domingo, 29 de setembro de 2013

28 - JON


Quando escutou a ordem, a boca de Sor Alliser torceu-se em algo que lembrava um sorriso, mas os olhos permaneceram frios e duros como sílex.
- Então o garoto bastardo vai me mandar para a morte.
Morte, gritou o corvo de Mormont. Morte, morte, morte.
Você não está ajudando. ]on espantou a ave.
- O garoto bastardo está mandando você para fora de alcance. Para encontrar nossos inimigos e matá-los, se necessário. Você é hábil com uma lâmina. Foi mestre de armas aqui e em Atalaialeste.
Thome tocou o cabo de sua espada longa.
- Sim. Desperdicei um terço da minha vida tentando ensinar os rudimentos da esgrima para xucros, estúpidos e patifes. Pouco benefício aquelas florestas podem me trazer.
- Dywen irá com você, e outro patrulheiro experiente.
- Ensinaremos o que você precisa aprender, sor - Dywen disse para Thome, gargalhando. - Ensinar você a limpar sua bunda bem-nascida com folhas, como um legítimo patrulheiro.
Kedge Olho-Branco riu daquilo, e Jack Negro Bulwer cuspiu. Sor Alliser apenas falou:
- Você gostaria que eu me recusasse. Então poderia cortar minha cabeça, do mesmo jeito que fez com Slynt. Não lhe darei esse prazer, bastardo. No entanto, você deveria rezar para que uma lâmina selvagem me mate. Aqueles que os Outros matam não permanecem mortos ... e eles se lembram. Eu voltarei, Lorde Snow.
- Rezarei para que volte. - Jon nunca considerara Sor Alliser Thome um de seus amigos, mas ainda era seu irmão. Ninguém nunca disse que você tem que gostar de seus irmãos.
Não era uma coisa fácil enviar os homens para campo, sabendo que as chances de nunca mais voltarem eram grandes. São homens experientes, Jon disse para si mesmo ... mas seu tio Benjen e seus patrulheiros também eram homens experientes, e a floresta assombrada os engolira sem deixar vestígio. Quando dois deles finalmente vagaram de volta para a Muralha, haviam sido transformados em criaturas. Não pela primeira vez, nem pela última, Jon Snow se pegou imaginando o que teria acontecido com Benjen Stark. Talvez os patrulheiros encontrem algum sinal dele, disse para si mesmo, sem realmente acreditar.
Dywen lideraria uma patrulha, Jack Negro Bulwer e Kedge Olho-Branco as outras duas. Pelo menos, estavam ansiosos pelo dever.
- É bom ter um cavalo embaixo de mim novamente - disse Dywen no portão, sugando seus dentes de madeira. - Com seu perdão, senhor, mas estávamos com farpas na bunda de tanto ficar sentados. - Nenhum homem no Castelo Negro conhecia a floresta como ele, as árvores e os riachos, as plantas que podiam ser comidas, as trilhas dos predadores e das presas. Thorne está em mãos melhores do que merece.
Jon assistiu à partida dos patrulheiros do alto da Muralha; três pequenos destacamentos, cada um com três homens, cada um levando um par de corvos. Do alto de seus garranos, não pareciam maiores que formigas, e Jon não conseguia distinguir um patrulheiro do outro. Mas ele os conhecia. Cada nome estava gravado em seu coração. Oito homens de bem, pensou, e um ... bem, veremos.
Quando o último patrulheiro desapareceu entre as árvores, Jon Snow entrou na gaiola de ferro com Edd Doloroso. Alguns flocos de neve esparsos caíam enquanto faziam sua lenta descida, dançando com o vento tempestuoso. Um deles seguiu a gaiola para baixo, mergulhando por entre as grades. Caía mais rápido do que eles desciam e, de tempos em tempos, desaparecia. Então uma rajada de vento o capturava e o empurrava para cima novamente. Jon poderia tê-lo alcançado pelas barras e o pegado, se quisesse.
- Tive um sonho assustador noite passada, senhor - Edd Doloroso confessou. - Você era meu intendente, buscando minha comida e limpando minhas sobras. Eu era o senhor comandante, sem nunca ter um momento de paz.
Jon não sorriu.
- Seu pesadelo, minha vida.
As galeras de Cotter Pyke relatavam um número cada vez maior de povo livre ao longo das costas arborizadas a nordeste da Muralha. Acampamentos haviam sido vistos, canoas meio construídas, e até mesmo um casco de um barco pesqueiro quebrado que alguém começara a consertar. Os selvagens sempre sumiam na floresta quando eram vistos, sem dúvida para reaparecer assim que os navios de Pyke passassem. Enquanto isso, Sor Denys Mallister ainda via fogueiras na noite ao norte da Garganta. Os dois comandantes pediam mais homens.
E onde vou conseguir mais homens? Jon enviara dez dos selvagens de Vila Toupeira para cada um deles; garotos inexperientes, velhos, alguns feridos e enfermos, mas todos capazes de realizar tarefas de um tipo ou de outro. Longe de ficarem gratos, tanto Pyke quanto Mallister escreveram para reclamar.
- Quando pedi homens, tinha em mente homens da Patrulha da Noite, treinados e disciplinados, cuja lealdade jamais teria motivo de duvidar - escrevera Sor Denys. Cotter Pyke fora mais direto: - Posso enforcá-los na Muralha como um aviso para que os outros selvagens fiquem afastados, mas não vejo outro uso para eles. - Meistre Harmune escrevera para ele: - Não confiaria neles para limpar meu penico, e dez não são suficientes.
A gaiola de ferro moveu-se para baixo, até o final de sua longa corrente, rangendo e batendo, até finalmente parar com um solavanco a trinta centímetros do chão na base da Muralha. Edd Doloroso abriu a porta e saltou para fora, suas botas quebrando a crosta de neve. Jon o seguiu.
Do lado de fora do arsenal, Emmett de Ferro ainda instava suas ordens no pátio. O som de aço contra aço despertou uma fome em Jon. Aquilo o fez se recordar de dias mais quentes e mais simples, quando era apenas um garoto em Winterfell, experimentando as lâminas com Robb, sob o olhar atento de Sor Rodrik Cassel. Sor Rodrik caíra também, assassinado por Theon Vira-Casaca e seus homens de ferro quando tentara retomar Winterfell. A grande fortaleza da Casa Stark era uma desolação queimada. Todas as minhas memórias estão envenenadas.
Quando Emmett de Ferro o viu, levantou a mão e o combate cessou.
- Senhor Comandante. Como posso servi-lo?
- Com seus três melhores.
Emmett sorriu.
- Arron. Emrick. Jace.
Cavalo e Salto de Pisco buscaram acolchoamento para o Senhor Comandante, juntamente com cota de malha para colocar por cima, grevas, armadura de pescoço e meio-elmo. Um escudo negro com acabamento de ferro para seu braço esquerdo, uma espada longa cega para sua mão direita. A espada brilhava cinza-prateado na luz do amanhecer, quase nova. Uma das últimas vindas da forja de Donal. Uma pena que ele não tenha vivido o suficiente para colocar gume nela. A lâmina era mais curta do que Garralonga, mas feita de aço comum, o que a tornava mais pesada. Seus golpes seriam um pouco mais lentos.
- Isso servirá. - Jon virou o rosto para seus inimigos. - Venham.
- Qual quer primeiro? - perguntou Arron.
- Os três. De uma única vez.
- Três de uma vez? - Jace estava incrédulo. - Isso não será leal. - Ele era um dos integrantes do último grupo de Conwy, filho de um sapateiro da Ilha Leal. Talvez isso explicasse.
- Verdade. Venha aqui.
Quando ele foi, a lâmina de Jon acertou o lado de sua cabeça, derrubando-o no chão. Em um piscar de olhos, o garoto tinha uma bota no peito e uma ponta de espada na garganta.
- A guerra nunca é leal - Jon lhe disse. - São dois contra um agora, e você está morto.
Quando ouviu o barulho de cascalho, soube que os gêmeos estavam vindo. Esses dois ainda serão patrulheiros. Ele girou, bloqueando o ataque de Arron com a ponta de seu escudo e encontrando a lâmina de Emrick com sua espada.
- Essas não são lanças - gritou. - Cheguem mais perto. - Foi para o ataque para mostrar a eles como deveria ser. Emrick primeiro. Golpeou sua cabeça e seus ombros, direita e esquerda, e direita novamente. O garoto levantou o escudo e tentou um contra-ataque desajeitado. Jon bateu seu próprio escudo no de Emrick e o derrubou com uma pancada na parte inferior da perna ... não por muito tempo, porque Arron estava sobre ele, com um golpe esmagador na parte de trás de sua coxa que o fez cair de joelhos. Isso vai deixar um hematoma. Segurou o golpe seguinte com o escudo, então saltou para trás e ficou em pé, conduzindo Arron pelo pátio. Ele é rápido, pensou, enquanto as espadas longas se beijavam uma, duas, três vezes, mas precisa ficar mais forte. Quando viu alívio nos olhos de Arron, soube que Emrick estava atrás dele. Virou-se e o acertou com um golpe atrás dos ombros que o mandou de encontro ao irmão. Nesse momento, Jace se levantou, então Jon o derrubou novamente. - Odeio quando homens mortos se levantam. Você sentirá o mesmo no dia em que encontrar uma criatura. - Andando para trás, abaixou sua espada.
- O grande corvo pode bicar os corvinhos - resmungou uma voz atrás dele - mas tem estômago suficiente para lutar com um homem?
Camisa de Chocalho estava encostado em uma parede. Uma grosseira barba por fazer cobria seu rosto sulcado, e fino cabelo castanho agitava-se sobre seus pequenos olhos amarelos.
- Você se lisonjeia - disse Jon.
- Sim, mas vou achatar você.
- Stannis queimou o homem errado.
- Não. - O selvagem sorriu para ele com a boca cheia de dentes marrons e quebrados. - Ele queimou o homem que tinha que queimar, para rodo mundo ver. Fazemos o que temos que fazer, Snow. Até mesmo reis.
- Emmett, ache uma armadura para ele. Quero-o em aço, não em ossos velhos.
Uma vez vestido em cota de malha e placas, o Senhor dos Ossos parecia ter ficado um pouco mais ereto. Parecia mais alto também, seus ombros mais grossos e mais poderosos do que Jon teria imaginado. É a armadura, não o homem, disse para si mesmo. Até mesmo Sam poderia parecer quase formidável, vestido da cabeça aos pés no aço de Donal Noye. O selvagem afastou o escudo que Cavalo ofereceu para ele. Em vez disso, pediu uma espada de duas mãos.
- Ela tem um som doce - disse, golpeando o ar. - Bata as asas mais perto, Snow. Pretendo fazer suas penas voarem.
Jon o atacou com força.
Camisa de Chocalho deu um passo para trás e voltou à carga com um golpe com as duas mãos. Se Jon não tivesse interposto seu escudo, sua placa de peito seria destruída e metade de suas costelas, quebradas. A força do golpe o atordoou por um momento, e enviou um solavanco sólido por seu braço. Ele bate mais forte do que eu imaginava. Sua rapidez era outra surpresa desagradável. Eles circularam ao redor um do outro, trocando golpe por golpe. O Senhor dos Ossos dava tanto quanto recebia. Pela lógica, a grande espada de duas mãos teria sido algo mais incômodo do que a espada longa de Jon, mas o selvagem a empunhava com velocidade estonteante.
Os alunos de Emmett de Ferro aplaudiram o senhor comandante no início, mas o ataque implacável de Camisa de Chocalho logo os levou ao silêncio. Ele não pode manter isso por muito tempo, Jon disse para si mesmo enquanto aparava outro golpe. O impacto o fez gemer. Mesmo cega, a grande espada rachou o escudo de pinho e entortou o aro de ferro. Ele se cansará logo. Tem que se cansar. Jon golpeou na direção do rosto do selvagem, e Camisa de Chocalho afastou a cabeça para trás. Golpeou na direção da panturrilha de Camisa de Chocalho, apenas para que ele saltasse habilmente sobre a lâmina. A grande espada atingiu o ombro de Jon, com força suficiente para fazer sua espaldeira tinir e entorpecer o braço embaixo. Jon se afastou. O Senhor dos Ossos foi atrás, rindo. Ele não tem escudo, Jon lembrou a si mesmo, e aquela espada monstruosa é muito desajeitada para defesas. Eu deveria estar dando dois golpes para cada um dele.
Mas, de alguma maneira, não estava, e os golpes que dava não causavam efeito. O selvagem parecia estar sempre escapando ou escorregando para os lados, então a espada longa de Jon resvalava fora de um ombro ou de um braço. Em pouco tempo, ele se pegou dando mais área, tentando evitar os ataques do outro e falhando na metade das vezes. Seu escudo estava reduzido a gravetos. Jogou-o fora. O suor escorria pelo seu rosto e ardia seus olhos embaixo do elmo. Ele é muito forte e muito rápido, percebeu, e com aquela espada grande tem peso e alcance. Teria sido uma luta diferente se estivesse armado com Garralonga, mas ...
Sua chance veio quando Camisa de Chocalho balançou a espada para trás. Jon atirou-se em sua direção, atracando-se ao outro homem, e eles caíram juntos, pernas entrelaçadas. Aço bateu contra aço. Os dois homens perderam suas espadas enquanto rolavam no chão. O selvagem levou um joelho entre as pernas do inimigo. Jon atacou com o punho cerrado. De alguma maneira, Camisa de Chocalho terminou por cima, com a cabeça de Jon entre as mãos. Ele a esmagou contra o chão, e abriu seu visor com violência.
- Se eu tivesse uma adaga, você estaria sem um olho agora - rosnou, antes que Cavalo e Emmett de Ferro o arrancassem de cima do peito do Senhor Comandante. - Me soltem, seus malditos corvos - rugiu.
Jon se esforçou para ficar sobre um joelho. Sua cabeça latejava e sua boca estava cheia de sangue. Cuspiu e disse:
- Boa luta.
- Você se lisonjeia, corvo. Eu nem suei.
- Na próxima vez, suará - disse Jon. Edd Doloroso o ajudou a ficar em pé e a tirar o elmo. Este havia adquirido várias marcas profundas que não estavam lá quando Jon o vestira. - Soltem-no. - Jon jogou o elmo para Salto de Pisco, que o deixou cair.
- Senhor - disse Emmett de Ferro - ele ameaçou sua vida, todos ouvimos. Ele disse que se tivesse uma adaga ...
- Ele tem uma adaga. Bem ali, no cinturão. - Há sempre alguém mais rápido e mais forte, Sor Rodrik dissera certa vez a Jon e Robb. Esse é o homem que vocês querem enfrentar no pátio, antes que precisem encará-lo em um campo de batalha.
- Lorde Snow? - disse uma voz suave.
Ele se virou para encontrar Clydas parado ao lado da arcada quebrada, com um pergaminho nas mãos.
- De Stallnis? - Jon estivera esperando notícias do rei. A Patrulha da Noite não tomava partido, ele sabia, e ele não .deveria se importar com qual rei triunfaria. Mas de alguma maneira, ele se importava. - E do Forte do Pavor?
- Não, senhor. - Clydas estendeu o pergaminho adiante. Estava firmemente enrolado e selado, com um botão de cera rosa dura. Apenas o Forte do Pavor usa selo de cera rosa. Jon tirou a manopla, pegou a carta e rompeu o selo. Quando viu a assinatura, esqueceu a surra que Camisa de Chocalho lhe dera.
Ramsay Bolton, Lorde de Hornwood, lia-se, em uma caligrafia imensa e pontiaguda. A tinta marrom se desfez em pedaços quando Jon passou o polegar sobre ela. Embaixo da assinatura de Bolton, Lorde Dustin, a Senhora Cerwyn e quatro Ryswell haviam adicionado suas próprias assinaturas. Uma mão grosseira desenhara o gigante da Casa Umber.
- Podemos saber o que diz, senhor? - perguntou Emmett de Ferro.
Jon não viu motivo para não contar.
- Fosso Cailin caiu. Os cadáveres esfolados dos homens de ferro foram pregados em postes ao longo da estrada do rei. Roose Bolton convoca todos os senhores leais para Vila Acidentada, para confirmar a lealdade ao Trono de Ferro e celebrar o casamento de seu filho com ... - seu coração pareceu parar por um momento. Não, isso não é possível. Ela morreu em Porto Real, com o pai.
- Lorde Snow? - Clydas o observava de perto, com seus opacos olhos rosados. - Está ... indisposto? Parece ...
- Ele vai se casar com Arya Stark. Minha irmãzinha. - Jon quase podia vê-la naquele momento, rosto comprido, desajeitada, toda joelhadas e cotoveladas, com a cara suja e o cabelo emaranhado. Eles lavariam um e escovariam o outro, não duvidava, mas não podia imaginar Arya em um vestido de noiva, nem na cama de Ramsay Bolton. Não importa o quão assustada esteja, ela não demonstrará. E se ele tentar colocar uma mão nela, ela lutará.
- Sua irmã - disse Emmett de Ferro - que idade ela ...
Agora deve estar com onze, Jon pensou. Ainda uma criança.
- Não tenho irmã. Apenas irmãos. Apenas vocês. - A Senhora Catelyn se regozijaria em ouvir aquelas palavras, ele sabia. Aquilo não as tornava mais fáceis de serem ditas. Seus dedos se fecharam ao redor do pergaminho. Gostaria de poder esmagar a garganta de Ramsay Bolton com a mesma facilidade.
Clydas limpou a garganta.
- Haverá resposta?
Jon abanou a cabeça e saiu andando.
Ao cair da noite, as contusões que Camisa de Chocalho lhe dera estavam roxas.
- Ficarão amarelas antes de sumir - ele disse para o corvo de Mormont. - Parecerei tão doentio quanto o Senhor dos Ossos.
Ossos, a ave concordou. Ossos, ossos.
Ele podia ouvir um leve murmúrio de vozes vindo do lado de fora, embora o som fosse fraco demais para formar palavras. Eles soam com se estivessem a centenas de quilômetros de distância. Era a Senhora Melisandre e seus seguidores, nas fogueiras noturnas. Toda noite, a mulher vermelha comandava seus seguidores em suas orações do crepúsculo, pedindo ao deus vermelho que os guiasse pela escuridão. Pois a noite é escura e cheia de terrores. Com a partida de Stannis e da maioria dos homens da rainha, seu rebanho estava bem reduzido; meia centena do povo livre de Vila Toupeira, um punhado de guardas que o rei deixara para ela, talvez uma dúzia de irmãos negros que haviam tomado o deus vermelho para si.
Jon se sentia tão endurecido quanto um homem de sessenta anos. Sonhos escuros, pensou, e culpa. Seus pensamentos retornavam para Arya. Não há maneira de ajudá-la. Coloquei todos os meus parentes de lado quando fiz meus votos. Se um de meus homens me dissesse que sua irmã estava em perigo, eu responderia que isso não lhe diz respeito. Uma vez que um homem fazia seus votos, seu sangue era negro. Negro como o coração de um bastardo. Certa vez ele pedira a Mikken para fazer uma espada para Arya, uma lâmina de espadachim, feita num tamanho menor para caber na mão dela. Agulha. Ele se perguntava se ela ainda a possuía. Espete neles a ponta aguçada, dissera a ela, mas se ela tentasse espetar o Bastardo, isso poderia custar sua vida.
Snow, murmurou o corvo de Lorde Mormont. Snow, snow.
De repente, não podia sofrer por nem mais um momento.
Encontrou Fantasma do lado de fora da porta, roendo um osso de boi para alcançar o tutano.
- Quando você voltou? - O lobo gigante ficou em pé, abandonando o osso para seguir Jon.
Mully e Barricas permaneciam do lado de dentro das portas do arsenal, inclinados em suas lanças.
- Um frio cruel lá fora, senhor - avisou Mully, através de sua emaranhada barba laranja. - Vai demorar muito?
- Não. Só preciso de um pouco de ar. - Jon saiu para a noite. O céu estava cheio de estrelas, e o vento vinha em rajadas ao longo da Muralha. Até mesmo a lua parecia fria a pele do seu rosto estava toda arrepiada. Então a primeira rajada de vento o atingiu, passando por camadas de lã e couro para deixá-lo batendo os dentes. Ele atravessou o pátio, no sentido contrário daquele vento forte. Sua capa agitava-se ruidosamente em seus ombros. Fantasma veio atrás. Onde estou indo? O que estou fazendo? Castelo Negro estava quieto e silencioso, seus salões e torres, escuras. Meu assento, Jon Snow refletiu. Meu salão, minha casa, meu comando. Uma ruína.
À sombra da Muralha, o lobo gigante roçou o corpo contra seus dedos. Por meio segundo, a noite ganhou vida com um milhão de odores, e Jon Snow ouviu o craquelar de uma crosta se quebrando em um trecho de neve antiga. Alguém estava atrás dele, percebeu repentinamente. Alguém que tinha um cheiro quente como um dia de verão.
Quando se virou, viu Ygritte.
Ela estava ao lado das pedras queimadas da Torre do Senhor Comandante, oculta na escuridão e na memória. A luz da lua estava em seus cabelos, seus cabelos vermelhos beijados pelo fogo. Quando viu aquilo, o coração de Jon foi parar em sua boca.
- Ygritte - disse.
- Lorde Snow. - A voz era de Melisandre.
A surpresa o fez afastar-se dela.
- Senhora Melisandre. - Deu um passo para trás. - Confundi você com outra pessoa. - À noite, todas as vestes são cinza. E subitamente a dela era vermelha. Ele não entendia como podia tê-la tomado por Ygritte. Era mais alta, mais magra, mais velha, embora o luar tirasse anos de seu rosto. Bruma saía das narinas dela e de suas pálidas mãos nuas na noite. - Você congelará com os dedos de fora - Jon avisou.
- Se esse for o desejo de R'hllor. Os poderes da noite não podem tocar aqueles cujo coração está banhado no fogo sagrado do deus.
- Seu coração não me diz respeito. Apenas suas mãos.
- O coração é tudo o que importa. Não se desespere, Lorde Snow. O desespero é a arma do inimigo, aquele cujo nome não pode ser dito. Sua irmã não está perdida para você.
- Não tenho irmã. - As palavras eram como facas. O que você sabe sobre meu coração, sacerdotisa? O que sabe sobre minha irmã?
Melisandre pareceu divertir-se.
- Qual o nome dela, dessa irmãzinha que você não tem?
- Arya. - A voz dele estava rouca. - Minha meio-irmã, na verdade...
- ... pois você é um bastardo. Não me esqueci disso. Eu vi sua irmã em minhas chamas, fugindo desse casamento que arranjaram para ela. Vindo para cá, para você. Uma garota de cinza, em um cavalo moribundo, vi isso tão claro quanto o dia. Não aconteceu ainda, mas acontecerá. - Ela olhou para Fantasma. - Posso tocar seu ... lobo?
A ideia deixou Jon inquieto.
- Melhor não.
- Ele não me fará mal. Você o chama de Fantasma, certo?
- Sim, mas ...
- Fantasma. - Melisandre transformou a palavra em música.
O lobo gigante caminhou na direção dela. Cauteloso, espreitava-a, andando ao redor dela, farejando. Quando ela esticou a mão para que a cheirasse também, ele esfregou o focinho contra seus dedos.
Jon soltou um suspiro branco.
- Ele nem sempre é tão ...
- ... caloroso? Calor chama calor, Jon Snow. - Os olhos dela eram duas estrelas vermelhas, brilhando na escuridão. Em sua garganta, o rubi resplandecia, um terceiro olho ainda mais brilhante do que os outros. Jon viu os olhos do Fantasma ardendo, vermelhos do mesmo jeito, quando a luz caiu sobre eles.
- Fantasma - chamou. - Aqui.
O lobo gigante o olhou como se ele fosse um estranho.
Jon franziu a testa, em descrença.
- Isso é... estranho.
- Você acha? - Ela se ajoelhou e coçou Fantasma atrás da orelha. - Sua Muralha é um lugar estranho, mas há poder aqui, se você usá-lo. Poder em você e neste animal. Você resiste a isso, e esse é seu erro. Abrace-o. Use-o.
Não sou um lobo, ele pensou.
- E como eu faria isso?
- Posso mostrar a você. - Melisandre passou o braço fino ao redor de Fantasma, e o lobo gigante lambeu seu rosto. - O Senhor da Luz, em sua sabedoria, nos fez macho e fêmea, duas partes de um todo maior. Na nossa união há poder. Poder para criar vida. Poder para criar luz. Poder para projetar sombras.
- Sombras. - A palavra pareceu mais escura quando ele a falou.
- Todo homem que caminha sobre a terra projeta uma sombra no mundo. Algumas são finas e frágeis, outras são longas e escuras. Deve olhar atrás de você, Lorde Snow. A lua o beijou e projetou sua sombra com seis metros de altura sobre o gelo.
Jon olhou sobre seu ombro. A sombra estava ali, exatamente como ela dissera, projetada no luar contra a Muralha. Uma garota de cinza em um cavalo moribundo, pensou. Vindo para cá, para você. Arya. Voltou as costas para a sacerdotisa vermelha. Jon podia sentir o calor dela. Ela tem poder. O pensamento veio espontaneamente, agarrando-o com dentes de ferro, mas esta não era uma mulher com a qual ele se importava em ser grato, nem mesmo por sua irmãzinha.
- Certa vez, Dalla me disse uma coisa. A irmã de Val, esposa de Mance Rayder. Ela disse que a feitiçaria era uma espada sem cabo. Não há jeito seguro de pegá-la.
- Uma mulher sábia. - Melisandre se levantou, sua túnica vermelha movendo-se ao vento. - Mas uma espada sem cabo ainda é uma espada, e uma espada é uma coisa boa quando os inimigos estão por aí. Ouça-me, Jon Snow. Nove corvos voaram pela floresta branca para encontrar seus inimigos para você. Três deles estão mortos. Não estão mortos ainda, mas a morte está lá, esperando por eles, e eles cavalgarão ao encontro dela. Você os mandou adiante para serem seus olhos na escuridão, mas estarão sem olhos quando voltarem para você. Eu vi seus pálidos rostos mortos nas minhas chamas. Buracos vazios, chorando sangue. - Ela jogou o cabelo vermelho para trás, e seus olhos vermelhos brilharam. - Você não acredita em mim. Você acreditará. O custo desta crença será três vidas. Um preço pequeno para pagar pela sabedoria, alguns poderiam dizer... mas não o que você terá que pagar. Lembre-se disso quando encarar os rostos cegos e devastados de seus mortos. E quando esse dia chegar, pegue minha mão. - A névoa levantou-se de sua carne pálida e, por um momento, parecia que chamas suaves e mágicas brincavam em seus dedos. - Pegue minha mão - ela disse novamente - e deixe-me salvar sua irmã. 

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