los, mas o sargento limitou-se a sacudir o ovo das mãos e fazer sinal aos seus homens para se espalharem, Brienne deu por si cercada por pontas de aço.
- O que dizia, moça? O que é que Lorde Tarly faz a...
- ... estupradores - concluiu uma voz mais profunda. - Castra-os, ou os manda para a Muralha. Às vezes ambas as coisas. E corta dedos de ladrões - um jovem de ar indiferente saiu da casa do portão, com um cinto de espada afivelado à cintura. O sobretudo que usava por cima de seu aço tinha outrora sido branco, e aqui e ali ainda era, por baixo das manchas de erva e do sangue seco. Ostentava o símbolo no peito: um veado marrom, morto, atado e pendurado em uma vara.
Ele. A voz do homem era um soco no estômago de Brienne, o rosto, uma lâmina nas entranhas.
- Sor Hyle - disse, rigidamente.
- É melhor que a deixem em paz, rapazes - preveniu Sor Hyle Hunt. - Esta é Brienne, a Bela, a Donzela de Tarth, que matou o Rei Renly e metade de sua Guarda Arco-Íris. É tão má como feia, e não há ninguém mais feio... talvez exceto você, Penico, mas seu pai era a ponta traseira de um auroque, de modo que tem uma boa desculpa. O pai dela é a Estrela da Tarde de Tarth.
Os guardas riram, mas as alabardas afastaram-se.
- Não devíamos capturá-la, sor? - perguntou o sargento. - Por matar Renly?
- Por quê? Renly era um rebelde. Todos nós éramos, rebeldes até o último homem, mas agora somos os leais rapazes de Tommen - o cavaleiro fez sinal aos agricultores para atravessarem o portão. - O intendente de sua senhoria ficará feliz por ver esses ovos. Vá encontrá-lo no mercado.
O velho esfregou a testa com os nós dos dedos:
- Muito obrigado, senhor. É um verdadeiro cavaleiro, isto ficou claro. Anda, mulher - voltaram a entregar os ombros ao carro e cruzaram ruidosamente o portão.
Brienne os seguiu a trote, com Podrick mordendo-lhe os calcanhares. Um verdadeiro cavaleiro, pensou, carrancuda. Dentro da vila, refreou o cavalo. Viam-se as ruínas de um estábulo à esquerda, abertas para uma viela lamacenta. Em frente, três prostitutas seminuas paradas na varanda de um bordel, aos cochichos entre si. Uma delas parecia-se um pouco com a seguidora de acampamentos que um dia viera ter com Brienne para lhe perguntar se tinha uma boceta ou um pau dentro dos calções,
- Aquele cavalo malhado deve ser o mais hediondo que já vi - disse Sor Hyle, referindo-se à montaria de Podrick - Surpreende-me que não seja você a montá-lo, senhora. Tem planos de me agradecer a ajuda?
Brienne saltou da égua. Era uma cabeça mais alta do que Sor Hyle.
- Um dia vou lhe agradecer num corpo a corpo, sor.
- Como agradeceu ao Ronnet Vermelho? - Hunt soltou uma gargalhada. Tinha um riso cheio e rico, embora o rosto fosse simples. Um rosto honesto, tinha pensado outrora, antes de descobrir a verdade; cabelos castanhos desgrenhados, olhos cor de avelã, uma pequena cicatriz junto ao olho esquerdo. O queixo tinha uma cova e o nariz era torto, mas ele ria bem e com frequência.
- Não devia estar vigiando seu portão?
Ele fez-lhe uma careta:
- Meu primo Alyn anda por aí à caça de fora da lei. Sem dúvida regressará com a cabeça do Cão de Caça, todo satisfeito e coberto de glória. Entretanto, estou condenado a guardar este portão, graças a você. Espero que esteja satisfeita, minha beldade. Do que anda à procura?
- De um estábulo.
-Junto ao portão leste. Este queimou.
Isto posso ver.
- O que disse àqueles homens... Eu estava com Rei Renly quando ele morreu, mas foi uma feitiçaria qualquer que o matou, sor. Juro por minha espada - pousou a mão no punho, pronta a lutar se Hunt a chamasse de mentirosa na cara.
- Sim, e foi o Cavaleiro das Flores quem retalhou a Guarda Arco-Íris. Num bom dia poderia ter sido capaz de derrotar Sor Emmon. Ele era um lutador imprudente e cansava-se com facilidade. Mas Royce? Não. Sor Robar era duas vezes melhor espadachim do que você... Embora você não seja um espadachim, não é? A palavra espadachina existe? Que demanda traz a Donzela a Lagoa da Donzela, pergunto-me?
Ando à procura de minha irmã, um a donzela de treze anos, quase disse, mas Sor Hyle saberia que ela não tinha irmãs.
- Procuro um homem, num lugar chamado Ganso Fedorento.
- Pensei que Brienne, a Beldade, não via nenhuma utilidade nos homens - havia uma ponta de crueldade em seu sorriso. - Ganso Fedorento. Aí está um nome apropriado... pelo menos a parte do fedorento. É junto ao porto. Mas primeiro virá comigo falar com sua senhoria.
Brienne não temia Sor Hyle, mas ele era um dos capitães de Randyll Tarly. Um assobio, e uma centena de homens viria correndo para defendê-lo.
- Serei presa?
- O que, por Renly? Quem era ele? Desde então mudamos de rei, alguns de nós duas vezes. Ninguém se importa, ninguém se lembra - pousou a mão levemente em seu braço. - Por aqui, por favor.
Ela se soltou.
- Agradeceria se não me tocasse.
- Finalmente um agradecimento - ele disse com um sorriso forçado.
Da última vez que Brienne estivera em Lagoa da Donzela, a vila era uma desolação, um lugar lúgubre de ruas vazias e casas queimadas. Agora, as ruas estavam cheias de porcos e de crianças, e a maior parte dos edifícios incendiados tinha sido derrubada. Nos lotes onde alguns desses edifícios antes se erguiam tinham sido plantados legumes; tendas de mercadores e pavilhões de cavaleiros ocupavam o lugar de outros. Brienne viu novas casas em construção, uma estalagem de pedra erguendo-se onde ardera uma estalagem de madeira, um novo telhado de ardósia no septo da vila. O ar fresco de outono ressoava com o ruído de serras e martelos. Homens transportavam madeira pelas ruas, e pedreiros guiavam suas carroças por ruelas lamacentas. Muitos ostentavam o caçador andante no peito.
- Os soldados estão reconstruindo a vila - ela disse, surpresa.
- Não duvido que preferissem estar jogando dados, bebendo e fodendo, mas Lorde Randyll acredita em pôr homens ociosos para trabalhar.
Brienne julgou que seria levada para o castelo. Em vez disso, Hunt os conduziu na direção do movimentado porto. Ficou satisfeita por ver que os mercadores tinham regressado a Lagoa da Donzela. Estavam ancoradas uma galé, uma galeota e uma grande coca de dois mastros, assim como uma vintena de pequenos barcos de pesca. Viam-se mais pescadores ao largo, na baía. Se o Ganso Fedorento não der em nada, arranjarei passagem num navio, decidiu. Vila Gaivota estava apenas a distância de uma curta viagem. Dali podia abrir caminho até o Ninho da Águia com bastante facilidade.
Foram encontrar Lorde Tarly no mercado de peixe, exercendo a justiça.
Uma plataforma tinha sido erguida junto à água, sobre a qual sua senhoria podia olhar os homens acusados de crimes. À sua esquerda via-se um longo cadafalso, com cordas suficientes para vinte homens. Havia ali quatro cadáveres balançando. Um parecia fresco, mas era evidente que os outros três já estavam ali havia algum tempo. Um corvo arrancava pedaços de carne dos restos apodrecidos de um dos mortos. Os outros corvos tinham fugido, com receio da multidão da vila que se reunira na esperança de ver algum enforcamento.
Lorde Randyll partilhava a plataforma com Lorde Mooton, um homem pálido, mole e gordo num gibão branco e calções vermelhos, com um manto de arminho preso ao ombro por um broche vermelho e dourado com a forma de um salmão, Tarly usava cota de malha e couro fervido, e uma placa de peito de aço cinzento. O cabo de uma espada longa espreitava por cima de seu ombro esquerdo. Chamava-se Veneno do Coração, o orgulho da sua Casa.
Quando chegaram, um adolescente com manto de tecido grosseiro e um gibão sujo estava sendo ouvido.
- Não fiz mal a ninguém, senhor - Brienne ouviu-o dizer. - Só levei o que os septões deixaram quando fugiram. Se tiver de me cortar o dedo por causa disso, corte.
- É costume cortar um dedo de um ladrão - respondeu Lorde Tarly em voz dura mas um homem que rouba de um septo está roubando dos deuses. - Virou-se para seu capitão dos guardas. - Sete dedos. Deixe-lhe os polegares.
- Sete? - o ladrão empalideceu. Quando os guardas o agarraram, tentou lutar, mas debilmente, como se já estivesse mutilado. Observando-o, Brienne não conseguiu deixar de pensar em Sor Jaime, e no modo como gritara quando o arakh de Zoilo caíra, relampejando.
O homem seguinte era um padeiro, acusado de misturar serragem na farinha. Lorde Randyll multou-o em cinquenta veados de prata. Quando o padeiro jurou que não tinha tanta prata, sua senhoria declarou que podia levar uma chibatada por cada veado que lhe faltasse. Foi seguido por uma prostituta descomposta e de rosto cinzento, acusada de transmitir um esquentamento a quatro dos soldados de Tarly.
- Lave-lhe as partes íntimas com lixívia e atire-a numa masmorra - ordenou Tarly. Quando a prostituta foi levada embora, aos soluços, sua senhoria viu Brienne à frente da multidão, em pé entre Podrick e Sor Hyle. Franziu-lhe as sobrancelhas, mas seus olhos não traíram nem um tremular de reconhecimento.
Um marinheiro da galeota foi o próximo. Seu acusador era um arqueiro da guarnição de Lorde Mooton, com uma mão enfaixada e um salmão no peito.
- Se aprouver ao senhor, este magano enfiou-me o punhal na mão. Disse que o estava trapaceando nos dados.
Lorde Tarly afastou o olhar de Brienne para avaliar os homens que tinha na sua frente.
- E estava?
- Não, senhor. Nunca.
- Por roubo, corto um dedo. Minta para mim, e enforco você. Devo pedir para ver esses dados?
- Os dados? - o arqueiro olhou para Mooton, mas sua senhoria fitava os barcos de pesca. O arqueiro engoliu em seco. - Pode ser que eu... os dados, eles me dão sorte, é verdade, mas eu...
Tarly ouvira o bastante:
- Corte-lhe o mindinho. Pode escolher qual. Um prego através da palma da outra mão - pôs-se em pé. - Acabamos. Leve o resto de volta à masmorra, tratarei deles amanhã - virou-se para fazer um gesto a Sor Hyle para que avançasse. Brienne o seguiu.
- Senhor - disse, quando se aproximou de Lorde Randyll. Sentiu-se de novo com oito anos.
- Senhora. A que devemos esta... honra?
- Fui enviada em busca de... de... - hesitou.
- Como o encontrará, se não sabe como se chama? Matou Lorde Renly?
- Não.
Tarly pesou a palavra. Ele está me julgando, do mesmo modo como julgou os outros.
- Não - disse por fim - só o deixou morrer.
Renly morrera em seus braços, com o sangue de sua vida a ensopá-la. Brienne estremeceu:
- Foi feitiçaria. Eu nunca...
- Você nunca? - a voz de Tarly transformara-se num chicote. - Sim. Você nunca devia ter envergado cota de malha, nem afivelado um cinto de espada. Você nunca devia ter deixado o salão de seu pai. Isto é uma guerra, não um baile das colheitas. Por todos os deuses, devia meter você num navio de volta a Tarth.
- Faça isto e responderá perante o trono - sua voz soou aguda, uma voz de moça, quando pretendera que soasse destemida. - Podrick. Em meu alforje vai encontrar um pergaminho. Traga-o a sua senhoria.
Tarly pegou a carta, desenrolou-a, franzindo a testa. Seus lábios mexeram-se enquanto lia.
- Assuntos do rei. Que tipo de assuntos?
Minta para mim, e eu enforco você.
- S-Sansa Stark.
- Se a garota Stark estivesse aqui, eu saberia. Ela correu de volta para o Norte, aposto. Esperando encontrar refugio com um dos vassalos do pai. É melhor que reze para escolher o certo.
- Em vez disso, pode ter ido para o Vale - Brienne surpreendeu-se dizendo, quase sem querer - para junto da irmã da mãe.
Lorde Randyll lançou-lhe um olhar de desprezo.
- Senhora Lysa está morta. Um cantor qualquer a empurrou por uma montanha abaixo. Agora quem controla o Ninho da Águia é Mindinho... Embora não por muito tempo. Os senhores do Vale não são homens que dobrem o joelho a um macaco arrivista cujo único talento consiste em contar cobres - devolveu-lhe a carta. - Vá para onde quiser e faça o que bem entender... Mas, quando for violada não venha me pedir justiça. Será você a causadora com sua loucura - lançou um relance a Sor Hyle. - E você, sor, devia estar em seu portão. Dei-lhe esta ordem, não dei?
- Deu, senhor - Hyle Hunt assentiu - mas pensei...
- Pensou demais - Lorde Tarly afastou-se a passos largos.
Lysa Tully está morta. Brienne ficou imóvel debaixo do cadafalso com o precioso pergaminho na mão. A multidão se dispersara, e os corvos tinham regressado para continuar seu banquete. Um cantor a empurrou por uma montanha. Teriam os corvos também se alimentado da irmã da Senhora Catelyn?
- Falou do Ganso Fedorento, senhora - Sor Hyle lembrou-lhe. - Se quiser que lhe mostre...
- Volte para o seu portão.
Uma expressão de aborrecimento passou pelo rosto dele. Um rosto simples, não honesto.
- Se é esta sua vontade.
-É.
- Foi só um jogo para passar o tempo. Não pretendíamos fazer mal algum - hesitou. - Ben morreu, sabia? Abatido na Água Negra. Farrow também, assim como Will, o Cegonha. E Mark Mullendore sofreu um ferimento que lhe custou metade do braço.
Ótimo, Brienne quis dizer. Ótimo, fez por merecer. Mas lembrou-se de Mullendore sentado à porta de seu pavilhão com o macaco no ombro, metido numa pequena camisa de cota de malha, os dois fazendo caretas um ao outro. Do que os tinha chamado Catelyn Stark, naquela noite em Pontamarga? Os cavaleiros de verão. Agora era outono, e eles caíam como folhas...
Virou as costas a Hyle Hunt.
- Podrick, venha.
O garoto trotou atrás dela, levando os cavalos.
- Vamos à procura do lugar? Do Ganso Fedorento?
- Eu vou. Você vai para os estábulos, junto ao portão oriental. Pergunte ao dono se há alguma estalagem onde possamos passar a noite.
- Sim, sor. Senhora - Podrick não tirou os olhos do chão enquanto avançavam, chutando pedras de vez em quando - Sabe onde é? O Ganso? O Ganso Fedorento, quero dizer.
- Não.
- Ele disse que nos mostraria. Aquele cavaleiro. Sor Kyle.
- Hyle.
- Hyle. Que foi que ele lhe fez, sor? Isto é, senhora?
O garoto pode ser um trapalhão quando fala , mas não é estúpido.
- Em Jardim de Cima, quando Rei Renly convocou os vassalos, um grupo de homens jogou um jogo comigo. Sor Hyle era um deles. Foi um jogo cruel, doloroso, e nada cavalheiresco - parou. - O portão oriental é por ali. Espere lá por mim.
- Às ordens, senhora. Sor.
Nenhuma tabuleta assinalava Ganso Fedorento. Precisou da maior parte de uma hora para encontrar a taberna, no fundo de uma escada de madeira por baixo do celeiro de um ferro-velho. O lugar era escuro, o teto, baixo, e Brienne bateu com a cabeça numa viga ao entrar. Não havia gansos à vista. Viam-se alguns bancos espalhados por ali, e um bem comprido tinha sido encostado a uma parede de terra. As mesas eram velhos barris de vinho, cinzentos e carunchosos. O prometido fedor a tudo permeava. Era principalmente vinho, umidade e míldio, disse-lhe seu nariz, mas também havia um pouco de latrina, e algo de cemitério.
Os únicos bebedores eram três homens do mar originários de Tyrosh, rosnando uns aos outros através de barbas verdes e purpúreas. Fizeram-lhe uma breve inspeção, e um disse qualquer coisa que pôs os outros a rir. A proprietária estava atrás de uma tábua que fora colocada por cima de dois barris. Era uma mulher redonda, pálida, que perdia os cabelos, com enormes seios macios que balançavam por baixo de uma camisa manchada. Parecia que os deuses a tinham feito de massa de pão por cozer.
Brienne não se atreveu a pedir água naquele lugar. Comprou uma taça de vinho e disse:
- Procuro um homem chamado Lesto Dick.
- Dick Crabb. Aparece aí quase todas as noites - a mulher olhou a cota de malha e a espada de Brienne. - Se vem abri-lo, trate disto em outro lugar. Não queremos confusão com Lorde Tarly.
- Quero falar com ele. Por que lhe faria mal?
A mulher encolheu os ombros:
- Se acenasse quando ele chegar, ficaria grata.
- Grata até que ponto?
Brienne pousou uma estrela de cobre na mesa entre as duas e arranjou um lugar nas sombras com uma boa vista sobre a escada.
Provou o vinho. Deixava um amargor de óleo na língua e trazia um pelo boiando. Um pelo tão frágil como minha esperança de encontrar Sansa, pensou enquanto tentava pescá-lo. Tentar encontrar Sor Dontos não dera frutos, e com Senhora Lysa morta, o Vale já não parecia um refúgio provável. Onde está, Senhora Sansa? Correu para casa, para Winterfell, ou será que está com seu marido, como Podrick parece pensar? Brienne não queria seguir a garota para o outro lado do mar estreito, onde até a língua lhe seria estranha. Aí serei ainda mais monstruosa do que aqui, obrigada a grunhir e a gesticular para me fazer entender. Rirão de mim, tal como riram em Jardim de Cima. Um rubor subiu-lhe pelo rosto ao se lembrar.
Quando Renly pôs a coroa, a Donzela de Tarth atravessou a Campina para se juntar a ele. O rei a saudara com cortesia e a aceitara ao seu serviço. Mas não se passara o mesmo com seus senhores e cavaleiros. Brienne não esperava calorosas boas-vindas. Estava preparada para a frieza, para a zombaria, para a hostilidade. Já antes tinha jantado dessa carne. Não foi o escárnio de muitos que a deixou confusa e vulnerável, mas sim a gentileza de poucos. A Donzela de Tarth fora prometida por três vezes, mas nunca cortejada até chegar a Jardim de Cima.
Grande Ben Bushy tinha sido o primeiro, um dos poucos homens no acampamento de Renly que era mais alto do que ela. Enviara-lhe o escudeiro para limpar sua cota de malha, e a presenteara com um corno de beber feito de prata. Sor Edmund Ambrose tinha ido além, trazendo flores e pedindo-lhe que o acompanhasse a cavalo. Sor Hyle Hunt sobrepusera-se a ambos. Oferecera-lhe um livro, belamente iluminado e repleto de uma centena de histórias de valor cavaleiresco. Trouxera maçãs e cenouras para seus cavalos, e uma pluma de seda azul para seu elmo. Contara-lhe os mexericos do acampamento e dissera coisas inteligentes e perspicazes que a fizeram sorrir. Até treinara com ela um dia, o que teve mais significado do que todo o resto.
Brienne pensou que tinha sido por causa dele que os outros tinham começado a se mostrar corteses. Mais do que corteses. A mesa, os homens lutavam por um lugar ao seu lado, oferecendo-se para lhe encher a taça de vinho ou para lhe buscar pedaços de timo de vitela. Sor Richard Farrow tocara canções de amor em seu alaúde à porta do seu pavilhão. Sor Hugh Beesbury trouxera-lhe um pote de mel “tão doce como as donzelas de Tarth”. Sor Mark Mullendore fizera-a rir com as palhaçadas do seu macaco, uma curiosa criaturinha preta e branca vinda das Ilhas do Verão. Um cavaleiro andante chamado Will, o Cegonha, oferecera-se para lhe fazer uma massagem nos ombros.
Brienne recusou. Recusou a todos. Quando Sor Owen Inchfield a agarrou uma noite e lhe roubou um beijo, ela o empurrou, fazendo-o cair de traseiro em cima de uma fogueira. Mais tarde, olhara-se num espelho. Seu rosto era tão largo, ela era dentuça e sardenta como sempre, de lábios grossos, maxilas fortes, tão feia. Tudo que desejava era ser um cavaleiro e servir o Rei Renly, mas agora...
Não era propriamente a única mulher das redondezas. Até as seguidoras de acampamentos eram mais bonitas do que ela, e lá em cima, no castelo, Lorde Tyrell banqueteava todas as noites o Rei Renly, enquanto donzelas bem-nascidas e adoráveis senhoras dançavam ao som de flauta, trompa e harpa. Por que é gentil comigo? Tinha vontade de gritar todas as vezes que um cavaleiro que lhe era estranho a elogiava. O que você quer?
Randyll Tarly solucionou o mistério no dia em que enviou dois de seus homens de armas para convocá-la a se apresentar em seu pavilhão. Seu filho mais novo, Dickon, tinha ouvido quatro cavaleiros dando risada enquanto selavam os cavalos, e contado ao senhor seu pai o que eles tinham dito.
Tinham feito uma aposta.
Dissera-lhe que tinha nascido entre três dos cavaleiros mais novos: Ambrose, Bushy e Hyle Hunt, de seu próprio pessoal. Mas à medida que a notícia se espalhava pelo acampamento, outros tinham se juntado ao jogo. Cada homem tinha de comprar a entrada na competição com um dragão de ouro, e a soma total iria para aquele que conseguisse desvirginá-la.
"Pus fim ao passatempo", disse-lhe Tarly, “ Alguns desses... competidores... são menos honrosos do que os outros, e as apostas cresciam todos os dias. Era só uma questão de tempo até que um deles decidisse reclamar o prêmio à força.”
“Eram cavaleiros”, ela disse, atordoada, “cavaleiros ungidos”.
“E homens de honra. A culpa é sua."
A acusação fê-la vacilar.
“Eu nunca... senhor, eu nada fiz para encorajá-los.”
“O fato de estar aqui os encorajou. Se uma mulher quer se comportar como uma seguidora de acampamentos, não pode levantar objeções a ser tratada como tal. Uma hoste de guerra não é lugar para uma donzela. Se tem alguma consideração por sua virtude ou pela honra da sua Casa, despirá essa cota de malha, regressará para casa e suplicará a seu pai que lhe arranje um marido.”
"Eu vim lutar” ela insistiu.“Ser um cavaleiro.”
“Os deuses fizeram os homens para lutar, e as mulheres para ter filhos" disse-lhe Randyll Tarly. “A guerra de uma mulher desenrola-se na cama de partos.”
Alguém descia as escadas da taberna. Brienne pôs o vinho de lado quando um homem esfarrapado, descarnado, de feições angulosas e com cabelos castanhos sujos entrou no Ganso. Lançou um rápido olhar aos marinheiros de Tyrosh e outro, mais demorado, a Brienne, e dirigiu-se ao balcão.
- Vinho - disse - e nada do mijo do seu cavalo lá dentro, obrigadinho.
A mulher lançou um olhar a Brienne e fez um aceno com a cabeça.
- Eu lhe pago vinho - gritou a garota - em troca de uma palavra.
O homem a examinou com olhos cautelosos.
- Um a palavra? Eu sei um monte de palavras - sentou-se no banco à frente dela. - Diga-me qual delas a senhora quer ouvir, e Lesto Dick a dirá.
- Ouvi dizer que enganou um bobo.
O esfarrapado bebericou o vinho enquanto pensava.
- Se calhar até enganei. Ou não - usava um gibão desbotado e rasgado, de onde o símbolo de um senhor qualquer tinha sido arrancado. - Quem é que quer saber?
- Rei Robert - Brienne pousou um veado de prata no barril entre ambos. Via-se de um lado a cabeça de Robert e, do outro, o veado.
- E ele sabe? - o homem pegou na moeda e a fez rodopiar, sorrindo. - Gosto de ver um rei dançar, pa-tara, pa-tara, pa-tara-tara. Pode ser que tenha visto esse seu bobo.
- Ele estava acompanhado de uma garota?
- Duas garotas - disse o homem de imediato.
- Duas garotas? - Poderá a outra ser Arya?
- Bom - disse o homem - eu não vi os docinhos, veja, mas ele estava à procura de passagem para três.
- Passagem para onde?
- Para o outro lado do mar, se não me falha a memória.
- Lembra-se do aspecto do homem?
- Era um bobo - tirou a moeda rodopiante da mesa quando ela começou a parar, e a fez desaparecer. - Um bobo assustado.
- Por que assustado?
Ele encolheu os ombros:
- Não disse, mas o velho Lesto Dick conhece o cheiro do medo. Veio aqui quase todas as noites, comprando bebidas para os marinheiros, dizendo graças, cantando cantiguinhas. Só que, uma noite, vieram uns homens com aquele caçador nas mamas e seu bobo ficou branco como leite e não abriu o bico até saírem - aproximou seu banco do dela. - Aquele Tarly tem soldados correndo as docas, vigiando todos os navios que entram e saem. O homem que quer um veado vai à floresta, o que quer um navio vai às docas. Seu bobo não se atrevia. De modo que lhe ofereci ajuda.
- Que tipo de ajuda?
- O tipo que custa mais que um veado de prata.
- Diga-me, e receberá outro.
- Deixe eu ver - ele disse. Ela pousou outro veado no barril. Ele o fez rodopiar, sorriu, e o recolheu. - Um homem que não pode ir até os navios precisa que os navios venham ter com ele. Disse-lhe que conhecia um lugar onde isso pode acontecer. Um lugar escondido.
Um arrepio subiu ao longo dos braços de Brienne.
- Uma enseada de contrabandistas. Mandou o bobo ter com contrabandistas.
- Ele e as duas moças - soltou um risinho. - Só que, bom, o lugar para onde os mandei não recebe barcos há uns tempos. Aí há uns trinta anos - coçou o nariz - Que ligação tem com esse bobo?
- Essas duas garotas são minhas irmãs.
- Ah, sim? Pobrezinhas. Eu também tive uma irmã. Um espeto de moça com nós nos joelhos, mas depois lhe cresceu um par de tetas e o filho de um cavaleiro enfiou-se entre as pernas dela. A última vez que a vi, estava a caminho de Porto Real para ganhar a vida deitada.
- Para onde os enviou?
Outro encolher de ombros.
- Quanto a isso não me lembro.
- Para onde? - Brienne pôs, com uma palmada, outro veado de prata no barril.
Ele devolveu-lhe a moeda com um piparote.
- Para um lugar que não há veado que encontre... mas um dragão pode ser que sim.
Brienne sentiu que a prata não arrancaria a verdade do homem. O ouro talvez arranque, ou talvez não. Aço seria mais seguro, Brienne tocou no punhal e depois enfiou a mão na bolsa. Encontrou um dragão de ouro e o pôs no barril.
- Para onde?
O esfarrapado agarrou a moeda e a mordeu.
- Linda. Faz que me lembre de Ponta da Garra Rachada. Ao norte daqui. É uma terra selvagem de montes e pântanos, mas acontece que fui aí nascido e criado. Meu nome é Dick Crabb, apesar de quase toda a gente me chamar Lesto Dick.
Brienne não lhe disse seu nome.
- Na Ponta da Garra Rachada, onde?
- Nos Murmúrios. Conhece Clarence Crabb, claro.
- Não.
Aquilo pareceu surpreendê-lo.
- Estou falando de Sor Clarence Crabb. Tenho o sangue dele em mim. Tinha dois metros e quarenta e era tão forte que arrancava pinheiros com uma mão só e atirava-os a meia milha. Não havia cavalo que lhe aguentasse o peso, de modo que montava um auroque.
- Que tem ele a ver com essa enseada de contrabandistas?
- A mulher era uma bruxa da floresta. Sempre que Sor Clarence matava um homem, trazia sua cabeça para casa, e a mulher beijava-a na boca e a trazia de volta à vida. Eram senhores, ah sim, e feiticeiros, e cavaleiros e piratas famosos. Um foi o rei de Valdocaso. Davam ao velho Crabb bons conselhos. Como eram só cabeças, não podiam falar muito alto, mas também nunca se calavam. Quando se é uma cabeça, falar é o único passatempo que se tem. De modo que a fortaleza de Crabb acabou chamada Murmúrios. Ainda é, mesmo que seja uma ruína há mil anos. É um lugar solitário os Murmúrios - o homem fez que a moeda caminhasse habilmente sobre os nós dos dedos. - Um dragão sozinho sente falta de companhia. Mas dez...
- Dez dragões são uma fortuna. Toma-me por uma tola?
- Não, mas posso levá-la a um bobo - a moeda dançou para um lado e para outro. - Levá-la aos Murmúrios, senhora.
Brienne não gostava do modo como os dedos do homem brincavam com aquela moeda de ouro. Apesar disso...
- Seis dragões se encontrarmos minha irmã. Dois se só encontrarmos o bobo. Nada se não encontrarmos nada.
Crabb encolheu os ombros.
- Seis está bom. Seis servem.
Depressa demais. Agarrou-lhe o pulso antes de ter tempo de guardar o ouro.
- Não tente me enganar. Pode descobrir que sou dura de roer.
Quando o largou, Crabb esfregou o pulso.
- Merda - resmungou. - Machucou minha mão.
- Lamento. Minha irmã é uma garota de treze anos. Preciso encontrá-la antes...
- ... antes que algum cavaleiro se meta na racha dela. Pois estou ouvindo você. É como se já estivesse salva, Lesto Dick está agora com você. Encontre-se comigo no portão oriental à primeira luz da manhã. Tenho de ir falar com um tipo a respeito de um cavalo.  

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