quinta-feira, 19 de setembro de 2013

15 - SAMWELL



O mar deixava Samwell Tarly enjoado.
Nem tudo se devia ao seu medo do afogamento, embora não houvesse dúvida de que isto fazia parte. Eram também os movimentos do navio, o modo como os conveses balançavam debaixo dos seus pés.
- Tenho uma barriga fraca - confessou a Dareon no dia em que zarparam de Atalaialeste do Mar. O cantor dera-lhe uma palmada nas costas e dissera:
- Com uma barriga tão grande como a sua, Matador, isto é um monte de fraqueza.
Sam tentara manter a coragem no rosto, pelo menos por Goiva. Ela nunca tinha visto o mar. Durante a penosa travessia das neves, após a fuga da Fortaleza de Craster, tinham deparado com vários lagos, e até estes tinham sido para ela uma maravilha. Quando o Melro deslizara para longe da costa, a garota se pôs a tremer, e grandes lágrimas salgadas rolaram-lhe rosto abaixo.
- Deuses, sejam bons - Sam a ouvira sussurrar. Atalaialeste tinha sido a primeira coisa a sumir, e a Muralha foi ficando cada vez menor a distância, até finalmente desaparecer. Àquela altura o vento estava aumentando de intensidade. As velas ostentavam o cinzento desbotado de um manto negro que fora lavado com muita frequência, e o rosto de Goiva estava branco de medo.
- Este navio é bom - Sam tentou lhe dizer. - Não precisa ter medo - mas ela se limitou a olhá-lo, apertou mais o bebê contra o peito e fugiu para baixo.
Sam logo deu por si bem agarrado ao talabardão observando o movimento dos remos. O modo como se moviam todos em conjunto era de algum modo belo de se contemplar, e melhor do que olhar para a água, que só o fazia pensar em se afogar. Quando era pequeno, o senhor seu pai tentara ensiná-lo a nadar atirando-o à lagoa que havia no sopé de Monte Chifre. A água entrara-lhe no nariz, na boca e nos pulmões; levou horas tossindo e arquejando depois de Sor Hyle tê-lo puxado para fora. Depois disso, nunca mais se atreveu a entrar na água até mais do que a cintura.
Baía das Focas era muito mais profunda do que sua cintura, e não se mostrava tão plácida como aquela pequena lagoa perto do castelo do pai. Suas águas eram cinzentas, verdes e agitadas, e a costa arborizada que seguiam era uma confusão de rochedos e redemoinhos. Mesmo que de algum modo fosse capaz de nadar até tão longe, o mais provável era que as ondas o arremessassem contra alguma pedra e lhe fizessem a cabeça em pedaços.
- À procura de sereias, Matador? - perguntou Daeron quando viu Sam olhando para o outro lado da baía. De cabelos claros e olhos cor de avelã, o jovem e atraente cantor de Atalaialeste parecia-se mais com um príncipe escuro qualquer do que com um irmão negro.
- Não -Sam não sabia o que procurava, ou o que fazia naquele barco. Estou indo para a Cidadela forjar uma corrente e ser um meistre, para prestar melhor serviço à Patrulha, disse a si mesmo, mas aquela ideia só o deixava abatido. Não queria ser um meistre, ter uma pesada corrente em volta do pescoço, fria, de encontro à pele. Não queria abandonar os irmãos, os únicos amigos que já tivera. E certamente não queria encarar o pai que o enviara para a Muralha para que morresse.
Para os outros era diferente. Para eles, a viagem teria um final feliz. Goiva ficaria a salvo em Monte Chifre, com todo o Westeros entre si e os horrores que conhecera na floresta assombrada. Na condição de criada no castelo do pai, permaneceria aquecida e seria bem alimentada, uma pequena parte de um grande mundo com que nunca poderia ter sonhado enquanto esposa de Craster. Veria o filho crescer, grande e forte, e tornar-se caçador, palafreneiro ou ferreiro, Se o rapaz mostrasse aptidão para as armas, algum cavaleiro podia até mesmo tomá-lo como escudeiro.
Meistre Aemon também ia para um lugar melhor. Era agradável pensar nele passando o tempo que lhe restava banhado pelas brisas tépidas de Atalaialeste, conversando com os meistres seus colegas e partilhando sua sabedoria com acólitos e noviços. Conquistara seu descanso, conquistara-o cem vezes.
Até Daeron seria mais feliz. Sempre clamara inocência da violação que o enviara para a Muralha, insistindo que seu lugar era na corte de algum senhor, cantando em troca do jantar. Jon nomeara-o recrutador, para tomar o lugar de um homem chamado Yoren, que desaparecera e estava presumivelmente morto. Sua tarefa seria viajar pelos Sete Reinos cantando o valor da Patrulha da Noite e, de tempo em tempo, regressar à Muralha com novos recrutas.
A viagem seria longa e dura, ninguém poderia negar, mas pelo menos para os outros teria um final feliz. Era este o consolo de Sam. Vou por eles, dizia a si mesmo, pela Patrulha da Noite, e pelo final feliz. Mas quanto mais tempo passava olhando para o mar, mais frio e profundo ele lhe parecia.
Mas não olhar para a água era ainda pior, compreendeu Sam na estreita cabine sob o castelo de popa que os passageiros partilhavam. Tentou afastar a mente da irritação que sentia no estômago conversando com Goiva enquanto ela dava de mamar ao filho.
- Este navio vai nos levar até Bravos - disse. - Depois arranjamos outro que nos leve para Vilavelha. Quando era pequeno, li um livro sobre Bravos. Toda a cidade foi construída numa lagoa, sobre uma centena de pequenas ilhas, e têm lá um titã, um homem de pedra com centenas de metros de altura. Têm barcos em vez de cavalos, e seus saltimbancos apresentam histórias escritas em vez de se limitarem a inventar as farsas estúpidas de costume. A comida também é muito boa, especialmente o peixe. Têm todos os tipos de bivalves, enguias e ostras, apanhados frescos na lagoa. Devemos passar alguns dias lá. Se tivermos tempo, podemos ir ver um espetáculo de saltimbancos e comer umas ostras.
Achava que aquilo a entusiasmaria. Não podia ter se enganado mais. Goiva o observava com olhos baços, sem expressão, espreitando através de madeixas de cabelos sujos.
-Se quiser, senhor.
-O que é que você quer? -perguntou-lhe Sam.
- Nada - virou-lhe as costas e deslocou o filho de um seio para o outro.
Os movimentos do barco estavam agitando os ovos, o bacon e o pão frito que Sam comera antes de o navio zarpar. De repente não pôde suportar a cabine por um instante mais que fosse. Levantou-se e correu escada acima para ir oferecer o café da manhã ao mar. O enjoo caiu com tanta força sobre Sam que ele não parou para ver de que lado estava soprando o vento, o que fez que vomitasse da amurada errada e acabasse por salpicar-se de vômito. Mesmo assim, sentiu-se muito melhor depois... Embora não por muito tempo.
O navio era o Melro, a maior das galés da Patrulha. Cotter Pyke dissera a Meistre Aemon em Atalaialeste do Mar que o Corvo da Tormenta e a Garra eram mais rápidos, mas eram navios de guerra, esguios, velozes aves de rapina nas quais os remadores sentavam-se em convés aberto. O Melro era uma melhor escolha para as águas agitadas do mar estreito para lá de Skagos.
“Tem havido tempestades” prevenira-os Pyke."As tempestades de inverno são piores, mas as de outono são mais frequentes.”
Os primeiros dez dias foram bastante calmos à medida que o Melro se arrastava ao longo da Baía das Focas, sem nunca perder a costa de vista. Fazia frio quando o vento soprava, mas havia algo de tonificante no cheiro salgado do ar. Sam quase não conseguia comer e, quando se forçava a empurrar algo para baixo, não ficava lá por muito tempo, mas fora isso não passava muito mal. Tentava assegurar a coragem de Goiva e dar-lhe o ânimo que conseguisse, mas isto se revelava difícil. Ela não queria subir ao convés, não importava o que ele dissesse, e parecia preferir aninhar-se no escuro com o filho. O bebê parecia não gostar mais do navio do que a mãe. Quando não estava berrando, vomitava o leite. Tinha o intestino solto, e sempre em movimento, sujando as peles em que Goiva o envolvia para mantê-lo quente e enchendo o ar com um fedor marrom. Por mais velas de sebo que Sam acendesse, o cheiro de merda persistia.
Era mais agradável ficar ao ar livre, especialmente quando Dareon cantava. O cantor era conhecido dos remadores do Melro e tocava para eles enquanto remavam. Conhecia todas as canções de que os homens gostavam: as tristes, como “O Dia em que Enforcaram Robin Negro” "O Lamento da Sereia” e “Outono do Meu Dia"; as estimulantes, como “Lanças de Ferro” e “Sete Espadas Para Sete Filhos"; as obscenas, como "O Jantar da Senhora” “A Sua Florzinha” e “Meggett era uma Alegre Donzela, uma Alegre Donzela era Ela” Quando cantava "O Urso e a Bela Donzela” todos os remadores cantavam com ele, e o Melro parecia voar sobre as águas, Sam sabia, dos dias de treino sob o comando de Alliser Thorne, que Dareon não era grande espadachim, mas tinha uma bela voz, "Mel derramado sobre um trovão", chamara-o um dia Meistre Aemon. Tocava harpa e rabeca, e até escrevia as próprias canções... embora Sam não as achasse lá muito boas. Mesmo assim, era bom sentar-se para escutá-lo, apesar de a arca ser tão dura e cheia de farpas que Sam se sentia quase grato por suas nádegas carnudas. Os gordos levam uma almofada consigo para onde quer que vão, pensava.
Meistre Aemon também preferia passar seus dias no convés, aconchegado por baixo de uma pilha de peles, fitando a água.
- O que ele está observando? - Dareon perguntou certo dia. - Para ele, é tão escuro aqui em cima como lá embaixo na cabine.
O velho o ouviu. Embora os olhos de Aemon tivessem escurecido, nada havia de errado com seus ouvidos.
- Eu não nasci cego - ele lembrou - Da última vez que passei por aqui, vi todas as pedras, árvores e carneirinhos, e observei as gaivotas cinzentas que voavam em nossa esteira. Tinha trinta e cinco anos, e era um meistre da corrente havia dezesseis. Ovo queria que o ajudasse a governar, mas eu sabia que meu lugar era este. Ele mandou-me para o norte a bordo do Dragão Dourado e insistiu que seu amigo Sor Duncan me levasse em segurança até Atalaialeste. Nenhum recruta chegara à Muralha com tanta pompa desde que Nymeria enviara para a Patrulha seis reis presos em correntes de ouro. Ovo também esvaziou as masmorras, para que eu não tivesse de proferir os votos sozinho. Chamava-os minha guarda de honra. Um deles foi ninguém mais, ninguém menos que Brynden Rivers. Mais tarde escolhido Senhor Comandante.
- O Corvo de Sangue? - Dareon quis saber - Conheço uma canção sobre ele. Chama-se "Mil Olhos e Mais Um” Mas pensava que ele tinha vivido há cem anos.
- Todos nós vivemos. Um dia fui tão novo como você - aquilo pareceu entristecê-lo. Tossiu, fechou os olhos e adormeceu, oscilando em suas peles sempre que uma onda fazia balançar o navio.
Velejaram sob céus cinzentos, para leste e para sul, e de novo para leste, enquanto a Baía das Focas ia se alargando ao redor deles. O capitão, um irmão envelhecido com uma barriga que mais parecia uma barrica de cerveja, usava panos negros tão manchados e desbotados que a tripulação a ele se referia como Velho Farrapo Salgado. Raramente dizia palavra. O imediato compensava, fazendo borbulhar o ar salgado com pragas sempre que o vento amainava ou os remadores pareciam fraquejar. Comiam mingau de aveia de manhã, mingau de ervilha à tarde e bife salgado, bacalhau salgado e carneiro salgado à noite, e empurravam tudo para baixo com cerveja. Daeron cantava, Sam vomitava, Goiva chorava e dava de mamar ao bebê, Meistre Aemon dormia e tremia, e os ventos tornavam-se mais frios e fortes a cada dia que passava.
Mesmo assim, era uma viagem melhor do que a última que Sam empreendera. Não tinha mais de dez anos quando zarpara na galé de Lorde Redwyne, a Rainha da Arvore. Cinco vezes maior do que o Melro e magnífica de se contemplar, tinha três grandes velas cor de vinho e fileiras de remos que relampejavam em ouro e branco ao sol. O modo como se erguiam e abaixavam enquanto o navio partia de Vilavelha fizera Sam prender a respiração... Mas essa era a última recordação agradável que tinha dos Estreitos Redwyne. Na época, como agora, o mar deixara-o enjoado, para descontentamento do senhor seu pai.
E quando chegaram à Árvore, as coisas tinham ido de mal a pior. Os filhos gêmeos de Lorde Redwyne desprezaram Sam à primeira vista. Todas as manhãs encontravam alguma maneira nova de envergonhá-lo no pátio de treinos. No terceiro dia, Horas Redwyne fizera-o grunhir como um porco quando pedira trégua. No quinto, seu irmão Hobber vestira uma ajudante de cozinha com sua armadura e a deixou espancar Sam com uma espada de madeira até fazê-lo chorar. Quando ela se revelou, todos os escudeiros, pajens e moços de estrebaria uivaram de riso.
"O rapaz precisa de um bocado de preparação, nada mais” dissera o pai nessa noite a Lorde Redwyne, mas o bobo de Redwyne fez balançar o chocalho e respondeu:
"Sim, com uma pitada de pimenta, uns quantos cravinhos de boa qualidade e uma maçã na boca.” Depois daquilo, Lorde Randyll proibiu Sam de comer maçãs enquanto permanecessem sob o teto de Paxter Redwyne. Também passou enjoado na viagem de regresso, mas o alívio por voltar para casa era tão grande que quase acolhera de bom grado o sabor do vômito no fundo da garganta. Foi só depois de estarem de volta a Monte Chifre que a mãe disse a Sam que o pai não pretendia trazê-lo de volta.
"Horas devia voltar em seu lugar, enquanto você ficaria na Arvore como pajem e copeiro de Lorde Paxter. Se lhe tivesse agradado, seria prometido à filha.” Sam ainda recordava o toque suave da mão da mãe enquanto lhe limpava as lágrimas com um pouco de renda umedecida por sua saliva. “Meu pobre Sam” ela tinha murmurado. "Meu pobre, pobre Sam.”
Será bom voltar a vê-la, pensou, enquanto agarrava-se à amurada do Melro e observava as ondas que se quebravam na costa rochosa. Se ela me visse de negro, isto até poderia deixá-la orgulhosa. "Agora sou um homem, mãe", podia lhe dizer, “um intendente e um homem da Patrulha da Noite. Meus irmãos chamam-m e às vezes Sam, o Matador.” Veria também o irmão Dickon e as irmãs. “Vejam ”, podia lhes dizer, “vejam, no fim das contas servi para alguma coisa”.
Mas se fosse a Monte Chifre, o pai podia estar lá.
A ideia fez sua barriga oscilar outra vez. Sam dobrou-se sobre o talabardão e vomitou, mas não contra o vento. Daquela vez dirigira-se à amurada certa. Estava ficando bom naquilo.
Pelo menos foi o que pensou, até o Melro deixar a terra para trás e se dirigir para leste, cruzando a baía na direção das costas de Skagos.
A ilha localizava-se na embocadura da Baía das Focas, maciça e montanhosa, uma terra dura e inóspita habitada por selvagens. Sam tinha lido que viviam em grutas e em sombrias praças-fortes de montanha, e levavam grandes unicórnios hirsutos para a guerra. Skagos significava “pedra” no Idioma Antigo. Os skagosi chamavam a si mesmos nascidos na pedra, mas os outros nortenhos os chamavam skaggs, e gostavam pouco deles. Não havia mais de cem anos que Skagos se levantara em rebelião. A revolta tinha levado anos para ser controlada, e custou a vida do Senhor de Winterfell e de centenas das espadas a ele juramentadas. Algumas canções diziam que os skaggs eram canibais; supostamente seus guerreiros comiam o coração e o fígado dos homens que matavam. Nos tempos antigos, os skagosi velejaram até a ilha vizinha de Skane, capturaram suas mulheres, mataram seus homens e comeram-nos numa praia de cascalho, num banquete que durou uma quinzena. Skane permanecia despovoada desde então.
Dareon também conhecia as canções. Quando os ermos picos cinzentos de Skagos ergueram-se do mar, juntou-se a Sam à proa do Melro e disse:
- Se os deuses forem bons, podemos ver de relance um unicórnio.
- Se o capitão for bom, não nos aproximaremos o suficiente. As correntes são traiçoeiras em volta de Skagos, e há rochedos capazes de quebrar o casco de um navio como se fosse um ovo. Mas não diga isso a Goiva. Ela já está suficientemente assustada.
- Ela e aquela cria birrenta que tem. Não sei qual dos dois faz mais barulho. O único momento em que ele para de berrar é quando ela lhe enfia um mamilo na boca, e nesse momento é ela quem começa a soluçar.
Sam também reparara naquilo,
- Talvez o bebê a machuque - disse, sem convicção. - Se os dentes estiverem nascendo...
Dareon puxou uma corda do alaúde com um dedo, fazendo soar uma nota de zombaria.
- Tinha ouvido dizer que os selvagens eram mais corajosos do que isso.
- Ela é corajosa - Sam insistiu, apesar de até ele ter de admitir que nunca tinha visto Goiva em estado tão deplorável. Embora ela normalmente escondesse o rosto e mantivesse a cabine às escuras, Sam via que seus olhos andavam sempre vermelhos, e seu rosto, úmido de lágrimas. Mas quando lhe perguntava qual era o problema, limitava-se a balançar a cabeça, deixando-o sozinho à procura de respostas - O mar a assusta, é só isso - disse a Dareon. - Antes de vir para a Muralha, tudo o que conhecia era a Fortaleza de Craster e a floresta que havia ao redor. Não sei se se afastou mais do que meia légua do lugar em que nasceu. Conhece os rios e riachos, mas nunca tinha visto um lago até encontrarmos um, e o mar... o mar é uma coisa assustadora.
- Nunca estivemos fora de vista da terra.
- Mas vamos estar - ao próprio Sam esta parte não agradava.
- Certamente um pouco de água não assusta o Matador.
- Não - Sam mentiu - a mim, não. Mas Goiva... talvez se você lhes tocasse umas canções de embalar isso ajudasse o bebê a dormir.
A boca de Dareon torceu-se de repugnância.
- Só se ela enfiar uma rolha no cu do garoto. Não suporto o cheiro.
No dia seguinte, começaram as chuvas, e o mar encrespou-se mais.
- É melhor irmos para baixo, para onde está seco - disse Sam a Aemon, mas o velho meistre limitou-se a sorrir, e respondeu:
- Gosto de sentir a chuva no rosto, Sam. Parece lágrimas. Deixe-me ficar um pouco mais, eu lhe peço. Passou-se muito tempo desde a última vez que chorei.
Se Meistre Aemon pretendia ficar no convés, velho e fraco como estava, Sam não tinha alternativa exceto fazer o mesmo. Ficou ao lado do velho durante quase uma hora, aconchegado ao manto enquanto uma chuva suave e constante o empapava até os ossos. Aemon quase não parecia senti-la. Suspirou e fechou os olhos, e Sam aproximou-se dele, a fim de protegê-lo do vento. Ele logo me pedirá para ajudá-lo a ir para a cabine, disse a si mesmo. Tem de pedir. Mas não o fez, e por fim o trovão começou a soar a distância, para leste.
- Temos de ir para baixo - Sam disse, tremendo. Meistre Aemon não respondeu. Foi só então que Sam percebeu que o velho adormecera. - Meistre - disse, sacudindo suavemente seu ombro. - Meistre Aemon, acorde.
Os alvos olhos cegos de Aemon abriram-se.
- Ovo? - disse, enquanto a chuva lhe escorria rosto abaixo. - Ovo, sonhei que era velho.
Sam não soube o que fazer. Ajoelhou, pegou o velho no colo e o levou para baixo. Nunca ninguém o chamara de forte, e a chuva empapara os panos negros do Meistre Aemon, duplicando-lhe o peso, mas mesmo assim não pesava mais do que uma criança.
Quando entrou na cabine com Aemon nos braços, descobriu que Goiva deixara que todas as velas se apagassem. O bebê estava dormindo e ela se encontrava enrolada em um canto, soluçando baixinho nas dobras do grande manto negro que Sam lhe dera.
- Ajude-me - ele pediu com urgência. - Ajude-me a secá-lo e a aquecê-lo.
Ela se ergueu de imediato, e os dois tiraram o velho meistre de dentro da roupa molhada e submergiram-no numa pilha de peles. Porém, a pele de Aemon estava úmida e fria, pegajosa ao toque.
- Enfie-se aí com ele - disse Sam a Goiva. - Abraçe-o. Aqueça-o com seu corpo. Temos de aquecê-lo - e ela assim fez, sem proferir uma palavra, continuando o tempo todo a fungar. - Onde está Dareon? - Sam quis saber. - Ficaremos mais quentes se estivermos juntos. Ele também precisa ficar aqui - encaminhava-se para cima, a fim de ir em busca do cantor, quando a coberta se ergueu debaixo de si e em seguida caiu sob seus pés. Goiva soltou um lamento, Sam caiu com força, perdendo o apoio das pernas, e o bebê acordou aos berros.
O balanço seguinte do navio chegou quando Sam lutava para voltar a se levantar. Atirou Goiva para os seus braços, e a rapariga selvagem agarrou-se a ele com tanta força que Sam quase deixou de respirar.
- Não se assuste - disse-lhe. - Isto é só uma aventura. Um dia contará essa história ao seu filho - aquilo apenas conseguiu que ela enterrasse as unhas em seu braço. Estremeceu, com o corpo inteiro tremendo com a violência dos soluços. Qualquer coisa que eu diga só a deixa pior. Abraçou-a bem, desconfortavelmente consciente dos seios da rapariga apertados contra seu corpo. Assustado como estava, de algum modo aquilo foi suficiente para deixá-lo ereto. Ela vai sentir, pensou, envergonhado, mas se sentiu não deu sinal, limitando-se a se agarrar a ele com mais força.
Depois daquilo, os dias confundiram-se uns com os outros. Nunca viam o sol. Os dias eram cinzentos, e as noites, negras, exceto quando os relâmpagos iluminavam o céu sobre os picos de Skagos. Estavam todos esfomeados, mas ninguém conseguia comer. O capitão abriu um barril de vinhardente para fortalecer os remadores. Sam provou uma taça e suspirou quando serpentes quentes lhe ziguezaguearam garganta e peito abaixo. Dareon também tomou gosto pela bebida, e a partir daí raramente se mantinha sóbrio.
As velas foram içadas, e depois abaixadas, e uma se soltou do mastro e voou para longe como uma grande ave cinzenta. Enquanto o Melro dava a volta pela costa sul de Skagos, viram os restos de uma galé nos rochedos. Alguns dos membros da tripulação tinham dado à costa, e as gralhas e os caranguejos tinham se reunido para lhes prestar homenagem.
- Perto demais, raios que o partam - resmungou o Velho Farrapo Salgado quando viu aquilo. - Um bom golpe, e nos desfazemos ao lado deles - exaustos como estavam, seus remadores voltaram a se dobrar sobre os remos, e o navio passou ao largo em direção ao sul, penetrando no mar estreito, até Skagos se reduzir a não mais do que algumas silhuetas escuras no céu, que podiam ter sido nuvens de trovoada, os topos de grandes montanhas negras, ou as duas coisas. Depois disso, tiveram oito dias e sete noites de viagem com céu limpo e mar calmo.
Então, chegaram mais tempestades, piores do que as anteriores.
Teriam sido três tempestades, ou apenas uma, entrecortada por calmarias? Sam não chegou a saber, embora tentasse desesperadamente interessar-se pelo assunto.
- Que importa? - certa vez gritou-lhe Dareon, quando estavam todos aninhados na cabine. Não importa, Sam quis lhe dizer, mas enquanto estiver pensando nisso, não pensarei em me afogar, ou no enjoo, ou nos tremores do Meistre Aemon.
- Não importa - logrou guinchar, mas o trovão afogou o resto, e a coberta balançou e o derrubou de lado. Goiva soluçava. O bebê berrava. E lá em cima conseguia-se ouvir o Velho Farrapo Salgado berrando com a tripulação, o capitão esfarrapado que nunca falava.
Odeio o mar, Sam pensou, odeio o mar, odeio o mar, odeio o mar. O relâmpago seguinte foi tão brilhante que iluminou a cabine através das frestas das tábuas do teto. Este é um navio bom e bem conservado, um navio bom e bem conservado, um bom navio, disse a si mesmo. Não afundará. Não tenho medo.
Durante uma das calmarias entre temporais, Sam estava agarrado à amurada com tanta força que tinha os nós dos dedos brancos, desejando desesperadamente vomitar, quando ouviu alguns homens da tripulação resmungar que aquilo era o resultado de trazer uma mulher a bordo do navio, e ainda por cima uma selvagem.
- Fodeu o próprio pai - ouviu um homem dizer, enquanto o vento voltava a soprar com mais força. - Isto é pior do que ser puta. É pior do que tudo. Vamos todos nos afogar se não nos livrarmos dela, e daquela abominação que pariu.
Sam não se atreveu a confrontá-los. Eram homens mais velhos, duros e vigorosos, com braços e ombros tornados grossos por anos passados remando. Mas assegurou-se de que mantinha a faca afiada, e sempre que Goiva saía da cabine para urinar, ia com ela.
Nem mesmo Dareon tinha algo de bom a dizer sobre a garota selvagem. Uma vez, a pedido de Sam, o cantor tocou uma canção de embalar para acalmar seu bebê, mas no meio do primeiro verso Goiva desatou a soluçar de forma inconsolável.
- Com os sete malditos infernos - Dareon exclamou - nem sequer consegue parar de chorar tempo suficiente para ouvir uma canção?
- Toque - suplicou Sam - cante-lhe só a canção,
- Ela não precisa de uma canção - Dareon replicou. - Precisa de uma boa surra, ou, se calhar, de uma foda bem dada. Saia da minha frente, Matador - empurrou Sam para o lado e saiu da cabine, em busca de consolo numa taça de vinhardente e na rude irmandade dos remos.
A essa altura, Sam estava no limite de sua capacidade mental. Já quase se acostumara aos odores, mas, entre as tempestades e os soluços de Goiva, não dormia havia dias.
- Não há algo que possa lhe dar? - perguntou ao Meistre Aemon em voz muito baixa, quando viu que o velho estava acordado. - Uma erva ou poção qualquer, para que não tenha tanto medo?
- O que ouve não é medo - disse-lhe o velho. - Aquilo é o som do desgosto, e para isto não há poções. Deixe que as lágrimas percorram seu caminho, Sam. Não será capaz de suster a corrente.
Sam não compreendeu.
- Ela vai rumo a um lugar seguro. Um lugar quente. Por que haveria de sentir desgosto?
- Sam - sussurrou o velho - tem dois olhos bons e mesmo assim não vê. Ela é uma mãe chorando pelo filho.
- Ele está enjoado, nada mais. Estamos todos enjoados. Assim que chegarmos a Bravos...
- ... o bebê continuará a ser filho de Dalla, e não o fruto do seu corpo.
Sam precisou de um momento para se convencer daquilo que Aemon estava sugerindo.
- Isso não pode... ela não... claro que é filho dela. Goiva nunca teria abandonado a Muralha sem o filho. Ela o ama.
- Ela deu de mamar a ambos, e amou-os ambos - Aemon disse - mas não da mesma forma. Não há mãe que ame os filhos por igual, nem mesmo a Mãe no Céu. Goiva não abandonou a criança de bom grado, tenho certeza. Que ameaça Senhor Comandante fez, que promessas, só posso tentar adivinhar... mas estou certo de que houve ameaças e promessas.
- Não. Não, isto é errado. Jon nunca...
- Jon nunca o faria. Lorde Snow o fez. As vezes não há escolha feliz, Sam, só há uma menos dolorosa do que as outras.
Não há escolha feliz. Sam pensou em todas as provações por que ele e Goiva tinham passado, na Fortaleza de Craster e na morte do Velho Urso, na neve, no gelo e nos ventos gélidos, em dias e dias e dias de caminhada, nas criaturas em Brancarbor, no Mãos-Frias e na árvore de corvos, na Muralha, na Muralha, na Muralha, no Portão Negro por baixo da terra. Para que servira tudo aquilo? Não há escolhas felizes, e não há finais felizes.
Teve vontade de gritar. Teve vontade de uivar e soluçar, e tremer e enrolar-se e choramingar. Ele trocou os bebês, disse a si mesmo. Ele trocou os bebês para proteger o pequeno príncipe, para mantê-lo longe das fogueiras da Senhora Melisandre, longe de seu deus vermelho. Se ela queimar o filho de Goiva, quem se importará? Ninguém, a não ser Goiva. Ele era apenas um a cria de Craster, uma abominação nascida do incesto, não o filho do Rei-Para-Lá-da-Muralha. Não serve como refém, não serve como sacrifício, não serve para nada, nem sequer tem nome.
Sem palavras, Sam cambaleou até o convés para vomitar, mas não tinha nada na barriga que pudesse ser deitado fora. A noite caíra sobre eles, uma estranha noite calma como já não viam havia muitos dias. O mar estava negro como vidro. Aos remos, os remadores descansavam. Um ou dois dormiam em seu lugar. O vento enfunava as velas, e para norte Sam conseguia mesmo ver uma porção de estrelas, e o vagabundo vermelho a que o povo livre chamava o Ladrão. A quela devia ser a minha estrela, Sam pensou cheio de tristeza. Ajudei a fazer de Jon Senhor Comandante, e levei-lhe Goiva e o bebê. Não há finais felizes.
- Matador - Dareon surgiu ao seu lado, inconsciente da sua dor. - Uma bela noite, para variar. Olhe, as estrelas estão surgindo. Podemos até vir a ter um pouco de luar. Pode ser que o pior tenha passado.
- Não - Sam limpou o nariz e apontou para o sul com um dedo gordo, na direção da escuridão que se ia juntando. - Olhe para lá - disse. Assim que falou, brilhou um relâmpago, súbito e silencioso, com uma luz que cegava. As nuvens distantes cintilaram durante meio segundo, montanhas empilhadas sobre montanhas, de cor púrpura, vermelha e amarela, mais altas do que o mundo. - O pior não passou. O pior está só começando, e não há finais felizes.
- Pela bondade dos deuses - disse Dareon, rindo. - Matador... é um covarde tão grande.

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