domingo, 29 de setembro de 2013

30 - DAENERYS


Todas as manhãs, dos parapeitos ocidentais, a rainha podia contar as velas na Baía dos Escravos.
Hoje contou vinte e cinco, embora algumas ainda estivessem distantes e em movimento, então era difícil ter certeza. Algumas vezes ela perdia um, ou contava duas vezes o mesmo. O que importa? Um estrangulador só precisa de dez dedos. Todo o comércio parara, e seus pescadores não tinham coragem de sair para a baía. Os mais ousados ainda atiravam algumas linhadas no rio; ainda que mesmo isso fosse perigoso; os demais permaneciam atracados sob as muralhas multicoloridas de Meereen.
Havia navios de Meereen na baía também, navios de guerra e galés comerciais cujos capitães os haviam levado para o mar quando as tropas de Dany fizeram o primeiro cerco à cidade e agora retornavam para aumentar as frotas de Qarth, Tolos e Nova Ghis.
O conselho do seu almirante se provara pior do que inútil.
- Deixe-os verem seus dragões - disse Groleo. - Deixe os yunkaítas provarem o gosto do fogo, e o comércio fluirá novamente.
- Esses navios estão nos estrangulando, e tudo o que meu almirante pode fazer é falar em dragões - falou Dany. - Você é meu almirante, não é?
- Um almirante sem navios.
- Construa navios.
- Navios de guerra não podem ser construídos de tijolos. Os traficantes de escravos queimaram cada carrinho de madeira num raio de cem quilômetros daqui.
- Então cavalgue cento e dez quilômetros. Eu lhe darei carroções, trabalhadores, mulas, tudo o que precisar.
- Sou um marinheiro, não um carpinteiro naval. Fui enviado para levar Vossa Graça de volta a Pentos. Em vez disso, você nos trouxe aqui e fez meu Saduleon em pedaços por alguns pregos e pedaços de madeira. Nunca verei novamente meu navio. Nunca verei minha casa novamente, nem minha velha esposa. Não fui eu quem recusou os navios que Daxos ofereceu. Não posso lutar contra os qartenos com barcos de pesca.
A amargura dele a consternou tanto, que Dany pegou-se perguntando a si mesma se o grisalho pentoshi podia ser um dos três traidores. Não, ele é apenas um homem velho, longe de casa e doente de saudade.
- Deve haver algo que possamos fazer.
- Sim, e eu lhe disse o quê. Aqueles navios são feitos de corda, piche e tela, pinus qohorik, teca de Sothoros, carvalho antigo de Grande Norvos, teixo, freixo e abeto. Madeira, Vossa Graça. Madeira queima. Os dragões ...
- Não ouvirei mais nada sobre meus dragões. Deixe-me. Reze para seus deuses pentoshis por uma tempestade que afunde nossos inimigos.
- Nenhum marinheiro reza por tempestades, Vossa Graça.
- Estou cansada de ouvir o que você não fará. Vá.
Sor Barristan permaneceu.
- Nossos estoques estão lotados no momento - ele a recordou - e Vossa Graça plantou feijões, uvas e trigo. Seus dothrakis têm atormentado os traficantes de escravos das colinas e golpeado os grilhões de seus escravos. Esses libertos estão plantando também e trarão suas colheitas para Meereen para vender. E você terá a amizade de Lhazar.
Daario conseguiu isso para mim, com todo o mérito.
- Os Homens-Ovelha. Essas ovelhas poderiam ter dentes.
- Isso deixaria os lobos mais cuidadosos, sem dúvida.
Aquilo a fez rir.
- Como vão seus órfãos, sor?
O velho cavaleiro sorriu.
- Bem, Vossa Graça. É bom que tenha perguntado. - Os meninos eram o orgulho dele. - Quatro ou cinco têm os ingredientes dos cavaleiros. Talvez até uma dúzia deles.
- Um seria o suficiente, se fosse tão verdadeiro quanto você. - Em breve poderia chegar o dia em que precisaria de cada cavaleiro.
- Eles disputarão justas para mim? Eu gostaria disso. - Viserys lhe contara histórias dos torneios que assistira nos Sete Reinos, mas Dany nunca vira uma justa com seus próprios olhos.
- Eles não estão prontos, Vossa Graça. Quando estiverem, terão prazer em demonstrar seu valor.
- Espero que esse dia chegue rápido. - Ela teria beijado o bom cavaleiro no rosto, mas Missandei apareceu sob a porta arqueada. - Missandei?
- Vossa Graça. Skahaz aguarda sua vontade.
- Mande-o subir.
O Cabeça-Raspada estava acompanhado de duas das suas Bestas de Bronze. Um usava máscara de falcão e o outro algo parecido com um chacal. Apenas seus olhos podiam ser vistos atrás do bronze.
- Vossa Iluminada, Hizdahr foi visto entrando na pirâmide de Zhak tarde passada. Não saiu de lá até bem depois do anoitecer.
- Quantas pirâmides ele já visitou? - perguntou Dany.
- Onze.
- E quanto tempo faz desde a última morte?
- Vinte e seis dias. - Os olhos do Cabeça-Raspada transbordavam de fúria. Fora sua a ideia de ter as Bestas de Bronze seguindo seu prometido e anotando todas as suas ações.
- Até agora Hizdahr está mantendo bem sua promessa.
- Como? Os Filhos da Harpia baixaram suas facas, mas por quê? Porque o nobre Hizdahr pediu gentilmente? Ele é um deles, eu lhe digo. É por isso que eles o obedecem. Ele bem pode ser a Harpia.
- Se é que há uma Harpia. - Skahaz estava convencido de que em algum lugar de Meereen os Filhos da Harpia tinham um senhor bem-nascido, um general secreto comandando um exército de sombras. Dany não compartilhava sua crença. As Bestas de Bronze haviam capturado dezenas de Filhos da Harpia, e aqueles que sobreviveram à prisão forneceram nomes quando duramente interrogados ... nomes demais, lhe parecia. Teria sido agradável pensar que todas as mortes eram trabalho de um único inimigo, que poderia ser pego e morto, mas Dany suspeitava que a verdade era outra. Meus inimigos são uma legião. - Hizdahr zo Loraq é um homem persuasivo, com muitos amigos. E é rico. Talvez tenha comprado esta paz para nós com seu ouro, ou convencido os outros bem-nascidos de que nosso casamento será bom para os interesses deles.
- Se ele não é a Harpia, ele a conhece. Posso descobrir a verdade disso facilmente. Permita-me interrogar Hizdahr e lhe trarei uma confissão.
- Não - ela disse. - Não acredito nessas confissões. Você já me trouxe várias, todas elas sem valia.
- Vossa Iluminada ...
- Não, eu disse.
A carranca do Cabeça-Raspada fez seu rosto ficar ainda mais feio.
- Um engano. O Grande Mestre Hizdahr trata Vossa Adoração como tola. Quer uma serpente em sua cama?
Quero Daario em minha cama, mas o mandei embora para o seu bem e o dos seus.
- Você pode continuar a observar Hizdahr zo Loraq, mas não deve lhe causar nenhum mal. Está entendido?
- Não sou surdo, Magnificência. Obedecerei. - Skahaz tirou um rolo de pergaminho da manga. - Vossa Veneração devia dar uma olhada nisso. Uma lista de todos os navios meereeneses no bloqueio, com seus capitães. Grandes Mestres, todos.
Dany estudou o inventário. Todas as famílias governantes de Meereen estavam na relação: Hazkar, Merreq, Quazzar, Zhak, Rhazdar, Ghazeen, Pahl e até Reznak e Loraq.
- O que eu farei com uma lista de nomes?
- Cada homem desta lista tem um parente na cidade. Filhos e irmãos, esposas e filhas, mães e pais. Deixe minhas Bestas de Bronze capturá-los. As vidas deles trarão aqueles navios de volta.
- Se eu mandar as Bestas de Bronze para dentro das pirâmides, isso significa declarar guerra dentro da cidade. Tenho que acreditar em Hizdahr. Tenho que esperar por paz. - Dany segurou o pergaminho sobre uma vela e assistiu aos nomes desaparecendo nas chamas, enquanto Skahaz a olhava com raiva.
Mais tarde, Sor Barristan lhe disse que seu irmão Rhaegar teria ficado orgulhoso dela. Dany recordou-se das palavras que Sor Jorah dissera em Astapor: Rhaegar lutou valentemente, Rhaegar lutou com nobreza, Rhaegar lutou com honra. E Rhaegar morreu.
Quando desceu para o salão de mármore púrpura, o encontrou quase vazio.
- Não há peticionários hoje? - Dany perguntou para Reznak mo Reznak. - Ninguém que implore por justiça ou prata por uma ovelha?
- Não, Vossa Veneração. A cidade está com medo.
- Não há nada a temer.
Mas havia muito e ainda mais a temer, como ela descobriu naquela noite. Enquanto seus jovens reféns Miklaz e Kezmya lhe serviam uma ceia simples de verduras de outono e sopa de gengibre, Irri veio dizer que Galazza Galare retornara com três Graças Azuis do templo.
- Verme Cinzento também veio, khaleesi. Eles imploram por umas palavras, o mais urgente possível.
- Traga-os ao meu salão. E convoque Reznak e Skahaz. A Graça Verde adiantou o assunto?
- Astapor - disse Irri.
Verme Cinzento começou a contar.
- Ele veio na névoa da manhã, um cavaleiro e um cavalo descorado, morrendo. Sua égua cambaleava conforme se aproximava dos portões da cidade, seu lado rosa com sangue e espuma, seus olhos virados de terror. O cavaleiro gritou: Ela está queimando, ela está queimando, e caiu da sela. Este um foi até lá e deu ordens para o cavaleiro ser levado para as Graças Azuis. Quando os servos o carregaram para dentro dos portões, ele gritou novamente: Ela está queimando. Embaixo do tokar, era um esqueleto, todo ossos e carne febril.
Uma das Graças Azuis continuou a história.
- Os Imaculados trouxeram esse homem para o templo, onde o despimos e o banhamos com água fria. Suas roupas estavam sujas, e minhas irmãs encontraram metade de uma flecha em sua coxa. Embora ele tivesse quebrado a haste, a ponta permanecia dentro dele, e a ferida tinha necrosado, enchendo-o de venenos. Ele morreu em uma hora, ainda gritando que ela estava queimando.
- Ela está queimando - Daenerys repetiu. - Quem é ela?
- Astapor, Vossa Iluminada - disse outra das Graças Azuis. - Ele disse, uma vez. Disse “Astapor está queimando”.
- Pode ter sido a febre falando.
- Vossa Iluminada fala com sabedoria - falou Galazza Galare - mas Ezzara viu algo mais.
A Graça Azul chamada Ezzara juntou as mãos.
- Minha rainha - murmurou - a febre não foi causada pela flecha. Ele havia se sujado, não uma, mas muitas vezes. As manchas chegavam até os joelhos, e havia sangue em seus excrementos.
- O cavalo dele estava sangrando, Verme Cinzento disse.
- Isso é verdade, Vossa Graça - o eunuco confirmou. - A égua descorada estava sangrando por sua espora.
- Pode ser, Vossa Iluminada - disse Ezzara - mas este sangue estava misturado com seu assento. Manchou suas roupas Íntimas.
- Ele estava sangrando das entranhas - disse Galazza Galare.
- Não podemos ter certeza - respondeu Ezzara - mas pode ser que Meereen tenha mais a temer do que as lanças dos yunkaítas.
- Devemos orar - disse a Graça Verde. - Os deuses enviaram esse homem para nós. Ele vem como um prenúncio. Ele vem como um sinal.
- Sinal de quê? - perguntou Dany.
- Um sinal de ira e ruína.
Ela não queria acreditar naquilo.
- Ele era um homem. Um homem doente com uma flecha na perna. Um cavalo o trouxe aqui, não um deus. - Uma égua descorada. Dany se levantou abruptamente. - Agradeço pelo conselho de vocês e por tudo o que fizeram por esse pobre homem.
A Graça Verde beijou os dedos de Dany antes de sair.
- Rezaremos por Astapor.
E por mim. Oh, reze por mim, minha senhora. Se Astapor caiu, nada restou para impedir que Yunkai se vire para o Norte.
Ela se dirigiu a Sor Barristan.
- Envie mensageiros para as colinas para encontrar meus companheiros de sangue. Chame Ben Mulato e os Segundos Filhos de volta também.
- E os Corvos Tormentosos, Vossa Graça?
Daario.
- Sim. Sim. - Há apenas três noites, ela sonhara com Daario morto ao lado da estrada, olhando para o vazio enquanto corvos brigavam sobre seu cadáver. Em outras noites, ela se agitava na cama, imaginando que ele a traíra, como uma vez traíra seus companheiros capitães dos Corvos Tormentosos. Ele me trouxe as cabeças deles. E se levou sua companhia de volta para Yunkai para vendê-la por um pote de ouro? Ele não faria isso. Faria? - Os Corvos Tormentosos também. Mande mensageiros atrás deles imediatamente.
Os Segundos Filhos foram os primeiros a retornar, oito dias depois que a rainha enviou sua convocação. Quando Sor Barristan lhe disse que seu capitão desejava ter algumas palavras com ela, Dany pensou por um momento que fosse Daario e seu coração disparou. Mas o capitão a quem ele se referia era Ben Mulato Plumm.
Ben Mulato tinha o rosto marcado e envelhecido, a pele da cor de teca antiga, cabelos brancos e rugas ao redor dos olhos. Dany estava tão contente em ver aquele rosto de couro marrom, que o abraçou. Seus olhos se apertaram, divertidos:
- Ouvi dizer que Vossa Graça estava tomando um marido - disse - mas ninguém me disse que era eu. - Riram juntos enquanto Reznak engasgava, mas a risada cessou quando Ben Mulato disse: - Capturamos três astaporis. Vossa Veneração devia ouvir o que dizem.
- Traga-os.
Daenerys os recebeu na grandeza de seu salão, com altas velas queimando entre os pilares de mármore. Quando viu que os astaporis estavam meio famintos, providenciou comida imediatamente para eles. Esses três eram tudo o que restara de uma dúzia que partira da Cidade Vermelha; um oleiro, uma tecelã e um sapateiro.
- O que aconteceu com o resto do seu grupo? - a rainha perguntou.
- Assassinados - disse o sapateiro. - Mercenários de Yunkai percorrem as colinas ao norte de Astapor caçando aqueles que fugiram das chamas.
- A cidade caiu, então? Suas muralhas eram grossas.
- Isso elas eram - disse o oleiro, um homem curvado, com olhos remelentos - mas eram velhas e estavam se desintegrando também.
A tecelã levantou a mão.
- Todos os dias dizíamos uns para os outros que a rainha dragão estava voltando. - A mulher tinha lábios finos e olhos mortos e sem brilho, em um rosto pequeno e comprido. - Cleon mandou chamá-la, dizia-se, e você estava vindo.
Ele mandou me chamar, pensou Dany. Esse tanto é verdade, pelo menos.
- Do lado de fora das nossas muralhas, os yunkaítas devoraram nossas plantações e abateram nossos rebanhos - o sapateiro continuou. - Do lado de dentro, estávamos famintos. Comemos gatos, ratos e couro. Uma pele de cavalo era um banquete. O Rei Cortagarganta e a Rainha Puta acusavam um ao outro de se banquetear na carne dos mortos. Homens e mulheres se reuniam em segredo para tirar a sorte e devorar a carne daquele que pegasse a pedra negra. A pirâmide de Nakloz foi pilhada e incendiada por aqueles que afirmavam que Kraznys mo Nakloz era o culpado por todas as nossas desgraças.
- Outros culpavam Daenerys - disse a tecelã - mas muitos de nós ainda a amavam. “Ela está a caminho”, dizíamos uns para os outros. “Ela está vindo à frente de uma grande tropa, com comida para todos nós”.
Mal posso alimentar meu próprio povo. Se tivesse marchado para Astapor, teria perdido Meereen.
O sapateiro contou para eles como o corpo do Rei Açougueiro havia sido exumado e vestido em uma armadura de cobre, depois que a Graça Verde de Astapor teve uma visão na qual ele iria livrá-los dos yunkaítas. Armado e fedendo, o cadáver de Cleon, o Grande, foi preso nas costas de um cavalo faminto para liderar os novos Imaculados remanescentes em uma sortida, mas eles cavalgaram diretamente para os dentes de ferro de uma legião de Nova Ghis e foram abatidos.
- Depois, a Graça Verde foi empalada em uma estaca na Praça da Punição e deixada lá até a morte. Na pirâmide de Ulhor, os sobreviventes fizeram um grande banquete que durou metade da noite, e empurraram o resto da comida para baixo com vinho envenenado para que ninguém precisasse acordar novamente na manhã seguinte. Logo depois vieram as doenças, um fluxo sangrento que matou três homens em cada quatro, até que uma multidão de homens moribundos enlouqueceu e assassinou os guardas no portão principal.
O velho oleiro interrompeu para dizer:
- Não. Isso foi trabalho de homens saudáveis, fugindo para escapar do fluxo.
- Isso importa? - perguntou o sapateiro. - Os guardas foram abatidos e os portões foram escancarados. As legiões de Nova Ghis se derramaram para dentro de Astapor, seguidas pelos yunkaítas e pelos mercenários em seus cavalos. A Rainha Puta morreu lutando com uma maldição nos lábios. O Rei Cortagarganta se rendeu e foi jogado em uma arena de luta para ser abatido por uma matilha de cães famintos.
- E mesmo então alguns diziam que você estava vindo - disse a tecelã. - Eles juravam que a haviam visto montada em um dragão, voando alto sobre os acampamentos dos yunkaítas. Todos os dias procurávamos você.
Eu não podia ir, a rainha pensou. Eu não ousei.
- E quando a cidade caiu? - exigiu saber Skahaz. - O que aconteceu então?
- O massacre começou. O Templo das Graças estava cheio de doentes que foram lá para pedir aos deuses que os curassem. As legiões selaram as portas e incendiaram o templo com tochas. Em uma hora o fogo queimava em todos os cantos da cidade. Conforme se espalhava, um incêndio se unia a outro. Multidões enchiam as ruas, correndo de um lado para o outro para escapar das chamas, mas não havia para onde fugir. Os yunkaítas fecharam os portões.
- E mesmo assim vocês escaparam - disse o Cabeça-Raspada. - Como isso foi possível?
O velho respondeu.
- Sou oleiro por ofício, como meu pai e o pai dele antes de mim. Meu avô construiu nossa casa apoiada nas muralhas da cidade. Foi fácil soltar alguns tijolos a cada noite. Quando contei para meus amigos, eles me ajudaram a fortalecer o túnel, para que não desabasse. Todos concordamos que podia ser bom ter nossa própria rota de fuga.
Eu os deixei com um conselho para governá-los, Dany pensou, um curandeiro, um sábio e um sacerdote. Ainda podia se lembrar da Cidade Vermelha como a vira pela primeira vez, seca e poeirenta atrás das muralhas de tijolos vermelhos, sonhando sonhos cruéis, ainda cheia de vida. Havia ilhas no Verme onde amantes se beijavam, mas na Praça da Punição eles tiravam tiras de pele dos homens e deixavam-nas penduradas para as moscas.
- É bom que tenham vindo - ela disse para os astaporis. - Estarão a salvo em Meereen.
O sapateiro a agradeceu por aquilo, e o velho oleiro beijou seus pés, mas a tecelã olhou para ela com olhos tão duros quanto ardósia. Ela sabe que eu minto, a rainha pensou. Sabe que não posso mantê-los a salvo. Astapor está queimando e Meereen será a próxima.
- Há mais vindo - Ben Mulato anunciou depois que os astaporis saíram. - Esses três tinham cavalos. A maioria está a pé.
- Quantos são? - perguntou Reznak.
Ben Mulato encolheu os ombros.
- Centenas. Milhares. Alguns doentes, alguns queimados, alguns feridos. Os Gatos e os Soprados pelo Vento cruzam as colinas com lanças e chicotes, mandando-os para o Norte e abatendo os retardatários.
- Bocas a pé. E doentes, você diz? - Reznak torceu as mãos. - Vossa Veneração não deve permiti-los entrar na cidade.
- Eu não permitiria - disse Ben Mulato Plumm. - Não sou meistre, notem, mas sei que temos que separar as maçãs podres das boas.
- Não são maçãs, Ben - falou Dany. - São homens e mulheres, doentes, famintos e assustados. - Meus filhos. - Eu deveria ter ido para Astapor.
- Vossa Graça não poderia tê-los salvo - disse Sor Barristan. - Você avisou o Rei Cleon sobre essa guerra contra Yunkai. O homem era um tolo, e as mãos dele estavam vermelhas de sangue.
E minhas mãos estão mais limpas? Ela se lembrou do que Daario dissera; que todos os reis devem ser açougueiros, ou carne.
- Cleon era o inimigo do nosso inimigo. Se eu tivesse me juntado a ele no Chifre de Hazzat, poderíamos ter esmagado os yunkaítas entre nós.
O Cabeça-Raspada discordou.
- Se você tivesse levado os Imaculados para o sul, até Hazzat, os Filhos da Harpia ...
- Eu sei. Eu sei. É Eroeh tudo de novo.
Ben Mulato Plumm estava intrigado.
- Quem é Eroeh?
- Uma garota que pensei estar salvando do estupro e do tormento. Tudo o que fiz foi tornar seu fim ainda pior. E tudo o que fiz em Astapor foi criar dez mil Eroehs.
- Vossa Graça não poderia saber...
- Sou a rainha. É meu dever saber.
- O que está feito está feito - disse Reznak mo Reznak. - Vossa Veneração, eu imploro, tome o nobre Hizdahr como seu rei de uma vez por todas. Ele pode falar com os Sábios Mestres, negociar uma paz para nós.
- Em quais termos? - Cuidado com o senescal perfumado, Quaithe dissera. A mulher mascarada havia previsto a chegada da égua descorada, estaria certa sobre o nobre Reznak também? - Posso ser uma jovem garota inocente da guerra, mas não sou uma ovelha para balir na toca da Harpia. Ainda tenho meus Imaculados. Tenho os Corvos Tormentosos e os Segundos Filhos. E tenho três companhias de libertos.
- Eles ... e dragões - disse Ben Mulato Plumm, com um sorriso.
- Nos poços, em correntes - lamentou Reznak mo Reznak. - Para que servem dragões que não podem ser controlados? Até mesmo os Imaculados têm cada vez mais medo quando precisam abrir as portas para alimentá-los.
- O quê? Os bichinhos de estimação da rainha? - Os olhos de Ben Mulato se apertaram, divertidos. O capitão dos Segundos Filhos era uma criatura das companhias livres, um mestiço com o sangue de uma dúzia de povos correndo em suas veias, mas sempre fora apaixonado pelos dragões, e eles por ele.
- Bichos de estimação? - gritou Reznak. - Monstros, melhor. Monstros que se alimentam de crianças. Não podemos ...
- Silêncio - disse Daenerys. - Não falaremos sobre isso.
Reznak se encolheu, vacilando diante da fúria no tom de voz da rainha.
- Perdoe-me, Magnificência, eu não ...
Ben Mulato Brown o interrompeu.
- Vossa Graça, os yunkaítas têm três companhias livres contra nossas duas, e dizem que um enviado foi a Volantis para trazer a Companhia Dourada. Esses bastardos chegam a dez mil. Os yunkaítas também têm três legiões ghiscaris, talvez mais, e ouvi dizer que mandaram cavaleiros pelo mar dothraki para talvez trazer algum grande khalasar sobre nós. Precisamos dos dragões, pelo que vejo.
Dany suspirou.
- Sinto muito, Ben. Não ouso soltar os dragões. - Ela podia ver que aquela não era a resposta que ele queria.
Plumm coçou o bigode manchado.
- Se não há dragões na balança, bem ... devemos partir antes que os bastardos yunkaítas fechem a armadilha ... só que, primeiro, temos que fazer os mercadores de escravos pagarem para nos verem pelas costas. Eles pagam os khals para deixarem suas cidades, por que não nós? Venda Meereen de volta para eles, e vamos para o oeste com as carroças cheias de ouro, pedras preciosas e coisas assim.
- Você quer que eu saqueie Meereen e fuja? Não, não farei isso. Verme Cinzento, meus libertos estão prontos para a batalha?
O eunuco cruzou os braços contra o peito.
- Não são Imaculados, mas não a envergonharão. Este um jurará isso pela lança e pela espada, Vossa Veneração.
- Bom. Isso é bom. - Daenerys olhou para os rostos dos homens ao seu redor. O Cabeça-Raspada, carrancudo. Sor Barristan, com seu rosto enrugado e tristes olhos azuis. Reznak mo Reznak, pálido, suando. Ben Mulato, cabelo brancos, pele dura como couro velho. Verme Cinzento, rosto liso, impassível, sem expressão. Daario devia estar aqui, e meus companheiros de sangue, pensou. Se tiver uma batalha, o sangue do meu sangue deve estar comigo. Sentia falta de Sor Jorah Mormont também. Ele mentiu para mim, informou sobre mim, mas também me amava e sempre deu bons conselhos. - Derrotei os yunkaítas antes. Eu os derrotarei novamente. Mas onde? Como?
- Pretende ir a campo? - A voz do Cabeça-Raspada estava rouca de descrença. - Isso seria tolice. Nossas muralhas são mais altas e mais grossas do que as muralhas de Astapor e nossos defensores são mais valentes. Os yunkaítas não tomarão esta cidade tão facilmente.
Sor Barristan discordou.
- Não acho que devemos permitir que invistam contra nós. As tropas deles são uma colcha de retalhos, na melhor das hipóteses. Esses mercadores de escravos não são soldados. Se os pegarmos desprevenidos ...
- Pequena chance disso - falou o Cabeça-Raspada. - Os yunkaítas têm muitos amigos dentro da cidade. Eles saberão.
- Quão grande é o exército que podemos reunir? - Dany perguntou.
- Não grande o suficiente, com seu perdão real - disse Ben Mulato Plumm. - O que Naharis tem a dizer? Se estamos indo para uma batalha, precisamos de seus Corvos Tormentosos.
- Daario ainda está em campo. - Oh, deuses, o que eu fiz? Será que o mandei para a morte? - Ben, precisarei dos seus Segundos Filhos para observar nossos inimigos. Onde estão, quão rápido avançam, quantos homens têm e como estão dispostos.
- Precisaremos de provisões. Cavalos descansados também.
- Claro. Sor Barristan verá isso.
Ben Mulato coçou o queixo.
- Talvez pudéssemos fazer alguns deles mudarem de lado. Se Vossa Graça puder dispor de alguns sacos de ouro e pedras preciosas ... só para dar uma amostra aos capitães deles, como se fosse ... bem, quem sabe?
- Comprá-los, por que não? - disse Dany. Aquele tipo de coisa acontecia o tempo todo entre as companhias livres das Terras Disputadas, ela sabia. - Sim, muito bom. Reznak, veja isso. Assim que os Segundos Filhos partirem, feche os portões e dobre a vigilância sobre as muralhas.
- Será feito, Magnificência - disse Reznak mo Reznak. - E esses astaporis?
Meus filhos.
- Estão vindo por ajuda. Por socorro e proteção. Não podemos virar as costas para eles.
Sor Barristan franziu a testa.
- Vossa Graça, fiquei sabendo que o fluxo sangrento pode destruir exércitos inteiros quando se espalha sem controle. O senescal está certo. Não podemos receber os astaporis em Meereen.
Dany olhou para ele, impotente. Ainda bem que dragões não choravam.
- Será como diz, então. Nós os manteremos do lado de fora das muralhas até que essa ... essa maldição siga seu curso. Faremos um acampamento para eles ao lado do rio, a oeste da cidade. Enviaremos a comida que pudermos. Talvez possamos separar os saudáveis dos doentes. - Todos estavam olhando para ela. - Terei que falar duas vezes? Vão e façam como ordenei. - Dany se levantou, passou por Ben Mulato e subiu os degraus até a doce solidão do seu terraço.
Mais de mil quilômetros separavam Meereen de Astapor, e ainda assim parecia para ela que o céu estava mais escuro a sudoeste, borrado e nebuloso com a fumaça saída da Cidade Vermelha. Tijolos e sangue construíram Astapor, e tijolos e sangue fizeram seu povo. O velho dito soava em sua cabeça. Cinza e ossos são Astapor, e cinza e ossos são seu povo. Ela tentou se lembrar do rosto de Eroeh, mas as feições da garota morta mantinham-se esfumaçadas.
Quando Daenerys finalmente se virou, Sor Barristan estava perto dela, enrolado em sua capa branca contra o frio da noite.
- Podemos encarar essa luta? - perguntou para ele.
- Homens sempre podem lutar, Vossa Graça. Em vez disso, pergunte se podemos vencer. Morrer é fácil, mas a vitória é difícil. Seus libertos são meio treinados e inexperientes. Seus mercenários já serviram aos seus inimigos, e uma vez que um homem vira sua casaca, não terá escrúpulos para virá-la novamente. Você tem dois dragões que não podem ser controlados e um terceiro que pode estar perdido. Além dessas muralhas, seus únicos amigos são os lhazarenos, que não têm gosto pela guerra.
- Mas minhas muralhas são fortes.
- Não mais fortes do que quando estávamos fora delas. E os Filhos da Harpia estão dentro das muralhas, conosco. Assim como os Grandes Mestres, tanto aqueles que você não matou quanto os filhos daqueles que você matou.
- Eu sei. - A rainha suspirou. - O que me aconselha, sor?
- Batalha - disse Sor Barristan. - Meereen está superpovoada e cheia de bocas famintas e você tem muitos inimigos aqui dentro. Não podemos suportar um cerco longo, eu temo. Deixe-me encontrar os inimigos enquanto eles vêm para o norte, em um campo de minha própria escolha.
- Encontrar o inimigo - ela repetiu - com os libertos que você diz que são meio treinados e inexperientes.
- Todos nós fomos inexperientes alguma vez, Vossa Graça. Os Imaculados ajudarão a endurecê-los. Se eu tivesse quinhentos cavaleiros ...
- Ou cinco. E se eu lhe der os Imaculados, não terei ninguém além das Bestas de Bronze para defender Meereen. - Quando Sor Barristan não contestou, Dany fechou os olhos. Deuses, rezou, vocês tomaram Khal Drogo, que era meu sol-e-estrelas. Tomaram nosso valente filho antes que ele respirasse. Vocês já tiveram seu sangue de mim. Ajudem-me agora, eu oro para vocês. Me deem sabedoria para ver o caminho adiante e a força para fazer o que tiver que fazer para manter meus filhos a salvo.
Os deuses não responderam.
Quando abriu os olhos novamente, Daenerys disse:
- Não posso lutar contra dois inimigos, um do lado de dentro e outro do lado de fora. Se vou manter Meereen, devo ter a cidade ao meu lado. A cidade inteira. Preciso ... preciso ... - Ela não conseguia dizer aquilo.
- Vossa Graça? - Sor Barristan induziu, gentilmente.
Uma rainha não pertence a si mesma, mas ao seu povo.
- Preciso de Hizdahr zo Loraq. 

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