sexta-feira, 20 de setembro de 2013

24 - CERSEI



O rei fazia beicinho.
- Quero me sentar no Trono de Ferro -disse-lhe. - Deixava Joff sentar-se lá em cima sempre.
- Joffrey tinha doze anos.
- Mas eu sou o rei. O trono me; pertence.
- Quem foi que lhe disse isso? - Cersei respirou fundo, para que Dorcas lhe apertasse mais o vestido. Era uma garota grande, muito mais forte do que Senelle, embora também fosse mais desajeitada.
O rosto de Tommen enrubesceu.
- Ninguém me disse.
- Ninguém? É assim que chama a senhora sua esposa? - a rainha sentia o cheiro de Margaery Tyrell em toda aquela rebelião. - Se mentir para mim, não terei alternativa exceto mandar buscar Pate e ordenar que o espanque até sangrar - Pate era o garoto que era açoitado no lugar de Tommen, tal como o fora no lugar de Joffrey. - É isso que você quer?
- Não - resmungou o rei com ar mal-humorado.
- Quem lhe disse?
Ele remexeu os pés.
- A Senhora Margaery - sabia que não devia chamá-la de rainha ao alcance dos ouvidos da mãe.
- Assim é melhor. Tommen, eu tenho assuntos sérios a decidir, assuntos que você é novo demais para entender. Não preciso de um tolo garotinho agitando-se no trono atrás de mim e distraindo-me com perguntas infantis. Suponho que Margaery também ache que devia estar presente nas reuniões do meu conselho?
- Sim - ele admitiu. - Diz que eu tenho de aprender a ser rei.
- Quando for mais velho, poderá estar presente em tantos conselhos quantos quiser - disse-lhe Cersei. - Garanto-lhe que ficará cansado deles rapidamente. Robert costumava cochilar durante as sessões - quando sequer se incomodava em estar presente. - Preferia caçar e fazer falcoaria, e deixava os assuntos tediosos para o velho Lorde Arryn. Lembra-se dele?
- Morreu de dor de barriga.
- É verdade, pobre homem. Se você está tão ansioso por aprender, talvez devesse aprender o nome de todos os reis de Westeros e das Mãos que os serviram. Pode recitá-los para mim amanhã.
- Sim, mãe - ele concordou docilmente.
- Este é meu bom garoto - o governo era seu; Cersei não pretendia abrir mão dele até que Tommen se tornasse homem. Eu esperei, ele também pode esperar. Esperei metade da vida. Desempenhara o papel de filha obediente, de noiva rosada, de esposa maleável. Aguentara os apalpões bêbados de Robert, o ciúme de Jaime, as piadas de Renly, Varys com seus risinhos abafados, Stannis que não parava de ranger os dentes. Contendera com Jon Arryn, Ned Stark e seu vil, traiçoeiro e assassino irmão anão, e durante todo o tempo prometia a si mesma que um dia seria a sua vez. Se Margaery Tyrell acha que pode roubar minha hora ao sol, é bom que pense duas vezes.
Mesmo assim, era uma maneira desagradável de quebrar o jejum, e o dia de Cersei não melhorou tão cedo. Passou o resto da manhã com Lorde Gyles e seus livros de registros, ouvindo-o tossir sobre estrelas, veados e dragões. Depois dele, chegou Lorde Waters para informá-la que os primeiros três dromones estavam quase concluídos, e para suplicar mais ouro a fim de terminá-los com o esplendor que mereciam. A rainha concedeu-lhe o pedido com satisfação. O Rapaz Lua deu cambalhotas enquanto Cersei almoçava com membros das guildas mercantis e ouvia suas queixas sobre pardais que vagueavam pelas ruas e dormiam nas praças. Posso ter de usar os homens de manto dourado para correr com esses pardais da cidade, ela pensava quando Pycelle apareceu sem ser convidado.
Nos últimos tempos, o Grande Meistre tinha andado especialmente rabugento no conselho. Na última sessão, queixara-se amargamente dos homens que Aurane Waters escolhera para capitanear seus dromones. Waters pretendia dar os navios a homens mais jovens, enquanto Pycelle argumentava a favor da experiência, insistindo que os comandos deviam ir para os capitães que tivessem sobrevivido aos incêndios na Água Negra.
“Homens temperados, de comprovada lealdade” chamara-os o Grande Meistre. Cersei a eles se referia como velhos, e pusera-se do lado de Lorde Waters.
“A única coisa que esses capitães provaram foi que sabiam nadar” dissera. “Nenhuma mãe deve sobreviver aos filhos, e nenhum capitão deve sobreviver ao navio.” Pycelle recebera mal a censura.
Naquele dia parecia menos colérico, e até conseguiu abrir um trêmulo sorriso.
- Vossa Graça, boas-novas - anunciou. - Wyman Manderly fez o que ordenou e decapitou o Cavaleiro das Cebolas de Lorde Stannis.
- Temos certeza disso?
- A cabeça e as mãos do homem foram colocadas sobre as muralhas de Porto Branco. Lorde Wyman assim admite, e os Frey confirmam. Viram lá a cabeça, com uma cebola na boca. E as mãos, uma das quais marcada por seus dedos encurtados.
- Ótimo - Cersei exultou. - Envie uma ave a Manderly e informe-o que o filho lhe será devolvido de imediato, agora que demonstrou sua lealdade - Porto Branco regressaria em breve à paz do rei, e Roose Bolton e seu filho bastardo aproximavam-se de Fosso Cailin pelo sul e pelo norte. Depois de o Fosso estar nas mãos deles, juntariam forças e expulsariam também os homens de ferro de Praça de Torrhen e de Bosque Profundo. Isto devia lhes garantir a lealdade dos demais vassalos de Ned Stark quando chegasse o momento de marchar contra Lorde Stannis.
Ao sul, entretanto, Mace Tyrell erguera uma cidade de tendas junto a Ponta Tempestade e tinha duas dúzias de catapultas atirando pedras contra as maciças muralhas do castelo, até agora com pouco efeito. Lorde Tyrell, o guerreiro, cismou a rainha. Seu símbolo devia ser um gordo sentado.
Naquela tarde, o obstinado enviado de Bravos apareceu para sua audiência. Cersei a adiara durante uma quinzena, e a teria adiado de bom grado durante mais um ano, mas Lorde Gyles afirmava que já não conseguia lidar com o homem ... Embora a rainha começasse a perguntar a si mesma se Gyles era capaz; de fazer algum a coisa além de tossir.
Noho Dimittis, chamava-se o bravosiano. Um nome irritante para um homem irritante. Sua voz também assim era. Cersei remexeu-se na cadeira enquanto ele falava, perguntando a si mesma quanto tempo teria de suportar suas fanfarronices. Atrás dela erguia-se o Trono de Ferro, cujas farpas e lâminas derramavam sombras retorcidas pelo chão. Só o rei ou a sua Mão podiam se sentar no trono propriamente dito. Cersei sentava-se perto da base, numa cadeira de madeira dourada estofada com almofadas carmesim.
Quando o bravosiano fez uma pausa para ganhar fôlego, Cersei viu sua brecha.
- Isto é um assunto mais adequado para o nosso senhor tesoureiro.
Aquela resposta não agradou ao nobre Noho, segundo parecia.
- Já falei com Lorde Gyles seis vezes. Ele tosse e se desculpa, Vossa Graça, mas o ouro não aparece.
- Fale com ele uma sétima vez - Cersei sugeriu num tom agradável. - O número sete é sagrado para nossos deuses.
- Vejo que agrada a Vossa Graça fazer um gracejo.
- Quando faço um gracejo, sorrio. Está me vendo sorrir? Ouve risos? Asseguro-lhe de que, quando faço um gracejo, os homens riem.
- O Rei Robert...
- ... está morto - ela disse, em tom penetrante. - O Banco de Ferro terá seu ouro quando esta rebelião for reprimida.
Ele teve a insolência de lhe franzir as sobrancelhas.
- Vossa Graça...
- Esta audiência chegou ao fim - Cersei suportara mais do que o suficiente por um dia. - Sor Meryn, mostre a saída ao nobre Noho Dimittis. Sor Osmund, pode acompanhar-me aos meus aposentos - os convidados chegariam em breve, e tinha de tomar banho e trocar de roupa. O jantar prometia ser também uma coisa entediante. Governar um reino era trabalho duro; sete, então...
Sor Osmund Kettleblack pôs-se a seu lado na escada, alto e esguio em seus panos brancos da Guarda Real. Quando Cersei teve certeza de que estavam totalmente sozinhos, deu-lhe o braço.
- Diga-me, como passa seu irmão mais novo?
Sor Osmund fez uma expressão de desconforto.
- Ah... bastante bem, só que...
- Só o quê? - a rainha deixou que um traço de ira transparecesse em sua voz. - Tenho de confessar que começo a perder a paciência com nosso querido Osney. Já é mais que hora de ele domar aquela potrazinha. Nomeei-o escudo juramentado de Tommen para que pudesse passar algum tempo todos os dias na companhia de Margaery. A essa altura já devia ter colhido a rosa. A pequena rainha é cega para os seus encantos?
- Não há nada de errado com os encantos dele. Ele é um Kettleblack, não é? Com a sua licença - Sor Osmund passou os dedos pelos oleosos cabelos negros. - O problema está nela.
- E por quê? - a rainha começara a nutrir dúvidas acerca de Sor Osney. Talvez outro homem fosse mais do gosto de Margaery. Aurane Waters, com aqueles cabelos prateados, ou um tipo grande e robusto como Sor Tallad. - A donzela preferiria outra pessoa? O rosto do seu irmão a desagrada?
- Ela gosta do seu rosto. Tocou-lhe as cicatrizes há dois dias, ele me disse.“Que mulher lhe fez isto?” ela perguntou, Osney nunca disse que tinha sido uma mulher, mas ela sabia. Talvez alguém lhe tenha dito. Ele diz que ela sempre o toca quando conversam. Endireita-lhe o broche do manto, afasta-lhe os cabelos para trás, coisas assim. Uma vez, no treino de tiro ao alvo, pediu-lhe que lhe mostrasse como se pega num arco longo, e ele teve de colocar os braços em volta dela. Osney diz-lhe gracejos obscenos, e ela dá risada e responde com outros ainda mais obscenos. Não, ela o deseja, isto é evidente, mas...
- Mas? - Cersei o incitou.
- Nunca estão sozinhos. O rei está quase sempre com eles e, quando não está, há outras pessoas. Duas de suas damas partilham sua cama, todas as noites. Outras duas trazem-lhe o café da manhã e ajudam-na a se vestir. Ela reza com a septã, lê com a prima Elinor, canta com a prima Alia, cose com a prima Megga. Quando não vai fazer falcoaria com Janna Fossoway e Merry Crane, está jogando o entra-no-meu-castelo com aquela garotinha Bulwer. Nunca vai montar sem levar uma comitiva, pelo menos quatro ou cinco companheiros e uma dúzia de guardas. E há sempre homens em volta dela, até na Arcada das Donzelas.
- Homens - aquilo era alguma coisa. Aquilo tinha possibilidades. - Diga-me, que homens são esses?
Sor Osmund encolheu os ombros.
- Cantores. É louca por cantores e malabaristas e gente dessa espécie. Cavaleiros, que vêm sonhar com as primas. Osney diz que Sor Tallad é o pior. Aquele grande imbecil não parece saber se é Elinor ou Alia que deseja, mas sabe que a deseja com toda força. Os gêmeos Redwyne também vão visitá-la. O Babeiro traz flores e frutas, e Horror interessou-se pelo alaúde. Segundo o que Osney diz, seria possível fazer sons mais agradáveis estrangulando um gato. O ilhéu do verão também anda sempre por lá.
- Jalabhar Xho? - Cersei soltou uma fungadela de desprezo. - Mendigando ouro e espadas para reconquistar sua terra, certamente - por trás de suas joias e penas, Xho pouco mais era do que um pedinte bem-nascido. Robert podia ter posto fim à maçada de uma vez por todas com um firme “não” mas a ideia de conquistar as Ilhas do Verão apelara ao ébrio imbecil de seu marido. Sem dúvida sonhava com garotas de pele bronzeada, nuas por baixo de mantos de penas, com mamilos negros como carvão. De modo que, em vez de um "não", Robert sempre dizia a Xho:“Ano que vem” embora, sem que se soubesse bem como, o próximo ano nunca chegava.
- Não sei dizer se ele estava mendigando, Vossa Graça - Sor Osmund respondeu.
- Osney diz que está lhes ensinando a língua do Verão, Não a Osney, à rai... à potra, e às suas primas.
- Um cavalo que falasse a língua do Verão seria uma grande sensação - a rainha disse secamente. - Diga ao seu irmão para manter as esporas bem afiadas. Em breve encontrarei alguma maneira de ele montar sua potra, pode contar com isso.
- Direi a ele, Vossa Graça. Osney está ansioso por tal montaria, não julgue que não está. Ela é uma coisinha bonita, a potra.
É por mim que ele está ansioso, imbecil, pensou a rainha. Tudo que quer de Margaery é a senhoria que ela tem entre as pernas. Por mais que gostasse de Osmund, por vezes ele lhe parecia tão lento de raciocínio quanto Robert. Espero que tenha a espada mais rápida do que os miolos. Pode chegar o dia em que Tommen precise dela.
Passavam pela sombra lançada pelas ruínas da Torre da Mão quando o ruído de aclamações os submergiu. Do outro lado do pátio, um escudeiro qualquer tinha passado pelo estafermo e pusera-lhe o braço a girar. As aclamações eram lideradas por Margaery Tyrell e suas galinhas. Um grande tumulto por pouca coisa. Dir-se-ia que o rapaz tinha ganho um torneio. Então, ficou surpresa em ver que quem estava montado no corcel era Tommen, todo revestido de aço dourado.
A rainha não teve escolha exceto colocar um sorriso no rosto e ir ver o filho. Chegou perto dele no momento em que o Cavaleiro das Flores o ajudava a descer do cavalo. O garoto estava sem fôlego de tão excitado.
- Viram? - perguntava a toda a gente. - Fiz do jeito que Sor Loras disse. Viu, Sor Osney?
- Vi - Osney Kettleblack assentiu. - Uma bela visão.
- Tem melhor postura do que eu, senhor - acrescentou Sor Dermot.
- E também quebrei a lança. Sor Loras, ouviu?
- Alto como o estalido do trovão - uma rosa de jade e ouro prendia do manto branco de Sor Loras ao ombro, e o vento bagunçava-lhe habilmente as madeixas castanhas. - Fez uma magnífica corrida, mas uma vez não basta. Deve repeti-la amanhã. Tem de montar todos os dias, até que cada golpe seja bom e direto, e a lança faça tanto parte de você quanto seu braço.
- Quero fazer isso.
- Foi soberbo - Margaery caiu sobre um joelho, beijou o rei no rosto e pôs um braço em volta dele. - Irmão, tome cuidado - avisou a Loras. - Meu galante marido estará derrubando você dentro de alguns anos, ao que me parece - as três primas concordaram, e a miserável garotinha Bulwer pôs-se aos saltos, cantarolando:
- Tommen vai ser campeão, campeão, campeão.
- Quando for um homem-feito - Cersei a interrompeu.
Os sorrisos deles murcharam como rosas beijadas pela geada. A velha septã bexigosa foi a primeira a dobrar o joelho. Os outros imitaram-na, exceto a pequena rainha e o irmão.
Tommen não pareceu reparar no súbito frio que tomou conta da atmosfera.
- Mãe, você me viu? - fervilhou em tom de felicidade. - Quebrei a lança no escudo, e o saco não me atingiu!
- Estava observando da outra ponta do pátio. Esteve muito bem, Tommen. Não esperava menos de você. A justa está em seu sangue. Um dia dominará as liças, como fez seu pai.
- Nenhum homem conseguirá vencê-lo - Margaery Tyrell dirigiu à rainha um sorriso recatado. - Mas eu não sabia que Rei Robert era assim tão dotado para a justa. Por favor, diga-nos, Vossa Graça, que torneios ele ganhou? Que grandes cavaleiros derrubou? Sei que o rei gostará de ouvir falar das vitórias do pai.
Um rubor subiu pelo pescoço de Cersei. A garota a apanhara. Robert Baratheon tinha sido, na verdade, um competidor indiferente nas justas. Durante os torneios preferia de longe o corpo a corpo, quando podia espancar homens até fazer sangue com machados embotados ou martelos. Era em Jaime que estava pensando quando falara. Não é próprio de mim perder o controle.
- Robert venceu o torneio do Tridente - teve de dizer. - Derrubou o Príncipe Rhaegar e nomeou-me sua rainha do amor e da beleza. Surpreende-me que não conheça essa história, nora - não deu a Margaery tempo para preparar uma resposta. - Sor Osmund, ajude meu filho a tirar a armadura, se fizer a bondade. Sor Loras, acompanhe-me. Preciso trocar uma palavra com você.
O Cavaleiro das Flores não teve alternativa exceto segui-la como o cachorrinho que era. Cersei esperou até estarem na escada em espiral antes de dizer:
- Diga-me, de quem foi essa ideia?
- Da minha irmã - admitiu o jovem. - Sor Tallad, Sor Dermot e Sor Portifer arremetiam contra o estafermo, e a rainha sugeriu que Sua Graça talvez gostasse de experimentar.
Ele a chama desse jeito para me aborrecer.
- E o seu papel?
- Ajudei Sua Graça a envergar a armadura e mostrei-lhe como segurar a lança - ele respondeu.
- Aquele cavalo era muito maior do que devia ser para ele. E se tivesse caído? E se o saco de areia tivesse batido em sua cabeça?
- Manchas negras e lábios rachados fazem parte de ser um cavaleiro.
- Começo a entender por que seu irmão é um aleijado - agradou-lhe ver que aquilo varreu o sorriso do lindo rosto do rapaz. - Meu irmão talvez não lhe tenha explicado seus deveres, sor. Está aqui para proteger meu filho de seus inimigos. Treiná-lo para a cavalaria é território do mestre de armas.
- A Fortaleza Vermelha não tem mestre de armas desde que Aron Santagar foi morto - respondeu Sor Loras, com uma sugestão de censura na voz. - Sua Graça tem quase nove anos e está ansioso por aprender. Na sua idade, devia ser um escudeiro. Alguém precisa ensiná-lo.
Alguém ensinará, mas não será você.
- Diga-me, de quem foi escudeiro, sor? - perguntou, com voz doce. - De Lorde Renly, não foi?
- Tive essa honra.
- Sim, era o que eu pensava - Cersei já vira como se tornavam fortes os laços entre os escudeiros e os cavaleiros que serviam. Não queria que Tommen se tornasse próximo de Loras Tyrell. O Cavaleiro das Flores não era o tipo de homem que um garoto devesse emular. - Fui descuidada, Com um reino para governar, uma guerra para travar e um pai para chorar, não sei como deixei passar a questão crucial de nomear um novo mestre de armas. Retificarei imediatamente este erro.
Sor Loras empurrou para trás uma madeixa castanha que lhe tinha caído sobre a testa.
- Vossa Graça não encontrará nenhum homem com metade da minha destreza com a espada e a lança.
Somos modestos, não som os?
- Tommen é o seu rei, não seu escudeiro. Cabe a você lutar e morrer por ele, se for necessário. Nada mais.
Deixou-o na ponte levadiça que passava sobre o fosso seco com seu leito de espigões de ferro e entrou sozinha na Fortaleza de Maegor. Onde vou arranjar um mestre de armas? Perguntou a si mesma enquanto subia a escada que levava aos seus aposentos. Tendo recusado Sor Loras, não se atrevia a virar-se para nenhum dos cavaleiros da Guarda Real; isto seria colocar sal na ferida, o que certamente enfureceria Jardim de Cima. Sor Tallad? Sor Dermot? Deve haver alguém. Tommen começava a gostar de seu novo escudo juramentado, mas Osney estava se revelando menos capaz do que esperara na questão da Senhora Margaery, e tinha um cargo diferente em mente para o irmão Osfryd. Era realmente uma pena que Cão de Caça tivesse pegado raiva. Tommen sempre tivera medo da voz dura e do rosto queimado de Sandor Clegane, e o escárnio de Clegane teria sido o antídoto perfeito para o cavalheirismo afetado de Loras Tyrell.
Aron Santagar era dornês, recordou Cersei. Podia apelar a Dorne. Séculos de sangue e guerra interpunham-se entre Lançassolar e Jardim de Cima. Sim, um dornês podia adequar-se admiravelmente às minhas necessidades. Deve haver alguns bons espadachins em Dorne.
Quando entrou no aposento privado, Cersei encontrou Lorde Qyburn lendo num banco de janela.
- Se aprouver a Vossa Graça, tenho relatórios.
- Mais conspirações e traições? - Cersei resmungou. - Tive um dia longo e cansativo. Conte-me depressa.
Ele sorriu com simpatia.
- As suas ordens. Diz-se que o Arconte de Tyrosh ofereceu termos a Lys para pôr fim à guerra comercial que têm em curso. Havia o rumor de que Myr se preparava para entrar na guerra do lado de Tyrosh, mas, sem a Companhia Dourada, os myranos não acharam poder...
- O que os myranos acreditam não me preocupa - as Cidades Livres andavam sempre a lutar umas com as outras. Suas eternas traições e alianças pouco ou nada significavam para Westeros. - Tem alguma notícia de maior importância?
- A revolta de escravos em Astapor espalhou-se para Meereen, ao que parece. Marinheiros saídos de uma dúzia de navios falam de dragões...
- Harpias. Em Meereen são harpias - lembrava-se daquilo de algum lugar. Meereen ficava na ponta mais distante do mundo, para leste, depois de Valíria. - Que os escravos se revoltem. Que me importa isso? Em Westeros não temos escravos. É tudo que tem para mim?
- Há algumas notícias vindas de Dorne que Vossa Graça poderá achar de maior interesse. Príncipe Doran aprisionou Sor Daemon Sand, um bastardo que outrora serviu como escudeiro ao Víbora Vermelha.
- Lembro-me dele - Sor Daemon estivera entre os cavaleiros dorneses que acompanharam o Príncipe Oberyn até Porto Real. - Que foi que ele fez?
- Exigiu que as filhas do Príncipe Oberyn fossem libertadas.
- Mais tolo é.
- Além disso - disse Lorde Qyburn - a filha do Cavaleiro de Matamalhada foi prometida muito inesperadamente a Lorde Estermont, segundo nos informam nossos amigos em Dorne. Foi enviada para Pedraverde nessa mesma noite, e diz-se que ela e Estermont já se casaram.
- Um bastardo na barriga explicaria isso - Cersei brincou com uma madeixa de cabelo - Que idade tem a corada noiva?
- Vinte e três, Vossa Graça. Ao passo que Lorde Estermont...
- ... deve ter setenta. Estou ciente disso - os Estermont eram seus familiares por afinidade, através de Robert, cujo pai tomara uma delas como esposa naquilo que devia ter sido um ataque de luxúria ou de loucura. Quando Cersei se casara com o rei, a senhora mãe de Robert estava morta havia muito tempo, embora ambos os seus irmãos tivessem aparecido para a boda, após o que se deixaram ficar durante meio ano. Mais tarde, Robert insistira em devolver a cortesia com uma visita a Estermont, uma ilhota montanhosa ao largo do Cabo da Fúria. A úmida e sombria quinzena que Cersei passara em Pedraverde, a sede da Casa Estermont, fora a mais longa de sua jovem vida. Jaime apelidara o castelo, assim que o vira, de "Merdaverde", e rapidamente pusera Cersei a chamá-la do mesmo jeito. Fora isso, passava os dias vendo seu real marido fazer falcoaria, caçar, beber com os tios e espancar vários dos primos até deixá-los sem sentidos no pátio de Merdaverde.
Também tinha havido uma prima, uma viuvinha robusta com seios grandes como melões, cujo marido e pai tinham ambos morrido em Ponta Tempestade durante o cerco.
"O pai dela foi bom para mim” dissera-lhe Robert, “e ela e eu brincávamos juntos quando éramos pequenos” Não demorou muito tempo para começar outra vez a brincar com ela. Assim que Cersei fechava os olhos, o rei escapulia para ir consolar a pobre criatura solitária. Uma noite, mandou Jaime segui-lo, para confirmar as suspeitas. Quando o irmão regressou, perguntou-lhe se queria Robert morto.
“Não” respondera, “quero-o encornado” Gostava de pensar que tinha sido naquela noite que Joffrey foi concebido.
- Eldon Estermont tomou uma esposa cinquenta anos mais nova do que ele - disse a Qyburn, - Por que deveria me importar com isso?
Ele encolheu os ombros,
- Não digo que deva... mas Daemon Sand e essa garota Santagar eram ambos próximos da filha do Príncipe Doran, Arianne, ou pelo menos é o que os dorneses nos querem levar a crer. Talvez queira dizer pouco ou nada, mas achei que Vossa Graça devia saber.
- Agora já sei - estava perdendo a paciência. - Tem mais?
- Mais uma coisa. Um assunto sem importância - dirigiu-lhe um sorriso que era um pedido de desculpas e lhe falou de um espetáculo de fantoches, no qual o reino dos animais era governado por um grupo de altivos leões. - Os leões fantoches vão se tornando gananciosos e arrogantes à medida que essa história traiçoeira progride, até começarem a devorar seus súditos. Quando o nobre veado levanta objeções, os leões devoram-no também e rugem que estão no seu direito, visto serem as mais poderosas das feras.
- E acaba assim? - Cersei quis saber, parecendo se divertir. Vista sob a luz certa, a história podia ser encarada como uma salutar lição.
- Não, Vossa Graça. No fim, um dragão eclode de um ovo e devora todos os leões.
O final levava o espectáculo de fantoches da simples insolência à traição.
- Idiotas sem miolos. Só cretinos arriscariam a cabeça por causa de um dragão de madeira - refletiu por um momento - Envie alguns de seus cochichadores a esses espetáculos e tome nota de quem os assiste. Se houver homens dignos de nota, quero conhecer seus nomes.
- E o que será feito com eles, se me permite a ousadia?
- Qualquer homem de posses deverá ser multado. Metade de sua fortuna deverá ser suficiente, para lhe ensinar uma boa lição e voltar a encher nossos cofres, sem chegarmos propriamente a arruiná-lo. Os que forem pobres demais para pagar podem perder um olho, por assistir a traições. Para os titereiros, o machado.
- Eles são quatro. Talvez Vossa Graça possa me conceder dois deles para os meus fins. Uma mulher seria particularmente...
- Dei-vos Senelle - a rainha retrucou em tom penetrante.
- Infelizmente a pobre garota está bastante... exausta.
Cersei não gostava de pensar naquilo. A garota fora com ele sem suspeitar de nada, julgando que ia servir. Nem mesmo quando Qyburn lhe fechou a corrente em volta do pulso pareceu compreender. A recordação ainda deixava a rainha nauseada. As celas estavam geladas. Até os archotes tremiam. E aquela coisa maligna gritando na escuridão...
- Sim, pode ficar com uma mulher. Duas, se lhe aprouver. Mas, primeiro, quero nomes.
- Às suas ordens - Qyburn se retirou.
Lá fora o sol se punha. Dorcas preparara-lhe um banho. A rainha estava mergulhada agradavelmente em água tépida e meditava sobre o que queria dizer aos seus convidados para o jantar quando Jaime irrompeu porta adentro, ordenando a Jocelyn e Dorcas que saíssem. O irmão parecia bastante menos que imaculado e exalava cheiro de cavalo. Trazia também Tommen consigo.
- Querida irmã - disse - o rei quer uma palavrinha.
As madeixas douradas de Cersei flutuavam na água do banho. A sala estava cheia de vapor. Um pingo de suor escorreu-lhe pelo rosto.
- Tommen? - disse, numa voz perigosamente suave. - O que é agora?
O garoto conhecia aquele tom. Encolheu-se.
- Sua Graça quer o corcel branco amanhã - Jaime respondeu por ele. - Para sua lição de justa.
Cersei sentou-se na banheira.
- Não haverá justas.
- Haverá, sim - balbuciou Tommen através do lábio inferior. - Tenho de montar todos os dias.
- E montará - declarou a rainha - depois de termos um mestre de armas adequado para supervisionar seu treino,
- Eu não quero um mestre de armas adequado. Quero Sor Loras.
- Tem esse rapaz numa conta demasiado alta. Sua pequena esposa encheu-lhe a cabeça de ideias tolas acerca de sua perícia, eu sei, mas Osmund Kettleblack é três vezes melhor cavaleiro do que Loras.
Jaime soltou uma gargalhada.
- O Osmund Kettleblack que eu conheço, não.
Teve vontade de esganá-lo. Talvez tenha de ordenar a Sor Loras que permita que Sor Osmund o derrube do cavalo. Aquilo talvez expulsasse as estrelas dos olhos de Tommen. Salgue uma lesma e envergonhe um herói, eles encolhem logo.
- Vou mandar vir um dornês para treinar você - disse. - Os dorneses são os melhores cavaleiros de justas do reino.
- Não são nada - disse Tommen. - Seja como for, não quero nenhum dornês estúpido, quero Sor Loras. É um a ordem.
Jaime soltou uma gargalhada. Ele não está ajudando em nada. Será que acha isso divertido? A rainha deu uma palmada irritada na água.
- Terei de mandar buscar Pate? Você não me dá ordens. Eu sou sua mãe.
- Sim, mas eu sou o rei. Margaery diz que todos têm de fazer o que o rei disser. Quero meu corcel branco selado de manhã para que Sor Loras possa me ensinar a montar em justas. E também quero um gatinho, e não quero comer beterrabas - ele cruzou os braços.
Jaime continuava a rir. A rainha o ignorou.
- Tommen, venha cá - quando ele não foi, ela suspirou. - Tem medo? Um rei não deve mostrar medo - o garoto aproximou-se da banheira, com os olhos baixos. Ela estendeu um braço e afagou-lhe os cachos dourados. - Rei ou não, é um garotinho. Até ter idade, o governo é meu. Você vai aprender a justar, eu lhe prometo. Mas não com Loras. Os cavaleiros da Guarda Real têm deveres mais importantes a desempenhar do que brincar com uma criança. Pergunte ao Senhor Comandante. Não é verdade, sor?
- Deveres muito importantes - Jaime abriu um ligeiro sorriso. - Cavalgar em volta das muralhas da cidade, por exemplo.
Tommen parecia prestes a chorar.
- Posso ao menos ter um gatinho?
- Talvez - a rainha concedeu - Desde que eu não ouça mais disparates sobre justas. Pode me fazer essa promessa?
Ele remexeu os pés.
- Sim.
- Ótimo. Agora saia. Meus convidados estarão aqui em breve.
Tommen obedeceu, mas antes de sair virou-se e disse:
- Quando for rei de pleno direito, vou tornar as beterrabas ilegais.
O irmão de Cersei fechou a porta com o coto.
- Vossa Graça - disse, quando os dois ficaram a sós - estou curioso. Está bêbada, ou será apenas estúpida?
Ela voltou a dar uma palmada na água, fazendo voar água e encharcar os pés do irmão.
- Cuidado com a língua, senão...
- ... senão o quê? Vai me mandar inspecionar as muralhas da cidade outra vez? -sentou-se e cruzou as pernas. - A porcaria das suas muralhas está em bom estado. Rastejei por cada centímetro e examinei todos os sete portões. Três dobradiças no Portão de Ferro estão enferrujadas, e o Portão do Rei e o Portão da Lama precisam ser substituídos depois da pancada que Stannis lhes deu com os aríetes. As muralhas estão tão fortes como sempre foram... Mas talvez Vossa Graça tenha se esquecido de que os nossos amigos de Jardim de Cima estão dentro das muralhas?
- Não me esqueço de nada - disse-lhe, pensando numa certa moeda de ouro, com uma mão de um lado e a cabeça de um rei esquecido no outro. Como foi que um miserável desgraçado de um carcereiro se arranjou para ter uma moeda daquelas escondida debaixo do penico? Com o é que um homem como Rugen obtém ouro velho de Jardim de Cima?
- Esta foi a primeira vez que ouvi falar de um novo mestre de armas. Vai ter de procurar muito, e durante bastante tempo, para encontrar um melhor justador do que Loras Tyrell. Sor Loras é...
- Eu sei o que ele é. Não o quero perto de meu filho. É melhor que lhe relembre seus deveres - a água do banho estava esfriando.
- Ele conhece seus deveres, e não há melhor Lanceiro...
- Você era melhor, antes de perder a mão. Sor Barristan também, quando era novo. Arthur Dayne era melhor, e Príncipe Rhaegar faria frente até a ele. Não me venha com disparates sobre a ferocidade da Flor. Ele não passa de um rapaz - estava farta de ter Jaime contrariando-a. Nunca ninguém contrariara o senhor seu pai. Quando Tywin Lannister falava, os homens obedeciam. Quando Cersei falava, sentiam-se livres para aconselhá-la, contradizê-la e até se recusarem a fazer o que ela queria. Tudo porque sou mulher. Porque não posso lutar com eles com uma espada. Tinham por Robert mais respeito do que têm por mim, e Robert era um bêbado desmiolado. Não admitiria aquilo, especialmente de Jaime. Tenho de me livrar dele, e depressa. Certa vez, sonhara que os dois poderiam governar os Sete Reinos lado a lado, mas Jaime transformara-se mais em obstáculo do que em aliado.
Cersei ergueu-se da banheira. Água escorreu-lhe pelas pernas e pingou-lhe dos cabelos.
- Quando quiser seu conselho, pedirei. Deixe-me, sor. Preciso me vestir.
- Seus convidados para o jantar, já sei. Que trama é esta agora? Há tantas que me confundo - o olhar dele caiu sobre a água que formava gotas nos pelos dourados entre suas pernas.
Ele ainda me deseja.
- Com saudades do que perdeu, irmão?
Jaime ergueu os olhos.
- Também te amo, querida irmã. Mas é uma tola. Uma bela tola dourada.
As palavras machucaram. Chamou-me de coisas mais gentis em Pedraverde, na noite em que plantou Joff dentro de mim, Cersei pensou.
- Fora - virou-lhe as costas e ficou ouvindo-o partir, tateando a porta com o coto.
Enquanto Jocelyn se assegurava de que tudo estava a postos para o jantar, Dorcas ajudou a rainha a envergar o vestido novo. Tinha listras de brilhante cetim verde, alternadas com listras macias de veludo negro, e uma intricada renda de Myr por sobre o corpete. A renda de Myr era dispendiosa, mas era necessário que uma rainha tivesse o melhor aspecto possível em todas as ocasiões, e as malditas lavadeiras tinham feito encolher vários de seus antigos vestidos até deixarem de lhe servir. Cersei as teria chicoteado por causa da falta de cuidado, mas Taena instara-a a ser misericordiosa.
“O povo a amará mais se for bondosa” dissera, e Cersei ordenou que o valor dos vestidos fosse deduzido do pagamento das mulheres, uma solução muito mais elegante.
Dorcas pôs-lhe um espelho de prata na mão. Muito bem , pensou a rainha, sorrindo ao seu reflexo. Era agradável sair do luto. O negro fazia-a parecer pálida demais. Uma pena que não jante com a Senhora Merryweather, refletiu a rainha. Fora um longo dia, e o espírito de Taena animava-a sempre. Cersei não tinha uma amiga que apreciasse tanto desde Melara Hetherspoon, e Melara revelara-se uma conspiradorazinha ambiciosa com ideias superiores à sua condição. Não devia pensar mal dela. Está morta e afogada, e me ensinou a nunca confiar em ninguém, a não ser em Jaime.
Quando se juntou aos convidados no aposento privado, eles já tinham se servido de uma boa dose de hipocraz. Senhora Falyse não se limita a ter aspecto de peixe, também bebe como um, refletiu, quando percebeu o jarro meio vazio.
- Querida Falyse - exclamou, beijando o rosto da mulher - e valente Sor Balman. Fiquei tão perturbada quando ouvi a notícia sobre sua querida, querida mãe. Como passa a nossa Senhora Tanda?
Senhora Falyse pareceu estar prestes a chorar.
- É bondade da parte de Vossa Graça perguntar. O quadril da mãe ficou estilhaçado pela queda, diz Meistre Frenken. Ele fez o que pôde. Agora rezamos, mas...
Reze quanto quiser, ela estará morta mesmo assim antes da volta da lua. Mulheres tão velhas como Tanda Stokeworth não sobreviviam a um quadril quebrado.
-Juntarei minhas preces às suas - disse Cersei. - Lorde Qyburn disse-me que Tanda foi atirada do cavalo.
- A correia da sela rebentou quando ela montava - disse Sor Balman Byrch. - O rapaz do estábulo devia ter visto que a tira de couro estava gasta. Foi castigado.
- Severamente, espero eu - a rainha se sentou e indicou aos convidados que deviam se sentar também. - Aceita outra taça de hipocraz, Falyse? Sempre apreciou a bebida, segundo me recordo.
- É tão bom que se lembre, Vossa Graça.
Como podia ter me esquecido? Pensou Cersei. Jaim e dizia que era um espanto que não mijasse hipocraz.
- Como foi sua viagem?
- Desconfortável - lamentou-se Falyse. - Choveu quase o dia todo. Pensávamos em passar a noite em Rosby, mas aquele jovem protegido de Lorde Gyles nos recusou hospitalidade - fungou. - Guarde minhas palavras. Quando Gyles morrer, aquele desgraçado malnascido há de fugir com o seu ouro. Até pode tentar exigir as terras e a senhoria, embora legitimamente Rosby deva passar para as nossas mãos quando Gyles falecer. A senhora minha mãe era tia de sua segunda esposa, prima terceira do próprio Gyles.
Seu símbolo é um cordeiro, senhora, ou uma espécie qualquer de macaco ganancioso? Pensou Cersei.
- Lorde Gyles ameaça morrer desde que o conheço, mas continua conosco, e continuará por muitos anos, espero - abriu um sorriso agradável. - Não tenho dúvida de que nos enterrará a todos.
- Provavelmente - concordou Sor Balman. - O protegido de Rosby não foi o único a nos molestar, Vossa Graça. Encontramos também rufiões na estrada. Criaturas imundas e desleixadas, com escudos de couro e machados. Alguns tinham estrelas cosidas nosjustilhos, estrelas sagradas de sete pontas, mesmo assim tinham um aspecto maligno.
- Tenho certeza de que estavam cobertos de piolhos - Falyse acrescentou.
- Chamam a si mesmos pardais - disse Cersei. - São uma praga que desceu sobre a terra. Nosso novo Alto Septão terá de lidar com eles uma vez que seja coroado. Caso contrário, eu mesma o farei.
- Sua Alta Santidade já foi escolhida? - Falyse quis saber.
- Não - a rainha teve de confessar. - Septão Olidor estava à beira de ser escolhido, até que alguns desses pardais o seguiram até um bordel e o arrastaram nu para a rua. Luceon parece agora a escolha provável, embora nossos amigos na outra colina digam que ele ainda está a alguns votos do número necessário.
- Que a Velha guie a deliberação com sua lâmpada dourada da sabedoria - disse a Senhora Falyse, muito piamente.
Sor Balman remexeu-se na cadeira,
- Vossa Graça, um assunto incômodo, mas... Para que maus sentimentos não se desenvolvam entre nós, deve saber que nem minha boa esposa nem sua mãe tiveram qualquer participação na escolha do nome daquela criança bastarda. Lollys é uma criatura simples, e seu marido é dado ao humor negro. Disse-lhe para escolher um nome mais apropriado para o garoto. Ele riu.
A rainha bebericou do vinho e estudou o homem. Sor Balman fora, há tempos, um justador digno de nota e um dos mais bonitos cavaleiros dos Sete Reinos. Ainda se podia gabar de um belo bigode; fora isso não envelhecera bem. Seus cabelos louros ondulados recuaram, enquanto a barriga avançava inexoravelmente contra o gibão. Como ferramenta, deixa muito a desejar, refletiu. Apesar disso, há de servir.
- Tyrion foi um nome de rei antes da chegada dos dragões. O Duende o conspurcou, mas talvez essa criança possa devolver-lhe a honra - se o bastardo viver o suficiente. - Eu sei que não tem culpa. Senhora Tanda é a irmã que nunca tive, e vocês... - sua voz falhou. - Perdoem-me. Vivo com medo.
Falyse abriu e fechou a boca, o que a fez parecer um peixe particularmente estúpido.
- Com ... com medo, Vossa Graça?
- Não durmo uma noite inteira desde que Joffrey morreu - Cersei encheu as taças com hipocraz. - Meus amigos... vocês são meus amigos, espero? E do Rei Tommen?
- Aquele querido garoto - declarou Sor Balman. - Vossa Graça, o lema da Casa Stokeworth é Orgulhosa de Ser Fiel.
- Bem gostaria que houvesse mais como vocês, bom sor. Digo-lhe a verdade, tenho sérias dúvidas acerca de Sor Bronn da Água Negra.
Marido e mulher trocaram um olhar.
- O homem é insolente, Vossa Graça - Falyse observou. -Grosseiro e blasfemo.
- Ele não é um verdadeiro cavaleiro - Sor Balman acrescentou.
- Não - Cersei sorriu, toda para ele. - E você é um homem capaz de reconhecer o verdadeiro cavalheirismo. Lembro-me de tê-lo visto justar em... qual foi aquele torneio em que lutou tão brilhantemente, sor?
Ele sorriu com modéstia.
- Aquela coisa em Valdocaso há seis anos? Não, não estava lá, caso contrário certamente teria sido coroada rainha do amor e da beleza. Teria sido o torneio em Lanisporto após a Rebelião Greyjoy? Derrubei muitos bons cavaleiros nesse...
- Foi esse mesmo - o rosto de Cersei tornou-se sombrio. - O Duende desapareceu na noite em que meu pai morreu, deixando para trás dois honestos carcereiros em poças de sangue. Há quem diga que ele fugiu para lá do mar estreito, mas eu duvido. O anão é astucioso. Talvez ainda ande por perto, planejando mais assassinatos. Talvez algum amigo o esteja escondendo.
- Bronn? - Sor Balman afagou seu farto bigode.
- Ele sempre foi uma criatura do Duende. Só o Estranho sabe quantos homens ele mandou para o inferno a mando de Tyrion.
- Vossa Graça, julgo que teria reparado num anão que tentasse se esconder em nossas terras - Sor Balman respondeu.
- Meu irmão é pequeno. Foi feito para se esconder - Cersei permitiu que a mão tremesse. - O nome de uma criança é pouca coisa... mas insolência não punida gera rebelião. E esse homem, Bronn, tem andado reunindo mercenários à sua volta, segundo me disse Qyburn.
- Acolheu quatro cavaleiros em seu pessoal - disse Falyse.
Sor Balman soltou uma fungadela.
- Minha boa esposa lisonjeia-os ao chamá-los cavaleiros. São mercenários promovidos, sem que seja possível encontrar um dedo de cavalaria sequer entre os quatro.
- Como eu temia. Bronn está reunindo espadas para o anão. Que os Sete protejam meu filhinho. O Duende vai matá-lo tal como matou seu irmão - soltou um soluço. - Meus amigos, coloco minha honra em suas mãos... Mas, o que é a honra de uma rainha contra os medos de uma mãe?
- Diga, Vossa Graça - sossegou-a Sor Balman. - Suas palavras nunca sairão desta sala.
Cersei estendeu a mão por sobre a mesa e apertou a dele.
- Eu... eu dormiria mais facilmente à noite se ouvisse dizer que Sor Bronn sofrera um... um acidente... enquanto caçava, talvez.
Sor Balman refletiu por um momento.
- Um acidente mortal?
Não, desejo que lhe quebre o mindinho. Teve de morder o lábio. Meus inimigos estão por toda a parte, e meus amigos são tolos.
- Suplico-lhe, sor - sussurrou - não me obrigue a dizê-lo...
- Compreendo - Sor Balman ergueu um dedo.
Um nabo teria entendido mais depressa.
- É realmente um verdadeiro cavaleiro, sor. A resposta para as preces de uma mãe assustada - Cersei deu-lhe um beijo - Faça-o depressa, por favor. Bronn tem apenas um punhado de homens à sua volta agora, mas, se não agirmos, certamente reunirá mais - beijou Falyse. - Nunca esquecerei disso, meus amigos. Meus amigos verdadeiros de Stokeworth. Orgulhosa de ser Fiel. Dou-lhes a minha palavra, arranjaremos a Lollys um marido melhor quando tudo isto terminar - um Kettleblack, talvez. - Nós, os Lannister, pagamos nossas dívidas.
O resto foi hipocraz e beterrabas com manteiga, pão quente, lúcio com crosta de ervas e costeletas de javali. Cersei passara a gostar muito de javali desde a morte de Robert. Nem sequer se importou com a companhia, apesar de Falyse manter um sorriso afetado e Balman ter ficado gabando-se desde a sopa até a sobremesa. Já passava da meia-noite quando conseguiu se ver livre deles. Sor Balman mostrou-se grande quando sugeriu mais um jarro, e a rainha não achou prudente recusar. Podia ter contratado um Homem sem Rosto para matar Bronn por metade do que gastei em hipocraz, refletiu quando eles finalmente saíram.
Àquela hora, o filho estava profundamente adormecido, mas Cersei foi vê-lo antes de ir para a cama. Ficou surpresa ao ver três gatinhos negros aninhados ao seu lado.
- De onde vieram? - perguntou a Sor Meryn Trant, à porta do quarto régio.
- A pequena rainha deu a ele. Só queria lhe dar um, mas ele não conseguiu decidir de qual gostava mais.
É melhor do que tirá-los de dentro da mãe com uma adaga, suponho. As desajeitadas tentativas de sedução de Margaery eram tão óbvias que se tornavam risíveis. Tommen é novo demais para beijos, portanto, dá-lhe gatinhos. Mas Cersei teria preferido que não fossem negros. Gatos pretos traziam má sorte, como a filha de Rhaegar descobrira naquele mesmo castelo. Ela teria sido minha filha, se o Rei Louco não tivesse pregado sua cruel peça ao pai. Tinha de ter sido a loucura que levara Aerys a recusar a filha de Lorde Tywin e a tomar-lhe, em vez disso, o filho, enquanto casava seu próprio filho com uma débil princesa de Dorne de olhos negros e peito liso.
A memória da rejeição ainda a amargurava, mesmo após todos aqueles anos. Muitas tinham sido as noites que passara observando Príncipe Rhaegar no salão, tocando sua harpa de cordas de prata com aqueles seus dedos longos e elegantes. Teria algum outro homem sido tão belo? Mas ele era mais do que um homem . Seu sangue era o sangue da antiga Valíria, o sangue de dragões e de deuses. Quando ainda não passava de uma garotinha, o pai prometera-lhe que se casaria com Rhaegar. Não podia ter mais do que seis ou sete anos.
“Nunca fale disso, filha” dissera-lhe, sorrindo seu sorriso secreto que só Cersei chegou a ver. “Não fale disso até que Sua Graça concorde com o noivado. Deve ser o nosso segredo, por ora” E assim tinha sido, embora uma vez tivesse feito um desenho de si mesma atrás de Rhaegar, voando num dragão, com os braços bem apertados em volta de seu peito. Quando Jaime o descobriu, Cersei disse-lhe que era a Rainha Alysanne e o Rei Jaehaerys.
Tinha dez anos quando finalmente viu seu príncipe em carne e osso, no torneio que o senhor seu pai organizara para dar as boas-vindas ao oeste ao Rei Aerys. Bancadas tinham sido erguidas por baixo das muralhas de Lanisporto, e as aclamações do povo ecoavam no Rochedo Casterly como trovões. Eles aclamaram o pai com o dobro da força com que aclamaram o rei, recordou a rainha, mas só com metade da força com que aclamaram o Príncipe Rhaegar.
Com dezessete anos e recém-armado cavaleiro, Rhaegar Targaryen usava aço negro sobre cota de malha dourada quando entrou a galope curto na liça. Longas flâmulas de seda vermelha, dourada e cor de laranja flutuavam sobre o seu elmo como chamas. Dois dos tios de Catelyn caíram perante a sua lança, bem como uma dúzia dos melhores justadores do pai, a fina flor do oeste. De noite, o príncipe tocou a harpa de prata e a fez chorar. Quando lhe foi apresentada, Cersei quase se afogou nas profundezas de seus tristes olhos púrpura. Ele foi machucado, lembrava-se de ter pensado, mas eu remediarei sua dor quando estivermos casados. Comparado com Rhaegar, até seu belo Jaime parecera não ser mais do que um rapazinho imberbe. O príncipe vai ser meu marido, pensou, estonteada de excitação, e quando o velho rei morrer, eu serei a rainha. A tia confidenciara-lhe essa verdade antes do torneio.
“Tem de estar especialmente bela” dissera-lhe a Senhora Genna, remexendo-lhe no vestido, “porque no banquete final será anunciado que você e o Príncipe Rhaegar estão prometidos”.
Cersei fora tão feliz naquele dia. De outra forma nunca teria se atrevido a visitar a tenda de Maggy, a Rã. Só o fez para mostrar a Jeyne e Melara que a leoa nada teme. Ia ser um a rainha. Por que deveria um a rainha ter medo de uma velha hedionda qualquer? A lembrança daquela profecia ainda a enchia de arrepio uma vida mais tarde. Jeyne fugiu aos gritos da tenda, com medo, lembrava-se a rainha, mas Melara ficou, e eu também. Deixamos que ela provasse nosso sangue e rimos de suas estúpidas profecias. Nenhum a delas fazia o mínimo sentido. Ela seria a esposa do Príncipe Rhaegar, não importava o que a mulher dissesse. O pai lhe prometera, e a palavra de Tywin Lannister valia ouro.
Seu riso morreu ao fim do torneio. Não houve nenhum banquete final, não houve brindes para celebrar seu noivado com o Príncipe Rhaegar. Só silêncios frios e olhares gelados entre o rei e seu pai. Mais tarde, depois de Aerys, do filho e de todos os seus galantes cavaleiros terem partido para Porto Real, a garota foi ter com a tia, em lágrimas e sem compreender.
“Seu pai propôs a união”, dissera-lhe a Senhora Genna, “mas Aerys recusou-se a ouvir falar do assunto.‘É o meu criado mais capaz, Tywin’ dissera o rei,‘mas um homem não casa seu herdeiro com a filha do criado.’ Seque essas lágrimas, pequena. Alguma vez já viu um leão chorar? Seu pai encontrará outro homem para você, um homem melhor do que Rhaegar”.
Contudo, a tia mentira, e o pai falhara com ela, tal como Jaime estava falhando agora. O pai não encontrou homem melhor. Em vez disso, deu-me Rohert, e a maldição de Maggy desabrochou como uma flor venenosa. Se ao menos tivesse me casado com Rhaegar, como os deuses pretendiam, ele nunca teria olhado duas vezes para a pequena loba. Rhaegar hoje seria o nosso rei, e eu seria a sua rainha, a mãe de seus filhos.
Nunca perdoara Robert por tê-lo matado.
Mas a verdade era que os leões não eram bons em perdoar. Como Sor Bronn da Água Negra logo descobriria.  

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