sexta-feira, 20 de setembro de 2013

22 - ARYA



Todas as noites, antes de dormir, murmurava sua prece para a almofada.
- Sor Gregor - começava. - Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei - teria murmurado também os nomes dos Frey da Travessia, se os soubesse. Um dia saberei, dizia a si mesma, e então m atarei todos.
Nenhum murmúrio era tênue demais para ser ignorado na Casa do Preto e Branco.
- Criança - disse um dia o homem amável - que nomes são esses que murmura à noite?
- Não murmuro nome nenhum - ela respondeu.
- Mente - ele esbravejou. - Todos mentem quando têm medo. Alguns contam muitas mentiras, outros só algumas. Alguns têm só uma grande mentira que contam com tanta frequência, que quase chegam a acreditar nela... embora uma pequena parte de si saiba sempre que continua a ser uma mentira, e isso transparece-lhes no rosto. Fale-me desses nomes.
Arya mordeu o lábio.
- Os nomes não importam.
- Importam - o homem amável insistiu. - Conte-me, filha.
Conte-me, senão colocamos você na rua, foi o que ela ouviu.
- São pessoas que odeio. Quero que morram.
- Ouvimos muitas preces dessas nesta Casa.
- Eu sei - Arya retrucou. Um dia, Jaqen H'ghar concedera-lhe três de suas preces. Tudo que tive de fazer foi murmurar.
- Foi por isso que veio até nós? - prosseguiu o homem amável. - Para aprender as nossas artes, para que possa matar esses homens que odeia?
Arya não sabia como responder àquilo.
- Talvez.
- Então veio ao lugar errado. Não cabe a você decidir quem vive e quem morre. Esse dom pertence ao das Muitas Faces. Nós não somos mais do que seus servos, presos ao juramento de cumprir a sua vontade.
- Oh - Arya olhou de relance as estátuas dispostas ao longo das paredes, com velas cintilando em volta dos pés. - Qual dos deuses é ele?
- Ora, todos - disse o sacerdote vestido de preto e branco.
Nunca lhe disse seu nome. A criança abandonada tampouco o fez, a garotinha de olhos grandes e rosto chupado que a fazia lembrar outra garotinha, chamada Doninha. Tal como Arya, a criança abandonada vivia sob o templo, com três acólitos, dois criados e uma cozinheira chamada Umma. Umma gostava de falar enquanto trabalhava, mas Arya não compreendia uma palavra do que dizia. Os outros não tinham nomes, ou preferiam não dizê-los. Um criado era muito velho, com as costas dobradas como um arco. O segundo tinha rosto vermelho e pelos crescendo nas orelhas. Tomou-os a ambos por mudos até ouvi-los rezar. Os acólitos eram mais novos. O mais velho era da idade do pai de Arya; os outros dois não podiam ser muito mais velhos do que Sansa, sua irmã. Eles também usavam preto e branco, mas suas vestes não tinham capuz, e eram negras do lado esquerdo e brancas do direito. Com as vestes do homem amável e da criança abandonada era ao contrário. Arya recebeu uma vestimenta de criada, uma túnica de lã não tingida, calções largos, roupa de baixo feita de linho e chinelos de pano.
Só o homem amável conhecia o idioma comum.
- Quem é você? - perguntava-lhe todos os dias.
- Ninguém - respondia, ela que tinha sido Arya da Casa Stark, Arya Debaixo dos Pés, Arya Cara de Cavalo. E também Arry e Doninha, e Pombinha e Salgada, Nan, a copeira, um rato cinzento, uma ovelha, o fantasma de Harrenhal... mas não de verdade, não no coração do seu coração. Ali, era Arya de Winterfell, a filha de Lorde Eddard Stark e da Senhora Catelyn, que outrora tivera irmãos chamados Robb, Bran e Rickon, uma irmã chamada Sansa, uma loba gigante chamada Nymeria, um meio-irmão chamado Jon Snow. Ali, era alguém... mas não era esta a resposta que ele queria.
Sem uma língua comum, Arya não tinha como falar com os outros. Mas escutava-os, e repetia para si mesma as palavras que ouvia enquanto tratava de seus deveres. Embora o acólito mais novo fosse cego, estava encarregado das velas. Percorria o templo calçado com chinelos macios, rodeado pelos murmúrios das velhas que vinham todos os dias rezar. Mesmo sem olhos, sabia sempre quais das velas tinham se apagado.
- Tem o olfato para guiá-lo - explicou o homem amável - e o ar é mais quente onde uma vela está ardendo - disse a Arya para fechar os olhos e experimentar.
Rezavam à aurora, antes de quebrarem o jejum, ajoelhando-se em volta do tanque imóvel e negro. Em certos dias, era o homem amável quem liderava as preces. Noutros, era a criança abandonada. Arya só conhecia algumas palavras de bravosi, aquelas que eram iguais em alto valiriano. Por isso rezava sua própria oração ao Deus das Muitas Faces, aquela que dizia: “Sor Gregor, Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei” Rezava em silêncio. Se o Deus das Muitas Faces fosse um deus de fato, a ouviria.
Os fiéis vinham à Casa do Preto e Branco todos os dias. A maioria sozinha, e permanecia só; acendiam velas num ou noutro altar, rezavam junto ao tanque, e por vezes choravam. Alguns bebiam da taça negra e iam dormir; eram mais os que não bebiam. Não havia serviços religiosos, nem canções, nem hinos de louvor para agradar ao deus. O templo nunca estava cheio. De tempos em tempos, um fiel pedia para falar com um sacerdote, e o homem amável ou a criança abandonada levavam-no para o sacrário, mas isso não acontecia com frequência.
Trinta deuses diferentes estavam dispostos ao longo das paredes, rodeados por suas pequenas luzes. Arya viu que a Mulher Chorosa era a preferida das velhas; os ricos preferiam o Leão da Noite; os pobres, o Viajante Encapuzado. Os soldados acendiam velas a Bakkalon, a Criança Pálida; os marinheiros, à Donzela Pálida de Lua e ao Rei Bacalhau. O Estranho também tinha seu santuário, embora quase ninguém fosse ter com ele. A maior parte do tempo só uma única vela bruxuleava a seus pés. O homem amável dizia que não importava.
- Ele tem muitas caras e muitos ouvidos para ouvir.
O pequeno monte em que se erguia o templo era uma colmeia de passagens esculpidas na rocha. Os sacerdotes e acólitos tinham suas celas para dormir no primeiro andar; Arya e os criados, no segundo. O andar inferior era proibido a todos, exceto aos sacerdotes. Era aí que ficava o santo sacrário.
Quando não estava trabalhando, Arya era livre para perambular como quisesse por entre as caves e os armazéns, desde que não deixasse o templo nem descesse ao terceiro andar. Encontrou uma sala cheia de armas e armaduras, elmos ornamentados e antigas e curiosas placas de peito, espadas, punhais e adagas, bestas e grandes lanças com pontas em forma de folha. Outra câmara estava repleta de roupa, espessas peles e magníficas sedas em meia centena de cores, junto a pilhas de farrapos malcheirosos e roupas de tecido grosseiro. Também deve haver câmaras de tesouros, ela concluiu. Imaginou pilhas de placas douradas, sacos de moedas de prata, safiras azuis como o mar, cordas de pérolas gordas e verdes.
Um dia, o homem amável surgiu inesperadamente junto dela e lhe perguntou o que andava fazendo. Arya lhe disse que tinha se perdido.
- Mente. Pior: mente mal. Quem é?
- Ninguém.
- Outra mentira - e suspirou.
Weese teria batido nela até sair sangue se a tivesse apanhado numa mentira, mas na Casa do Preto e Branco as coisas eram diferentes. Quando estava ajudando na cozinha, Umma por vezes lhe dava uma pancada com a colher se se colocasse no caminho, mas nunca ninguém mais lhe levantou a mão. Só levantam as mãos para matar, pensou.
Dava-se bastante bem com a cozinheira. Umma enfiava-lhe uma faca na mão e apontava para uma cebola, e Arya a cortava. Umma empurrava-a na direção de um monte de massa, e Arya a amassava até a cozinheira dizer pare (pare foi a primeira palavra bravosiana que aprendeu). Umma entregava-lhe um peixe, e Arya o preparava, cortava-o em filetes e o passava nas nozes que a cozinheira esmagava. As águas salobras que rodeavam Bravos pululavam de peixes e mariscos de todos os tipos, explicara o homem amável. Um rio lento e marrom entrava na lagoa pelo lado sul, vagueando através de uma grande extensão de juncos, lagoas de maré e lodaçais. Amêijoas e berbigões abundavam por ali; mexilhões e almiscareiros, rãs e tartarugas, caranguejos do lodo, caranguejos-leopardo e caranguejos alpinistas, enguias vermelhas, negras, listradas, lampreias e ostras; todos faziam aparições frequentes na mesa de madeira esculpida onde os criados do Deus das Muitas Faces faziam as refeições. Certas noites, Umma temperava o peixe com sal marinho e grãos de pimenta fendidos, ou cozinhava as enguias com fatias de alho. Muito de vez em quando, a cozinheira chegava mesmo a usar um pouco de açafrão. Torta Quente teria gostado deste lugar, Arya pensava.
O jantar era sua hora preferida do dia. Passara-se muito tempo desde que ela ia dormir todas as noites de barriga cheia. Certas noites, o homem amável permitia que lhe fizesse perguntas. Uma vez perguntou-lhe por que as pessoas que vinham ao templo pareciam tão em paz; na sua terra, as pessoas tinham medo de morrer. Lembrava-se de como aquele escudeiro espinhento chorara quando o apunhalara na barriga, e do modo como Sor Amory Lorch suplicara quando o Bode mandara atirá-lo à arena dos ursos. Lembrava-se da aldeia junto ao Olho de Deus, e do modo como os aldeões guinchavam e berravam sempre que Cócegas começava a fazer perguntas sobre ouro.
- A morte não é a pior coisa que existe - respondeu o homem amável. - É o presente que Ele nos dá, um fim para as carências e a dor. No dia em que nascemos, o Deus das Muitas Faces nos manda um anjo negro para atravessar a vida ao nosso lado. Quando nossos pecados e nosso sofrimento se tornam muito grandes para ser suportados, o anjo pega nossa mão para nos levar até as terras da noite, onde as estrelas brilham sempre fortes. Aqueles que vêm beber da taça negra estão em busca do seu anjo. Se têm medo, as velas os acalma. Em que você pensa quando sente o cheiro de nossas velas ardendo, pequena?
Winterfell, podia ter dito. Sinto cheiro de neve, fumaça e agulhas de pinheiro. Sinto cheiro de estábulos. Sinto o cheiro do riso de Hodor e da luta de Jon e Robb no pátio, e de Sansa cantando sobre um a estúpida bela senhora qualquer. Sinto cheiro das criptas onde estão os reis de pedra, sinto o cheiro de pão quente assando, sinto o cheiro do bosque sagrado. Sinto o cheiro da minha loba, de seu pelo, quase como se ainda estivesse comigo.
- Não sinto cheiro de nada - respondeu, esperando para ver o que ele diria.
- Mente - ele disse - mas pode guardar seus segredos, se quiser, Arya da Casa Stark - só a chamava assim quando o descontentava. - Sabe que pode deixar este lugar. Não é uma de nós, por enquanto. Pode ir para casa quando quiser.
- Disse-me que se eu partisse não poderia voltar.
- É verdade.
Aquelas palavras a entristeceram. Syrio também costumava dizer isso, Arya recordou. Sempre dizia. Syrio Forel ensinara-lhe a trabalhar com a Agulha e morrera por ela.
- Não quero partir.
- Então fique... mas, lembre-se, a Casa do Preto e Branco não é uma casa de órfãos. Todos têm de servir sob este teto. Valar dohaeris é como dizemos aqui. Fique se quiser, mas saiba que exigiremos sua obediência. Em todos os momentos e em tudo. Se não puder obedecer, terá de partir.
- Posso obedecer.
- Veremos.
Tinha outras tarefas além de ajudar Umma. Varria o chão do templo; servia as refeições, organizava pilhas de roupa dos mortos, esvaziava-lhes as bolsas e contava montes de estranhas moedas. Todas as manhãs acompanhava o homem amável quando ele fazia o circuito do templo para encontrar os mortos. Silenciosa como uma sombra, dizia a si mesma, lembrando-se de Syrio. Transportava uma lanterna pelas grossas portadas de ferro. Em cada alcova, abria um pouco a portada para procurar cadáveres.
Os mortos nunca eram difíceis de encontrar. Vinham à Casa do Preto e Branco, rezavam uma hora, um dia ou um ano, bebiam água escura e doce do tanque, e estendiam-se numa cama de pedra por trás de um ou de outro deus. Fechavam os olhos e adormeciam, e nunca mais acordavam.
- A dádiva do Deus das Muitas Faces toma uma miríade de formas - disse-lhe o homem amável - mas aqui é sempre gentil.
Quando encontravam um cadáver, ele proferia uma prece e assegurava-se de que a vida fugira do corpo, enquanto Arya ia buscar os criados, cuja tarefa consistia em carregar os mortos para as câmaras. Ali, acólitos despiam e lavavam os corpos. As roupas, moedas e coisas de valor eram guardadas numa arca, para depois serem organizadas. A carne fria era levada para o sacrário inferior, onde só os sacerdotes podiam ir; o que acontecia ali Arya não estava autorizada a saber. Um dia, enquanto jantava, uma terrível suspeita a assaltou, pousou a faca e fitou com suspeita uma fatia de carne branca. O homem amável viu o horror em seu rosto.
- É porco, pequena - disse-lhe - é só porco.
Sua cama era de pedra, e a fazia lembrar-se de Harrenhal e a cama onde dormira quando esfregava degraus para Weese. O colchão estava cheio de trapos em vez de palha, o que fazia que fosse mais grumoso do que aquele que tivera em Harrenhal, mas também lhe dava menos coceira. Permitiam-lhe tantos cobertores quantos desejasse; grossos cobertores de lã, verdes, vermelhos e de tecido xadrez. E a cela era só sua. Guardava ali seus tesouros: o garfo de prata, o chapéu mole e as luvas sem dedos que lhe tinham sido oferecidos pelos marinheiros da Filha do Titã, seu punhal, suas botas e o cinto, sua pequena reserva de moedas, as roupas que usava...
E Agulha.
Embora seus deveres lhe deixassem pouco tempo para treinar, praticava sempre que podia, duelando com sua sombra à luz de uma vela azul. Uma noite, a criança abandonada calhou de passar por ali e viu Arya treinando. A garota não disse nada, mas no dia seguinte o homem amável acompanhou Arya até a cela.
- Tem de se livrar de tudo isto - disse sobre seus tesouros.
Arya sentiu-se profundamente ferida.
- Isto é meu.
- E quem é você?
- Ninguém.
Ele pegou o garfo de prata.
- Isto pertence a Arya da Casa Stark. Todas estas coisas lhe pertencem. Não há lugar para elas aqui. Não há lugar para ela. O nome dela é orgulhoso demais, e nós não temos espaço para o orgulho. Aqui somos servos.
- Eu sirvo - ela retrucou, magoada. Gostava do garfo de prata.
- Brinca de ser uma serva, mas em seu íntimo é a filha de um senhor. Adotou outros nomes, mas os usou com a mesma leveza com que poderia ter usado um vestido. Por baixo deles, sempre esteve a Arya.
- Eu não uso vestidos. Não se pode lutar num estúpido vestido.
- Por que quer lutar? É algum espadachim, pavoneando-se pelas vielas, ansiando por sangue? - suspirou. - Antes de beber da taça fria, deve oferecer tudo o que você é ao das Muitas Faces. Seu corpo. Sua alma. Você. Se não conseguir fazer isso, deve deixar este lugar.
- A moeda de ferro...
- ... pagou sua passagem até aqui. Deste ponto em diante, tem de ser você a pagar seu percurso, e o preço é elevado.
- Não tenho ouro.
- O que oferecemos não pode ser comprado com ouro. O preço é sua pessoa por inteiro. Os homens seguem muitos caminhos através deste vale de lágrimas e dor. O nosso é o mais duro. Poucos são os que foram feitos para percorrê-lo. É preciso uma força incomum de corpo e espírito, e um coração ao mesmo tempo duro e forte.
Tenho um buraco onde costumava ficar o coração, pensou, e mais nenhum lugar para onde ir.
- Sou forte. Tão forte quanto você. Sou dura.
- Acha que este é o único lugar para você - era como se ele ouvisse seus pensamentos. - Engana-se. Encontraria um trabalho mais brando na casa de um mercador qualquer. Ou preferiria ser uma cortesã e ter canções cantadas à sua beleza? Diga uma palavra e enviaremos você para Pérola Negra ou para Filha da Penumbra. Dormirá em pétalas de rosa e usará saias de seda que sussurram ao caminhar, e grandes senhores se transformarão em pedintes por seu sangue de donzela. Ou, se o que deseja for casamento e filhos, diga-me, e lhe encontraremos um marido. Um aprendiz honesto, um velho rico, um marinheiro, quem você desejar.
Arya não queria nada daquilo. Sem palavras, balançou a cabeça.
- É com Westeros que sonha, pequena? A Brilhante Senhora de Luco Prestayn parte amanhã, para Vila Gaivota, Valdocaso, Porto Real e Tyrosh. Arranjamos passagem nela para você?
- Eu acabei de chegar de Westeros - por vezes parecia terem se passado mil anos desde que fugira de Porto Real, outras, parecia ter sido ontem, mas sabia que não podia voltar. - Partirei, se não me quiser, mas não para lá.
- Meus desejos não interessam - disse o homem amável. - Pode ser que o Deus das Muitas Faces tenha trazido você para este lugar para ser um instrumento Seu, mas quando olho para você vejo uma criança... e, pior, uma menina. Muitos serviram Aquele das Muitas Faces ao longo dos séculos, mas só um punhado de seus servos foram mulheres. As mulheres trazem vida ao mundo. Nós trazemos a dádiva da morte. Ninguém pode fazer ambas as coisas.
Ele está tentando me amedrontar para me afastar, Arya pensou, como fez com o verme.
- Isso não me importa.
- Devia importar. Fique, e o Deus das Muitas Faces ficará com as suas orelhas, seu nariz, sua língua. Ficará com seus tristes olhos cinzentos que viram tantas coisas. Ficará com suas mãos, seus pés, com seus braços e pernas, suas partes íntimas. Ficará com suas esperanças e sonhos, com seus amores e ódios. Aqueles que entram ao Seu serviço têm de renunciar a tudo o que faz deles quem são. Pode fazer isso? - envolveu-lhe o queixo com uma mão e a fitou profundamente nos olhos, tão profundamente que a fez estremecer. - Não - disse - não me parece que possa.
Arya afastou-lhe a mão com um tapa.
- Poderia, se quisesse.
- Isto é o que diz Arya da Casa Stark, comedora de vermes.
- Posso renunciar a tudo o que quiser!
Ele indicou seus tesouros com um gesto.
- Então, comece com isto.
Naquela noite, após o jantar, Arya voltou para a cela, despiu a veste e murmurou seus nomes, mas o sono se recusou a levá-la, Revirou-se no colchão recheado de trapos roendo o lábio. Conseguia sentir o buraco dentro de si onde tivera o coração.
Na noite cerrada, voltou a se levantar, vestiu a roupa que usara na viagem desde Westeros e afivelou seu cinto da espada. A Agulha pendia-lhe de uma anca e o punhal da outra. Com o chapéu mole na cabeça, as luvas sem dedos enfiadas no cinto e o garfo de prata na mão, subiu os degraus sorrateiramente. Aqui não há lugar para Arya da Casa Stark, pensou. O lugar de Arya era Winterfell, só que Winterfell já não existia. Quando as neves caem e os ventos brancos sopram, o lobo solitário morre, mas a alcateia sobrevive. Contudo, ela não tinha alcateia. Tinham matado a sua, Sor Ilyn, Sor Meryn e a rainha; e quando tentara formar uma nova, fugiram todos, Torta Quente, Gendry, Yoren e Lommy Mãos-Verdes, até Harwin, que fora um dos homens do pai. Cruzou as portas com um empurrão e penetrou na noite.
Era a primeira vez que estava no exterior desde que entrara no templo. O céu estava coberto, e nevoeiro cobria o chão como um cobertor cinzento e gasto. À direita, ouviu o ruído de remadas vindo do canal. Bravos, a Cidade Secreta, pensou. O nome parecia muito adequado. Desceu em silêncio os íngremes degraus, até a doca coberta, com as brumas rodopiando em volta dos seus pés. O nevoeiro era tão denso que não conseguia ver a água, mas ouvia-a bater levemente contra pilares de pedra. A distância, uma luz brilhava através das sombras: a fogueira noturna no templo dos sacerdotes vermelhos, pensou.
À beira da água parou, com o garfo de prata na mão. Era prata verdadeira, e maciça. O garfo não é meu. Foi a Salgada que me deu. Atirou-o dissimuladamente e ouviu o suave plop que ele fez quando afundou na água.
O chapéu mole foi-se em seguida, e depois as luvas. Também eram da Salgada. Esvaziou a bolsa na palma da mão; cinco veados de prata, nove estrelas de cobre, alguns pennies, meios pennies e moedas de quatro groats. Espalhou-os na água. Em seguida, jogou as botas, e elas fizeram o maior ruído ao cair na água. O punhal as seguiu, aquele que obtivera do arqueiro que suplicara ao Cão de Caça por misericórdia. O cinto da espada mergulhou no canal. O manto, a túnica, os calções, a roupa de baixo, tudo. Tudo, menos Agulha.
Ficou em pé na beira da doca, pálida, arrepiada e tremendo no nevoeiro. Na sua mão, Agulha parecia murmurar. Espete-lhes a ponta afiada, dizia, e, depois, não diga a Sansa! Via-se a marca de Mikken na lâmina. É só um a espada. Se precisasse de uma, havia uma centena sob o templo. Agulha era pequena demais para ser uma espada como deve ser, era pouco mais do que um brinquedo. Arya era uma garotinha estúpida quando Jon mandara fazê-la para ela.
- É só uma espada - disse, agora em voz alta...
... mas não era.
A Agulha era Robb, Bran e Rickon, a mãe e o pai, até Sansa. Agulha era as muralhas cinzentas de Winterfell, e o riso do seu povo. Agulha era as neves de verão, as histórias da Velha Ama, a árvore-coração com suas folhas vermelhas e seu aspecto assustador, o cheiro quente de terra dos jardins de vidro, o som do vento do norte estremecendo as janelas do seu quarto. Agulha era o sorriso de Jon Snow. Ele costumava despentear meus cabelos e me chamar de “irmãzinha”, recordou, e de repente lágrimas brotaram em seus olhos.
Polliver roubara-lhe a espada quando os homens da Montanha a tinham feito cativa, mas quando ela e Cão de Caça entraram na estalagem no entroncamento, ali estava ela. Os deuses quiseram que eu ficasse com ela. Não os Sete, nem Aquele das Muitas Faces, mas os deuses do pai, os velhos deuses do Norte. O Deus das Muitas Faces pode ficar com o resto, pensou, mas não pode ficar com isto.
Subiu os degraus nua como no dia de seu nome, agarrada à Agulha. No meio do caminho, uma das pedras se mexeu sob seus pés. Arya ajoelhou-se e escavou em volta das bordas com os dedos. A princípio a pedra não queria se mover, mas ela persistiu, atacando com as unhas a argamassa que se desfazia. Por fim, a pedra se deslocou. Arya soltou um grunhido, pegou-a com ambas as mãos e puxou. Uma fenda abriu-se à sua frente.
- Aqui ficará em segurança - disse a Agulha. - Ninguém saberá onde está, exceto eu.
Empurrou a espada e a bainha para baixo do degrau, e, depois, a pedra de volta ao seu lugar, para que parecesse igual a todas as outras. Ao subir para o templo, contou os degraus, para saber onde voltar e encontrar a espada. Um dia poderia ter necessidade dela. - Um dia - murmurou a si mesma.
Não disse ao homem amável o que tinha feito, mas ele soube. Na noite seguinte, veio à sua cela após o jantar.
- Pequena - disse - venha se sentar comigo. Tenho uma história para lhe contar.
- Que tipo de história? - ela quis saber, cautelosa.
- A história de nossa origem. Se quer ser uma de nós, é melhor que saiba quem somos e como surgimos. As pessoas podem murmurar sobre os Homens Sem Rosto de Bravos, mas somos mais antigos do que a Cidade Secreta. Antes de o Titã se erguer, antes do desmascaramento de Uthero, antes da Fundação, já existíamos. Florescemos em Bravos por entre esses nevoeiros do norte, mas lançamos inicialmente raízes em Valíria, entre os desventurados escravos que trabalhavam nas profundas minas sob as Catorze Chamas que iluminavam as noites da Cidade Franca de outrora. A maior parte das minas são lugares úmidos e gelados, cortados de pedra fria e morta, mas as Catorze Chamas eram montanhas vivas, com veios de rocha derretida e corações de fogo. De modo que as minas da antiga Valíria eram sempre quentes, e ficavam mais quentes à medida que os poços mergulhavam mais fundo, sempre mais fundo. Os escravos trabalhavam num forno. As rochas em volta deles estavam quentes demais para ser tocadas. O ar fedia a enxofre e ressecava seus pulmões quando o respiravam. As solas de seus pés se queimavam e rebentavam em bolhas, mesmo através das sandálias mais grossas. Por vezes, quando perfuravam uma parede em busca de ouro, encontravam vapor, ou água fervente, ou rocha derretida. Certos túneis eram tão baixos que os escravos não podiam ficar em pé, e tinham de engatinhar ou se dobrar. E também havia wyrms nessa escuridão vermelha.
- Vermes? Minhocas? - ela disse, franzindo as sobrancelhas.
- Wyrms de fogo. Há quem diga que são parentes dos dragões, pois os wyrms também respiram fogo. Em vez de voarem pelo céu, abrem caminho através de pedra e terra. Se é possível crer nas antigas lendas, havia wyrms entre as Catorze Chamas mesmo antes da chegada dos dragões. Os jovens não são maiores do que esse seu braço magricela, mas podem crescer até dimensões monstruosas e não sentem nenhuma amizade pelos homens.
- Eles matavam os escravos?
- Cadáveres queimados e enegrecidos eram frequentemente encontrados em poços onde as rochas estavam rachadas ou cheias de buraco. Mesmo assim, as minas tornavam-se mais profundas. Escravos pereciam às vintenas, mas seus donos não se importavam. Achava-se que ouro vermelho e amarelo e prata eram mais preciosos do que a vida de escravos, pois estes eram baratos na antiga Cidade Franca. Durante a guerra, os valirianos capturavam-nos aos milhares. Em tempos de paz, faziam criação, embora só os piores fossem enviados para morrer lá embaixo na escuridão vermelha.
- Os escravos não se revoltaram e lutaram?
- Alguns fizeram isso - ele respondeu. - As revoltas eram comuns nas minas, mas poucas conseguiram alguma coisa. Os senhores dos dragões da antiga Cidade Livre eram fortes na feitiçaria, e homens menores desafiavam-nos por sua conta e risco. O primeiro Homem Sem Rosto foi um dos que assim fez.
- Quem era? - Arya perguntou, antes de parar para pensar.
- Ninguém - o homem continuou. - Há quem diga que ele próprio era escravo. Outros insistem que era filho de um proprietário, nascido de uma família nobre. Alguns até lhe dirão que era um capataz que se apiedou dos homens que tinha sob seu comando. A verdade é que ninguém sabe. Fosse quem fosse, colocava-se entre os escravos e escutava suas preces. Homens de cem nações diferentes trabalhavam nas minas, e cada um rezava ao seu próprio deus em sua própria língua, mas todos suplicavam a mesma coisa. Era a libertação que pediam, um fim para a dor. Uma coisa pequena e simples. E, no entanto, seus deuses não lhes respondiam, e seu sofrimento continuava. Serão os seus deuses surdos? Perguntava ele a si mesmo... até que uma noite, na escuridão vermelha, foi assaltado por um momento de compreensão.
“Todos os deuses têm seus instrumentos, homens e mulheres que os servem e os ajudam a cumprir sua vontade na Terra. Os escravos não lançavam súplicas a uma centena de deuses diferentes, segundo parecia, mas a um deus com uma centena de faces diferentes... e ele era o instrumento desse deus. Nessa mesma noite, escolheu o mais infeliz dos escravos, aquele que rezara mais zelosamente pela libertação, e o libertou da servidão. A primeira dádiva fora feita.”
Arya afastou-se dele.
- Ele matou o escravo? - aquilo não parecia certo. - Ele devia ter matado os donos!
- Ele também levou a dádiva para eles... mas esta é uma história para outro dia, uma história que é melhor não compartilhar com ninguém - ergueu a cabeça: - E você, quem é, pequena?
- Ninguém.
- Mentira.
- Como é que sabe? É magia?
- Um homem não precisa ser feiticeiro para distinguir a verdade da mentira, desde que tenha olhos. Só é preciso aprender a ler um rosto. Observar os olhos. A boca. Os músculos aqui, no canto dos maxilares, e aqui, onde o pescoço se une aos ombros - tocou-a ligeiramente com dois dedos. - Alguns mentirosos piscam. Outros não afastam os olhos. Alguns os afastam. Outros lambem os lábios. Muitos cobrem a boca um pouco antes de dizer uma mentira, como que para esconder sua falsidade. Outros sinais podem ser mais sutis, mas estão sempre lá. Um sorriso falso e um verdadeiro podem parecer iguais, mas são tão diferentes como o ocaso e a aurora. Sabe distinguir o ocaso da aurora?
Arya confirmou com a cabeça, embora não tivesse certeza.
- Então pode aprender a ver uma mentira... e quando o fizer, nenhum segredo estará a salvo de você.
- Ensine-me - seria ninguém, se precisasse ser. Ninguém tinha buracos dentro de si.
- Ela lhe ensinará - disse o homem amável quando a criança abandonada apareceu à porta. - Começando pela língua de Bravos. De que servirá se não souber falar nem compreender? E você ensinará sua língua a ela. Vocês duas aprenderão juntas, uma com a outra. Fará isso?
- Sim - Arya respondeu, e a partir daquele momento transformou-se numa noviça na Casa do Preto e Branco. Suas roupas de criada foram levadas e foi-lhe dada uma veste, uma veste de preto e branco, tão untuosamente suave quanto a velha manta vermelha que outrora tivera em Winterfell. Por baixo, usava roupa íntima de bom linho branco e uma túnica negra que lhe passava dos joelhos.
Daí em diante, ela e a criança abandonada passavam o tempo juntas, tocando em coisas e apontando, cada uma tentando ensinar à outra algumas palavras em sua língua. A princípio, palavras simples, taça, vela e sapato; depois, palavras mais difíceis; depois, frases. Outrora, Syrio Forel costumara-se a obrigar Arya a permanecer apoiada sobre uma perna até começar a tremer. Mais tarde, enviara-a à caça de gatos. Dançara a dança de água nos ramos de árvores com uma espada de pau na mão. Todas essas coisas tinham sido difíceis, mas aquilo era mais.
Até costurar era m ais divertido do que aprender a língua, disse a si mesma após uma noite em que esquecera metade das palavras que julgava saber e pronunciara a outra metade tão mal que a criança abandonada rira dela. Minhas frases são tão tortas quanto os pontos costumavam ser. Se a garota não fosse tão pequena e não tivesse um ar tão esfomeado, Arya teria batido em seu estúpido rosto. Em vez disso, mordeu o lábio. Estúpida demais para aprender, e estúpida demais para desistir.
A criança abandonada aprendia o Idioma Comum mais depressa. Um dia, no jantar, virou-se para Arya e perguntou:
- Quem é?
- Ninguém - Arya respondeu, em bravosi.
- Mente - disse a criança abandonada. - Tem de mentir mais bem.
Arya riu.
- Mais bem? Quer dizer melhor, estúpida.
- Melhor estúpida. Eu lhe mostro.
No dia seguinte, deram início ao jogo das mentiras, fazendo perguntas uma à outra, alternadamente. Por vezes, respondiam com a verdade, outras, mentiam. Quem fazia a pergunta tinha de diferenciar o que era verdadeiro e o que era falso. A criança abandonada parecia saber sempre. Arya tinha de adivinhar. E na maior parte das vezes errava.
- Quantos anos você tem? - perguntou-lhe uma vez a criança abandonada, no Idioma Comum.
- Dez - Arya respondeu, e ergueu dez dedos. Achava que ainda tinha dez anos, embora fosse difícil ter certeza. Os bravosianos contavam os dias de uma forma diferente da que era usada em Westeros. Tanto quanto sabia, o dia de seu nome podia já ter chegado e partido.
A criança abandonada confirmou com a cabeça. Arya respondeu-lhe da mesma maneira, e no seu melhor bravosi disse:
- Quantos anos você tem?
A criança abandonada mostrou dez dedos. Depois mais dez, e de novo dez. Então seis. Seu rosto continuava tão liso quanto águas paradas. Ela não pode ter trinta e seis anos, Arya pensou. É uma garotinha.
- Mentirosa - disse. A criança abandonada balançou a cabeça e mostrou-lhe os dedos outra vez: dez, dez, dez e seis. Disse as palavras para trinta e seis e fez Arya repeti-las.
No dia seguinte, contou ao homem amável o que a criança abandonada afirmara.
- Ela não mentiu - disse o sacerdote com um risinho. - Aquela que você chama de criança abandonada é uma mulher-feita que passou a vida a serviço d'Aquele das Muitas Faces. Deu-Lhe tudo o que era, tudo o que podia vir a ser, todas as vidas que se encontravam em seu interior.
Arya mordeu o lábio.
- Eu serei como ela?
- Não - ele respondeu - não a menos que o deseje. Foram os venenos que a transformaram no que você vê.
Venenos. Então compreendeu. Todas as noites depois das preces, a criança abandonada esvaziava um jarro de pedra nas águas do tanque negro.
A criança abandonada e o homem amável não eram os únicos servos do Deus das Muitas Faces. De tempos em tempos, outros visitavam a Casa do Preto e Branco. O gordo tinha ferozes olhos negros, um nariz adunco e uma boca larga cheia de dentes amarelos. O do rosto severo nunca sorria; seus olhos eram claros, e os lábios, cheios e escuros. O homem bonito tinha a barba de uma cor diferente sempre que o via, e também um nariz diferente, mas nunca era menos do que atraente. Aqueles três eram os que vinham com mais frequência, mas havia outros: o vesgo, o fidalgo, o esfomeado. Um dia, o gordo e o vesgo chegaram juntos. Umma mandou Arya servi-los.
- Quando não os estiver servindo, deve permanecer tão imóvel como uma escultura feita em pedra - disse-lhe o homem amável. - Consegue fazer isso?
- Sim - antes de poder aprender a se mover, deve aprender a ficar quieta, ensinara-lhe Syrio Forel havia muito tempo em Porto Real, e ela aprendera. Servira como copeira de Roose Bolton em Harrenhal, e ele flagelava quem lhe derramasse o vinho.
- Ótimo - disse o homem amável. - Seria melhor se também fosse cega e surda. Pode ouvir coisas, mas deve fazê-las entrar por uma orelha e sair pela outra. Não escute.
Arya ouviu muitas e mais coisas nessa noite, mas quase tudo era na língua de Bravos, e quase não compreendia uma palavra em dez. Imóvel como pedra, disse a si mesma. A parte mais difícil era lutar para não bocejar. Antes de a noite terminar, tinha a cabeça vagueando. Ali em pé, com o jarro nas mãos, sonhou que era uma loba, correndo livre por uma floresta iluminada pelo luar, com uma grande alcateia uivando em seu rastro.
- Os outros homens são todos sacerdotes? - perguntou ao homem amável na manhã seguinte. - Aqueles eram seus rostos verdadeiros?
- O que você acha, pequena?
Arya achava que não.
- Jaqen H'ghar também é um sacerdote? Sabe se Jaqen vai voltar para Bravos?
- Quem? - ele perguntou, todo inocência.
- Jaqen H'ghar. Ele me deu a moeda de ferro.
- Não conheço ninguém com esse nome, pequena.
- Perguntei-lhe como é que mudava de rosto, e ele disse que não era mais difícil do que arranjar um nome novo, se se soubesse como.
- É mesmo?
- Vai me mostrar como mudar de rosto?
- Se quiser - envolveu-lhe o queixo com a mão e virou-lhe a cabeça. - Encha as bochechas e coloque a língua para fora.
Arya encheu as bochechas e pôs a língua de fora.
- Pronto. Seu rosto mudou.
- Não era isso que eu quis dizer. Jaqen usou magia.
- Toda feitiçaria tem um custo, pequena. São necessários anos de preces, sacrifícios e estudo para fazer um encantamento como deve ser.
- Anos? - ela retrucou, desanimada.
- Se fosse fácil, todo mundo faria. É preciso caminhar antes de correr. Por que usar um feitiço, se truques de saltimbanco servem?
- Também não sei nenhum truque de saltimbanco.
- Então, treine fazer caretas. Por baixo da pele há músculos. Aprenda a usá-los. O rosto é seu. Suas as bochechas, os lábios, as orelhas. Sorrisos e caretas não devem aparecer como tempestades súbitas. Um sorriso deve ser um criado e vir apenas quando chamado. Aprenda a governar seu rosto.
- Mostre-me como.
- Encha as bochechas - ela obedeceu. - Erga as sobrancelhas. Não, mais alto -também o fez - Ótimo. Veja quanto tempo consegue ficar assim. Não será muito. Tente outra vez amanhã. Há de encontrar um espelho de Myr nas câmaras. Treine diante dele por uma hora todos os dias. Olhos, narinas, bochechas, orelhas, lábios, aprenda a governá-los todos - pôs-lhe a mão no queixo. - Quem é você?
- Ninguém.
- Uma mentira. Uma triste mentirinha, pequena.
Encontrou o espelho de Myr no dia seguinte, e todas as manhãs e todas as noites sentava-se diante dele, com uma vela de cada lado, fazendo caretas. Governe seu rosto, dizia a si mesma, e poderá mentir.
Não muito tempo depois, o homem amável ordenou-lhe que ajudasse os outros acólitos a preparar os cadáveres. O trabalho não era nem de perto tão duro quanto esfregar degraus para Weese. Por vezes, se o cadáver era grande ou gordo, lutava com o peso, mas a maior parte dos mortos eram velhos ossos secos em pele enrugada. Arya olhava-os enquanto os lavava, perguntando a si mesma o que os tinha trazido ao tanque negro. Lembrava-se de uma história que ouvira da Velha Ama, sobre o modo como, por vezes, durante um longo inverno, os homens que tinham vivido para lá de seus anos anunciavam que iam à caça. E suas filhas choravam e os filhos viravam o rosto para o fogo, conseguia ouvir a Velha Ama contar, mas ninguém os impedia, ou lhes perguntava que animal pretendiam matar, com as neves tão profundas e o vento frio a uivar. Perguntou a si mesma o que os velhos bravosianos diriam aos filhos e às filhas antes de partirem para a Casa do Preto e Branco.
A lua deu uma volta e mais outra, embora Arya nunca a visse. Servia, lavava os mortos, fazia caretas diante dos espelhos, aprendia a língua bravosi e tentava se lembrar de que não era ninguém.
Um dia, o homem amável mandou chamá-la.
- Seu sotaque é um horror - disse - mas sabe palavras suficientes para fazer que o que quer seja entendido, de certo modo. Está na hora de nos deixar por algum tempo. A única maneira de realmente dominar nossa língua é falando-a todos os dias, do nascer ao pôr do sol. Deve partir.
- Quando? - perguntou-lhe. - Para onde?
- Agora - ele respondeu. - Para lá destas paredes encontrará as cem ilhas de Bravos no mar. Foram-lhe ensinadas as palavras para mexilhões, amêijoas e berbigões, não foram?
- Sim - Arya as repetiu em seu melhor bravosi.
Seu melhor bravosi o fez sorrir.
- Servirá. Ao longo dos cais por baixo da Vila Afogada encontrará um vendedor de peixe chamado Brusco, um bom homem com umas costas más. Ele precisa de uma garota que lhe empurre o carrinho de mão e venda suas amêijoas, seus berbigões e seus mexilhões aos marinheiros vindos dos navios. Essa garota será você. Entendeu?
- Sim.
- E quando Brusco perguntar, quem é você?
- Ninguém.
- Não. Isso não servirá fora desta Casa.
Arya hesitou.
- Podia ser a Salgada, de Salinas.
- A Salgada é conhecida de Ternesio Terys e dos homens da Filha do Titã. Você está marcada pela maneira de falar, portanto, tem de ser uma garota qualquer de Westeros... mas uma garota diferente, penso eu.
Ela mordeu o lábio:
- Podia ser Gata?
- Gata - ele pesou o nome. - Sim. Bravos está cheia de gatos. Mais um não dará na vista. É a Gata, uma órfã de...
- Porto Real - visitara o Porto Branco com o pai duas vezes, mas conhecia melhor Porto Real.
- Exatamente. Seu pai era mestre remador numa galé. Quando sua mãe morreu, ele levou você com ele para o mar. Então também morreu, e seu capitão não tinha uso a lhe dar, portanto, expulsou-a do navio em Bravos. E qual era o nome do navio?
- Nymeria - ela disse de imediato.
Naquela noite abandonou a Casa do Preto e Branco. Uma longa faca de ferro seguia presa à sua anca direita, escondida pelo manto, uma coisa remendada e desbotada, o tipo de coisa que um órfão usaria. Os sapatos machucavam-lhe os pés e a túnica estava tão puída que o vento a trespassava. Mas Bravos estava na sua frente. O ar da noite cheirava à fumaça, sal e peixe. Os canais eram sinuosos, e as vielas mais ainda. Homens lançavam-lhe olhares curiosos quando ela passava, e crianças pedintes gritavam palavras que ela não compreendia. Não demorou muito para ficar completamente perdida.
- Sor Gregor - entoou, ao atravessar uma ponte de pedra sustentada por quatro arcos. Do centro conseguiu ver os mastros de navios no Porto do Trapeiro. - Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei - começou a chover. Arya virou a cabeça para cima e deixou que as gotas lhe lavassem o rosto, tão feliz que poderia dançar. - Valar morghulis - disse - valar morghulis, valar morghulis.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados