quarta-feira, 18 de setembro de 2013

3 - CERSEI



Ela sonhou que estava sentada no Trono de Ferro, bem alto, acima de todos eles.
Os cortesãos eram ratos brilhantemente coloridos lá embaixo. Grandes senhores e orgulhosas senhoras ajoelhavam-se diante dela. Valentes jovens cavaleiros depositavam as espadas aos seus pés e suplicavam-lhe favores, e a rainha sorria para eles. Até que o anão apareceu, surgido de parte nenhuma, apontando para ela e uivando de riso. Os senhores e as senhoras começaram também a soltar risinhos, escondendo o sorriso atrás das mãos. Foi só então que a rainha percebeu que estava nua.
Horrorizada, tentou cobrir-se com as mãos. As farpas e lâminas do Trono de Ferro morderam-lhe a carne quando se agachou para esconder a vergonha. O sangue escorreu-lhe, rubro, pelas pernas, enquanto dentes de aço lhe mordiam as nádegas. Quando tentou se levantar, o pé enfiou-se numa fenda de metal retorcido. Quanto mais lutava, mais o trono a engolia, arrancando pedaços de carne de seus seios e barriga, cortando-lhe os braços e as pernas até os deixar luzidios e cintilantes de vermelho.
E o irmão não parava de rolar lá embaixo, rindo.
O divertimento dele ainda lhe ecoava nos ouvidos quando sentiu um leve toque no ombro e acordou de repente. Durante meio segundo, a mão pareceu fazer parte do pesadelo, e Cersei gritou, mas era apenas Senelle. O rosto da aia estava branco e assustado.
Não estamos sozinhas, percebeu a rainha. Sombras erguiam-se ao redor de sua cama, silhuetas altas com cota de malha a luzir debilmente por baixo de seus mantos. Homens armados não tinham nada a fazer ali. Onde estão os meus guardas? O quarto encontrava-se mergulhado na escuridão, exceto pela lanterna que um dos intrusos segurava bem alto.
Não posso mostrar medo, Cersei afastou para trás os cabelos desgrenhados pelo sono e disse:
- Que querem de mim? - um homem avançou sob a luz da lanterna, e ela viu que seu manto era branco. - Jaime? - sonhei com um irmão, mas o outro veio me acordar.
- Vossa Graça? - a voz não era a do irmão. - O Senhor Comandante disse para vir buscá-la - os cabelos dele encaracolavam-se como os de Jaime, mas os do irmão eram ouro batido, tais como os dela, ao passo que os daquele homem eram mais escuros e oleosos. Fitou-o, confusa, enquanto ele resmungava qualquer coisa acerca de uma latrina e uma besta, e dizia o nome do pai. Ainda estou sonhando, pensou Cersei. Não acordei, e meu pesadelo não terminou. Tyrion sairá em breve de debaixo da cama e começará a rir de mim.
Mas aquilo era uma loucura. O irmão anão encontrava-se nas celas negras, condenado a morrer exatamente naquele dia. Olhou para as mãos, virando-as para se certificar de que ainda tinha todos os dedos. Quando passou a mão pelo braço, a pele estava arrepiada, mas sem cortes. Não havia ferimentos em suas pernas, nem um rasgão nas solas dos pés. Um sonho, foi só isso, um sonho, Bebi demais na noite passada, esses medos são só humores nascidos do vinho. Quem rirá serei eu, ao anoitecer. Meus filhos estarão a salvo, o trono de Tommen estará seguro e meu retorcido pequeno valonqar terá um a cabeça a menos e estará apodrecendo.
Jocelyn Swyft estava junto ao seu cotovelo, pressionando-a para que pegasse uma taça. Cersei bebeu um gole; água com algumas gotas de limão, tão azeda que a cuspiu. Ouvia o vento noturno agitando as janelas, e via com uma estranha clareza penetrante. Jocelyn tremia como uma folha, tão assustada quanto Senelle. Sor Osmund Kettleblack pairava acima dela. Atrás dele encontrava-se Sor Boros Blount, com uma lanterna. À porta, havia guardas Lannister com leões dourados cintilando no topo dos capacetes. Também pareciam assustados. Poderá ser?, perguntou a rainha a si mesma. Poderá ser verdade?
Ergueu-se e permitiu que Senelle lhe pusesse um roupão sobre os ombros para esconder sua nudez. Foi a própria Cersei quem atou o cinto, sentindo os dedos rígidos e desastrados.
- O senhor meu pai mantém guardas à minha volta, de noite e de dia - disse. Sentia a língua pesada. Bebeu outro gole de água com limão e fez bochechos para lhe refrescar o hálito. Uma mariposa entrara na lanterna que Sor Boros segurava; conseguia ouvi-la zumbindo e via a sombra de suas asas enquanto batia no vidro.
- Os guardas estavam em seus postos, Vossa Graça - disse Osmund Kettleblack. - Encontram os uma porta escondida atrás da lareira. Um a passagem secreta. O Senhor Comandante desceu para ver onde vai dar.
- Jaime? - o terror a capturou, súbito como uma tempestade. - Jaime devia estar com o rei...
- O garoto nada sofreu. Sor Jaime enviou uma dúzia de homens para ver como ele se encontrava. Sua Graça dorme em paz.
Que tenha um sonho melhor do que o meu, e um despertar mais suave.
- Quem está com o rei?
- Sor Loras tem essa honra, se lhe aprouver.
Não aprazia. Os Tyrell não passavam de intendentes que os reis do dragão tinham elevado muito acima de seu estatuto. Sua vaidade era excedida apenas por sua ambição. Sor Loras podia ser tão lindo quanto um sonho de donzela, mas por baixo de seu manto branco era Tyrell até os ossos. Tanto quanto sabia, o maligno fruto daquela noite fora plantado e nutrido em Jardim de Cima.
Mas essa era uma suspeita que não se atrevia a exprimir em voz alta.
- Permita-me um momento para que me vista. Sor Osmund, acompanhe-me à Torre da Mão. Sor Boros, desperte os carcereiros e certifique-se de que o anão continua em sua cela - não queria proferir seu nome. Ele nunca teria encontrado coragem para erguer a mão contra o pai, disse a si mesma, mas tinha de ter certeza.
- Às ordens de Vossa Graça - Blount entregou a lanterna a Sor Osmund. Cersei não se sentiu insatisfeita por vê-lo pelas costas. O pai nunca devia ter lhe devolvido o branco. O homem provara ser um covarde.
Quando abandonaram a Fortaleza de Maegor, o céu tomara um profundo tom de azul-cobalto, embora as estrelas ainda brilhassem. Todas menos uma, pensou Cersei. A estrela brilhante do oeste caiu, e agora as noites serão mais escuras. Fez uma pausa sobre a ponte levadiça que transpunha o fosso seco, fitando os espigões no fundo deste. Eles não se atreveriam a mentir para mim sobre uma coisa dessas.
- Quem foi que o encontrou?
- Um de seus guardas - disse Sor Osmund. - Lum. Sentiu o chamamento da natureza e encontrou sua senhoria na latrina.
Não, isto não pode ser. Não é assim que um leão morre. A rainha sentia-se estranhamente calma. Lembrou-se da primeira vez que perdera um dente, quando não era mais que uma menininha. Não doera, mas o buraco que ficara na boca era tão estranho que não conseguia parar de tocá-lo com a língua. Agora há um buraco no mundo onde estava o pai, e os buracos querem algo que os preencha.
Se Tywin Lannister estava realmente morto, ninguém se encontrava a salvo... principalmente seu filho, no trono. Quando o leão cai, as feras menores avançam, os chacais, os abutres e os cães bravios. Iriam tentar deixá-la de lado, como sempre tinham feito. Teria de agir depressa, como quando Robert morrera. Aquilo podia ser obra de Stannis Baratheon, por intermédio de algum homem a soldo. Podia perfeitamente ser o prelúdio de outro ataque contra a cidade. Esperava que fosse. Que ele venha. Vou esmagá-lo, tal como meu pai fez, e desta vez morrerá. Stannis não a assustava mais do que Mace Tyrell. Ninguém a assustava. Era uma filha do Rochedo, um leão. Não haverá mais conversas sobre me obrigarem a voltar a casar. Rochedo Casterly agora era seu, com todo o poder da Casa Lannister. Nunca mais ninguém a menosprezaria. Mesmo quando Tommen deixasse de ter necessidade de um regente, a Senhora de Rochedo Casterly continuaria a ser uma força a ter em conta.
O sol nascente pintara de vermelho-vivo o topo das torres, mas a noite ainda se acumulava sob as muralhas. O castelo exterior estava tão silencioso que poderia imaginá-lo com todos mortos. E deviam estar. Não convém que Lorde Tywin morra só. Um homem como ele merece uma comitiva para cuidar de suas necessidades no inferno.
Quatro lanceiros com manto vermelho e elmo coroado por leões guardavam a porta da Torre da Mão.
- Ninguém deve entrar ou sair sem a minha autorização - disse-lhes. A ordem veio-lhe fácil. Meu pai também tinha aço na voz.
Dentro da torre, a fumaça dos archotes irritou-lhe os olhos, mas Cersei não chorou, como o pai não teria chorado. Sou o único verdadeiro filho que ele teve. Os calcanhares raspavam na pedra enquanto subia, e ainda conseguia ouvir a mariposa esvoaçando furiosamente dentro da lanterna de Sor Osmund. Morra, pensou a rainha, irritada, voe para a chama e acabe com isso.
No topo da escada encontravam-se mais dois guardas de manto vermelho. Lester Vermelho murmurou uma condolência quando ela passou. A respiração da rainha era rápida e pouco profunda, e ela sentia o coração tamborilar no peito. Os degraus, disse a si mesma, esta maldita torre tem degraus demais. Estava quase decidida a derrubá-la.
O salão estava cheio de tolos que falavam em murmúrios, como se Lorde Tywin estivesse dormindo e eles tivessem medo de acordá-lo. Tanto os guardas como os criados se encolhiam diante dela, com as bocas se movendo. Via suas gengivas cor-de-rosa e as línguas se mexendo, mas suas palavras não faziam mais sentido do que o zumbido da mariposa. O que estão fazendo aqui? Como souberam ? O correto teria sido chamarem-na primeiro. Ela era a Rainha Regente, ter-se-iam esquecido disso?
À porta do quarto da Mão encontrava-se Sor Meryn Trant com sua armadura e manto brancos. A viseira do seu elmo estava aberta, e as bolsas sob os olhos davam-lhe um ar de quem ainda estava adormecido.
- Tire essa gente daqui - disse-lhe Cersei. - Meu pai está na latrina?
- Levaram-no de volta para a cama, senhora - Sor Meryn abriu a porta para que entrasse.
A luz da manhã entrava em diagonal através das janelas e pintava barras douradas nas esteiras espalhadas pelo chão do quarto. Tio Kevan estava de joelhos ao lado da cama, tentando rezar, mas quase não conseguia forçar as palavras a sair. Guardas aglomeravam-se perto da lareira. A porta secreta de que Sor Osmund falara encontrava-se escancarada por trás das cinzas; não era maior que um forno. Um homem teria de engatinhar. Mas Tyrion é só meio homem. O pensamento a irritou. Não, o anão está trancado numa cela negra. Aquilo não podia ser obra sua. Stannis, disse a si mesma, é Stannis quem está por trás disso. Ele ainda tem partidários na cidade. Ele, ou os Tyrell...
Sempre se falara de passagens secretas no interior da Fortaleza Vermelha. Supunha-se que Maegor, o Cruel, matara os homens que construíram o castelo a fim de manter o conhecimento sobre elas secreto. Quantos outros quartos terão portas escondidas? Cersei teve uma súbita visão do anão de quatro, saindo de detrás de uma tapeçaria no quarto de Tommen com uma lâmina na mão. Tommen está bem guardado, disse a si mesma. Mas Lorde Tywin também estivera.
Por um momento, não reconheceu o morto. Sim, tinha cabelos semelhantes aos do pai, mas aquele era decerto outro homem qualquer, um homem menor, e muito mais velho. Tinha o roupão puxado para cima, sobre o peito, o que o deixava nu abaixo da cintura. O dardo atingira-o na virilha, entre o umbigo e o membro viril, e penetrara tão profundamente que apenas se viam as penas. Os pelos púbicos tinham endurecido por causa do sangue seco. Mais sangue coagulava no umbigo.
O cheiro que ele exalava a fez torcer o nariz.
- Tire-lhe o dardo do corpo - ordenou. - Este homem é a Mão do Rei! - e o meu pai. O senhor meu pai. Deveria gritar e arrancar os cabelos? Dizia-se que Catelyn Stark rasgara o próprio rosto em tiras sangrentas quando os Frey mataram seu precioso Robb. Gostaria disso, pai? Desejou perguntar a ele. Ou preferiria que eu fosse forte? Chorou por seu pai? O avô morrera quando Cersei tinha apenas um ano de idade, mas conhecia a história. Lorde Tytos tornara-se muito gordo, e o coração rebentara-lhe um dia, enquanto subia as escadas para ir ter com a amante. O pai de Cersei encontrava-se em Porto Real quando aconteceu, servindo como Mão do Rei Louco. Lorde Tywin estivera com frequência em Porto Real quando ela e Jaime eram jovens. Se ele chorara quando lhe trouxeram a notícia da morte do pai, fizera-o onde ninguém pudesse ver-lhe as lágrimas.
A rainha sentia as unhas enterrarem-se nas palmas das mãos.
- Como puderam deixá-lo assim? Meu pai foi Mão de três reis, o maior homem que alguma vez caminhou nos Sete Reinos. Os sinos devem soar por ele, tal como soaram por Robert. Tem de ser banhado e vestido como é próprio de sua posição, de arminho, pano de ouro e seda carmesim. Onde está Pycelle? Onde está Pycelle? - virou-se para os guardas. - Puckens, traga o Grande Meistre Pycelle. Ele precisa ver Lorde Tywin,
- Ele já o viu, Vossa Graça - Puckens respondeu. - Veio, viu, e foi-se, para chamar as irmãs silenciosas.
Foram me buscar por último. Perceber aquilo deixou-a quase furiosa demais para falar. E Pycelle corre p ara enviar um a mensagem em vez de sujar suas mãos moles e enrugadas. O homem é um inútil.
- Encontre Meistre Ballabar - ordenou. - Encontre Meistre Frenken. Qualquer um dos dois -Puckens e Orelha-Curta correram para obedecê-la. - Onde está meu irmão?
- Lá embaixo, no túnel. Há um poço, com degraus de ferro presos à pedra. Sor Jaime foi ver até que profundidade chega.
Ele só tem uma mão, quis gritar-lhes. Devia ter sido um de vocês a ir. Ele não tem nada que andar descendo escadas. Os homens que assassinaram nosso pai podem estar lá em baixo, à espera dele, O irmão gêmeo sempre fora impetuoso demais e, segundo parecia, nem mesmo perder uma mão o ensinara a ter cautela. Estava prestes a ordenar aos guardas para descerem à procura de Jaime e o trazerem de volta quando Puckens e Orelha-Curta regressaram com um homem de cabelos grisalhos entre os dois.
- Vossa Graça - Orelha-Curta disse - este diz que era um meistre.
O homem fez uma profunda reverência.
- Como posso servir Vossa Graça?
O rosto do homem lhe era vagamente familiar, embora não fosse capaz de se lembrar. Velho, mas não tão velho quanto Pycelle. Este ainda tem em si alguma força. Era alto, embora tivesse as costas ligeiramente tortas, e mostrava rugas em volta dos ousados olhos azuis. Tem a garganta nua.
- Não usa corrente de meistre.
- Foi-me tirada. Meu nome é Qyburn, se aprouver a Vossa Graça. Tratei a mão de seu irmão.
- Seu coto, você quer dizer - agora lembrava-se dele. Viera de Harrenhal com Jaime.
- Não consegui salvar a mão de Sor Jaime, é verdade. Minhas artes salvaram-lhe o braço, porém, e talvez mesmo a vida. A Cidadela tirou-me a corrente, mas não puderam me tirar os conhecimentos.
- Talvez seja suficiente - decidiu - Se falhar, perderá mais do que uma corrente, garanto-lhe. Tire o dardo da barriga de meu pai e o prepare para as irmãs silenciosas.
- Às ordens de minha rainha - Qyburn dirigiu-se à cama, fez uma pausa, olhou para trás. - E como é que lido com a garota, Vossa Graça?
- Garota? - Cersei não reparara no segundo corpo. Aproximou-se a passos largos da cama, atirou para o lado a pilha de colchas ensanguentadas e lá estava ela, nua, fria, e rosada,.. exceto o rosto, que se tornara tão negro quanto o de Joff no banquete de casamento. Uma corrente de mãos de ouro ligadas umas às outras estava meio enterrada na carne de sua garganta, torcida com tanta força que lhe rasgara a pele. Cersei silvou como uma gata irritada.
- O que ela faz aqui?
- Nós a encontramos aí, Vossa Graça - Orelha-Curta respondeu. - É a amante do Duende - como se isso explicasse por que ela estava ali.
O senhor meu pai não tinha nenhum a utilidade a dar a prostitutas, pensou. Depois da morte de nossa mãe, nunca tocou numa mulher. Lançou ao guarda um frio olhar.
- Isto não é... quando o pai de Lorde Tywin morreu, ele regressou a Rochedo Casterly e foi encontrar uma... uma mulher dessa espécie... adornada com as joias da senhora sua mãe, usando um de seus vestidos. Ele os arrancou dela, e arrancou tudo o mais também. Durante uma quinzena, ela foi obrigada a desfilar, nua, pelas ruas de Lanisporto, para confessar a todos os homens que encontrasse que era ladra e meretriz. Era assim que Lorde Tywin Lannister lidava com prostitutas. Ele nunca... esta mulher estava aqui para outro fim qualquer, não para...
- Talvez sua senhoria estivesse interrogando a garota acerca de sua ama - sugeriu Qyburn. - Sansa Stark desapareceu na noite em que o rei foi assassinado, segundo ouvi dizer.
- É verdade - Cersei adotou avidamente a sugestão. - Estava interrogando-a, com certeza. Não pode haver qualquer dúvida - conseguia ver Tyrion com aquele olhar atravessado, observando-a, a boca torcida num esgar de macaco sob as ruínas do nariz. E que melhor maneira de interrogá-la do que nua, com as pernas bem abertas? Sussurrou o anão. Também é assim que gosto de interrogá-la.
A rainha virou as costas à cena. Não olharei para ela. De repente, até estar na mesma sala da morta era demais. Passou por Qyburn com um empurrão e saiu para o salão.
Sor Osmund recebera a companhia dos irmãos Osney e Osfryd.
- Há uma mulher morta no quarto da Mão - disse Cersei aos três Kettleblack. - Ninguém deve saber que ela estava aqui.
- Sim, senhora - Sor Osney tinha tênues arranhões no rosto, onde outra das prostitutas de Tyrion o tinha machucado. - E o que faremos com ela?
- Dê aos seus cães. Mantenha-a como companheira de cama. Que me importa? Ela nunca esteve aqui. Mandarei cortar a língua de qualquer homem que se atreva a dizer que esteve. Compreendeu?
Osney e Osfryd trocaram um olhar.
- Sim, Vossa Graça.
Seguiu-os de volta ao quarto e ficou observando-os envolver a garota nos cobertores ensanguentados do pai. Shae, o nome dela era Shae. A última vez que tinham conversado fora na noite anterior ao julgamento por combate do anão, depois de aquele dornês sorridente ter se oferecido como seu campeão. Shae inquirira acerca de umas joias que Tyrion lhe oferecera, e de certas promessas que Cersei poderia ter feito, uma mansão na cidade e um cavaleiro que a desposasse. A rainha deixara claro que a prostituta não obteria nada até que lhes dissesse para onde fora Sansa Stark.
- Era a aia dela. Espera que eu acredite que não sabia nada dos seus planos? - dissera. Shae partira banhando-se em lágrimas.
Sor Osfryd pôs o cadáver empacotado no ombro.
- Quero aquela corrente - disse Cersei, - Assegure-se de não arranhar o ouro - Osfryd acenou com a cabeça e se dirigiu para a porta. - Não, pelo pátio não - apontou para a passagem secreta. - Há um poço que vai dar nas masmorras. Por ali.
Quando Sor Osftyd apoiou-se num joelho diante da lareira, a luz lá dentro tornou-se mais brilhante, e a rainha ouviu ruídos. Jaime emergiu, dobrado sobre si mesmo como uma velha, com as botas fazendo pequenas nuvens com a fuligem do último fogo de Lorde Tywin.
- Saiam da frente - disse aos Kettleblack.
Cersei correu para ele.
- Você os encontrou? Encontrou os assassinos? Quantos eram? - decerto eram mais de um. Um homem sozinho não poderia ter matado seu pai.
O rosto do irmão trazia um ar descomposto.
- O poço desce até uma câmara onde se encontram meia dúzia de túneis. Estão fechados por portões de ferro, acorrentados e trancados. Preciso encontrar as chaves - lançou um relance pelo quarto. - Quem quer que tenha feito isso pode ainda estar escondido nas paredes. Aquilo ali é um labirinto, e escuro.
Cersei imaginou Tyrion engatinhando entre as paredes como uma ratazana monstruosa. Não. Está sendo tola. O anão está em sua cela.
- Ataque as paredes com martelos. Derrube esta torre, se for preciso. Quero que os encontrem. Quem quer que tenha feito isso. Quero-os mortos.
Jaime a abraçou, com a mão boa a apertar-lhe o dorso. Ele cheirava a cinzas, mas tinha o sol da manhã nos cabelos, dando-lhes um brilho dourado. Desejou puxar o rosto dele para o seu e beijá-lo. Mais tarde, disse a si mesma, mais tarde virá ter comigo, para me confortar.
- Somos os seus herdeiros, Jaime - sussurrou. - Cabe a nós terminar sua obra. Precisa tomar o lugar do pai como Mão. Agora percebe isto, certamente. Tommen irá precisar de você...
Ele a afastou e ergueu o braço, pondo-lhe o coto diante dos olhos.
- Uma Mão sem mão? Piada sem graça, irmã. Não me peça para governar.
O tio ouviu a recusa. Qyburn também, e os Kettleblack igualmente, lutando para fazer passar sua trouxa pelas cinzas. Até os guardas ouviram, Puckens, Hoke, Perna de Cavalo e Orelha-Curta. Todo o castelo saberá ao cair da noite. Cersei sentiu o calor subir-lhe ao rosto.
- Governar? Nada disse de governar. Eu governarei até meu filho ter idade.
- Não sei de quem tenho mais pena - o irmão respondeu. - Se de Tommen ou dos Sete Reinos.
Ela o esbofeteou. O braço de Jaime ergueu-se para segurar o golpe com a rapidez de um gato... mas aquele gato tinha um coto no lugar da mão direita. Os dedos dela deixaram marcas vermelhas em sua face.
O som levou o tio a se erguer.
- Seu pai jaz aqui morto. Tenham a decência de levar a briga lá para fora.
Jaime inclinou a cabeça, num pedido de desculpa.
- Perdoe-nos, tio. Minha irmã está doente de dor. Ela esquece o que é apropriado.
Cersei desejou voltar a esbofeteá-lo por aquilo. Devia estar louca quando pensei que ele podia ser Mão. Mais depressa aboliria o cargo. Quando lhe teria uma Mão trazido algo além de pesar? Jon Arryn pusera Robert Baratheon em sua cama, e antes de morrer começara também a farejar em volta dela e de Jaime. Eddard Stark apanhara o fio da meada onde Arryn o deixara; sua intromissão forçara-a a se livrar de Robert mais depressa do que teria desejado, antes de ter tempo de tratar de seus pestilentos irmãos. Tyrion vendera Myrcella aos dorneses, tomara um de seus filhos como refém e assassinara o outro. E quando Lorde Tywin regressara a Porto Real...
A próxima Mão conhecerá o seu lugar, prometeu a si mesma. Teria de ser Sor Kevan. O tio era incansável, prudente, infalivelmente obediente. Poderia contar com ele, tal como o pai contara. A mão não discute com a cabeça. Tinha um reino para governar, mas precisaria de novos homens para ajudá-la na tarefa. Pycelle era um bajulador trêmulo, Jaime perdera a coragem com a mão da espada, e Mace Tyrell e seus amiguinhos Redwyne e Rowan não eram dignos de confiança. Tanto quanto sabia, podiam ter desempenhado um papel naquilo. Lorde Tyrell devia saber que nunca governaria os Sete Reinos enquanto Tywin Lannister vivesse.
Terei de agir com cautela em relação a ele. A cidade estava cheia de seus homens, e Lorde Tyrell até conseguira plantar um de seus filhos na Guarda Real e pretendia plantar a filha na cama de Tommen. Ainda deixava-a furiosa pensar que o pai concordara em prometer Tommen a Margaery Tyrell. A garota tem o dobro da idade dele e é duas vezes viúva. Mace Tyrell afirmava que a filha ainda era virgem, mas Cersei tinha suas dúvidas. Joffrey fora assassinado antes de poder se deitar com a esposa, mas ela fora casada com Renly... Um homem pode preferir o sabor do hipocraz, mas quando se coloca um a caneca de cerveja na sua frente emborca-a bem depressa. Teria de ordenar a Lorde Varys que descobrisse o que pudesse.
Aquilo a fez parar. Esquecera-se de Varys. Ele devia estar aqui. Está sempre aqui. Sempre que algo de importância acontecia na Fortaleza Vermelha, o eunuco aparecia como que saído de parte nenhuma. Jaime está aqui, assim como tio Kevan, Pycelle chegou e partiu, mas Varys não. Um dedo frio tocou-lhe a espinha. Ele participou disto. Deve ter temido que o pai quisesse cortar-lhe a cabeça, por isso atacou primeiro. Lorde Tywin nunca sentira nenhuma amizade pelo afetado mestre dos sussurros. E se havia homem que conhecia os segredos da Fortaleza Vermelha, era certamente o mestre dos sussurros. Ele deve ter feito causa comum com Lorde Stannis. Afinal de contas, serviram juntos no conselho de Robert...
Cersei dirigiu-se à porta do quarto para falar com Sor Meryn Trant:
- Trant, traga-me Lorde Varys. Guinchando e esperneando, se preciso, mas ileso.
- Às ordens de Vossa Graça.
Mas, assim que um homem da Guarda Real partiu, outro regressou. Sor Boros Blount estava corado e ofegava da corrida precipitada degraus acima.
- Desapareceu - ele arquejou ao ver a rainha, caindo sobre um joelho. - O Duende... tem a cela aberta, Vossa Graça... não há sinal dele em lugar nenhum...
O sonho era verdadeiro.
- Eu dei ordens - disse. - Ele deveria ser mantido sob guarda, dia e noite...
O peito de Blount palpitava.
- Um dos carcereiros também desapareceu. Chamava-se Rugen. Dois outros homens foram encontrados adormecidos.
Foi com dificuldade que Cersei evitou gritar:
- Espero que não os tenha acordado, Sor Boros. Deixe-os dormir.
- Dormir? - ergueu o olhar, interrogador e confuso. - Sim, Vossa Graça. Quanto tempo deverá...
- Para sempre. Certifique-se de que durmam para sempre, sor. Não admitirei que guardas durmam em serviço - ele está nas paredes. Matou o pai, assim como a mãe, e, ainda, Joff. O anão também viria atrás dela, a rainha sabia disso, tal como a velha vaticinara na escuridão daquela tenda. Eu ri na cara dela, mas a mulher tinha poderes. Vi meu futuro numa gota de sangue. A minha perdição. Sentia as pernas fraquejarem. Sor Boros tentou segurá-la pelo braço, mas a rainha se afastou ao seu toque. Tanto quanto sabia, ele podia ser uma das criaturas de Tyrion. - Afaste-se de mim - disse. - Afaste-se! - cambaleou até um banco.
- Vossa Graça? - disse Blount. - Devo buscar uma taça de água?
Eu preciso é de sangue, não de água. 0 sangue de Tyrion, o sangue do valonqar. Os archotes rodopiaram à sua volta. Cersei fechou os olhos e viu o anão sorrindo-lhe. Não, pensou, não, já tinha quase me visto livre de você. Mas os dedos de Tyrion tinham se fechado em torno do seu pescoço, e sentia-os começar a apertar.  

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