O rei
fazia beicinho.
- Quero
me sentar no Trono de Ferro -disse-lhe. - Deixava Joff sentar-se lá
em cima sempre.
- Joffrey
tinha doze anos.
- Mas eu
sou o rei. O trono me; pertence.
- Quem
foi que lhe disse isso? - Cersei respirou fundo, para que Dorcas lhe
apertasse mais o vestido. Era uma garota grande, muito mais forte do
que Senelle, embora também fosse mais desajeitada.
O rosto
de Tommen enrubesceu.
- Ninguém
me disse.
-
Ninguém? É assim que chama a senhora sua esposa? - a rainha sentia
o cheiro de Margaery Tyrell em toda aquela rebelião. - Se mentir
para mim, não terei alternativa exceto mandar buscar Pate e ordenar
que o espanque até sangrar - Pate era o garoto que era açoitado no
lugar de Tommen, tal como o fora no lugar de Joffrey. - É isso que
você quer?
- Não -
resmungou o rei com ar mal-humorado.
- Quem
lhe disse?
Ele
remexeu os pés.
- A
Senhora Margaery - sabia que não devia chamá-la de rainha ao
alcance dos ouvidos da mãe.
- Assim é
melhor. Tommen, eu tenho assuntos sérios a decidir, assuntos que
você é novo demais para entender. Não preciso de um tolo garotinho
agitando-se no trono atrás de mim e distraindo-me com perguntas
infantis. Suponho que Margaery também ache que devia estar presente
nas reuniões do meu conselho?
- Sim -
ele admitiu. - Diz que eu tenho de aprender a ser rei.
- Quando
for mais velho, poderá estar presente em tantos conselhos quantos
quiser - disse-lhe Cersei. - Garanto-lhe que ficará cansado deles
rapidamente. Robert costumava cochilar durante as sessões - quando
sequer se incomodava em estar presente. - Preferia caçar e fazer
falcoaria, e deixava os assuntos tediosos para o velho Lorde Arryn.
Lembra-se dele?
- Morreu
de dor de barriga.
- É
verdade, pobre homem. Se você está tão ansioso por aprender,
talvez devesse aprender o nome de todos os reis de Westeros e das
Mãos que os serviram. Pode recitá-los para mim amanhã.
- Sim,
mãe - ele concordou docilmente.
- Este é
meu bom garoto - o governo era seu; Cersei não pretendia abrir mão
dele até que Tommen se tornasse homem. Eu esperei, ele também pode
esperar. Esperei metade da vida. Desempenhara o papel de filha
obediente, de noiva rosada, de esposa maleável. Aguentara os
apalpões bêbados de Robert, o ciúme de Jaime, as piadas de Renly,
Varys com seus risinhos abafados, Stannis que não parava de ranger
os dentes. Contendera com Jon Arryn, Ned Stark e seu vil, traiçoeiro
e assassino irmão anão, e durante todo o tempo prometia a si mesma
que um dia seria a sua vez. Se Margaery Tyrell acha que pode roubar
minha hora ao sol, é bom que pense duas vezes.
Mesmo
assim, era uma maneira desagradável de quebrar o jejum, e o dia de
Cersei não melhorou tão cedo. Passou o resto da manhã com Lorde
Gyles e seus livros de registros, ouvindo-o tossir sobre estrelas,
veados e dragões. Depois dele, chegou Lorde Waters para informá-la
que os primeiros três dromones estavam quase concluídos, e para
suplicar mais ouro a fim de terminá-los com o esplendor que
mereciam. A rainha concedeu-lhe o pedido com satisfação. O Rapaz
Lua deu cambalhotas enquanto Cersei almoçava com membros das guildas
mercantis e ouvia suas queixas sobre pardais que vagueavam pelas ruas
e dormiam nas praças. Posso ter de usar os homens de manto dourado
para correr com esses pardais da cidade, ela pensava quando Pycelle
apareceu sem ser convidado.
Nos
últimos tempos, o Grande Meistre tinha andado especialmente
rabugento no conselho. Na última sessão, queixara-se amargamente
dos homens que Aurane Waters escolhera para capitanear seus dromones.
Waters pretendia dar os navios a homens mais jovens, enquanto Pycelle
argumentava a favor da experiência, insistindo que os comandos
deviam ir para os capitães que tivessem sobrevivido aos incêndios
na Água Negra.
“Homens
temperados, de comprovada lealdade” chamara-os o Grande Meistre.
Cersei a eles se referia como velhos, e pusera-se do lado de Lorde
Waters.
“A
única coisa que esses capitães provaram foi que sabiam nadar”
dissera. “Nenhuma mãe deve sobreviver aos filhos, e nenhum capitão
deve sobreviver ao navio.” Pycelle recebera mal a censura.
Naquele
dia parecia menos colérico, e até conseguiu abrir um trêmulo
sorriso.
- Vossa
Graça, boas-novas - anunciou. - Wyman Manderly fez o que ordenou e
decapitou o Cavaleiro das Cebolas de Lorde Stannis.
- Temos
certeza disso?
- A
cabeça e as mãos do homem foram colocadas sobre as muralhas de
Porto Branco. Lorde Wyman assim admite, e os Frey confirmam. Viram lá
a cabeça, com uma cebola na boca. E as mãos, uma das quais marcada
por seus dedos encurtados.
- Ótimo
- Cersei exultou. - Envie uma ave a Manderly e informe-o que o filho
lhe será devolvido de imediato, agora que demonstrou sua lealdade -
Porto Branco regressaria em breve à paz do rei, e Roose Bolton e seu
filho bastardo aproximavam-se de Fosso Cailin pelo sul e pelo norte.
Depois de o Fosso estar nas mãos deles, juntariam forças e
expulsariam também os homens de ferro de Praça de Torrhen e de
Bosque Profundo. Isto devia lhes garantir a lealdade dos demais
vassalos de Ned Stark quando chegasse o momento de marchar contra
Lorde Stannis.
Ao sul,
entretanto, Mace Tyrell erguera uma cidade de tendas junto a Ponta
Tempestade e tinha duas dúzias de catapultas atirando pedras contra
as maciças muralhas do castelo, até agora com pouco efeito. Lorde
Tyrell, o guerreiro, cismou a rainha. Seu símbolo devia ser um gordo
sentado.
Naquela
tarde, o obstinado enviado de Bravos apareceu para sua audiência.
Cersei a adiara durante uma quinzena, e a teria adiado de bom grado
durante mais um ano, mas Lorde Gyles afirmava que já não conseguia
lidar com o homem ... Embora a rainha começasse a perguntar a si
mesma se Gyles era capaz; de fazer algum a coisa além de tossir.
Noho
Dimittis, chamava-se o bravosiano. Um nome irritante para um homem
irritante. Sua voz também assim era. Cersei remexeu-se na cadeira
enquanto ele falava, perguntando a si mesma quanto tempo teria de
suportar suas fanfarronices. Atrás dela erguia-se o Trono de Ferro,
cujas farpas e lâminas derramavam sombras retorcidas pelo chão. Só
o rei ou a sua Mão podiam se sentar no trono propriamente dito.
Cersei sentava-se perto da base, numa cadeira de madeira dourada
estofada com almofadas carmesim.
Quando o
bravosiano fez uma pausa para ganhar fôlego, Cersei viu sua brecha.
- Isto é
um assunto mais adequado para o nosso senhor tesoureiro.
Aquela
resposta não agradou ao nobre Noho, segundo parecia.
- Já
falei com Lorde Gyles seis vezes. Ele tosse e se desculpa, Vossa
Graça, mas o ouro não aparece.
- Fale
com ele uma sétima vez - Cersei sugeriu num tom agradável. - O
número sete é sagrado para nossos deuses.
- Vejo
que agrada a Vossa Graça fazer um gracejo.
- Quando
faço um gracejo, sorrio. Está me vendo sorrir? Ouve risos?
Asseguro-lhe de que, quando faço um gracejo, os homens riem.
- O Rei
Robert...
- ...
está morto - ela disse, em tom penetrante. - O Banco de Ferro terá
seu ouro quando esta rebelião for reprimida.
Ele teve
a insolência de lhe franzir as sobrancelhas.
- Vossa
Graça...
- Esta
audiência chegou ao fim - Cersei suportara mais do que o suficiente
por um dia. - Sor Meryn, mostre a saída ao nobre Noho Dimittis. Sor
Osmund, pode acompanhar-me aos meus aposentos - os convidados
chegariam em breve, e tinha de tomar banho e trocar de roupa. O
jantar prometia ser também uma coisa entediante. Governar um reino
era trabalho duro; sete, então...
Sor
Osmund Kettleblack pôs-se a seu lado na escada, alto e esguio em
seus panos brancos da Guarda Real. Quando Cersei teve certeza de que
estavam totalmente sozinhos, deu-lhe o braço.
-
Diga-me, como passa seu irmão mais novo?
Sor
Osmund fez uma expressão de desconforto.
- Ah...
bastante bem, só que...
- Só o
quê? - a rainha deixou que um traço de ira transparecesse em sua
voz. - Tenho de confessar que começo a perder a paciência com nosso
querido Osney. Já é mais que hora de ele domar aquela potrazinha.
Nomeei-o escudo juramentado de Tommen para que pudesse passar algum
tempo todos os dias na companhia de Margaery. A essa altura já devia
ter colhido a rosa. A pequena rainha é cega para os seus encantos?
- Não há
nada de errado com os encantos dele. Ele é um Kettleblack, não é?
Com a sua licença - Sor Osmund passou os dedos pelos oleosos cabelos
negros. - O problema está nela.
- E por
quê? - a rainha começara a nutrir dúvidas acerca de Sor Osney.
Talvez outro homem fosse mais do gosto de Margaery. Aurane Waters,
com aqueles cabelos prateados, ou um tipo grande e robusto como Sor
Tallad. - A donzela preferiria outra pessoa? O rosto do seu irmão a
desagrada?
- Ela
gosta do seu rosto. Tocou-lhe as cicatrizes há dois dias, ele me
disse.“Que mulher lhe fez isto?” ela perguntou, Osney nunca disse
que tinha sido uma mulher, mas ela sabia. Talvez alguém lhe tenha
dito. Ele diz que ela sempre o toca quando conversam. Endireita-lhe o
broche do manto, afasta-lhe os cabelos para trás, coisas assim. Uma
vez, no treino de tiro ao alvo, pediu-lhe que lhe mostrasse como se
pega num arco longo, e ele teve de colocar os braços em volta dela.
Osney diz-lhe gracejos obscenos, e ela dá risada e responde com
outros ainda mais obscenos. Não, ela o deseja, isto é evidente,
mas...
- Mas? -
Cersei o incitou.
- Nunca
estão sozinhos. O rei está quase sempre com eles e, quando não
está, há outras pessoas. Duas de suas damas partilham sua cama,
todas as noites. Outras duas trazem-lhe o café da manhã e ajudam-na
a se vestir. Ela reza com a septã, lê com a prima Elinor, canta com
a prima Alia, cose com a prima Megga. Quando não vai fazer falcoaria
com Janna Fossoway e Merry Crane, está jogando o
entra-no-meu-castelo com aquela garotinha Bulwer. Nunca vai montar
sem levar uma comitiva, pelo menos quatro ou cinco companheiros e uma
dúzia de guardas. E há sempre homens em volta dela, até na Arcada
das Donzelas.
- Homens
- aquilo era alguma coisa. Aquilo tinha possibilidades. - Diga-me,
que homens são esses?
Sor
Osmund encolheu os ombros.
-
Cantores. É louca por cantores e malabaristas e gente dessa espécie.
Cavaleiros, que vêm sonhar com as primas. Osney diz que Sor Tallad é
o pior. Aquele grande imbecil não parece saber se é Elinor ou Alia
que deseja, mas sabe que a deseja com toda força. Os gêmeos Redwyne
também vão visitá-la. O Babeiro traz flores e frutas, e Horror
interessou-se pelo alaúde. Segundo o que Osney diz, seria possível
fazer sons mais agradáveis estrangulando um gato. O ilhéu do verão
também anda sempre por lá.
-
Jalabhar Xho? - Cersei soltou uma fungadela de desprezo. - Mendigando
ouro e espadas para reconquistar sua terra, certamente - por trás de
suas joias e penas, Xho pouco mais era do que um pedinte bem-nascido.
Robert podia ter posto fim à maçada de uma vez por todas com um
firme “não” mas a ideia de conquistar as Ilhas do Verão apelara
ao ébrio imbecil de seu marido. Sem dúvida sonhava com garotas de
pele bronzeada, nuas por baixo de mantos de penas, com mamilos negros
como carvão. De modo que, em vez de um "não", Robert
sempre dizia a Xho:“Ano que vem” embora, sem que se soubesse bem
como, o próximo ano nunca chegava.
- Não
sei dizer se ele estava mendigando, Vossa Graça - Sor Osmund
respondeu.
- Osney
diz que está lhes ensinando a língua do Verão, Não a Osney, à
rai... à potra, e às suas primas.
- Um
cavalo que falasse a língua do Verão seria uma grande sensação -
a rainha disse secamente. - Diga ao seu irmão para manter as esporas
bem afiadas. Em breve encontrarei alguma maneira de ele montar sua
potra, pode contar com isso.
- Direi a
ele, Vossa Graça. Osney está ansioso por tal montaria, não julgue
que não está. Ela é uma coisinha bonita, a potra.
É por
mim que ele está ansioso, imbecil, pensou a rainha. Tudo que quer de
Margaery é a senhoria que ela tem entre as pernas. Por mais que
gostasse de Osmund, por vezes ele lhe parecia tão lento de
raciocínio quanto Robert. Espero que tenha a espada mais rápida do
que os miolos. Pode chegar o dia em que Tommen precise dela.
Passavam
pela sombra lançada pelas ruínas da Torre da Mão quando o ruído
de aclamações os submergiu. Do outro lado do pátio, um escudeiro
qualquer tinha passado pelo estafermo e pusera-lhe o braço a girar.
As aclamações eram lideradas por Margaery Tyrell e suas galinhas.
Um grande tumulto por pouca coisa. Dir-se-ia que o rapaz tinha ganho
um torneio. Então, ficou surpresa em ver que quem estava montado no
corcel era Tommen, todo revestido de aço dourado.
A rainha
não teve escolha exceto colocar um sorriso no rosto e ir ver o
filho. Chegou perto dele no momento em que o Cavaleiro das Flores o
ajudava a descer do cavalo. O garoto estava sem fôlego de tão
excitado.
- Viram?
- perguntava a toda a gente. - Fiz do jeito que Sor Loras disse. Viu,
Sor Osney?
- Vi -
Osney Kettleblack assentiu. - Uma bela visão.
- Tem
melhor postura do que eu, senhor - acrescentou Sor Dermot.
- E
também quebrei a lança. Sor Loras, ouviu?
- Alto
como o estalido do trovão - uma rosa de jade e ouro prendia do manto
branco de Sor Loras ao ombro, e o vento bagunçava-lhe habilmente as
madeixas castanhas. - Fez uma magnífica corrida, mas uma vez não
basta. Deve repeti-la amanhã. Tem de montar todos os dias, até que
cada golpe seja bom e direto, e a lança faça tanto parte de você
quanto seu braço.
- Quero
fazer isso.
- Foi
soberbo - Margaery caiu sobre um joelho, beijou o rei no rosto e pôs
um braço em volta dele. - Irmão, tome cuidado - avisou a Loras. -
Meu galante marido estará derrubando você dentro de alguns anos, ao
que me parece - as três primas concordaram, e a miserável garotinha
Bulwer pôs-se aos saltos, cantarolando:
- Tommen
vai ser campeão, campeão, campeão.
- Quando
for um homem-feito - Cersei a interrompeu.
Os
sorrisos deles murcharam como rosas beijadas pela geada. A velha
septã bexigosa foi a primeira a dobrar o joelho. Os outros
imitaram-na, exceto a pequena rainha e o irmão.
Tommen
não pareceu reparar no súbito frio que tomou conta da atmosfera.
- Mãe,
você me viu? - fervilhou em tom de felicidade. - Quebrei a lança no
escudo, e o saco não me atingiu!
- Estava
observando da outra ponta do pátio. Esteve muito bem, Tommen. Não
esperava menos de você. A justa está em seu sangue. Um dia dominará
as liças, como fez seu pai.
- Nenhum
homem conseguirá vencê-lo - Margaery Tyrell dirigiu à rainha um
sorriso recatado. - Mas eu não sabia que Rei Robert era assim tão
dotado para a justa. Por favor, diga-nos, Vossa Graça, que torneios
ele ganhou? Que grandes cavaleiros derrubou? Sei que o rei gostará
de ouvir falar das vitórias do pai.
Um rubor
subiu pelo pescoço de Cersei. A garota a apanhara. Robert Baratheon
tinha sido, na verdade, um competidor indiferente nas justas. Durante
os torneios preferia de longe o corpo a corpo, quando podia espancar
homens até fazer sangue com machados embotados ou martelos. Era em
Jaime que estava pensando quando falara. Não é próprio de mim
perder o controle.
- Robert
venceu o torneio do Tridente - teve de dizer. - Derrubou o Príncipe
Rhaegar e nomeou-me sua rainha do amor e da beleza. Surpreende-me que
não conheça essa história, nora - não deu a Margaery tempo para
preparar uma resposta. - Sor Osmund, ajude meu filho a tirar a
armadura, se fizer a bondade. Sor Loras, acompanhe-me. Preciso trocar
uma palavra com você.
O
Cavaleiro das Flores não teve alternativa exceto segui-la como o
cachorrinho que era. Cersei esperou até estarem na escada em espiral
antes de dizer:
-
Diga-me, de quem foi essa ideia?
- Da
minha irmã - admitiu o jovem. - Sor Tallad, Sor Dermot e Sor
Portifer arremetiam contra o estafermo, e a rainha sugeriu que Sua
Graça talvez gostasse de experimentar.
Ele a
chama desse jeito para me aborrecer.
- E o seu
papel?
- Ajudei
Sua Graça a envergar a armadura e mostrei-lhe como segurar a lança
- ele respondeu.
- Aquele
cavalo era muito maior do que devia ser para ele. E se tivesse caído?
E se o saco de areia tivesse batido em sua cabeça?
- Manchas
negras e lábios rachados fazem parte de ser um cavaleiro.
- Começo
a entender por que seu irmão é um aleijado - agradou-lhe ver que
aquilo varreu o sorriso do lindo rosto do rapaz. - Meu irmão talvez
não lhe tenha explicado seus deveres, sor. Está aqui para proteger
meu filho de seus inimigos. Treiná-lo para a cavalaria é território
do mestre de armas.
- A
Fortaleza Vermelha não tem mestre de armas desde que Aron Santagar
foi morto - respondeu Sor Loras, com uma sugestão de censura na voz.
- Sua Graça tem quase nove anos e está ansioso por aprender. Na sua
idade, devia ser um escudeiro. Alguém precisa ensiná-lo.
Alguém
ensinará, mas não será você.
-
Diga-me, de quem foi escudeiro, sor? - perguntou, com voz doce. - De
Lorde Renly, não foi?
- Tive
essa honra.
- Sim,
era o que eu pensava - Cersei já vira como se tornavam fortes os
laços entre os escudeiros e os cavaleiros que serviam. Não queria
que Tommen se tornasse próximo de Loras Tyrell. O Cavaleiro das
Flores não era o tipo de homem que um garoto devesse emular. - Fui
descuidada, Com um reino para governar, uma guerra para travar e um
pai para chorar, não sei como deixei passar a questão crucial de
nomear um novo mestre de armas. Retificarei imediatamente este erro.
Sor Loras
empurrou para trás uma madeixa castanha que lhe tinha caído sobre a
testa.
- Vossa
Graça não encontrará nenhum homem com metade da minha destreza com
a espada e a lança.
Somos
modestos, não som os?
- Tommen
é o seu rei, não seu escudeiro. Cabe a você lutar e morrer por
ele, se for necessário. Nada mais.
Deixou-o
na ponte levadiça que passava sobre o fosso seco com seu leito de
espigões de ferro e entrou sozinha na Fortaleza de Maegor. Onde vou
arranjar um mestre de armas? Perguntou a si mesma enquanto subia a
escada que levava aos seus aposentos. Tendo recusado Sor Loras, não
se atrevia a virar-se para nenhum dos cavaleiros da Guarda Real; isto
seria colocar sal na ferida, o que certamente enfureceria Jardim de
Cima. Sor Tallad? Sor Dermot? Deve haver alguém. Tommen começava a
gostar de seu novo escudo juramentado, mas Osney estava se revelando
menos capaz do que esperara na questão da Senhora Margaery, e tinha
um cargo diferente em mente para o irmão Osfryd. Era realmente uma
pena que Cão de Caça tivesse pegado raiva. Tommen sempre tivera
medo da voz dura e do rosto queimado de Sandor Clegane, e o escárnio
de Clegane teria sido o antídoto perfeito para o cavalheirismo
afetado de Loras Tyrell.
Aron
Santagar era dornês, recordou Cersei. Podia apelar a Dorne. Séculos
de sangue e guerra interpunham-se entre Lançassolar e Jardim de
Cima. Sim, um dornês podia adequar-se admiravelmente às minhas
necessidades. Deve haver alguns bons espadachins em Dorne.
Quando
entrou no aposento privado, Cersei encontrou Lorde Qyburn lendo num
banco de janela.
- Se
aprouver a Vossa Graça, tenho relatórios.
- Mais
conspirações e traições? - Cersei resmungou. - Tive um dia longo
e cansativo. Conte-me depressa.
Ele
sorriu com simpatia.
- As suas
ordens. Diz-se que o Arconte de Tyrosh ofereceu termos a Lys para pôr
fim à guerra comercial que têm em curso. Havia o rumor de que Myr
se preparava para entrar na guerra do lado de Tyrosh, mas, sem a
Companhia Dourada, os myranos não acharam poder...
- O que
os myranos acreditam não me preocupa - as Cidades Livres andavam
sempre a lutar umas com as outras. Suas eternas traições e alianças
pouco ou nada significavam para Westeros. - Tem alguma notícia de
maior importância?
- A
revolta de escravos em Astapor espalhou-se para Meereen, ao que
parece. Marinheiros saídos de uma dúzia de navios falam de
dragões...
-
Harpias. Em Meereen são harpias - lembrava-se daquilo de algum
lugar. Meereen ficava na ponta mais distante do mundo, para leste,
depois de Valíria. - Que os escravos se revoltem. Que me importa
isso? Em Westeros não temos escravos. É tudo que tem para mim?
- Há
algumas notícias vindas de Dorne que Vossa Graça poderá achar de
maior interesse. Príncipe Doran aprisionou Sor Daemon Sand, um
bastardo que outrora serviu como escudeiro ao Víbora Vermelha.
-
Lembro-me dele - Sor Daemon estivera entre os cavaleiros dorneses que
acompanharam o Príncipe Oberyn até Porto Real. - Que foi que ele
fez?
- Exigiu
que as filhas do Príncipe Oberyn fossem libertadas.
- Mais
tolo é.
- Além
disso - disse Lorde Qyburn - a filha do Cavaleiro de Matamalhada foi
prometida muito inesperadamente a Lorde Estermont, segundo nos
informam nossos amigos em Dorne. Foi enviada para Pedraverde nessa
mesma noite, e diz-se que ela e Estermont já se casaram.
- Um
bastardo na barriga explicaria isso - Cersei brincou com uma madeixa
de cabelo - Que idade tem a corada noiva?
- Vinte e
três, Vossa Graça. Ao passo que Lorde Estermont...
- ...
deve ter setenta. Estou ciente disso - os Estermont eram seus
familiares por afinidade, através de Robert, cujo pai tomara uma
delas como esposa naquilo que devia ter sido um ataque de luxúria ou
de loucura. Quando Cersei se casara com o rei, a senhora mãe de
Robert estava morta havia muito tempo, embora ambos os seus irmãos
tivessem aparecido para a boda, após o que se deixaram ficar durante
meio ano. Mais tarde, Robert insistira em devolver a cortesia com uma
visita a Estermont, uma ilhota montanhosa ao largo do Cabo da Fúria.
A úmida e sombria quinzena que Cersei passara em Pedraverde, a sede
da Casa Estermont, fora a mais longa de sua jovem vida. Jaime
apelidara o castelo, assim que o vira, de "Merdaverde", e
rapidamente pusera Cersei a chamá-la do mesmo jeito. Fora isso,
passava os dias vendo seu real marido fazer falcoaria, caçar, beber
com os tios e espancar vários dos primos até deixá-los sem
sentidos no pátio de Merdaverde.
Também
tinha havido uma prima, uma viuvinha robusta com seios grandes como
melões, cujo marido e pai tinham ambos morrido em Ponta Tempestade
durante o cerco.
"O
pai dela foi bom para mim” dissera-lhe Robert, “e ela e eu
brincávamos juntos quando éramos pequenos” Não demorou muito
tempo para começar outra vez a brincar com ela. Assim que Cersei
fechava os olhos, o rei escapulia para ir consolar a pobre criatura
solitária. Uma noite, mandou Jaime segui-lo, para confirmar as
suspeitas. Quando o irmão regressou, perguntou-lhe se queria Robert
morto.
“Não”
respondera, “quero-o encornado” Gostava de pensar que tinha sido
naquela noite que Joffrey foi concebido.
- Eldon
Estermont tomou uma esposa cinquenta anos mais nova do que ele -
disse a Qyburn, - Por que deveria me importar com isso?
Ele
encolheu os ombros,
- Não
digo que deva... mas Daemon Sand e essa garota Santagar eram ambos
próximos da filha do Príncipe Doran, Arianne, ou pelo menos é o
que os dorneses nos querem levar a crer. Talvez queira dizer pouco ou
nada, mas achei que Vossa Graça devia saber.
- Agora
já sei - estava perdendo a paciência. - Tem mais?
- Mais
uma coisa. Um assunto sem importância - dirigiu-lhe um sorriso que
era um pedido de desculpas e lhe falou de um espetáculo de
fantoches, no qual o reino dos animais era governado por um grupo de
altivos leões. - Os leões fantoches vão se tornando gananciosos e
arrogantes à medida que essa história traiçoeira progride, até
começarem a devorar seus súditos. Quando o nobre veado levanta
objeções, os leões devoram-no também e rugem que estão no seu
direito, visto serem as mais poderosas das feras.
- E acaba
assim? - Cersei quis saber, parecendo se divertir. Vista sob a luz
certa, a história podia ser encarada como uma salutar lição.
- Não,
Vossa Graça. No fim, um dragão eclode de um ovo e devora todos os
leões.
O final
levava o espectáculo de fantoches da simples insolência à traição.
- Idiotas
sem miolos. Só cretinos arriscariam a cabeça por causa de um dragão
de madeira - refletiu por um momento - Envie alguns de seus
cochichadores a esses espetáculos e tome nota de quem os assiste. Se
houver homens dignos de nota, quero conhecer seus nomes.
- E o que
será feito com eles, se me permite a ousadia?
-
Qualquer homem de posses deverá ser multado. Metade de sua fortuna
deverá ser suficiente, para lhe ensinar uma boa lição e voltar a
encher nossos cofres, sem chegarmos propriamente a arruiná-lo. Os
que forem pobres demais para pagar podem perder um olho, por assistir
a traições. Para os titereiros, o machado.
- Eles
são quatro. Talvez Vossa Graça possa me conceder dois deles para os
meus fins. Uma mulher seria particularmente...
- Dei-vos
Senelle - a rainha retrucou em tom penetrante.
-
Infelizmente a pobre garota está bastante... exausta.
Cersei
não gostava de pensar naquilo. A garota fora com ele sem suspeitar
de nada, julgando que ia servir. Nem mesmo quando Qyburn lhe fechou a
corrente em volta do pulso pareceu compreender. A recordação ainda
deixava a rainha nauseada. As celas estavam geladas. Até os archotes
tremiam. E aquela coisa maligna gritando na escuridão...
- Sim,
pode ficar com uma mulher. Duas, se lhe aprouver. Mas, primeiro,
quero nomes.
- Às
suas ordens - Qyburn se retirou.
Lá fora
o sol se punha. Dorcas preparara-lhe um banho. A rainha estava
mergulhada agradavelmente em água tépida e meditava sobre o que
queria dizer aos seus convidados para o jantar quando Jaime irrompeu
porta adentro, ordenando a Jocelyn e Dorcas que saíssem. O irmão
parecia bastante menos que imaculado e exalava cheiro de cavalo.
Trazia também Tommen consigo.
- Querida
irmã - disse - o rei quer uma palavrinha.
As
madeixas douradas de Cersei flutuavam na água do banho. A sala
estava cheia de vapor. Um pingo de suor escorreu-lhe pelo rosto.
- Tommen?
- disse, numa voz perigosamente suave. - O que é agora?
O garoto
conhecia aquele tom. Encolheu-se.
- Sua
Graça quer o corcel branco amanhã - Jaime respondeu por ele. - Para
sua lição de justa.
Cersei
sentou-se na banheira.
- Não
haverá justas.
- Haverá,
sim - balbuciou Tommen através do lábio inferior. - Tenho de montar
todos os dias.
- E
montará - declarou a rainha - depois de termos um mestre de armas
adequado para supervisionar seu treino,
- Eu não
quero um mestre de armas adequado. Quero Sor Loras.
- Tem
esse rapaz numa conta demasiado alta. Sua pequena esposa encheu-lhe a
cabeça de ideias tolas acerca de sua perícia, eu sei, mas Osmund
Kettleblack é três vezes melhor cavaleiro do que Loras.
Jaime
soltou uma gargalhada.
- O
Osmund Kettleblack que eu conheço, não.
Teve
vontade de esganá-lo. Talvez tenha de ordenar a Sor Loras que
permita que Sor Osmund o derrube do cavalo. Aquilo talvez expulsasse
as estrelas dos olhos de Tommen. Salgue uma lesma e envergonhe um
herói, eles encolhem logo.
- Vou
mandar vir um dornês para treinar você - disse. - Os dorneses são
os melhores cavaleiros de justas do reino.
- Não
são nada - disse Tommen. - Seja como for, não quero nenhum dornês
estúpido, quero Sor Loras. É um a ordem.
Jaime
soltou uma gargalhada. Ele não está ajudando em nada. Será que
acha isso divertido? A rainha deu uma palmada irritada na água.
- Terei
de mandar buscar Pate? Você não me dá ordens. Eu sou sua mãe.
- Sim,
mas eu sou o rei. Margaery diz que todos têm de fazer o que o rei
disser. Quero meu corcel branco selado de manhã para que Sor Loras
possa me ensinar a montar em justas. E também quero um gatinho, e
não quero comer beterrabas - ele cruzou os braços.
Jaime
continuava a rir. A rainha o ignorou.
- Tommen,
venha cá - quando ele não foi, ela suspirou. - Tem medo? Um rei não
deve mostrar medo - o garoto aproximou-se da banheira, com os olhos
baixos. Ela estendeu um braço e afagou-lhe os cachos dourados. - Rei
ou não, é um garotinho. Até ter idade, o governo é meu. Você vai
aprender a justar, eu lhe prometo. Mas não com Loras. Os cavaleiros
da Guarda Real têm deveres mais importantes a desempenhar do que
brincar com uma criança. Pergunte ao Senhor Comandante. Não é
verdade, sor?
- Deveres
muito importantes - Jaime abriu um ligeiro sorriso. - Cavalgar em
volta das muralhas da cidade, por exemplo.
Tommen
parecia prestes a chorar.
- Posso
ao menos ter um gatinho?
- Talvez
- a rainha concedeu - Desde que eu não ouça mais disparates sobre
justas. Pode me fazer essa promessa?
Ele
remexeu os pés.
- Sim.
- Ótimo.
Agora saia. Meus convidados estarão aqui em breve.
Tommen
obedeceu, mas antes de sair virou-se e disse:
- Quando
for rei de pleno direito, vou tornar as beterrabas ilegais.
O irmão
de Cersei fechou a porta com o coto.
- Vossa
Graça - disse, quando os dois ficaram a sós - estou curioso. Está
bêbada, ou será apenas estúpida?
Ela
voltou a dar uma palmada na água, fazendo voar água e encharcar os
pés do irmão.
- Cuidado
com a língua, senão...
- ...
senão o quê? Vai me mandar inspecionar as muralhas da cidade outra
vez? -sentou-se e cruzou as pernas. - A porcaria das suas muralhas
está em bom estado. Rastejei por cada centímetro e examinei todos
os sete portões. Três dobradiças no Portão de Ferro estão
enferrujadas, e o Portão do Rei e o Portão da Lama precisam ser
substituídos depois da pancada que Stannis lhes deu com os aríetes.
As muralhas estão tão fortes como sempre foram... Mas talvez Vossa
Graça tenha se esquecido de que os nossos amigos de Jardim de Cima
estão dentro das muralhas?
- Não me
esqueço de nada - disse-lhe, pensando numa certa moeda de ouro, com
uma mão de um lado e a cabeça de um rei esquecido no outro. Como
foi que um miserável desgraçado de um carcereiro se arranjou para
ter uma moeda daquelas escondida debaixo do penico? Com o é que um
homem como Rugen obtém ouro velho de Jardim de Cima?
- Esta
foi a primeira vez que ouvi falar de um novo mestre de armas. Vai ter
de procurar muito, e durante bastante tempo, para encontrar um melhor
justador do que Loras Tyrell. Sor Loras é...
- Eu sei
o que ele é. Não o quero perto de meu filho. É melhor que lhe
relembre seus deveres - a água do banho estava esfriando.
- Ele
conhece seus deveres, e não há melhor Lanceiro...
- Você
era melhor, antes de perder a mão. Sor Barristan também, quando era
novo. Arthur Dayne era melhor, e Príncipe Rhaegar faria frente até
a ele. Não me venha com disparates sobre a ferocidade da Flor. Ele
não passa de um rapaz - estava farta de ter Jaime contrariando-a.
Nunca ninguém contrariara o senhor seu pai. Quando Tywin Lannister
falava, os homens obedeciam. Quando Cersei falava, sentiam-se livres
para aconselhá-la, contradizê-la e até se recusarem a fazer o que
ela queria. Tudo porque sou mulher. Porque não posso lutar com eles
com uma espada. Tinham por Robert mais respeito do que têm por mim,
e Robert era um bêbado desmiolado. Não admitiria aquilo,
especialmente de Jaime. Tenho de me livrar dele, e depressa. Certa
vez, sonhara que os dois poderiam governar os Sete Reinos lado a
lado, mas Jaime transformara-se mais em obstáculo do que em aliado.
Cersei
ergueu-se da banheira. Água escorreu-lhe pelas pernas e pingou-lhe
dos cabelos.
- Quando
quiser seu conselho, pedirei. Deixe-me, sor. Preciso me vestir.
- Seus
convidados para o jantar, já sei. Que trama é esta agora? Há
tantas que me confundo - o olhar dele caiu sobre a água que formava
gotas nos pelos dourados entre suas pernas.
Ele ainda
me deseja.
- Com
saudades do que perdeu, irmão?
Jaime
ergueu os olhos.
- Também
te amo, querida irmã. Mas é uma tola. Uma bela tola dourada.
As
palavras machucaram. Chamou-me de coisas mais gentis em Pedraverde,
na noite em que plantou Joff dentro de mim, Cersei pensou.
- Fora -
virou-lhe as costas e ficou ouvindo-o partir, tateando a porta com o
coto.
Enquanto
Jocelyn se assegurava de que tudo estava a postos para o jantar,
Dorcas ajudou a rainha a envergar o vestido novo. Tinha listras de
brilhante cetim verde, alternadas com listras macias de veludo negro,
e uma intricada renda de Myr por sobre o corpete. A renda de Myr era
dispendiosa, mas era necessário que uma rainha tivesse o melhor
aspecto possível em todas as ocasiões, e as malditas lavadeiras
tinham feito encolher vários de seus antigos vestidos até deixarem
de lhe servir. Cersei as teria chicoteado por causa da falta de
cuidado, mas Taena instara-a a ser misericordiosa.
“O povo
a amará mais se for bondosa” dissera, e Cersei ordenou que o valor
dos vestidos fosse deduzido do pagamento das mulheres, uma solução
muito mais elegante.
Dorcas
pôs-lhe um espelho de prata na mão. Muito bem , pensou a rainha,
sorrindo ao seu reflexo. Era agradável sair do luto. O negro fazia-a
parecer pálida demais. Uma pena que não jante com a Senhora
Merryweather, refletiu a rainha. Fora um longo dia, e o espírito de
Taena animava-a sempre. Cersei não tinha uma amiga que apreciasse
tanto desde Melara Hetherspoon, e Melara revelara-se uma
conspiradorazinha ambiciosa com ideias superiores à sua condição.
Não devia pensar mal dela. Está morta e afogada, e me ensinou a
nunca confiar em ninguém, a não ser em Jaime.
Quando se
juntou aos convidados no aposento privado, eles já tinham se servido
de uma boa dose de hipocraz. Senhora Falyse não se limita a ter
aspecto de peixe, também bebe como um, refletiu, quando percebeu o
jarro meio vazio.
- Querida
Falyse - exclamou, beijando o rosto da mulher - e valente Sor Balman.
Fiquei tão perturbada quando ouvi a notícia sobre sua querida,
querida mãe. Como passa a nossa Senhora Tanda?
Senhora
Falyse pareceu estar prestes a chorar.
- É
bondade da parte de Vossa Graça perguntar. O quadril da mãe ficou
estilhaçado pela queda, diz Meistre Frenken. Ele fez o que pôde.
Agora rezamos, mas...
Reze
quanto quiser, ela estará morta mesmo assim antes da volta da lua.
Mulheres tão velhas como Tanda Stokeworth não sobreviviam a um
quadril quebrado.
-Juntarei
minhas preces às suas - disse Cersei. - Lorde Qyburn disse-me que
Tanda foi atirada do cavalo.
- A
correia da sela rebentou quando ela montava - disse Sor Balman Byrch.
- O rapaz do estábulo devia ter visto que a tira de couro estava
gasta. Foi castigado.
-
Severamente, espero eu - a rainha se sentou e indicou aos convidados
que deviam se sentar também. - Aceita outra taça de hipocraz,
Falyse? Sempre apreciou a bebida, segundo me recordo.
- É tão
bom que se lembre, Vossa Graça.
Como
podia ter me esquecido? Pensou Cersei. Jaim e dizia que era um
espanto que não mijasse hipocraz.
- Como
foi sua viagem?
-
Desconfortável - lamentou-se Falyse. - Choveu quase o dia todo.
Pensávamos em passar a noite em Rosby, mas aquele jovem protegido de
Lorde Gyles nos recusou hospitalidade - fungou. - Guarde minhas
palavras. Quando Gyles morrer, aquele desgraçado malnascido há de
fugir com o seu ouro. Até pode tentar exigir as terras e a senhoria,
embora legitimamente Rosby deva passar para as nossas mãos quando
Gyles falecer. A senhora minha mãe era tia de sua segunda esposa,
prima terceira do próprio Gyles.
Seu
símbolo é um cordeiro, senhora, ou uma espécie qualquer de macaco
ganancioso? Pensou Cersei.
- Lorde
Gyles ameaça morrer desde que o conheço, mas continua conosco, e
continuará por muitos anos, espero - abriu um sorriso agradável. -
Não tenho dúvida de que nos enterrará a todos.
-
Provavelmente - concordou Sor Balman. - O protegido de Rosby não foi
o único a nos molestar, Vossa Graça. Encontramos também rufiões
na estrada. Criaturas imundas e desleixadas, com escudos de couro e
machados. Alguns tinham estrelas cosidas nosjustilhos, estrelas
sagradas de sete pontas, mesmo assim tinham um aspecto maligno.
- Tenho
certeza de que estavam cobertos de piolhos - Falyse acrescentou.
- Chamam
a si mesmos pardais - disse Cersei. - São uma praga que desceu sobre
a terra. Nosso novo Alto Septão terá de lidar com eles uma vez que
seja coroado. Caso contrário, eu mesma o farei.
- Sua
Alta Santidade já foi escolhida? - Falyse quis saber.
- Não -
a rainha teve de confessar. - Septão Olidor estava à beira de ser
escolhido, até que alguns desses pardais o seguiram até um bordel e
o arrastaram nu para a rua. Luceon parece agora a escolha provável,
embora nossos amigos na outra colina digam que ele ainda está a
alguns votos do número necessário.
- Que a
Velha guie a deliberação com sua lâmpada dourada da sabedoria -
disse a Senhora Falyse, muito piamente.
Sor
Balman remexeu-se na cadeira,
- Vossa
Graça, um assunto incômodo, mas... Para que maus sentimentos não
se desenvolvam entre nós, deve saber que nem minha boa esposa nem
sua mãe tiveram qualquer participação na escolha do nome daquela
criança bastarda. Lollys é uma criatura simples, e seu marido é
dado ao humor negro. Disse-lhe para escolher um nome mais apropriado
para o garoto. Ele riu.
A rainha
bebericou do vinho e estudou o homem. Sor Balman fora, há tempos, um
justador digno de nota e um dos mais bonitos cavaleiros dos Sete
Reinos. Ainda se podia gabar de um belo bigode; fora isso não
envelhecera bem. Seus cabelos louros ondulados recuaram, enquanto a
barriga avançava inexoravelmente contra o gibão. Como ferramenta,
deixa muito a desejar, refletiu. Apesar disso, há de servir.
- Tyrion
foi um nome de rei antes da chegada dos dragões. O Duende o
conspurcou, mas talvez essa criança possa devolver-lhe a honra - se
o bastardo viver o suficiente. - Eu sei que não tem culpa. Senhora
Tanda é a irmã que nunca tive, e vocês... - sua voz falhou. -
Perdoem-me. Vivo com medo.
Falyse
abriu e fechou a boca, o que a fez parecer um peixe particularmente
estúpido.
- Com ...
com medo, Vossa Graça?
- Não
durmo uma noite inteira desde que Joffrey morreu - Cersei encheu as
taças com hipocraz. - Meus amigos... vocês são meus amigos,
espero? E do Rei Tommen?
- Aquele
querido garoto - declarou Sor Balman. - Vossa Graça, o lema da Casa
Stokeworth é Orgulhosa de Ser Fiel.
- Bem
gostaria que houvesse mais como vocês, bom sor. Digo-lhe a verdade,
tenho sérias dúvidas acerca de Sor Bronn da Água Negra.
Marido e
mulher trocaram um olhar.
- O homem
é insolente, Vossa Graça - Falyse observou. -Grosseiro e blasfemo.
- Ele não
é um verdadeiro cavaleiro - Sor Balman acrescentou.
- Não -
Cersei sorriu, toda para ele. - E você é um homem capaz de
reconhecer o verdadeiro cavalheirismo. Lembro-me de tê-lo visto
justar em... qual foi aquele torneio em que lutou tão
brilhantemente, sor?
Ele
sorriu com modéstia.
- Aquela
coisa em Valdocaso há seis anos? Não, não estava lá, caso
contrário certamente teria sido coroada rainha do amor e da beleza.
Teria sido o torneio em Lanisporto após a Rebelião Greyjoy?
Derrubei muitos bons cavaleiros nesse...
- Foi
esse mesmo - o rosto de Cersei tornou-se sombrio. - O Duende
desapareceu na noite em que meu pai morreu, deixando para trás dois
honestos carcereiros em poças de sangue. Há quem diga que ele fugiu
para lá do mar estreito, mas eu duvido. O anão é astucioso. Talvez
ainda ande por perto, planejando mais assassinatos. Talvez algum
amigo o esteja escondendo.
- Bronn?
- Sor Balman afagou seu farto bigode.
- Ele
sempre foi uma criatura do Duende. Só o Estranho sabe quantos homens
ele mandou para o inferno a mando de Tyrion.
- Vossa
Graça, julgo que teria reparado num anão que tentasse se esconder
em nossas terras - Sor Balman respondeu.
- Meu
irmão é pequeno. Foi feito para se esconder - Cersei permitiu que a
mão tremesse. - O nome de uma criança é pouca coisa... mas
insolência não punida gera rebelião. E esse homem, Bronn, tem
andado reunindo mercenários à sua volta, segundo me disse Qyburn.
- Acolheu
quatro cavaleiros em seu pessoal - disse Falyse.
Sor
Balman soltou uma fungadela.
- Minha
boa esposa lisonjeia-os ao chamá-los cavaleiros. São mercenários
promovidos, sem que seja possível encontrar um dedo de cavalaria
sequer entre os quatro.
- Como eu
temia. Bronn está reunindo espadas para o anão. Que os Sete
protejam meu filhinho. O Duende vai matá-lo tal como matou seu irmão
- soltou um soluço. - Meus amigos, coloco minha honra em suas
mãos... Mas, o que é a honra de uma rainha contra os medos de uma
mãe?
- Diga,
Vossa Graça - sossegou-a Sor Balman. - Suas palavras nunca sairão
desta sala.
Cersei
estendeu a mão por sobre a mesa e apertou a dele.
- Eu...
eu dormiria mais facilmente à noite se ouvisse dizer que Sor Bronn
sofrera um... um acidente... enquanto caçava, talvez.
Sor
Balman refletiu por um momento.
- Um
acidente mortal?
Não,
desejo que lhe quebre o mindinho. Teve de morder o lábio. Meus
inimigos estão por toda a parte, e meus amigos são tolos.
-
Suplico-lhe, sor - sussurrou - não me obrigue a dizê-lo...
-
Compreendo - Sor Balman ergueu um dedo.
Um nabo
teria entendido mais depressa.
- É
realmente um verdadeiro cavaleiro, sor. A resposta para as preces de
uma mãe assustada - Cersei deu-lhe um beijo - Faça-o depressa, por
favor. Bronn tem apenas um punhado de homens à sua volta agora, mas,
se não agirmos, certamente reunirá mais - beijou Falyse. - Nunca
esquecerei disso, meus amigos. Meus amigos verdadeiros de Stokeworth.
Orgulhosa de ser Fiel. Dou-lhes a minha palavra, arranjaremos a
Lollys um marido melhor quando tudo isto terminar - um Kettleblack,
talvez. - Nós, os Lannister, pagamos nossas dívidas.
O resto
foi hipocraz e beterrabas com manteiga, pão quente, lúcio com
crosta de ervas e costeletas de javali. Cersei passara a gostar muito
de javali desde a morte de Robert. Nem sequer se importou com a
companhia, apesar de Falyse manter um sorriso afetado e Balman ter
ficado gabando-se desde a sopa até a sobremesa. Já passava da
meia-noite quando conseguiu se ver livre deles. Sor Balman mostrou-se
grande quando sugeriu mais um jarro, e a rainha não achou prudente
recusar. Podia ter contratado um Homem sem Rosto para matar Bronn por
metade do que gastei em hipocraz, refletiu quando eles finalmente
saíram.
Àquela
hora, o filho estava profundamente adormecido, mas Cersei foi vê-lo
antes de ir para a cama. Ficou surpresa ao ver três gatinhos negros
aninhados ao seu lado.
- De onde
vieram? - perguntou a Sor Meryn Trant, à porta do quarto régio.
- A
pequena rainha deu a ele. Só queria lhe dar um, mas ele não
conseguiu decidir de qual gostava mais.
É melhor
do que tirá-los de dentro da mãe com uma adaga, suponho. As
desajeitadas tentativas de sedução de Margaery eram tão óbvias
que se tornavam risíveis. Tommen é novo demais para beijos,
portanto, dá-lhe gatinhos. Mas Cersei teria preferido que não
fossem negros. Gatos pretos traziam má sorte, como a filha de
Rhaegar descobrira naquele mesmo castelo. Ela teria sido minha filha,
se o Rei Louco não tivesse pregado sua cruel peça ao pai. Tinha de
ter sido a loucura que levara Aerys a recusar a filha de Lorde Tywin
e a tomar-lhe, em vez disso, o filho, enquanto casava seu próprio
filho com uma débil princesa de Dorne de olhos negros e peito liso.
A memória
da rejeição ainda a amargurava, mesmo após todos aqueles anos.
Muitas tinham sido as noites que passara observando Príncipe Rhaegar
no salão, tocando sua harpa de cordas de prata com aqueles seus
dedos longos e elegantes. Teria algum outro homem sido tão belo? Mas
ele era mais do que um homem . Seu sangue era o sangue da antiga
Valíria, o sangue de dragões e de deuses. Quando ainda não passava
de uma garotinha, o pai prometera-lhe que se casaria com Rhaegar. Não
podia ter mais do que seis ou sete anos.
“Nunca
fale disso, filha” dissera-lhe, sorrindo seu sorriso secreto que só
Cersei chegou a ver. “Não fale disso até que Sua Graça concorde
com o noivado. Deve ser o nosso segredo, por ora” E assim tinha
sido, embora uma vez tivesse feito um desenho de si mesma atrás de
Rhaegar, voando num dragão, com os braços bem apertados em volta de
seu peito. Quando Jaime o descobriu, Cersei disse-lhe que era a
Rainha Alysanne e o Rei Jaehaerys.
Tinha dez
anos quando finalmente viu seu príncipe em carne e osso, no torneio
que o senhor seu pai organizara para dar as boas-vindas ao oeste ao
Rei Aerys. Bancadas tinham sido erguidas por baixo das muralhas de
Lanisporto, e as aclamações do povo ecoavam no Rochedo Casterly
como trovões. Eles aclamaram o pai com o dobro da força com que
aclamaram o rei, recordou a rainha, mas só com metade da força com
que aclamaram o Príncipe Rhaegar.
Com
dezessete anos e recém-armado cavaleiro, Rhaegar Targaryen usava aço
negro sobre cota de malha dourada quando entrou a galope curto na
liça. Longas flâmulas de seda vermelha, dourada e cor de laranja
flutuavam sobre o seu elmo como chamas. Dois dos tios de Catelyn
caíram perante a sua lança, bem como uma dúzia dos melhores
justadores do pai, a fina flor do oeste. De noite, o príncipe tocou
a harpa de prata e a fez chorar. Quando lhe foi apresentada, Cersei
quase se afogou nas profundezas de seus tristes olhos púrpura. Ele
foi machucado, lembrava-se de ter pensado, mas eu remediarei sua dor
quando estivermos casados. Comparado com Rhaegar, até seu belo Jaime
parecera não ser mais do que um rapazinho imberbe. O príncipe vai
ser meu marido, pensou, estonteada de excitação, e quando o velho
rei morrer, eu serei a rainha. A tia confidenciara-lhe essa verdade
antes do torneio.
“Tem de
estar especialmente bela” dissera-lhe a Senhora Genna,
remexendo-lhe no vestido, “porque no banquete final será anunciado
que você e o Príncipe Rhaegar estão prometidos”.
Cersei
fora tão feliz naquele dia. De outra forma nunca teria se atrevido a
visitar a tenda de Maggy, a Rã. Só o fez para mostrar a Jeyne e
Melara que a leoa nada teme. Ia ser um a rainha. Por que deveria um a
rainha ter medo de uma velha hedionda qualquer? A lembrança daquela
profecia ainda a enchia de arrepio uma vida mais tarde. Jeyne fugiu
aos gritos da tenda, com medo, lembrava-se a rainha, mas Melara
ficou, e eu também. Deixamos que ela provasse nosso sangue e rimos
de suas estúpidas profecias. Nenhum a delas fazia o mínimo sentido.
Ela seria a esposa do Príncipe Rhaegar, não importava o que a
mulher dissesse. O pai lhe prometera, e a palavra de Tywin Lannister
valia ouro.
Seu riso
morreu ao fim do torneio. Não houve nenhum banquete final, não
houve brindes para celebrar seu noivado com o Príncipe Rhaegar. Só
silêncios frios e olhares gelados entre o rei e seu pai. Mais tarde,
depois de Aerys, do filho e de todos os seus galantes cavaleiros
terem partido para Porto Real, a garota foi ter com a tia, em
lágrimas e sem compreender.
“Seu
pai propôs a união”, dissera-lhe a Senhora Genna, “mas Aerys
recusou-se a ouvir falar do assunto.‘É o meu criado mais capaz,
Tywin’ dissera o rei,‘mas um homem não casa seu herdeiro com a
filha do criado.’ Seque essas lágrimas, pequena. Alguma vez já
viu um leão chorar? Seu pai encontrará outro homem para você, um
homem melhor do que Rhaegar”.
Contudo,
a tia mentira, e o pai falhara com ela, tal como Jaime estava
falhando agora. O pai não encontrou homem melhor. Em vez disso,
deu-me Rohert, e a maldição de Maggy desabrochou como uma flor
venenosa. Se ao menos tivesse me casado com Rhaegar, como os deuses
pretendiam, ele nunca teria olhado duas vezes para a pequena loba.
Rhaegar hoje seria o nosso rei, e eu seria a sua rainha, a mãe de
seus filhos.
Nunca
perdoara Robert por tê-lo matado.
Mas a
verdade era que os leões não eram bons em perdoar. Como Sor Bronn
da Água Negra logo descobriria.
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