segunda-feira, 30 de setembro de 2013

31 - MELISANDRE


Nunca estava verdadeiramente escuro nos aposentos de Melisandre.
Três velas de sebo queimavam sobre o peitoril da janela para manter os terrores da noite acuados. Mais quatro tremulavam ao redor de sua cama, duas de cada lado. Na lareira, o fogo queimava dia e noite. A primeira lição daqueles que a serviam era aprender que aquele fogo jamais devia se extinguir.
A sacerdotisa vermelha fechou os olhos e disse uma oração, abriu-os então novamente para encarar o fogo da lareira. Uma vez mais. Tinha que ter certeza. Muitos sacerdotes e sacerdotisas antes dela haviam sido derrubados por visões falsas, por ver o que desejavam ver, em vez daquilo que o Senhor da Luz enviava. Stannis estava marchando para o Sul, direto para o perigo, o rei que carregava o destino do mundo sobre os ombros, Azor Ahai renascido. Certamente R'hllor outorgaria a ela um relance do que aguardava por ele. Mostre-me Stannis, Senhor, rezou. Mostre-me seu rei, seu instrumento.
Visões dançaram diante dela, douradas e escarlate, cintilando, criando formas, mesclando-se e dissolvendo-se umas nas outras, formas estranhas, aterrorizantes e sedutoras. Viu os rostos sem olhos novamente, encarando-a com os buracos que choravam sangue. Então viu torres à beira-mar, desintegrando-se quando a maré negra veio varrendo sobre elas, levantando-se das profundezas. Sombras com o formato de caveiras, caveiras que se tornavam névoa, corpos agarrados em luxúria, contorcendo-se, rolando e arranhando-se. Através de cortinas de fogo, grandes sombras aladas revoluteavam contra o firme céu azul.
A garota. Preciso encontrar a garota novamente, a garota de cinza no cavalo moribundo. Jon Snow esperaria isso dela, e logo. Não seria suficiente dizer que a garota estava fugindo. Ele iria querer mais, iria querer o quando e o onde, e ela não tinha isso para ele. Vira a garota apenas uma vez. Uma garota tão cinzenta quanto as cinzas, e assim que olhei para ela, ela se desfez em pedaços e desapareceu.
Um rosto se formou na lareira. Stannis? Ela pensou, só por um momento... mas não, essas não eram as feições dele. Um rosto endurecido como madeira, um cadáver branco. Era este o inimigo? Milhares de olhos vermelhos autuavam nas chamas que subiam. Ele me vê. Ao lado dele, um menino com rosto de lobo jogou a cabeça para trás e uivou.
A sacerdotisa vermelha estremeceu. Sangue escorreu de sua coxa, negro e defumado. O fogo estava dentro dela, uma agonia, um êxtase, enchendo-a, queimando-a, transformando-a. Ondas de calor traçavam padrões em sua pele, insistentes como as mãos de um amante. Estranhas vozes a chamavam do passado.
- Melony - ela ouviu uma mulher gritar.
Uma voz de homem chamou:
- Lote Sete.
Estava chorando, e suas lágrimas eram chamas. E, mesmo assim, ela as bebia.
Flocos de neve rodopiavam do céu escuro, e cinzas subiam para encontrá-los, o cinza e o branco girando um ao redor do outro como flechas flamejantes arqueadas acima de uma muralha de madeira e coisas mortas cambaleando silenciosamente pelo frio, sob um grande penhasco cinza onde fogos queimavam dentro de centenas de cavernas. Então o vento se ergueu e a névoa branca veio tomando tudo, incrivelmente fria, e, um a um, os fogos se apagaram. Depois, apenas as caveiras permaneceram.
Morte, pensou Melisandre. As caveiras são a morte.
As chamas crepitavam suavemente, e em seu crepitar ela ouviu uma voz sussurrando o nome de Jon Snow. Seu rosto comprido flutuou diante dela, delineado em chamas vermelhas e laranja, aparecendo e desaparecendo novamente, meio escondido atrás de uma cortina esvoaçante. Primeiro ele era um homem, depois um lobo, no fim um homem novamente. Mas as caveiras estavam ali também, as caveiras estavam todas ao redor dele. Melisandre vira o perigo que ele corria antes e tentara avisar o rapaz. Inimigos ao redor dele, adagas na escuridão. Ele não ouviria.
Descrentes nunca ouviam, até que fosse tarde demais.
- O que você vê, minha senhora? - o garoto perguntou, suavemente.
Caveiras. Milhares de caveiras, e o garoto bastardo novamente. Jon Snow. Sempre que lhe perguntavam o que vira nas chamas, Melisandre respondia:
- Muito e ainda mais - mas ver nunca era tão simples quanto essas palavras sugeriam. Era uma arte e, como todas as artes, exigia maestria, disciplina, estudo. Dor. Isso também. R'hllor falava com seus escolhidos através do fogo sagrado, em uma linguagem de cinzas, brasas e chamas retorcidas que apenas um deus poderia realmente compreender. Melisandre praticara sua arte por anos além da conta e pagara o preço. Não havia ninguém, nem mesmo na sua ordem, que tivesse sua habilidade em ver os segredos meio revelados e meio ocultos nas chamas sagradas.
Até agora, ela não tinha tido uma visão sequer de seu rei. Rezo por um vislumbre de Azor Ahai, e R'hllor me mostra apenas Snow.
- Devan - chamou - uma bebida. - Sua garganta estava em carne viva e seca.
- Sim, minha senhora. - O garoto serviu um copo de água do jarro de pedra sob a janela e trouxe para ela.
- Obrigada. - Melisandre tomou um gole, engoliu e deu um sorriso ao garoto. Aquilo o fez corar. O garoto estava meio apaixonado por ela, ela sabia. Ele me teme, ele me quer e ele me venera.
Por outro lado, Devan não estava feliz em estar ali. O garoto tinha um grande orgulho de servir como escudeiro do rei e ficara magoado quando Stannis ordenara que permanecesse em Castelo Negro. Como qualquer garoto de sua idade, tinha a cabeça cheia de sonhos de glória; sem dúvida, havia imaginado as proezas que exibiria em Bosque Profundo. Outros garotos de sua idade foram para o sul, para servir como escudeiros dos cavaleiros do rei e cavalgar nas batalhas ao lado deles. A exclusão de Devan deve ter parecido uma reprimenda, uma punição por alguma falha de sua parte, ou talvez por alguma falha de seu pai.
Na verdade, ele estava ali porque Melisandre pedira. Os quatro filhos mais velhos de Davos Seaworth haviam perecido na Batalha da Água Negra, quando a frota do rei fora consumida pelo fogo verde. Devan era o quinto, e estava mais seguro ali, com ela, do que ao lado do rei. Lorde Davos não a agradeceria por aquilo, não mais do que o próprio garoto, mas parecia a ela que Seaworth já sofrera perdas demais. Equivocado como ele era, sua lealdade para com Stannis não podia ser questionada. Ela vira em suas chamas.
Devan era rápido, esperto e capaz também, o que era mais do que podia ser dito sobre a maioria dos que a atendiam. Stannis deixara uma dúzia de homens para trás, para servi-la, quando marchara para o sul, mas a maioria deles era inútil. Sua Graça tinha necessidade de todas as espadas, então os que podia dispensar eram anciãos ou aleijados. Um homem ficara cego com uma pancada na cabeça na batalha pela Muralha, outro não podia andar desde que seu cavalo caiu e esmagou suas pernas. Seu oficial perdera um braço para o porrete de um gigante. Três de seus outros guardas eram eunucos que Stannis castrara por estuprarem mulheres selvagens. Ela tinha dois bêbados e um covarde também. O último deveria ter sido enforcado, como o próprio rei admitira, mas vinha de uma família nobre, e seu pai e irmãos eram apoiadores da causa desde o início.
Ter guardas ao seu redor sem dúvida mantinha os irmãos negros devidamente respeitosos, a sacerdotisa vermelha sabia, mas nenhum dos homens que Stannis lhe dera seria de muita ajuda se ela se encontrasse em perigo. Mas não importava. Melisandre de Asshai não temia por si mesma. R'hllor a protegeria.
Tomou outro gole de água, colocou o copo de lado, pestanejou, espreguiçou-se e se levantou da cadeira, seus músculos duros e doloridos. Depois de observar as chamas por tanto tempo, levou alguns momentos para se acostumar com a penumbra. Seus olhos estavam secos e cansados, mas, se os esfregasse, só piorariam.
O fogo estava baixo, percebeu.
- Devan, mais lenha. Que horas são?
- Já é quase amanhecer, minha senhora.
Amanhecer. Outro dia nos é dado, com a graça de R'hllor. Os terrores da noite retrocedem. Melisandre passara a noite na cadeira ao lado do fogo, como frequentemente fazia. Com a partida de Stannis, sua cama tinha pouco uso. Não tinha tempo para dormir, com o peso do mundo sobre seus ombros. E tinha medo de sonhar. Dormir é uma pequena morte, sonhos são sussurros do Outro que quer nos arrastar para a noite eterna. Preferia sentar-se banhada pelo brilho avermelhado das chamas do seu senhor vermelho, seu rosto enrubescendo pelas ondas de calor como se fossem beijos de um amante. Algumas noites, ela dormitava, mas nunca mais do que uma hora. Um dia, Melisandre esperava, não dormiria mais. Um dia estaria livre dos sonhos. Melony, pensou. Lote Sete.
Devan colocou novas toras no fogo, até que as chamas se levantaram novamente, ferozes e furiosas, empurrando as sombras para os cantos do quarto, devorando todos os sonhos indesejados dela. A escuridão retrocede novamente... por algum tempo. Mas, além da Muralha, o inimigo fica cada vez mais forte, e se ele vencer, o amanhecer nunca chegará novamente. Ela se perguntava se teria sido o rosto dele que havia visto, olhando para as chamas. Não. Certamente, não. A visão dele teria sido mais assustadora do que aquilo, fria, negra e terrível demais para qualquer homem contemplar e viver. Mas o homem endurecido como madeira que ela vislumbrara e o garoto com o rosto de lobo ... eram servos dele, certamente... campeões dele, como Stannis era o dela.
Melisandre foi até a janela e empurrou as persianas, para abri-las. Lá fora, o leste apenas começava clarear, e as estrelas da manhã ainda estavam penduradas no céu escuro. Castelo Negro iniciava sua agitação, enquanto homens de manto negro faziam seu caminho pelo pátio para quebrar o jejum com uma tigela de mingau antes de renderem seus irmãos no alto da Muralha. Alguns flocos de neve entraram pela janela aberta, flutuando com o vento.
- Minha senhora deseja quebrar seu jejum? - perguntou Devan.
Comida. Sim, eu deveria comer. Alguns dias ela se esquecia. R'thllor a provia com todos os nutrientes que seu corpo precisava, mas isso era algo que era melhor manter oculto dos homens mortais.
Era de Jon Snow que ela precisava, não de pão frito e torresmo, mas não adiantaria nada enviar Devan ao Senhor Comandante. Ele não atenderia aos chamados dela. Snow decidira continuar vivendo atrás do arsenal, em um par de cômodos modestos previamente ocupados pelo último ferreiro da Patrulha. Talvez não se achasse digno da Torre do Rei, ou talvez não se importasse. Isso era um erro, a falsa humildade da juventude que, em si, era um tipo de orgulho. Nunca foi sábio para um governante evitar as armadilhas do poder, pois o poder flui em quantidades não pequenas de tais armadilhas.
O garoto não era inteiramente ingênuo, contudo. Ele sabia que melhor do que ir aos aposentos de Melisandre como um suplicante, era insistir que viesse procurá-lo quando ela quisesse falar com ele. E, frequentemente, quando ela ia, ele a deixava esperando, ou se recusava a vê-la. Nisso, pelo menos, era astuto.
- Quero chá de urtiga, um ovo cozido e pão com manteiga. Pão fresco, por favor, não frito. Encontre o selvagem também. Diga que preciso falar com ele.
- Camisa de Chocalho, minha senhora?
- E rápido.
Quando o garoto partiu, Melisandre se lavou e trocou suas vestes. Suas mangas eram cheias de bolsos ocultos, e ela os examinou cuidadosamente, como fazia todas as manhãs, para ter certeza de que todos os seus pós estavam no lugar. Pós para fazer o fogo ficar verde, azulou prateado, pós para fazer a chama rugir, assobiar e subir mais alto do que um homem, pós para fazer fumaça. Uma fumaça para a verdade, uma fumaça para a luxúria, uma fumaça para o medo, e uma grossa fumaça negra que podia matar um homem instantaneamente. A sacerdotisa vermelha se armava com uma pitada de cada um deles.
A arca esculpida que trouxera do outro lado do mar estreito agora estava mais de três quartos vazia. E, embora Melisandre tivesse o conhecimento para fazer mais, faltavam-lhe ingredientes raros. Meus feitiços devem ser suficientes. Estava mais forte na Muralha, mais forte até mesmo do que em Asshai. Cada palavra e cada gesto eram mais potentes, e ela conseguia fazer coisas que nunca fizera antes. As sombras que trarei para cá serão terríveis, e nenhuma criatura da escuridão permanecerá diante delas. Com tais feitiçarias sob seu comando, logo não deveria mais precisar daqueles fracos truques de alquimistas e piromantes.
Fechou a arca, trancou-a e escondeu a chave nas saias, em algum bolso secreto. Então veio uma batida na porta. Seu oficial sem um braço apareceu com o som trêmulo da batida.
- Senhora Melisandre, o Senhor dos Ossos chegou.
- Mande-o entrar. - Melisandre sentou-se novamente na cadeira ao lado da lareira.
O selvagem usava um justilho sem mangas de couro fervido pontilhado com rebites de bronze, embaixo de um manto que misturava tons de verde e marrom. Nenhum osso. Estava envolto em sombras, também, em tufos de névoa cinzenta que se desfaziam, meio ocultos, e que deslizavam por seu rosto a cada passo que dava. Coisas feias. Tão feias quanto seus ossos. Um bico de viúva, olhos escuros muito próximos, bochechas vermelhas, um bigode que se contorcia como um verme sobre uma boca cheia de dentes marrons quebrados.
Melisandre sentiu o calor na cavidade da garganta quando seu rubi se mexeu com a proximidade de seu servo.
- Você deixou de lado a camisa de ossos - ela observou.
- O barulho me deixa louco.
- Os ossos o protegem - ela o recordou. - Os irmãos negros não têm amor por você. Devan me disse que apenas ontem você trocou palavras com alguns deles durante a ceia.
- Algumas poucas. Eu estava comendo feijão e sopa de torresmo enquanto Bowen Marsh falava sobre o campo alto. A Velha Romã pensou que eu estava espionando ele e anunciou que não suportaria assassinos ouvindo seus conselhos. Eu disse que, se isso era verdade, talvez não devesse falar ao lado do fogo. Bowen ficou vermelho e fez alguns sons abafados, mas isso foi tudo. - O selvagem sentou-se na beirada da janela, deslizando sua adaga da bainha. - Se algum corvo quiser deslizar uma faca entre minhas costelas enquanto eu estiver tomando alguma sopa, sua tentativa será bem-vinda. A gororoba de Hobb teria um gosto melhor com uma gota de sangue para temperá-la.
Melisandre não prestou atenção no aço nu. Se o selvagem pretendesse feri-la, ela teria visto nas chamas. Perigo contra sua própria pessoa fora a primeira coisa que aprendera a ver, ainda quando era meio criança, uma garota escrava comprometida por toda a vida com o grande templo vermelho. Ainda era a primeira coisa pela qual procurava todas as vezes que olhava para dentro do fogo.
- E com os olhos deles que deve se preocupar, não com suas facas - ela o avisou.
- A sedução, sim. - No grilhão de ferro negro em seu pulso, o rubi parecia pulsar. Ele bateu na pedra com a ponta de sua lâmina. O metal fez um suave estalido contra a pedra. - Sinto isso quando estou dormindo. Quente contra minha pele, mesmo através do ferro. Suave como um beijo de mulher. Seu beijo. Mas algumas vezes, em meus sonhos, ele começa a queimar, e seus lábios se transformam em dentes. Todo dia eu penso em como seria fácil arrancá-lo, e todo dia eu não o arranco. Devo vestir os malditos ossos também?
- O feitiço é feito de sombras e sugestões. Homens veem o que esperam ver. E os ossos são parte disso. - Eu estava errada em poupar este? - Se a sedução falhar, eles o matarão.
O selvagem começou a tirar sujeira debaixo da unha com a ponta da adaga.
- Cantei minhas canções, lutei minhas batalhas, bebi vinho do verão, experimentei a esposa de um dornense. Um homem deve morrer do jeito que viveu. No meu caso, isso significa aço na mão.
Ele sonhou com a morte? Pode o inimigo tê-lo tocado? A morte é seu domínio, e mortos são seus soldados.
- Você deve ter seu aço de volta muito em breve. O inimigo está se movendo, o inimigo verdadeiro. E os patrulheiros de Lorde Snow retornarão antes que o dia termine, com seus olhos cegos e sangrentos.
Os olhos do selvagem se estreitaram. Olhos cinzentos, olhos castanhos; Melisandre podia ver a cor mudar com cada pulsação do rubi.
- Arrancar os olhos, isso é trabalho do Chorão. O melhor corvo é o corvo cego, ele gostava de dizer. Algumas vezes penso que ele gostaria de arrancar os próprios olhos, que estão sempre lacrimejantes e coçando. Snow imaginou que o povo livre iria até Tormund, para que ele os liderasse, porque é o que ele faria. Ele gostava de Tormund, e a velha fraude gostava dele também. Mas se for o Chorão ... isso não seria bom. Nem para ele, nem para nós.
Melisandre assentiu solenemente, como se tivesse guardado as palavras dele no coração, mas esse Chorão não importava. Ninguém do povo livre importava. Eram um povo perdido, um povo condenado, destinado a desaparecer da terra, como os filhos da floresta tinham desaparecido. Mas essas não eram palavras que ele gostaria de ouvir, e ela não se arriscaria em perdê-lo, não agora.
- Quão bem você conhece o Norte?
Ele guardou a lâmina.
- Tão bem quanto qualquer patrulheiro. Algumas partes mais do que outras. O Norte é muito grande. Por quê?
- A garota - ela disse. - A garota de cinza em um cavalo moribundo. A irmã de Jon Snow. - Quem mais poderia ser? Ela estava correndo para ele em busca de proteção, isso Melisandre vira claramente. - Eu a vi em minhas chamas, mas apenas uma vez. Temos que ganhar a confiança do Senhor Comandante, e a única maneira de fazer isso é salvando a garota.
- Eu salvando ela, você quer dizer? O Senhor dos Ossos? - ele riu. - Ninguém jamais confiou em Camisa de Chocalho, exceto tolos. Snow não é tolo. Se sua irmã precisa ser salva, ele mandará seus corvos. Eu mandaria.
- Ele não é você. Ele fez seus votos, e isso significa viver por eles. A Patrulha da Noite não toma partido. Mas você não é da Patrulha da Noite. Você pode fazer o que ele não pode.
- Se o seu senhor comandante de pescoço duro permitir. Seu fogo mostrou onde encontrar a garota?
- Vi água. Profunda, azul e calma, com uma fina crosta de gelo se formando sobre ela. Parecia continuar e continuar para sempre.
- Lago Longo. O que mais você viu ao redor dessa garota?
- Montanhas. Campos. Árvores. Um cervo, uma vez. Pedras. Ela fica bem longe das aldeias. Quando pode, cavalga no leito dos pequenos riachos, para afastar os caçadores do seu rastro.
Ele franziu o cenho.
- Isso torna difícil. Ela estava vindo em direção norte, você diz. O lago estava a leste ou a oeste dela?
Melisandre fechou os olhos, recordando-se.
- Oeste.
- Ela não está vindo pela estrada do rei, então. Garota esperta. Há menos testemunhas do outro lado, e mais cobertura. E alguns esconderijos que eu mesmo usei nos tempos ... - Ele se calou ao som do berrante de guerra e ficou em pé rapidamente. Em todo Castelo Negro, Melisandre sabia, o mesmo silêncio repentino caíra, e cada homem e garoto se virara para a Muralha, ouvindo, esperando. Um sopro longo no berrante significava patrulheiros retornando, mas dois ...
O dia chegou, pensou a sacerdotisa vermelha. Lorde Snow terá que me ouvir agora. Depois que o longo grito lúgubre do berrante sumiu, o silêncio pareceu estender-se por uma hora. O selvagem finalmente quebrou o feitiço.
- Apenas um, então. Patrulheiros.
- Patrulheiros mortos. - Melisandre ficou em pé também. - Vá colocar seus ossos e espere. Eu voltarei.
- Eu deveria ir com você.
- Não seja tolo. Assim que encontrarem o que vão encontrar, a visão de qualquer selvagem vai inflamá-los. Fique aqui até que o sangue deles tenha tempo de esfriar.
Devan estava subindo os degraus da Torre do Rei, enquanto Melisandre descia, flanqueada por dois dos guardas que Stannis lhe deixara. O garoto levava seu desjejum meio esquecido em uma bandeja.
- Esperei que Hobb tirasse pães frescos do forno, minha senhora. Ainda estão quentes.
- Deixe isso em meus aposentos. - O selvagem comeria, provavelmente. - Lorde Snow precisa de mim, para lá da Muralha. - Ele ainda não sabe, mas logo ...
Lá fora, a neve começara a cair. Uma multidão de corvos havia se reunido ao redor do portão quando Melisandre e sua escolta chegaram, mas abriram caminho para a sacerdotisa vermelha. O Senhor Comandante a precedera através do gelo, acompanhado por Bowen Marsh e vinte lanceiros. Snow também enviara uma dúzia de arqueiros para o alto da Muralha, para o caso de algum inimigo estar escondido na floresta próxima. Os guardas no portão não eram homens da rainha, mas lhe deram passagem do mesmo jeito.
Era frio e escuro sob o gelo, no estreito túnel que se retorcia e deslizava através da Muralha. Morgan seguiu à frente dela com uma tocha e Merrel veio atrás, com um machado. Os dois homens eram bêbados sem esperança, mas estavam sóbrios a essa hora da manhã. Homens da rainha, ao menos no nome, ambos tinham um temor saudável dela, e Merrel podia ser formidável quando não estava bêbado. Não precisaria deles hoje, mas Melisandre fazia questão de manter um par de guardas com ela aonde quer que fosse. Isso transmitia uma certa mensagem. As armadilhas do poder.
Quando saíram ao norte da Muralha, a neve caía de forma constante. Um esfarrapado cobertor branco cobria a terra rasgada e torturada que se estendia da Muralha até o início da floresta assombrada. Jon Snow e seus irmãos negros estavam reunidos ao redor de três lanças, a uns vinte metros de distância.
As lanças tinham dois metros e meio de comprimento e eram feitas de freixo. A da esquerda tinha uma suave curvatura, mas as outras duas eram lisas e retas. No topo de cada uma estava empalada uma cabeça decepada. Suas barbas estavam cheias de gelo, e a neve que caía lhes dera capuzes brancos. Seus olhos tinham sumido, apenas buracos vazios restavam, buracos negros e sangrentos que encaravam em silenciosa acusação.
- Quem eram? - Melisandre perguntou para os corvos.
- Jack Negro Bulwer, Hal Peludo e Garth Pena-Cinza - Bowen Marsh disse solenemente. - O chão está meio congelado. Os selvagens devem ter levado metade da noite para fincar as lanças tão fundo. Ainda podem estar por perto. Nos observando. - O Senhor Intendente olhou para a fileira de árvores.
- Pode haver centenas deles lá - disse um irmão negro com um rosto sisudo. - Podem ser milhares.
- Não - disse Jon Snow. - Eles deixaram seus presentes na escuridão da noite e fugiram. - Seu imenso lobo gigante branco rondava as hastes, farejando, então levantou a perna e mijou na lança que segurava a cabeça de Jack Negro Bulwer. - Fantasma teria sentido o cheiro deles se estivessem por aqui.
- Espero que o Chorão tenha queimado os corpos deles - disse o homem sisudo, aqueles a quem chamavam de Edd Doloroso. - De outra forma, podem vir procurar suas cabeças.
Jon Snow agarrou a lança que segurava Garth Pena-Cinza e a arrancou violentamente do solo.
- Tirem os outros dois - ordenou, e quatro de seus corvos correram para obedecer.
As bochechas de Bowen Marsh estavam vermelhas de frio.
- Nunca deveríamos ter enviado patrulheiros.
- Este não é o momento nem lugar para cutucar essa ferida. Não aqui, meu senhor. Não agora. - Para os homens lutando com as lanças, Snow disse: - Levem as cabeças e queimem-nas. Não deixem nada além de ossos. - Somente então pareceu notar Melisandre. - Minha senhora. Caminhe comigo, se quiser.
Finalmente.
- Se for do agrado do Senhor Comandante.
Enquanto caminhavam sob a Muralha, ela deslizou o braço pelo dele. Morgan e Merrel iam à frente, Fantasma rondando em seus calcanhares. A sacerdotisa não falou, mas diminuiu o passo deliberadamente e, onde pisava, o gelo começava a gotejar. Ele não deixará de notar isso.
Sob a grade de ferro de um mata-cão, Snow quebrou o silêncio, como ela sabia que faria.
- E os outros seis?
- Não os vi - Melisandre disse.
- Você olhou?
- É claro, meu senhor.
- Recebemos um corvo de Sor Oenys Mallister da Torre Sombria - Jon Snow contou para ela. - Seus homens têm visto fogueiras nas montanhas do outro lado da Garganta. Selvagens se juntando, Sor Oenys acredita. Ele acha que tentarão pressionar a Ponte das Caveiras novamente.
- Alguns podem. - Poderiam as caveiras de sua visão significar essa ponte? De alguma maneira, Melisandre achava que não. - Se vierem, esse ataque não será mais do que uma diversão. Vi torres à beira-mar, submersas em uma maré negra e sangrenta. É aí onde o ataque mais pesado cairá.
- Atalaialeste?
Será? Melisandre vira Atalaialeste do Mar com o Rei Stannis. Era onde Sua Graça deixara a Rainha Selyse e a filha deles, Shireen, quando reunira os cavaleiros para marchar para o Castelo Negro. As torres em suas chamas eram bem diferentes, mas isso era frequente em suas visões.
- Sim. Atalaialeste, meu senhor.
- Quando?
Ela estendeu as mãos.
- Amanhã. Na próxima lua. Em um ano. E pode ser que, se agir, você possa evitar completamente o que vi. - De outro modo, para que serviriam as visões?
- Bom - disse Snow.
A multidão de corvos tinha dobrado de tamanho no momento em que emergiram de baixo da Muralha. Os homens se espremiam em torno deles. Melisandre conhecia uns poucos pelo nome; o cozinheiro Hobb Três-Dedos, Mully, com seu cabelo laranja oleoso, o garoto estúpido chamado Owen, o Idiota, o bêbado Septão Celladar.
- É verdade, senhor? - perguntou Hobb Três-Dedos.
- Quem é? - perguntou Owen, o Idiota. - Não é Dywen, é?
- Nem Garth - disse um homem da rainha que ela conhecia como Alf de Runnymudd, um dos primeiros a trocar seus sete deuses falsos pela verdade de R'hllor. - Garth é esperto demais para aqueles selvagens.
- Quantos? - quis saber Mully.
- Três - Jon contou para eles. - Jack Negro, Hal Peludo e Garth.
Alf de Runnymudd deu um grito alto o suficiente para acordar quem estivesse dormindo na Torre Sombria.
- Coloque-o na cama e dê um vinho quente para ele - Jon disse para Hobb Três-Dedos.
- Lorde Snow - Melisandre disse calmamente. - Viria comigo até a Torre do Rei? Tenho mais para compartilhar com você.
Ele olhou para o rosto dela por um longo momento, com aqueles frios olhos cinzentos. Sua mão direita fechou, abriu, fechou novamente.
- Como quiser. Edd, leve Fantasma de volta aos meus aposentos.
Melisandre tomou isso como um sinal e dispensou sua própria guarda também. Cruzaram o pátio juntos, apenas os dois. A neve caía ao redor deles. Ela andava o mais perto de Jon Snow que se atrevia, perto o suficiente para sentir a desconfiança transbordando dele, como uma névoa negra. Ele não me ama, nunca me amará, mas fará uso de mim. Muito bem. Melisandre dançara a mesma dança com Stannis Baratheon, bem no começo. Na verdade, o jovem senhor comandante e seu rei tinham mais em comum do que qualquer um dos dois jamais estaria disposto a admitir. Stannis fora um filho mais novo vivendo à sombra do irmão mais velho, assim como Jon Snow, bastardo, sempre eclipsado por seu irmão legítimo, o herói caído que os homens chamavam de Jovem Lobo. Ambos eram descrentes por natureza, desconfiados, suspeitosos. Os únicos deuses que veneravam verdadeiramente eram a honra e o dever.
- Você não tem me perguntado sobre sua irmã - Melisandre disse, enquanto subiam os degraus em espiral da Torre do Rei.
- Eu disse para você. Não tenho irmã. Colocamos nossos parentes de lado quando pronunciamos nossas palavras. Não posso ajudar Arya, por mais que eu ...
Ele se calou quando entraram nos aposentos dela. O selvagem estava ali, sentado na mesa dela, passando manteiga em um pedaço irregular de pão preto quente com sua adaga. Ele vestira a armadura de ossos, Melisandre ficou satisfeita em ver. O crânio quebrado de gigante que usava como elmo descansava no assento da janela atrás dele.
Jon Snow ficou tenso.
- Você.
- Lorde Snow. - O selvagem sorriu para eles através daquela boca de dentes marrons e quebrados. O rubi em seu pulso brilhava na luz da manhã como uma opaca estrela vermelha.
- O que está fazendo aqui?
- Quebrando meu jejum. Você é bem-vindo para partilhar.
- Não partirei pão com você.
- Você perde. O pão ainda está quente. Hobb faz isso muito bem, pelo menos. - O selvagem deu uma mordida. - Eu poderia visitar você tão facilmente, meu senhor. Aqueles guardas em sua porta são uma piada de mau gosto. Um homem que escalou a Muralha meia centena de vezes pode subir em uma janela com bastante facilidade. Mas o que de bom viria de sua morte? Os corvos apenas escolheriam alguém pior. - Mastigou, engoliu. - Fiquei sabendo dos seus patrulheiros. Você devia ter me mandado com eles.
- Para que pudesse traí-los com o Chorão?
- Estamos falando sobre traições? Qual era o nome daquela sua esposa selvagem, Snow? Ygritte, não era? - O selvagem se virou para Melisandre. - Precisarei de cavalos. Meia dúzia dos bons. E isso não é algo que eu possa fazer sozinho. Algumas das esposas de lança encurraladas na Vila Toupeira devem servir. Mulheres podem ser melhores para isso. A garota vai confiar mais nelas, e elas me ajudarão com certo estratagema que tenho em mente.
- Do que ele está falando? - Lorde Snow perguntou para ela.
- De sua irmã. - Melisandre colocou a mão no braço dele. - Você não pode ajudá-la, mas ele pode.
Snow puxou o braço.
- Acho que não. Você não conhece essa criatura. Camisa de Chocalho poderia lavar a mão uma centena de vezes ao dia e ainda teria sangue sob as unhas. Ele gostaria mais de estuprar e matar Arya do que de salvá-la. Não. Se foi isso que viu em suas chamas, minha senhora, você deve ter cinzas nos olhos. Se ele tentar deixar Castelo Negro sem minha permissão, eu mesmo cortarei a cabeça dele.
Ele não me deixa escolha. Que assim seja.
- Devan, deixe-nos - ela disse, e o escudeiro saiu e fechou a porta atrás de si.
Melisandre tocou o rubi em seu pescoço e falou uma palavra.
O som ecoou estranhamente pelos cantos do quarto e se torceu como um verme dentro dos ouvidos deles. O selvagem ouviu uma palavra, o corvo, outra. Nenhuma delas era a palavra que saíra dos lábios dela. O rubi no pulso do selvagem escureceu, e feixes de luz e sombra ao redor dele se contorciam e se esvaíam.
Os ossos permaneceram; o chocalho de costelas, as garras e os dentes ao longo dos braços e ombros, a grande clavícula amarelada através de seus ombros. O crânio quebrado de gigante permanecia um crânio quebrado de gigante, amarelado e rachado, com um sorriso selvagem e manchado.
Mas o bico de viúva sumiu. O bigode castanho, o queixo protuberante, a lívida carne amarelada e os pequenos olhos escuros, tudo derreteu. Dedos cinzentos rastejaram por longos cabelos castanhos. Linhas de riso apareceram no canto da boca. De uma só vez, ele ficara maior do que antes, mais largo de peito e ombros, com pernas longas e magras, o rosto sem barba e queimado pelo vento.
Os olhos cinza de Jon Snow ficaram maiores.
- Mance?
- Lorde Snow. - Mance Rayder não sorriu.
- Ela queimou você.
- Ela queimou o Senhor dos Ossos.
Jon Snow se virou para Melisandre.
- Que feitiçaria é essa?
- Chame como quiser. Sedução, aparição, ilusão. R'hllor é o Senhor da Luz, Jon Snow, e é dado para seus servos tecer com isso, como outros tecem com fios.
Mance Rayder riu.
- Eu também tinha minhas dúvidas, Snow, mas por que não deixá-la tentar? Era isso, ou Stannis me assando.
- Os ossos ajudam - disse Melisandre. - Os ossos se lembram. As seduções mais fortes são construídas com tais coisas. Uma bota de um homem morto, um tufo de cabelo, um saco de dedos da mão. Com palavras suspiradas e orações, a sombra de um homem pode ser tirada de um e vestida em outro como um manto. A essência de quem veste não muda, apenas sua aparência.
Ela fazia isso soar uma coisa simples e fácil. Eles não precisavam saber quão difícil tinha sido ou quanto custara para ela. Essa era uma lição que Melisandre aprendera havia muito tempo, em Asshai; quanto mais fácil o feitiço parecia, mais os homens temiam o feiticeiro. Quando as chamas lamberam Camisa de Chocalho, o rubi na garganta dela ficara tão quente que ela temera que sua própria carne começasse a soltar fumaça e ficar negra. Por sorte, Lorde Snow a livrara daquela agonia com suas flechas. Enquanto Stannis se agitara com o desafio, ela estremecera de alívio.
- Nosso falso rei tem modos espinhosos - Melisandre contou para Jon Snow - mas não trairá você. Ainda temos o filho dele, lembre-se. E ele deve a própria vida a você.
- A mim? - Snow pareceu assustado.
- A quem mais, meu senhor? Apenas o sangue da vida dele poderia pagar por seus crimes, suas leis dizem, e Stannis Baratheon não é homem de ir contra as leis ... mas, como você mesmo falou tão sabiamente, as leis dos homens acabam na Muralha. Eu lhe afirmei que o Senhor da Luz ouviria suas preces. Você queria um meio de salvar sua irmãzinha e ainda agarrar-se à honra que significa tanto para você, aos votos que jurou diante de seu deus de madeira. - Ela apontou para Mance com um dedo pálido. - Ali está, Lorde Snow. A libertação de Arya. Um presente do Senhor da Luz ... e meu. 

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