domingo, 29 de setembro de 2013

29 - DAVOS


Mesmo na escuridão da Toca do Lobo, Davos Seaworth podia sentir que algo estava errado naquela manhã.
Acordou com o som de vozes e arrastou-se até a porta de sua cela, mas a madeira era grossa demais para que pudesse distinguir as palavras. O amanhecer chegara, mas não o mingau que Garth lhe trazia todas as manhãs para quebrar seu jejum. Aquilo o deixou ansioso. Todos os dias eram parecidos na Toca do Lobo, e qualquer mudança era normalmente para pior. Este pode ser o dia da minha morte. Garth pode estar sentado com uma pedra de amolar, preparando a Senhora Lu.
O Cavaleiro das Cebolas não esquecera as últimas palavras de Wyman Manderly. Leve essa criatura para a Toca do Lobo e corte sua cabeça e suas mãos, o gordo senhor ordenara. Não serei capaz de comer nem um bocado até ver a cabeça desse contrabandista em uma estaca, com uma cebola enfiada entre seus dentes mentirosos. Todas as noites, Davos dormia com essas palavras na cabeça, e todas as manhãs acordava com elas. E se esquecesse, Garth sempre tinha prazer em lembrá-lo. Homem morto era o apelido que dera a Davos. Quando vinha pela manhã, era sempre “Aqui o mingau para o homem morto”. E à noite era “Apague a vela, homem morto”.
Certa vez, Garth trouxera suas senhoras para apresentá-las ao homem morto.
- A Puta não parece grande coisa - dissera, acariciando uma haste de frio ferro negro - mas quando eu esquentar ela até ficar vermelha e encostar no seu pau, você chorará por sua mãe. E esta aqui é minha Senhora Lu. É com ela que cortarei sua cabeça e suas mãos, quando Lorde Wyman enviar a ordem.
Davos nunca vira um machado maior do que a Senhora Lu, nem nenhum com a lâmina tão afiada. Garth passava os dias amolando-a, o outro carcereiro lhe dissera. Não implorarei por misericórdia, Davos decidiu. Iria para a morte como um cavaleiro, pedindo apenas que cortassem sua cabeça antes das mãos. Nem mesmo Garth seria tão cruel para lhe negar isso, esperava.
Os sons que entravam pela porta eram fracos e abafados. Davos se levantou e caminhou pela cela. Ainda que fosse uma cela, o cômodo era grande e estranhamente confortável. Ele suspeitava que fora, em algum momento, o quarto de dormir de algum fidalgote. Era três vezes o tamanho de sua cabine de capitão no Betha Negra, e até mesmo maior do que a cabine que Salladhor Saan desfrutava em sua Valiriana. Ainda que a janela tivesse sido fechada com tijolos havia anos, uma parede ainda tinha uma lareira grande o suficiente para manter uma chaleira, e havia até mesmo uma latrina de verdade construída em um dos cantos. O chão era feito de tábuas deformadas, cheias de farpas, e seu catre de dormir tinha cheiro de mofo, mas os desconfortos eram leves, se comparados ao que Davos esperara.
A comida fora uma surpresa também. Em vez de sopa de aveia, pão amanhecido e carne podre, o cardápio usual dos calabouços, seus carcereiros lhe traziam peixe fresco, pão quente recém-saído do forno, carne de cordeiro temperada, nabos, cenouras e até caranguejos. Garth não gostava nem um pouco disso.
- Os mortos não deviam comer melhor do que os vivos - reclamou, mais de uma vez.
Davos tinha peles para mantê-lo aquecido à noite, madeira para alimentar o fogo, roupas limpas e uma vela de sebo gordurosa. Quando pediu papel, pena e tinta, Therry lhe trouxe no dia seguinte. Quando pediu um livro, para manter sua leitura, Therry retornou com a Estrela de Sete Pontas.
Apesar de todos esses confortos, a cela continuava sendo uma cela. As paredes eram de pedra sólida, tão espessas que não conseguia ouvir nada do mundo exterior. A porta era de carvalho e ferro, e seus carcereiros a mantinham trancada. Quatro conjuntos de pesados grilhões de ferro pendiam do teto, esperando pelo dia que Lorde Manderly decidisse acorrentá-lo e entregá-lo à Puta. Hoje pode ser o dia. Da próxima vez que Garth abrir a porta, pode não ser para me trazer mingau.
Sua barriga roncava, sinal certo de que a manhã se arrastava e ainda nenhum sinal de comida. A pior parte não era a morte, mas não saber quando ou como. Estivera dentro de algumas poucas prisões e calabouços em seus dias de contrabandista, mas todas as vezes dividira o espaço com outros prisioneiros, então sempre havia alguém com quem conversar, partilhar medos e esperanças. Não aqui. Além de seus carcereiros, Davos Seaworth tinha a Toca do Lobo para si.
Ele sabia que havia três calabouços nos porões do castelo; masmorras, câmaras de tortura e poços úmidos onde ratos imensos arranhavam na escuridão. Seus carcereiros afirmaram que estavam todos desocupados no momento.
- Apenas nós aqui, Cebolas. - Sor Bartimus lhe dissera. Era o carcereiro-chefe, um cavaleiro cadavérico de uma perna só, com o rosto marcado por cicatrizes e um olho cego. Quando Sor Bartimus abusava nos copos (e Sor Bartimus abusava mais nos copos a cada dia), gostava de se gabar sobre como salvara a vida de Lorde Wyman na Batalha do Tridente. A Toca do Lobo fora sua recompensa.
O restante do “nós” consistia em um cozinheiro que Davos nunca vira, seis guardas na caserna do primeiro piso, duas lavadeiras e os dois carcereiros que cuidavam do prisioneiro. Therry era o mais jovem, filho de uma das lavadeiras, um garoto de catorze. O mais velho era Garth, imenso, careca e taciturno, que vestia o mesmo justilho de couro engordurado todos os dias e sempre parecia ter um olhar ameaçador no rosto.
Os anos como contrabandista deram a Davos Seaworth a sensibilidade para saber quando um homem era falso, e Garth era falso. O Cavaleiro das Cebolas tomava o cuidado de segurar a língua em sua presença. Com Therry e Sor Bartimus era menos reticente. Agradecia-os pela comida, encorajava-os a falar sobre suas esperanças e histórias, respondia às perguntas deles com polidez e nunca pressionava demais com suas próprias questões. Quando fazia pedidos, eram sempre pequenos; uma bacia com água e um pedaço de sabão, um livro para ler, mais velas. A maioria desses favores foi concedida e Davos ficou devidamente grato.
Nenhum dos homens falava sobre Lorde Manderly, sobre o Rei Stannis ou sobre os Frey, mas conversavam a respeito de outras coisas. Therry queria partir para a guerra quando tivesse idade suficiente, para lutar em batalhas e tornar-se cavaleiro. Gostava de reclamar de sua mãe também. Ela estava indo para a cama com dois guardas, confidenciou. Os homens eram de turnos diferentes, e nenhum sabia sobre o outro, mas um homem ou o outro podia juntar as peças e haveria sangue. Algumas vezes, o rapaz levava um odre de vinho para a cela e perguntava a Davos sobre a vida de contrabandista enquanto bebiam.
Sor Bartimus não tinha interesse pelo mundo externo nem por nada que acontecera desde que perdera a perna para um cavalo sem cavaleiro e para o serrote de um meistre. Mas amava a Toca do Lobo e não havia nada que gostasse mais do que falar sobre a história sangrenta do lugar. A Toca era muito mais antiga do que Porto Branco, o cavaleiro contou a Davos. Fora erguida pelo Rei Jon Stark para defender a foz do Faca Branca contra corsários vindos do mar. Muitos dos filhos mais jovens do Rei do Norte fizeram do lugar sua morada, muitos irmãos, muitos tios, muitos primos. Alguns passaram o castelo para seus próprios filhos e herdeiros, e ramificações de ramificações da Casa Stark surgiram; os Greystark tinham durado mais tempo, mantendo a Toca do Lobo por cinco séculos, até ousarem se juntar a Forte do Pavor em uma rebelião contra os Stark de Winterfell.
Após a queda deles, o castelo passara por várias outras mãos. A Casa Flint o mantivera por um século, a Casa Locke por quase dois. Slate, Long, Holt e Ashwood também dominaram o lugar, encarregados por Winterfell de manter o rio seguro. Saqueadores das Três Irmãs tomaram o castelo uma vez, transformando-o em base de apoio no Norte. Durante as guerras entre Winterfell e o Vale, a Toca foi cercada por Osgood Arry, o Velho Falcão, e queimada por seu filho, aquele que era lembrado como a Garra. Quando o velho Rei Edrick Stark estava enfraquecido demais para defender o reino, a Toca do Lobo foi capturada por traficantes de escravos de Passopedra. Marcavam seus cativos com ferro quente e os quebravam com o chicote antes de embarcá-los para o outro lado do mar, e tiveram essas mesmas pedras negras como testemunhas.
- Então, um longo e cruel inverno chegou - contou Sor Bartimus. - O Faca Branca endureceu, e até o estuário estava congelando. Os ventos vieram uivando do norte, e levaram os traficantes de escravo para dentro do castelo, amontoados em suas fogueiras, e enquanto se aqueciam o novo rei caiu sobre eles. Brandon Stark, era ele, o bisneto de Edrick Barba de Neve, aquele que os homens chamavam de Olhos de Gelo. Ele retomou Toca do Lobo, deixou os traficantes sem roupas e os entregou aos escravos que encontrou acorrentados nos calabouços. Dizem que os escravos libertos penduraram as entranhas dos traficantes nos galhos das árvore-coração, como uma oferenda aos deuses. Os antigos deuses, não esses novos do Sul. Seus Sete não conhecem o inverno, e o inverno não os conhece.
Davos não podia argumentar com a verdade daquilo. E, pelo que vira em Atalaialeste do Mar, ele também não fazia questão de conhecer o inverno.
- Que deuses você mantém? - perguntou ao cavaleiro de uma perna.
- Os antigos. - Quando Sor Bartimus sorria, parecia um caveira. - Eu e os meus que estiveram aqui antes dos Manderly. Provavelmente, meus próprios antepassados penduraram aquelas entranhas nas árvores.
- Nunca ouvi dizer que os nortenhos faziam sacrifício de sangue para suas árvores-coração.
- Há muito e ainda mais que vocês, sulistas, não sabem sobre o Norte. - Sor Bartimus respondeu.
Ele não estava errado. Davos sentou-se ao lado de sua vela e olhou as cartas que rabiscara palavra após palavra durante os dias de seu confinamento. Eu fui um contrabandista melhor do que um cavaleiro, escrevera para sua esposa, um cavaleiro melhor do que Mão do Rei, uma Mão do Rei melhor do que um marido. Sinto muito. Maria, eu amei você. Por favor, perdoe os erros que cometi. Se Stannis perder a guerra, nossas terras estarão perdidas também. Leve os meninos através do mar estreito até Bravos e os ensine a pensar gentilmente em mim, se você puder. Se Stannis conquistar o Trono de Ferro, a Casa Seaworth sobreviverá e Devan permanecerá na corte. Ele a ajudará a encontrar um lugar para os outros meninos com nobres senhores, onde poderão servir como pajens e escudeiros, e até conquistar o direito de serem sagrados cavaleiros. Era o melhor conselho que tinha para ela, embora quisesse que soasse mais sábio.
Também escrevera para cada um de seus três filhos sobreviventes, para ajudá-los a se lembrar do pai que comprara um nome para eles com as pontas dos dedos. Os bilhetes para Steffon e para o jovem Stannis eram curtos, duros e estranhos; verdade seja dita, ele não os conhecia nem metade tão bem quanto conhecera os filhos mais velhos, aqueles que queimaram ou se afogaram na Água Negra. Para Devan, escreveu mais, dizendo quão orgulhoso estava em ver seu próprio filho como escudeiro do rei e recordando-o que, como mais velho, era seu dever proteger a senhora sua mãe e seus irmãos mais novos. Diga a Sua Graça que fiz meu melhor, terminou. Sinto ter falhado com ele. Perdi minha sorte quando perdi meus ossos dos dedos, no dia em que o rio queimou em Porto Real.
Davos mexeu e remexeu nas cartas lentamente, lendo cada uma delas várias vezes, perguntando-se se deveria mudar uma palavra aqui ou adicionar outra ali. Um homem deveria ter mais a dizer quando encara o fim de sua vida, pensou, mas as palavras vinham com dificuldade. Não me saí mal, tentou dizer a si mesmo. Comecei na Baixada das Pulgas e consegui ser Mão do Rei, e aprendi a ler e a escrever.
Ainda estava debruçado sobre as cartas quando ouviu o som das chaves de ferro batendo no aro. Meio segundo depois, a porta da cela se abriu.
O homem que atravessou a porta não era um de seus carcereiros. Era alto e magro, com o rosto profundamente vincado e um grosso cabelo castanho-acinzentado. Uma espada longa pendia de seu quadril, e seu manto tingido de escarlate estava preso no ombro com um pesado broche de prata com a forma de um punho fechado.
- Lorde Seaworth - disse - não temos muito tempo. Por favor, venha comigo. Davos olhou o estranho cautelosamente. O “por favor” o confundira. Tais cortesias não são oferecidas a homens prestes a perder a cabeça e as mãos.
- Quem é você?
- Robett Glover, ao seu dispor.
- Glover. Seu assento era Bosque Profundo.
- O assento de meu irmão Galbart. Era e é, graças ao seu Rei Stannis. Ele tomou Bosque Profundo da puta de ferro que o roubou e ofereceu devolvê-lo aos donos de direito. Muito e ainda mais aconteceu enquanto você estava confinado entre essas paredes, Lorde Davos. Fosso Cailin caiu e Roose Bolton retornou para o Norte com a filha mais nova de Ned Stark. Uma tropa dos Frey veio com ele. Bolton enviou sete corvos, convocando todos os senhores do Norte para Vila Acidentada. Exige homenagens e reféns ... e testemunhas para o casamento de Arya Stark com seu bastardo Ramsay Snow, união que os Bolton pretendem usar para exigir Winterfell. Agora, virá comigo ou não?
- Que escolha tenho, senhor? Ir com você ou permanecer com Garth e a Senhora Lu.
- Quem é a Senhora Lu? Uma das lavadeiras? - Glover estava ficando impaciente. - Tudo será explicado se vier comigo.
Davos ficou em pé.
- Se eu morrer, imploro ao senhor que se assegure de que minhas cartas sejam entregues.
- Tem minha palavra quanto a isso ... embora, se você morrer, não será pelas mãos dos Glover nem de Lorde Wyman. Rápido, agora, siga-me.
Glover o levou através de um longo salão escuro e desceu um lance de degraus desgastados. Cruzaram o bosque sagrado do castelo, onde a árvore-coração crescera tão imensa e emaranhada que estrangulara todos os carvalhos, olmos e bétulas, e enviara seus grossos galhos pálidos de encontro às paredes e janelas que olhavam para ela. Suas raízes tinham a grossura da cintura de um homem, o tronco tão largo que o rosto esculpido nele parecia gordo e zangado. Para lá do represeiro, Glover abriu um rústico portão de ferro e parou para acender uma tocha. Quando estava queimando vermelha e quente, fez Davos descer mais degraus até um porão abobadado, onde paredes chorosas estavam brancas com crostas de sal e a água do mar espirrava em poças sob seus pés a cada passo. Passaram por vários porões e filas de celas pequenas, úmidas e malcheirosas, muito diferentes do aposento em que Davos estivera confinado. Então encontraram uma parede de pedra branca que se moveu quando Glover a empurrou. Atrás dela havia um túnel longo e estreito e mais degraus. Estes levavam para cima.
- Onde estamos? - Davos perguntou enquanto subiam. Suas palavras ecoaram suavemente pela escuridão.
- Degraus sob degraus. A passagem passa por baixo do Castelo da Escada até o Castelo Novo. Um caminho secreto. Você não deve ser visto, meu senhor. Supostamente, está morto.
Mingau para um homem morto. Davos subiu.
Emergiram passando por outra parede, mas esta era forrada com ripas e gesso do lado de fora. A sala do outro lado era aconchegante, quente e confortavelmente mobiliada, com um tapete de Myr no chão e velas de cera de abelha queimando em uma mesa. Davos podia ouvir flautas e violinos tocando não muito distantes. Na parede estava pendurada uma pele de ovelha com o mapa no Norte pintado em cores desbotadas. Embaixo do mapa, sentava-se Wyman Manderly, o colossal Senhor de Porto Branco.
- Por favor, sente-se. - Lorde Manderly estava ricamente vestido. Seu gibão de veludo era de um suave azul-esverdeado, bordado com fios de ouro na bainha, nas mangas e na gola. Seu manto era de arminho, preso no ombro com um tridente dourado. - Está com fome?
- Não, meu senhor. Seus carcereiros me alimentaram bem.
- Temos vinho, se tiver sede.
- Tratarei com você, meu senhor. Meu rei me ordenou que fizesse isso. Não tenho que beber com você.
Lorde Wyman suspirou.
- Tratei você de maneira vergonhosa, eu sei. Tive minhas razões, mas ... por favor, sente-se e beba, eu imploro. Beba ao retorno a salvo do meu menino. Wylis, meu filho mais velho e herdeiro. Ele está em casa. É o banquete de boas-vindas que você ouve. Na Corte do Tritão, eles comem torta de lampreia e veado com castanhas assadas. Wynafryd está dançando com o Frey com quem se casará. Os outros Frey estão erguendo suas taças de vinho para brindar nossa amizade.
Sob a música, Davos podia ouvir o murmúrio de muitas vozes, o barulho de copos e pratos. Não disse nada.
- Acabo de vir da grande mesa - Lorde Wyman continuou. - Comi muito, como sempre, e toda Porto Branco sabe como meus intestinos são ruins. Meus amigos Frey não questionarão uma demorada visita às latrinas, esperamos. - Virou sua taça de cabeça para baixo. - Pronto. Você beberá e eu não. Sente-se. O tempo é curto e há muito sobre o que conversar. Robett, vinho para a Mão, se puder fazer a gentileza. Lorde Davas, você não sabe, mas está morto.
Robett Glover encheu uma taça de vinho e ofereceu a Davos. Ele pegou, cheirou e bebeu.
- Como morri, posso perguntar?
- Pelo machado. Sua cabeça e mãos foram colocadas sobre o Portão das Focas, com o rosto virado, para que seus olhos olhassem o porto. Agora você está bem apodrecido, embora tenhamos mergulhado sua cabeça em alcatrão antes de colocá-la na ponta de ferro. Dizem que corvos carniceiros e aves marítimas disputaram seus olhos.
Davos se mexeu, desconfortavelmente. Era uma sensação estranha estar morto.
- Se meu senhor não se importa, quem morreu em meu lugar?
- Faz diferença? Você tem um rosto comum, Lorde Davos. Espero que dizer isso não o ofenda. O homem tinha a sua cor de pele, um nariz com o mesmo formato, duas orelhas que não eram muito diferentes, uma longa barba que podia ser cortada e aparada como a sua. Pode estar certo de que colocamos bastante alcatrão nele, e a cebola entre os dentes serviu para distorcer as feições. Sor Bartimus assegurou-se de que os dedos da mão esquerda dele estivessem mais curtos, assim como os seus. O homem era um criminoso, se lhe dá algum consolo. Sua morte pode realizar um bem maior do que jamais fez enquanto vivo. Meu senhor, peço que não me deseje nenhum mal. O rancor que mostrei contra você na Corte do Tritão foi uma farsa, feita para agradar nossos amigos Frey.
- Meu senhor poderia ganhar a vida como ator - disse Davos. - Você e os seus foram muito convincentes. Sua boa filha parecia seriamente querer me ver morto, e a menininha ...
- Wylla. - Lorde Wyman sorriu. - Viu como foi corajosa? Mesmo quando ameacei arrancar sua língua, ela me lembrou da dívida de Porto Branco com os Stark de Winterfell, uma dívida que nunca poderá ser paga. Wylla falou com o coração, assim como a Senhora Leona. Perdoe-a se puder, meu senhor. É uma mulher tola e assustada, e Wylis é a vida dela. Nem todos os homens podem ser Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, ou Symeon Olhos-de-Estrela, e nem toda mulher pode ser corajosa como minha Wylla e sua irmã Wynafryd ... que realmente sabiam, mas desempenharam seu papel sem medo. Ao tratar com mentirosos, até um homem honesto deve mentir. Eu não ousava desafiar Porto Real enquanto meu último filho vivo permanecia cativo. Lorde Tywin Lannister me escrevera pessoalmente para dizer que estava com Wylis. Se eu quisesse libertá-lo sem ferimentos, ele me disse, deveria me arrepender de minha traição, render minha cidade, declarar minha lealdade ao rei menino no Trono de Ferro... e dobrar meu joelho a Roose Bolton, seu Protetor do Norte. Se eu recusasse, Wylis morreria como traidor, Porto Branco seria invadida e saqueada, e meu povo sofreria o mesmo destino dos Reyne de Castamere. Sou gordo, e por isso muitos pensam que sou fraco e tolo. Talvez Tywin Lannister fosse um desses. Enviei um corvo para ele dizendo que dobraria meu joelho e abriria meus portões depois que meu filho voltasse, não antes. Então o assunto parou quando Tywin morreu. Depois os Frey chegaram com os ossos de Wendel... para fazer a paz e selá-la com um pacto de casamento, alegaram, mas eu não estava disposto a dar o que queriam até que tivesse Wylis, salvo e inteiro. e eles não queriam me dar Wylis até que eu provasse minha lealdade. Sua chegada me deu os meios de fazer isso. Essa foi a razão para a descortesia que demonstrei com você na Corte do Tritão, e para a cabeça e as mãos apodrecendo no Portão das Focas.
- Assumiu um grande risco, meu senhor - disse Davos. - Se os Frey tivessem percebido o engano ...
- Não assumi risco nenhum. Se algum dos Frey tivesse resolvido subir no meu portão para uma olhada de perto no homem com a cebola na boca, eu teria culpado meus carcereiros pelo erro e exposto você para apaziguá-los.
Davos sentiu um arrepio na espinha.
- Entendo.
- Espero que sim. Você também tem filhos, foi o que disse.
Três, pensou Davos, embora tenha sido pai de sete.
- Logo terei que retornar ao banquete para brindar com meus amigos Frey - Manderly continuou. - Eles me observam, sor. Dia e noite seus olhos estão sobre mim, narizes farejando algum sopro de traição. Você os viu, o arrogante Sor Jared e seu irmão Rhaegar, aquele verme sorridente que usa nome de dragão. Atrás dos dois está Symond, tilintando moedas. Aquele um comprou e pagou por vários de meus servos e dois dos meus cavaleiros. Uma das servas da esposa dele conseguiu se meter na cama do meu próprio bobo. Se Stannis se perguntava por que minhas cartas diziam tão pouco, é porque eu não ousava confiar nem mesmo em meu meistre. Theomore é todo cabeça e nada coração. Você o ouviu no meu salão. Espera-se que os meistres coloquem de lado velhas lealdades quando forjam suas correntes, mas não posso esquecer que Theomore é um Lannister de Lannisporto de nascimento, e alega algum parentesco distante com os Lannister de Rochedo Casterly. Inimigos e falsos amigos estão ao meu redor, Lorde Davos. Infestaram minha cidade como baratas, e à noite posso senti-los rastejando sobre mim. - Os dedos do homem gordo se dobraram fechando o punho, e todos os seus queixos tremiam. - Meu filho Wendel foi para as Gêmeas como convidado. Comeu o pão e o sal de Lorde Walder e pendurou sua espada na parede para banquetear com amigos. E eles o assassinaram. Assassinaram, eu digo, e que os Frey se engasguem com suas fábulas. Bebi com Jared, brinquei com Symond, prometi para Rhaegar a mão da minha amada neta ... mas nunca pense que isso significa que me esqueci. O Norte se lembra, Lorde Davos. O Norte se lembra, e a farsa está quase no fim. Meu filho está em casa.
Alguma coisa na maneira que Lorde Wyman falou aquilo gelou Davos até os ossos.
- Se é justiça que procura, meu senhor, olhe para o Rei Stannis. Nenhum homem é mais justo.
Robett Glover interrompeu para acrescentar:
- Sua lealdade faz sua honra, meu senhor, mas Stannis Baratheon permanece sendo seu rei, não o nosso.
- O rei de vocês está morto - Davos recordou - assassinado no Casamento Vermelho, ao lado do filho de Lorde Wyman.
- O Jovem Lobo está morto - Manderly concordou - mas aquele corajoso garoto não era o único filho de Lorde Eddard. Robett, traga o rapaz.
- Imediatamente, meu senhor. - Glover deslizou pela porta.
O rapaz? Seria possível que um dos irmãos de Robb Stark tivesse sobrevivido à ruína de Winterfell? Manderly teria um herdeiro Stark escondido em seu castelo? Um menino encontrado ou um falso menino? O Norte se levantaria em ambos os casos, suspeitava ... mas Stannis Baratheon nunca faria causa comum com um impostor.
O rapaz que seguiu Robett Glover pela porta não era um Stark, nem poderia esperar passar por um. Era mais velho do que os irmãos assassinados do Jovem Lobo, quatorze ou quinze anos se olhasse para ele, e seus olhos eram ainda mais velhos. Sob um emaranhado cabelo castanho-escuro, seu rosto era quase selvagem, com uma boca larga, o nariz alijado e o queixo pontudo.
- Quem é você? - Davos perguntou.
O garoto olhou para Robett Glover.
- Ele é mudo, mas temos lhe ensinado as letras. Ele aprende rápido. - Glover tirou a adaga de seu cinturão e a deu para o garoto. - Escreva seu nome para Lorde Seaworth.
Não havia pergaminho no aposento. O rapaz escavou as letras na viga de madeira da parede. W... E... X. Teve dificuldade com o X. Quando terminou, jogou a adaga no ar, pegou-a e ficou admirando seu trabalho.
- Wex é um homem de ferro. Era escudeiro de Theon Greyjoy. Wex estava em Winterfell - Glover se sentou. - Quanto Lorde Stannis sabe a respeito do que aconteceu em Winterfell?
Davos tentou se lembrar das histórias que ouvira.
- Winterfell foi capturado por Theon Greyjoy, que fora protegido de Lorde Stark. Ele condenou os dois filhos mais jovens de Stark à morte e colocou suas cabeças sobre as muralhas do castelo. Quando os nortenhos vieram derrubá-lo, passou o castelo inteiro pela espada, até a última criança, antes de ser morto pelo bastardo de Lorde Bolton.
- Não morto - disse Glover. - Capturado e levado para Forte do Pavor. O Bastardo vem esfolando-o.
Lorde Wyman assentiu.
- A história que você ouviu é a que todos nós escutamos, tão cheia de mentiras quanto um pudim de passas. Foi o Bastardo de Bolton quem passou Winterfell pela espada ... Ramsay Snow, ele se chamava então, antes do rei menino torná-lo um Bolton. Snow não matou todos. Poupou as mulheres, amarrou-as juntas e marchou com elas para o Forte do Pavor, para praticar seu esporte.
- Seu esporte?
- Ele é um grande caçador - disse Wyman Manderly - e as mulheres são suas presas favoritas. Ele as deixa nuas e as solta na floresta. Elas têm meio dia de vantagem antes que ele vá atrás delas com cães de caça e berrantes. De tempos em tempos, alguma moça escapa e vive para contar a história. A maioria tem menos sorte. Quando Ramsay as apanha, ele as estupra, as esfola, dá seus cadáveres para os cães e leva suas peles para Forte do Pavor, como troféu. Se elas lhe proporcionaram uma boa caçada, ele corta suas gargantas antes de tirar suas peles. Caso contrário, ele as esfola vivas.
Davos empalideceu.
- Deuses, sejam bons. Como um homem pode...
- A maldade está no sangue - disse Robett Glover. - Ele é um bastardo nascido de um estupro. Um Snow, não importa o que o rei menino diga.
- Alguma neve já foi tão negra? - perguntou Lorde Wyman. - Ramsay tomou as terras de Lorde Hornwood forçando o casamento com a viúva, e então a trancou em uma torre e a esqueceu lá. Dizem que ela comeu a extremidade dos próprios dedos ... e a noção de justiça real dos Lannister é recompensar esse assassino com a garotinha de Ned Stark.
- Os Bolton sempre foram tão cruéis quanto espertos, mas esse aí parece um animal em pele humana - disse Glover.
O Senhor de Porto Branco se inclinou para a frente.
- Os Frey não são melhores. Falam em wargs e troca-peles e asseguram que foi Robb Stark quem matou meu Wendel. Que arrogância! Eles não esperam que o Norte acredite em suas mentiras, não verdadeiramente, mas pensam que precisamos fingir acreditar, ou morreremos. Roose Bolton mente sobre sua participação no Casamento Vermelho, e seu bastardo mente sobre a queda de Winterfell. E enquanto mantiveram Wylis, não tive escolha senão comer toda essa merda e elogiar o sabor.
- E agora, meu senhor? - perguntou Davos.
Ele esperava ouvir Lorde Wyman falar. E agora eu me declaro pelo Rei Stannis, mas, em vez disso, o homem gordo sorriu um estranho sorriso cintilante e disse:
- Agora tenho um casamento para assistir. Sou gordo demais para subir em um cavalo, como qualquer homem com olhos pode ver claramente. Quando menino, eu amava montar, e, quando jovem, lidava com a montaria bem o suficiente para conseguir alguns pequenos elogios, mas esses dias se foram. Meu corpo tornou-se uma prisão mais lúgubre do que a Toca do Lobo. Mesmo assim, preciso ir para Winterfell. Roose Bolton me quer de joelhos, e sob o veludo da cortesia mostra a cota de malha de ferro. Preciso ir de barcaça e de liteira, cercado por uma centena de cavaleiros e por meus bons amigos das Gêmeas. Os Frey vieram pelo mar. Não têm cavalos com eles, então devo presentear cada um deles com um palafrém como presente de convidado. Os anfitriões ainda dão presentes de convidados no Sul?
- Alguns dão, meu senhor. No dia da partida dos convidados.
- Talvez você entenda, então. - Wyman Manderly balançou pesadamente os pés. - Venho construindo navios de guerra há mais de um ano. Alguns você viu, mas há muitos mais escondidos no Faca Branca. Mesmo com as perdas que sofri, ainda comando mais cavalos pesados do que qualquer outro senhor ao norte do Gargalo. Minhas muralhas são fortes e meus cofres estão cheios de prata. Castelovelho e Atalaia da Viúva seguirão minha liderança. Meus vassalos incluem uma dúzia de pequenos senhores e uma centena de cavaleiros com terras. Posso entregar ao Rei Stannis a fidelidade de todas as terras a leste do Faca Branca, de Atalaia da Viúva a Ariete, passando pela Serra do Sargo até a cabeceira do Ramo Partido. Tudo isso me comprometo a fazer, se você encontrar meu prêmio.
- Posso levar seus termos para o rei, mas ...
Lorde Wyman o interrompeu.
- Se você encontrar meu prêmio, eu disse. Não Stannis. Não é de um rei que preciso, mas de um contrabandista.
Robett Glover assumiu o relato.
- Pode ser que nunca saibamos tudo o que aconteceu em Winterfell quando Sor Rodrick Cassel tentou retomar o castelo dos homens de ferro de Theon Greyjoy. O Bastardo de Bolton afirma que Greyjoy assassinou Sor Rodrick durante uma negociação. Wex diz que não. Até que aprenda mais letras, nunca saberemos metade da verdade... mas ele veio até nós sabendo sim e não, e é possível percorrer um longo caminho com isso, desde que você encontre as questões certas.
- Foi o Bastardo quem assassinou Sor Rodrick e os homens de Winterfell - disse Lorde Wyman. - Ele matou os homens de ferro de Greyjoy também. Wex viu homens derrotados tentando se render. Quando perguntamos como escapou, ele pegou um pedaço de giz e desenhou uma árvore com um rosto.
Davos pensou naquilo.
- Os velhos deuses o salvaram?
- De certo modo. Ele escalou a árvore-coração e se escondeu entre as folhas. Os homens de Bolton vasculharam o bosque sagrado duas vezes e mataram todos que encontraram por ali, mas ninguém pensou em subir nas árvores. Foi assim que aconteceu, Wex?
O garoto jogou a adaga de Glover no ar, pegou-a e assentiu.
Glover disse:
- Ficou em cima da árvore por muito tempo. Dormiu entre os galhos, sem ousar descer. Finalmente ouviu vozes embaixo dele.
- As vozes dos mortos - disse Wyman Manderly.
Wex levantou cinco dedos, tocou cada um deles com a adaga, então abaixou quatro e tocou no último dedo novamente.
- Seis deles - disse Davos. - Eram seis.
- Dois eram os filhos mortos de Ned Stark.
- Como um mudo pôde lhe contar isso?
- Com giz. Ele desenhou dois meninos ... e dois lobos.
- O rapaz é um homem de ferro, então achou melhor não se mostrar - disse Glover. - Ficou ouvindo. Os seis não se demoraram muito entre as ruínas de Winterfell. Quatro foram por um caminho, dois por outro. Wex seguiu os dois, uma mulher e um garoto. Deve ter ficado contra o vento, então o lobo não pegou seu cheiro.
- Ele sabe para onde foram - Lorde Wyman disse.
Davos entendeu.
- Você quer o menino.
- Roose Bolton tem a filha de Lorde Eddard. Para impedi-lo, Porto Branco precisa ter o filho de Ned ... e o lobo gigante. O lobo provará que o menino é quem dizemos que é, se Forte do Pavor tentar negar. Este é meu prêmio, Lorde Davos. Contrabandeie-me meu senhor suserano, e eu tomarei Stannis Baratheon como meu rei.
Os velhos instintos fizeram Davos Seaworth levar a mão à garganta. Os ossos dos dedos haviam sido sua sorte, e de alguma forma sentia que precisaria de sorte para fazer o que Wyman Manderly lhe pedia. Mas os ossos se foram, então ele disse:
- Você tem homens melhores ao seu serviço. Cavaleiros, senhores e meistres. Por que precisa de um contrabandista? Você tem navios.
- Navios - Lorde Wyman concordou - mas minhas tripulações são de homens do rio, ou de pescadores que nunca navegaram além da Dentada. Para isso, preciso de um homem que tenha navegado em águas mais escuras e saiba como escapar dos perigos sem ser visto ou molestado.
- Onde está o menino? - De alguma forma, Davos sabia que não gostaria da resposta. - Para onde quer que eu vá, meu senhor?
Robett Glover disse:
- Wex. Mostre para ele.
O mudo jogou a adaga no ar, pegou-a e arremessou-a na extremidade do mapa de pele de carneiro que adornava a parede de Lorde Wyman. A adaga parou, balançando. Então o rapaz sorriu.
Por meio segundo, Davos considerou pedir que Wyman Manderly o mandasse de volta para a Toca do Lobo, para Sor Bartimus com suas histórias e Garth com suas senhoras letais. Na Toca, até os prisioneiros comiam mingau pela manhã. Mas havia outros lugares nesse mundo onde os homens eram conhecidos por quebrar o jejum com carne humana. 

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