sexta-feira, 27 de setembro de 2013

18 - TYRION


O Donzela Tímida movia-se pela neblina como um homem cego tateando seu caminho em um salão desconhecido.
Septã Lemore rezava. As névoas encobriam o som de sua voz, fazendo-a parecer pequena e abafada. Griff caminhava pelo convés, a cota de malha soando suavemente por baixo da capa de pele de lobo. De tempos em tempos, ele tocava a espada, como que para certificar-se de que ainda estava ao seu lado. Rolly Patodocampo empurrava o remo a estibordo, Yandry a bombordo. Ysilla estava no leme.
- Não gosto deste lugar - murmurou Meiomeistre Haldon.
- Com medo de um pouco de neblina? - provocou Tyrion, embora na verdade fosse muita neblina. Na proa do Donzela Tímida, o Jovem Griff estava no terceiro remo, para afastá-los dos perigos que pudessem aparecer por entre a névoa. As lanternas foram acesas na frente e atrás do barco, mas a neblina era tão espessa que tudo o que o anão podia ver do centro do convés era uma luz flutuando à sua frente, e outra às suas costas. Sua tarefa era manter o braseiro e assegurar-se de que o fogo não apagaria.
- Esta não é uma neblina comum, Hugor Hill- insistiu Ysilla. - Fede a bruxaria, como você notaria se tivesse um nariz para cheirar. Muitos viajantes se perderam aqui, barcos de pesca, piratas e até grandes galés fluviais. Eles vagueiam desamparados pela névoa, procurando por um sol que não conseguem encontrar até que a loucura ou a fome clame por suas vidas. Aqui, há espíritos sem descanso no ar e almas atormentadas sob a água.
- Há uma agora - disse Tyrion. Do lado de fora, a estibordo, uma mão grande o bastante para esmagar o barco se erguia das profundezas escuras. Apenas as pontas de dois dedos emergiam da superfície do rio, mas enquanto o Donzela Tímida passava por eles, era possível ver o resto da mão embaixo d'água e um rosto pálido olhando para cima. Apesar do tom do anão ser leve, ele estava inquieto. Esse era um lugar mau, cheio de desespero e morte. Ysilla não está errada. Esta neblina não é natural. Algo abominável crescia nas águas ali e inflamava o ar. Não é à toa que os homens de pedra ficam loucos.
- Você não devia zombar - avisou Ysilla. - Os mortos sussurrantes odeiam o que é morno e rápido, e sempre procuram mais almas condenadas para se juntar a eles.
- Duvido que tenham uma mortalha do meu tamanho. - O anão mexeu no carvão com um atiçador.
- O ódio não agita os homens de pedra tanto quanto a fome. - Meiomeistre Haldon havia enrolado um lenço amarelo em volta da boca e do nariz, abafando a voz. - Nenhum homem são comeria o que cresce nesta neblina. Três vezes por ano, a tríade de Volantis envia uma galé rio acima com provisões, mas os navios misericordiosos chegam atrasados com frequência, e algumas vezes trazem mais bocas do que comida.
O Jovem Griff disse:
- Deve haver peixe no rio.
- Eu não comeria nenhum peixe vindo destas águas - disse Ysilla. - Não, mesmo.
- Faríamos bem em não respirar a neblina também - disse Haldon. - A Maldição de Garin está toda sobre nós.
A única maneira de não respirar a neblina é não respirar.
- A Maldição de Garin é apenas escamagris - disse Tyrion. A maldição era vista frequentemente em crianças, especialmente em climas úmidos e frios. A carne atacada endurecia, calcificava e rachava, embora o anão tivesse lido que o progresso do escamagris podia ser interrompido com limões, cataplasmas de mostarda e banhos quentes escaldantes (os meistres diziam) ou por orações, sacrifícios e jejuns (diziam os septões). Quando a doença passava, deixava as vítimas desfiguradas mas vivas. Meistres e septões concordavam em que crianças marcadas pelo escamagris nunca seriam tocadas pela forma mais rara e mortal da doença, nem por seu primo terrível e veloz, a peste cinza. - Dizem que a umidade é a culpada. Humores putrefatos no ar. Não maldições.
- Os conquistadores também não acreditavam, Hugor Hill - disse Ysilla. - Os homens de Volantis e Valíria penduraram Garin em uma gaiola de ouro e zombaram dele enquanto ele chamava a Mãe para destruí-los. Naquela noite as águas se levantaram e afogaram todos eles, e desse dia em diante não tiveram descanso. Ainda estão sob a água, eles que uma vez foram senhores do fogo. Seu hálito frio sobe da escuridão para formar esta neblina, e sua carne se transformou em pedra, assim como seus corações.
O toco do nariz de Tyrion coçava ferozmente. Ele coçou. A velha pode estar certa. Este lugar não é bom. Sinto como se estivesse na latrina novamente, vendo meu pai morrer. Ele também ficaria louco se tivesse que passar dias nesse caldo cinzento enquanto sua carne e seus ossos se transformavam em pedra.
O Jovem Griff não parecia compartilhar suas apreensões.
- Deixe-os tentar nos perturbar, e mostraremos para eles do que somos feitos.
- Somos feitos de sangue e ossos, à imagem do Pai e da Mãe - disse Septã Lemore. - Não ostente vaidade, eu imploro. Orgulho é um pecado grave. Os homens de pedra eram orgulhosos também, e o Senhor da Mortalha era o mais orgulhoso de todos.
O calor das brasas trouxe um pouco de rubor ao rosto de Tyrion.
- Existe um Senhor da Mortalha? Ou é só uma história?
- O Senhor da Mortalha governa estas névoas desde a época de Garin - disse Yandry. - Alguns dizem que ele é Garin em pessoa, que se levantou do túmulo.
- Os mortos não se levantam - insistiu Meiomeistre Haldon - e nenhum homem vive mil anos. Sim, há um Senhor da Mortalha. Houve vários deles. Quando um morre, outro toma seu lugar. O atual é um corsário das Ilhas Basílicas que acredita que o Roine pode oferecer pilhagens mais ricas do que o Mar do Verão.
- Sim, eu ouvi isso também - disse Pato - mas existe outra história da qual gosto mais. Aquela que diz que ele não é como os outros homens de pedra, mas que era uma estátua até que uma mulher cinza veio da neblina e o beijou com seus lábios frios como gelo.
- Chega! - disse Griff. - Silêncio, todos vocês.
Seprã Lemore prendeu a respiração.
- O que foi aquilo?
- Onde? - Tyrion não via nada além da neblina.
- Algo se moveu. Vi a água ondulando.
- Uma tartaruga - o príncipe anunciou alegremente. - Uma grande tartaruga-aligator, é o que era. - Colocou o remo na frente do barco e empurrou-os para longe de um alto obelisco verde.
A neblina se agarrava a eles, úmida e fria. Um templo submerso apareceu por entre a névoa cinza, enquanto Yandry e Pato se inclinavam sobre seus remos, movendo-os lentamente da proa para a popa, empurrando. Passaram por uma escada de mármore que da lama subia em espiral e terminava no ar. Além dela, meio ocultas, havia outras formas: torres destruídas, estátuas sem cabeça, árvores com raízes maiores do que o barco deles.
- Esta era a cidade mais bonita do rio, e a mais rica - disse Yandry. - Chroyane, a cidade do festival.
Tão rica, pensou Tyrion, tão bonita. Nunca foi sábio provocar dragões. A cidade afogada estava ao redor deles. Uma forma meio oculta passou por sobre suas cabeças, pálidas asas de couro batendo no nevoeiro. Tyrion esticou a cabeça para ver melhor, mas a coisa sumira tão repentinamente quanto aparecera.
Algum tempo depois, outra luz flutuou à vista deles.
- Barco - a voz chamou através da água, fracamente. - Quem são vocês?
- Donzela Tímida - Yandry gritou de volta.
- Pescador do Rei. Rio acima ou rio abaixo?
- Abaixo. Peles e mel, cerveja e sebo.
- Acima. Facas e agulhas, rendas e linho, vinho temperado.
- O que me diz da velha Volantis? - Yandry perguntou.
- Guerra - disse a voz no outro barco.
- Onde? - Griff gritou. - Quando?
- Na passagem do ano - veio a resposta. - Nyessos e Malaquo andam de mãos dadas e os elefantes mostram listras. - A voz desapareceu conforme o outro barco se afastou. Viram a luz piscar e desaparecer.
- É sábio gritar pela neblina para barcos que não podemos ver? - perguntou Tyrion. - E se fossem piratas? - Tiveram sorte na ocasião em que eram mesmo piratas, quando deslizavam pelo Lago Adaga à noite, sem serem vistos nem molestados. Em um determinado momento, Pato vislumbrou um casco que insistiu ser de Urho, o Sembanho. Mas o Donzela Tímida estava contra o vento, e Urho - se é que era Urho - não demostrou interesse neles.
- Os piratas não navegam aqui nos Sofrimentos - disse Yandry.
- Elefantes com listras? - Griff murmurou. - O que é isso? Nyessos e Malaquo? Illyrio pagou o tríade Nyessos o suficiente para tê-lo por oito vezes.
- Em ouro ou queijo? - brincou Tyrion.
Griff o rodeou.
- A menos que possa cortar esta neblina com sua próxima gracinha, mantenha-a para você.
Sim, pai, o anão quase disse. Vou ficar quieto. Obrigado. Não conhecia esses volantinos, mas parecia que elefantes e tigres tinham boas razões para fazer causa comum diante de dragões. Pode ser que o queijeiro tenha avaliado mal a situação. Você pode comprar um homem com ouro, mas só sangue e aço o seguram de verdade.
O homenzinho mexeu nos carvões novamente e soprou-os para fazê-los queimar. Odeio isso. Odeio esta neblina, odeio este lugar e não gosto nem um pouco de Griff. Tyrion ainda tinha os cogumelos venenosos que arrancara dos jardins da mansão de Illyrio, e já havia dias que estava terrivelmente tentado a colocá-los no jantar de Griff. O problema era que Griff dificilmente parecia comer.
Pato e Yandry empurraram os remos. Ysilla virou o leme. O Jovem Griff conduziu o Donzela Tímida para longe de uma torre quebrada cujas janelas apontavam para baixo como negros olhos cegos. Sobre suas cabeças, a vela pendia flácida e pesada. A água era profunda sob o casco, até que os remos não puderam alcançar o fundo, mas a corrente ainda os levava rio abaixo, até que...
Tudo o que Tyrion pôde ver foi algo maciço que se erguia do rio, corcunda e ameaçador. Julgou que fosse o morro de alguma ilha arborizada ou uma rocha colossal coberta de musgos e samambaias e escondida pela neblina. Conforme o Donzela Tímida se aproximou, no entanto, a forma ficou mais clara. Uma fortaleza de madeira podia ser vista ao lado da água, apodrecida e coberta de mato. Torres esguias se projetavam para cima, algumas delas agarradas à construção como lanças quebradas. Torres sem teto apareciam e desapareciam, apontando cegamente para cima. Salões e galerias passavam à deriva; contrafortes graciosos, arcos delicados, colunas caneladas, terraços e caramanchões.
Tudo em ruínas, tudo desolado, tudo abandonado.
O musgo cinza crescia em grossas camadas, cobrindo as pedras caídas em grandes montes e incrustando-se em todas as torres. Cipós negros rastejavam para dentro e para fora das janelas, através das portas e sobre os arcos, subindo pelas altas paredes de pedra. A neblina ocultava três quartos do palácio, mas o que vislumbraram era mais do que suficiente para que Tyrion soubesse que essa construção um dia tivera dez vezes o tamanho da Fortaleza Vermelha e fora cem vezes mais bonita. Sabia onde estavam.
- O Palácio do Amor - disse, suavemente.
- Esse era o nome roinar - disse Meiomeistre Haldon - mas por mil anos tem sido o Palácio dos Sofrimentos.
A ruína era triste o bastante, mas saber disso a fez parecer ainda mais triste. Havia risos aqui antigamente, pensou Tyrion. Havia jardins repletos de flores e fontes que brilhavam douradas ao sol. Estes degraus alguma vez percutiram os passos de amantes, e atrás deste domo quebrado casamentos além da conta foram selados com um beijo. Seus pensamentos se voltaram para Tysha, que havia sido sua esposa por tão pouco tempo. Foi Jaime, ele pensou, desesperado. Era meu próprio sangue, meu irmão mais velho e mais forte. Quando eu era pequeno, ele me trazia brinquedos, barris de aros, blocos e um leão escavado na madeira. Ele me deu meu primeiro pônei e me ensinou a cavalgá-lo. Quando ele disse que havia comprado você para mim, nunca duvidei. Por que o faria? Era Jaime, e você era apenas uma garota fazendo seu papel. Eu tive medo desde o começo, desde o momento em que você me deu o primeiro sorriso e me deixou tocar sua mão. Meu próprio pai não me amava. Por que você me amaria, se não por ouro?
Através dos longos dedos cinzentos da neblina, ele ouviu novamente o som da corda da besta estremecendo, o grunhido que Lorde Tywin fez quando a seta atravessou sua barriga, a batida de suas nádegas na pedra quando se sentou para morrer. “Aonde as putas forem”, ele dissera. E onde é isso? Tyrion queria perguntar para ele. Para onde Tysha foi, pai?
- Quanto tempo mais teremos que aguentar esta neblina?
- Mais uma hora e devemos nos livrar dos Sofrimentos - disse Meiomeistre Haldon. - A partir daí, devemos ter uma viagem agradável. Há vilas em todas as curvas do baixo Roine. Pomares, vinhedos e campos de cereais sob o sol, pescadores na água, banhos quentes e doces vinhos. Selhorys, Valysar e Volon Therys são vilas muradas tão grandes que poderiam ser cidades nos Sete Reinos. Acredito que...
- Luz adiante - avisou o Jovem Griff.
Tyrion também viu. Pescador do Rei ou outro barco de pesca, disse para si mesmo, mas de algum modo sabia que aquilo não estava certo. Seu nariz coçava. Ele o esfregou freneticamente. A luz verde ficava mais brilhante conforme o Donzela Tímida se aproximava. Uma estrela suave na distância, que brilhava fracamente pela neblina, acenando para eles. Logo a luz se transformou em duas, então em três; uma fileira irregular de lanternas elevando-se da água.
- A Ponte dos Sonhos - disse Griff. - Teremos homens de pedra pela frente. Alguns podem começar a lamentar quando nos aproximarmos, mas não devem nos molestar. A maioria dos homens de pedra são criaturas fracas, desajeitadas, pesadas e estúpidas. Perto do fim, tornam-se loucos, e é quando se tornam mais perigosos. Se for necessário, usem as tochas para expulsá-los. Em nenhuma hipótese os deixem tocar em vocês.
- Talvez nem nos vejam - disse Meiomeistre Haldon. - A neblina nos esconderá até que estejamos quase na ponte, e só quando passarmos por eles saberão que estamos aqui.
Olhos de pedra são olhos cegos, pensou Tyrion. A forma mortal do escamagris começava nas extremidades, ele sabia: o formigamento na ponta de um dedo da mão, uma unha do pé se enegrecia, perda de sensibilidade. Conforme a dormência tomava a mão, ou atravessava o pé e subia pela perna, a carne endurecia e ficava fria e a pele da vítima assumia uma tonalidade acinzentada, parecida com pedra. Ele ouvira dizer que havia três boas curas para escamagris: o machado, a espada e o facão. Cortar partes afetadas algumas vezes impedia que a doença se espalhasse, Tyrion sabia, mas nem sempre. Muitos homens sacrificavam um braço ou um pé, só para descobrir outro membro ficando cinza. Uma vez que isso acontecia, a esperança era perdida. Cegueira era comum quando a pedra chegava ao rosto. No estágio final, a maldição se virava para dentro, atacando músculos, ossos e órgãos internos.
Diante deles, a ponte crescia. A Ponte dos Sonhos, Griff a chamara, mas este sonho estava esmagado e partido. Arcos de pedras claras avançavam pela neblina, saindo do Palácio dos Sofrimentos em direção à margem oriental. Metade deles havia caído, pressionados pelo peso do musgo cinza que os cobria e pelos grossos cipós negros que serpenteavam até eles da água. A ampla arcada de madeira da ponte havia apodrecido completamente, mas algumas das lâmpadas que iluminavam o caminho ainda estavam acesas. Conforme o Donzela Tímida se aproximava, Tyrion podia ver as silhuetas dos homens de pedra movendo-se na luz, caminhando a esmo ao redor das lâmpadas, como lentas mariposas cinzentas. Alguns estavam nus, outros vestidos com mortalhas.
Griff desembainhou sua espada longa.
- Yollo, acenda as tochas. Rapaz, leve Lemore para a cabine e fique com ela.
O Jovem Griff deu um olhar teimoso para o pai.
- Lemore sabe onde fica a cabine dela. Quero ficar.
- Juramos proteger você - Lemore disse suavemente.
- Não preciso ser protegido. Posso usar uma espada tão bem quanto Pato. Sou quase um cavaleiro.
- E quase um garoto - disse Griff. - Faça o que lhe foi dito. Agora.
O garoto amaldiçoou em voz baixa e jogou o remo no convés. O som ecoou estranhamente na neblina, e por um momento era como se remos estivessem caindo ao redor deles.
- Por que tenho que fugir e me esconder? Haldon vai ficar, e Ysilla. Até Hugor.
- Sim - disse Tyrion - mas sou pequeno o bastante para me esconder atrás de um pato. - Ele empurrou meia dúzia de tochas nos carvões brilhantes do braseiro e assistiu aos trapos oleados pegarem fogo. Não encare o fogo, disse para si mesmo. As chamas o deixariam com cegueira noturna.
- Você é um anão - o Jovem Griff disse com desprezo.
- Meu segredo foi revelado - disse Tyrion, concordando. - Sim, e menos da metade de Haldon, e ninguém dá um peido se eu viver ou morrer. - Muito menos eu. - Já você... você é tudo.
- Anão - disse Griff -, eu o avisei...
Um lamento veio tremendo pela neblina, primeiro suave e depois mais alto.
Lemore se virou, tremendo.
- Sete, salvem-nos!
A ponte quebrada aparecia por inteiro, cinco metros adiante. Ao redor do cais, a água ondulava, branca como a espuma da boca de um louco. Doze metros acima, os homens de pedra gemiam e murmuravam sob as lâmpadas bruxuleantes. A maioria não tomou mais conhecimento do Donzela Tímida do que de um toco de madeira. Tyrion agarrou firme sua tocha, e percebeu que estava prendendo a respiração. Então, passaram sob a ponte, pesadas paredes brancas cobertas de fungo cinza agigantando-se de ambos os lados, a água agitando-se ferozmente ao redor deles. Por um momento, pareceu que iam se chocar contra o lado direito do cais, mas Pato levantou o remo e os empurrou de volta para o centro do canal, e alguns segundos mais tarde estavam livres.
Tyrion ainda não tinha soltado o fôlego quando o Jovem Griff o agarrou pelo braço.
- O que você quer dizer? Sou tudo? O que você quis dizer com isso? Por que sou tudo?
- Porque - disse Tyrion - se os homens de pedra levassem Yandry, Griff ou nossa adorável Lemore, nós sentiríamos por eles e seguiríamos. Se perdermos você, toda essa jornada acabou, todos aqueles anos de febril conspiração do queijeiro e do eunuco seriam por nada ... não é verdade?
O garoto olhou para Griff.
- Ele sabe quem sou.
Se não soubesse antes, saberia agora. Nesse momento, o Donzela Tímida já havia descido o rio e passado pela Ponte dos Sonhos. Tudo o que restava era uma luz tremulando atrás deles, e que logo sumiria também.
- Você é o Jovem Griff filho de Griff o mercenário - disse Tyrion. - Ou talvez seja o Guerreiro encarnado. Deixe-me olhar mais de perto. - Ele levantou a tocha para iluminar o rosto do Jovem Griff.
- Deixe disso - ordenou Griff - ou vai desejar ter deixado.
O anão o ignorou.
- Os cabelos azuis fazem seus olhos parecerem azuis, isso é bom. E a história que pinta eles em homenagem à sua falecida mãe tyroshi foi tão tocante que quase me fez chorar. Mesmo assim, um homem curioso poderia se perguntar por que o filhote de um mercenário precisaria de uma septã encardida para instruí-lo na Fé, ou de um meistre sem correntes para ensiná-lo história e idiomas. E um homem mais esperto poderia questionar por que seu pai contrataria um cavaleiro andante para treiná-lo nas armas, em vez de simplesmente enviá-lo como aprendiz em uma das companhias livres. É quase como se alguém quisesse mantê-lo escondido enquanto o prepara para ... o quê? Agora há perplexidade, mas estou certo de que com o tempo a resposta virá até mim. Devo admitir, você tem nobres características para um menino morto.
O rapaz corou.
- Não estou morto.
- Como não? O senhor meu pai enrolou seu cadáver em um manto carmesim e colocou-o juntamente com o corpo de sua irmã aos pés do Trono de Ferro, o presente dele para o novo rei. Aqueles que tiveram estômago para levantar o manto disseram que metade de sua cabeça tinha sumido.
O rapaz deu um passo para trás, confuso.
- Seu ...
- ... pai, sim. Tywin da Casa Lannister. Talvez já tenha ouvido falar nele.
O Jovem Griff hesitou.
- Lannister? Seu pai ...
- ... está morto. Por minhas mãos. Se agrada Vossa Graça me chamar Yollo ou Hugor, que assim seja, mas saiba que nasci Tyrion da Casa Lannister, filho legítimo de Tywin e Joanna, ambos mortos por mim. As pessoas dirão para você que sou um regicida, um parricida e um mentiroso, e tudo isso é verdade... mas, então, somos uma companhia de mentirosos, não somos? Veja seu suposto pai. Griff, não é? - O anão riu. - Você deve agradecer aos deuses por Varys, a Aranha, ser parte desse seu enredo. Griff não teria enganado o bruxo despirocado nem por um instante, não mais do que enganou a mim. Não, senhor, vossa senhoria diz, não sou um cavaleiro. E eu não sou um anão. Não basta dizer uma coisa para que ela se torne verdade. Quem melhor para criar o bebê do Príncipe Rhaegar do que o querido amigo do Príncipe Rhaegar: Jon Connington, certa vez Lorde de Poleiro do Grifo e Mão do Rei?
- Fique quieto. - A voz de Griff era ansiosa.
A bombordo do barco, uma imensa mão de pedra era visível sob a água. Dois dedos saíam para a superfície. Quantos desses há por aqui?, Tyrion se perguntou. Um filete de suor escorreu por sua espinha e o fez estremecer. Os Sofrimentos passavam por eles. Espreitando pela névoa, ele vislumbrou uma torre quebrada, um herói sem cabeça, uma antiga árvore arrancada do chão e virada, com enormes raízes se enrolando pelo telhado e pelas janelas de um domo quebrado. Por que tudo isso parece tão familiar?
Adiante, uma escada de mármore claro se elevava para fora da água escura em uma espiral graciosa, terminando abruptamente três metros acima da cabeça deles. Não, pensou Tyrion, isso não é possível.
- Lá na frente. - A voz de Lemore estava trêmula. - Uma luz.
Todos olharam. Todos viram.
- Pescador do Rei - disse Griff - Ou algum outro barco como ele. - Mas desembainhou a espada novamente.
Ninguém disse uma palavra. O Donzela Tímida se movia com a correnteza. Sua vela não havia sido içada desde que entraram nos Sofrimentos. Não tinha outro jeito de mover o barco, que não fosse com o rio. Pato apertou os olhos, segurando o remo com as duas mãos. Depois de um tempo, até Yandry parou de empurrar. Todos os olhos estavam voltados para a luz distante. Conforme ela se aproximava, transformou-se em duas. Então em três.
- A Ponte dos Sonhos - disse Tyrion.
- Inconcebível - disse Meiomeistre Haldon. - Deixamos a ponte para trás. Rios só correm em um sentido.
- A Mãe Roine corre para onde ela quer - murmurou Yandry.
- Sete, salvem-nos - disse Lemore.
Sobre suas cabeças, homens de pedra nas arcadas começaram a lamentar. Alguns apontavam para eles.
- Haldon, leve o príncipe para baixo - ordenou Griff.
Era tarde demais. A correnteza segurava-os com suas garras. Foram levados inexoravelmente em direção à ponte. Yandry dava estocadas com o remo, para impedir que se chocassem contra o cais. O impulso os empurrou para o lado, através de uma cortina de musgo cinza-claro. Tyrion sentiu ramos de gavinhas contra sua face, suaves como os dedos de uma puta. Então sentiu uma pancada atrás dele, e o convés inclinou-se tão de repente que ele quase perdeu o pé e foi lançado para o lado.
Um homem de pedra caíra dentro do barco.
Ele aterrizou no tero da cabine tão pesadamente que o Donzela Tímida pareceu virar, e rugiu uma palavra para eles em uma língua que Tyrion não conhecia. Um segundo homem de pedra o seguiu, caindo ao lado do leme. As placas reforçadas racharam com o impacto, e Ysilla soltou um grito.
Pato estava mais perto dela. O grande homem não perdeu tempo procurando sua espada. Em vez disso, balançou o remo, acertando no peito do homem de pedra e arremessando-o para dentro do rio, onde ele afundou sem um som.
Griff estava sobre o segundo homem no instante em que ele cambaleou para baixo do teto da cabine. Com a espada na mão direita e a rocha na esquerda, fez com que a criatura recuasse. Enquanto a correnteza levava o Donzela Tímida por baixo da ponte, suas sombras inconstantes dançavam sobre as paredes de musgo. Quando o homem de pedra foi para trás, Pato bloqueou seu caminho, com o remo na mão. Quando tentou ir adiante, Meiomeistre Haldon agitou uma segunda tocha em sua direção e o fez recuar. Não tinha alternativa senão seguir em direção a Griff. O capitão deslizou para o lado, a lâmina cintilando. Uma faísca voou de onde o aço acertou a cinzenta carne calcificada do homem de pedra, mas seu braço caiu no convés no mesmo instante. Griff chutou o membro de lado. Yandry e Pato vieram com os remos. Juntos, forçaram a criatura a virar de lado, caindo nas águas negras do Roine.
A essa altura, o Donzela Tímida já tinha atravessado a ponte quebrada.
- Pegamos todos eles? - Pato perguntou. - Quantos pularam?
- Dois - disse Tyrion, com calafrios.
- Três - disse Haldon. - Atrás de você.
O anão se virou, e lá ficou.
Ao saltar, o homem de pedra tinha quebrado uma perna, e um pedaço irregular de osso branco se projetava pelo tecido podre de seus calções e da carne cinza que estava por baixo. O osso quebrado estava manchado de sangue marrom, mas mesmo assim ele avançou, alcançando o Jovem Griff. Sua mão era cinza e dura, mas o sangue escorria entre seus dedos enquanto tentava fechá-los. O rapaz ficou olhando, imóvel, como se também fosse feito de pedra. Sua mão estava no cabo da espada, mas parecia ter esquecido o porquê.
Tyrion chutou a perna do rapaz para desequilibrá-lo e pulou sobre ele quando caiu, empurrando a tocha no rosto do homem de pedra para fazê-lo recuar mancando com a perna quebrada e evitando as chamas com as duras mãos cinza. O anão bamboleou atrás dele, agitando a tocha, apontando-a em direção aos olhos do homem de pedra. Um pouco mais. Para trás, mais um passo, outro. Estavam na beira do convés quando a criatura lançou-se sobre ele, agarrou a tocha e a arrancou de suas mãos. Estou perdido, pensou Tyrion.
O homem de pedra jogou a tocha longe. Foi possível ouvir um silvo suave enquanto as águas negras apagavam as chamas. O homem de pedra uivou. Antes, fora um homem da Ilha do Verão; seu queixo e metade de seu rosto tinham se transformado em pedra, mas sua pele, onde não era cinza, era negra como a meia-noite. Onde agarrara a tocha, a pele rachara e se partira. Sangue escorria pelas juntas de seus dedos, embora ele parecesse não sentir. Essa era uma pequena misericórdia, supôs Tyrion. Embora fatal, o escamagris não era doloroso.
- Afaste-se! - alguém gritou de longe, e outra voz disse - O príncipe! Proteja o garoto! - O homem de pedra avançou com as mãos estendidas e sôfregas.
Tyrion acertou a criatura com o ombro.
Foi como bater contra a muralha de um castelo, mas esse castelo estava sobre uma perna quebrada. O homem de pedra foi para trás, agarrando Tyrion enquanto caía. Eles atingiram o rio com uma forte pancada na água, e a Mãe Roine engoliu os dois.
O súbito baque gelado atingiu Tyrion como um martelo. Enquanto afundava, sentia uma mão de pedra tateando seu rosto. Outra estava em volta de seu braço, arrastando-o para a escuridão. Cego, com o nariz cheio do rio, engasgado, afundando, ele chutou, se contorceu e lutou para abrir os dedos que cercavam seu braço, mas os dedos de pedra eram inflexíveis. Bolhas de ar saíam de seus lábios. O mundo era negro e estava ficando mais negro ainda. Ele não podia respirar.
Há maneiras piores de se morrer do que afogado. E, verdade seja dita, ele perecera havia muito tempo, em Porto Real. Fora apenas sua alma penada que restara, o pequeno fantasma vingativo que estrangulara Shae e atravessara uma seta de besta nos intestinos do grande Lorde Tywin. Nenhum homem lamentaria a coisa na qual ele se tornara. Vou assombrar os Sete Reinos, pensou, afundando cada vez mais. Não me amaram em vida, então vão me temer na morte.
Quando abriu a boca para amaldiçoar todos eles, a água negra encheu seus pulmões e a escuridão o cercou. 

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