Já
estamos lá? - Bran nunca diz;ia as palavras em voz; alta, mas elas
estavam frequentemente em seus lábios, conforme a esfarrapada
companhia marchava através de bosques de carvalhos antigos e
imponentes e sentinelas verde-acinzentadas, passando por pinheiros
sombrios e castanheiros desfolhados. Estamos perto? O garoto se
perguntava, enquanto Hodor subia uma encosta rochosa, ou descia por
alguma fenda escura, onde montes de neve suja rachavam sob seus pés.
Quanto falta? Ele pensava, cada vez; que o grande alce atravessava um
córrego semi congelado. Quanto tempo mais? Está tão frio. Cadê o
corvo de três olhos?
Balançando
na cesta de vime nas costas de Hodor, o menino debruçava-se,
abaixando a cabeça sempre que o cavalariço passava sob o galho de
um carvalho. A neve caía novamente, molhada e pesada. Hodor andava
com um dos olhos fechado congelado, a espessa barba castanha
emaranhada com a geada e gelo pendurado nas pontas do bigode. Uma mão
enluvada ainda segurava a longa espada que pegara das criptas sob
Winterfell, e de tempos em tempos ele se lançava em batalha
imaginária, espalhando a neve. - Hod-d-d-dor - resmungava, com os
dentes batendo.
O
som era estranhamente reconfortante. Na jornada de Winterfell até a
Muralha, Bran e seus companheiros haviam tornado os quilômetros mais
curtos conversando e contando histórias, mas aqui era diferente. Até
mesmo Hodor sentira. Seus hodors ficaram menos frequentes do que eram
ao sul da Muralha. Havia um silêncio naquela floresta diferente de
qualquer coisa que Bran conhecera. Antes de começar a nevar, o vento
norte rodopiava ao redor do grupo e nuvens de folhas mortas e marrons
quicavam no solo, com um crepitar que lembrava baratas correndo em um
armário. Mas agora as folhas estavam todas enterradas sob um
cobertor branco. De tempos em tempos, um corvo voava para o alto,
batendo as grandes asas negras contra o ar frio. Caso contrário, o
mundo ficava em silêncio.
Um
pouco mais à frente, o alce avançava entre os montes de neve com a
cabeça baixa, a enorme galhada coberta por uma crosta de gelo. O
cavaleiro sentava nas costas do animal, triste e silencioso. Mãos
Frias era o nome que o rapaz; gordo, Sam, lhe dera, pois embora o
homem tivesse o rosto pálido, suas mãos eram negras e duras como
ferro, e também frias como o metal. O resto dele estava envolto em
camadas de lã, couro fervido e cota de malha, suas feições
encobertas por uma capa com capuz; e um lenço preto cobrindo a
metade inferior do rosto.
Atrás
do cavaleiro, Meera Reed passara os braços ao redor do irmão, para
protegê-lo do vento e do frio com o calor do próprio corpo. Uma
crosta de ranho congelado havia se formado sob o nariz de Jojen e, de
vez em quando, ele tremia violentamente. Ele parece tão pequeno,
Bran pensou quando o viu tremer. Parece menor que eu e mais fraco
também, e eu sou o aleijado.
Verão
vinha na traseira do pequeno bando. A respiração do lobo gigante
congelava no ar da floresta, conforme ele caminhava atrás deles,
ainda mancando da pata que havia sido atingida por uma flecha na
Coroadarrainha. Bran sentia a dor da velha ferida toda vez que
escorregava para dentro da pele do animal. Ultimamente, Bran usava
mais a pele de Verão do que a sua própria; o lobo sentia a mordida
do frio, apesar da espessura de sua pelagem, mas podia ver mais e
ouvir melhor do que o garoto na cesta, empacotado como um bebê em
seus cueiros.
Outras
vezes, quando estava cansado de ser um lobo, Bran escorregava para
dentro da pele de Hodor. O gentil gigante gemia quando o sentia, e
batia na cabeça, enquanto a balançava de um lado para o outro, mas
não tão violentamente como havia sido na primeira vez, na
Coroadarrainha. Ele sabe que sou eu, o garoto gostava de dizer para
si mesmo. Está se acostumando comigo agora. Mesmo assim, ele nunca
se sentiu confortável na pele de Hodor. O grande cavalariço não
entendia o que estava acontecendo, e Bran podia sentir seu medo no
fundo da boca. Sentia-se melhor dentro de Verão. Eu sou ele, e ele
sou eu. Ele sente o que eu sinto.
Algumas
vezes, Bran podia sentir o lobo gigante farejando atrás do alce,
perguntando-se se conseguiria abater o grande animal. Verão crescera
acostumado aos cavalos de Winterfell, mas isso era um alce, e alces
são presas. O lobo gigante podia sentir o sangue correndo por trás
dos pelos desgrenhados do alce. Só o cheiro era suficiente para
fazer a saliva escorrer entre suas mandíbulas, e quando isso
acontecia, a boca de Bran se enchia d'água por pensar na quente e
deliciosa carne.
Um
corvo crocitou em um carvalho perto dali, e Bran ouviu o som das asas
de outro desses grandes pássaros batendo ao seu lado. Durante o dia,
apenas meia dúzia de corvos ficava com eles, voando de árvore em
árvore, ou pousando nos chifres do alce. O resto do bando voava na
frente ou ficava para trás. Mas quando o sol caía, eles voltavam,
descendo do céu em asas negras como a noite até que todos os ramos
das árvores ficassem lotados deles por metros. Alguns gostavam de
voar até o cavaleiro e murmurar para ele, e, para Bran, parecia que
ele entendia os crocs e uocs das aves. Elas são seus olhos e
ouvidos. São suas batedoras e lhe sussurram os perigos que estão à
frente e atrás.
Como
agora. O alce parou abruptamente, e o cavaleiro desceu de suas
costas, atingindo o chão com neve até os joelhos. Verão rosnou
para ele, o pelo eriçado. O lobo gigante não gostava do cheiro de
Mãos Frias. Carne morta, sangue seco, um fraco odor de podridão. E
frio. Sobretudo frio.
-
O que foi? - Meera quis saber.
-
Atrás de nós - Mãos Frias anunciou, a voz abafada pelo lenço
negro sobre o nariz e a boca.
-
Lobos? - Bran perguntou. Eles sabiam havia dias que estavam sendo
seguidos. Todas as noites ouviam o uivo triste da matilha, e todas as
noites os lobos pareciam um pouco mais próximos. Caçadores, e com
fome. Eles podem cheirar quão fracos estamos. Muitas vezes, Bran
acordava tremendo antes do amanhecer e ficava ouvindo o som deles
chamando uns aos outros ao longe, enquanto esperava o sol nascer. Se
há lobos aqui, deve haver presas, ele costumava pensar, até
perceber que eles eram a presa.
O
cavaleiro balançou a cabeça.
-
Homens. Os lobos ainda mantêm distância. Esses homens não são tão
tímidos.
Meera
Reed empurrou o capuz para trás. A neve úmida que o cobria caiu no
chão, com um baque surdo.
-
Quantos homens? Quem são eles?
-
Inimigos. Lidarei com eles.
-
Vou com você.
-
Você fica. O garoto deve ser protegido. Há um lago adiante,
totalmente congelado. Quando chegar lá, virem para o norte e sigam a
margem. Vocês chegarão a uma vila de pescadores. Se refugiem lá
até que eu possa alcançá-los.
Bran
achou que Meera fosse argumentar, até que o irmão dela disse:
-
Faça o que ele diz. Ele conhece estas terras. - Os olhos de Jojen
estavam verde-escuros, da cor do musgo, mas pesados com um cansaço
que Bran nunca tinha visto neles. O pequeno avô. Ao sul da Muralha,
o garoto cranogmano parecia ser mais sábio do que sua idade, mas ali
estava tão perdido e assustado quanto o resto deles. Mesmo assim,
Meera sempre o ouvia.
E
ainda era assim. Mãos Frias sumiu por entre as árvores, no caminho
por onde tinham vindo, com quatro corvos voando atrás dele. Meera o
viu partir, as bochechas vermelhas pelo frio, a respiração soprando
gelada pelas narinas. Puxou o capuz de volta, deu uma cotovelada no
alce, e a jornada deles recomeçou. Antes que tivessem caminhado
vinte metros, ela olhou para trás e comentou:
-
Homens, ele disse. Que homens? Será que quis dizer selvagens? Por
que não disse?
-
Ele disse que lidaria com eles - Bran respondeu.
-
Ele disse, sim. Também disse que nos levaria ao corvo de três
olhos. O rio que cruzamos esta manhã é o mesmo que cruzamos há
quatro dias, eu juro. Estamos andando em círculos.
-
Rios fazem curvas - Bran disse, sem muita certeza - e onde há lagos
e colinas, você precisa dar a volta.
-
Temos dado muitas voltas - Meera insistiu - e há segredos demais.
Não gosto disso. Não gosto dele. E não confio nele. Aquelas mãos
dele não são coisa boa. Ele esconde o rosto e não diz seu nome.
Quem é ele? O que é ele? Qualquer um pode vestir uma capa negra.
Qualquer um ou qualquer coisa. Ele não come, nunca bebe, não parece
sentir frio.
É
verdade. Bran tivera medo de comentar, mas tinha notado. Toda vez que
se abrigavam para a noite, enquanto ele, Hodor e os Reed se
aconchegavam todos juntos, para se aquecerem, o cavaleiro permanecia
afastado. Algumas vezes Mãos Frias fechava os olhos, mas Bran não
achava que ele dormia. E havia algo mais ...
-
O lenço. - Bran olhou em volta, inquieto, mas não havia nenhum
corvo à vista. Todas as grandes aves negras os tinham deixado
juntamente com o cavaleiro. Ninguém estava ouvindo. Mesmo assim,
manteve a voz baixa. - O lenço sobre a boca, nunca fica duro com o
gelo, como a barba de Hodor. Nem mesmo quando ele fala.
Meera
lhe deu um olhar penetrante.
-
Você está certo. Nunca vimos sua respiração, vimos?
-
Não. - Um sopro branco anunciava cada um dos hodors de Hodor. Quando
Jojen ou sua irmã falavam, suas palavras também podiam ser vistas.
Até mesmo o alce soltava uma névoa branca quando resfolegava.
-
Se ele não respira ...
Bran
se pegou lembrando das histórias que a Velha Ama contava, quando ele
ainda era uma criança. Para lá da Muralha vivem monstros, os
gigantes e os fantasmas, sombras que perseguem pessoas e mortos que
andam, ela dizia, enfiando-o embaixo do cobertor de lã áspera, mas
eles não podem passar para cá enquanto a Muralha permanecer forte e
os homens da Patrulha da Noite permanecerem fiéis. Então durma, meu
pequeno Brandon, meu menininho, e sonhe doces sonhos. O cavaleiro
vestia o negro da Patrulha da Noite, mas e se não fosse totalmente
humano? E se ele fosse algum monstro, levando-os para que outros
monstros os devorassem?
-
O cavaleiro salvou Sam e a garota das criaturas - Bran disse,
hesitante - e está me levando para o corvo de três olhos.
-
Por que esse corvo não pode vir até nós? Por que ele não pode nos
encontrar na Muralha? Corvos têm asas. Meu irmão fica mais fraco a
cada dia. Até onde podemos ir?
Jojen
tossiu.
-
Até chegarmos lá.
Chegaram
ao lago prometido não muito tempo depois e viraram para o Norte,
como o cavaleiro lhes dissera para fazer. Essa era a parte fácil
A
água estava congelada, e a neve, que caía havia tanto tempo que
Bran perdera a conta dos dias, transformara o lago em um vasto
deserto branco. Onde o gelo era plano e o chão, acidentado, o
percurso era fácil, mas onde o vento tinha amontoado a neve, era
difícil dizer em que parte o lago terminava e a costa começava. Nem
mesmo as árvores eram o guia infalível que poderiam ter imaginado,
pois havia ilhas arborizadas no lago e grandes áreas de terra em que
não cresciam árvores.
O
alce ia para onde queria, independentemente dos desejos de Meera e
Jojen em suas costas. Seguia em geral por baixo das árvores, mas
onde a costa fazia uma longa curva para oeste, ele tomou o caminho
mais curto através do lago congelado, passando por montes de neve
mais altos do que Bran, conforme o gelo estalava sob seus cascos. Ali
o vento estava mais forte, um frio norte que uivava através do lago,
atravessava as camadas de lã e couro e fazia todos tremerem.
Conforme batia no rosto, enchia os olhos de neve, deixando-os quase
cegos.
Horas
se passaram em silêncio. À frente, as sombras começaram a esconder
as árvores, como longos dedos do crepúsculo. A escuridão chegava
mais cedo nesse extremo norte. Bran temia isso. Cada dia parecia mais
curto que o anterior e, se os dias eram frios, as noites eram
amargamente cruéis.
Meera
parou novamente.
-
Já devíamos ter chegado à aldeia. - Sua voz soava abafada e
estranha.
-
Será que passamos por ela? - Bran perguntou.
-
Espero que não. Precisamos encontrar abrigo antes do anoitecer.
Não
estava errada. Os lábios de Jojen estavam azuis, e as bochechas de
Meera, vermelho-escuras. O próprio Bran tinha o rosto dormente. A
barba de Hodor era gelo sólido. A neve cobria as pernas do
cavalariço até quase o joelho, e Bran o sentiu cambalear mais de
uma vez. Ninguém era mais forte que Hodor, ninguém. Se até mesmo
sua grande força estava falhando ...
-
Verão pode achar a vila - Bran disse de repente, as palavras
formando brumas no ar. Não esperou para ouvir o que Meera poderia
dizer, mas fechou os olhos e fluiu para fora de seu corpo quebrado.
Quando
deslizou para dentro da pele de Verão, a floresta morta voltou
subitamente à vida. Onde antes havia silêncio, agora ele ouvia:
vento nas árvores, a respiração de Hodor, o alce fuçando o chão
em busca de forragem. Aromas familiares preencheram suas narinas:
folhas molhadas, grama morta, a carcaça podre de um esquilo em
decomposição, o cheiro azedo de suor humano, o odor almiscarado do
alce. Comida. Carne. O alce sentiu seu interesse. Virou a cabeça em
direção ao lobo gigante, cauteloso, e baixou os grandes chifres.
Ele
não é presa, o menino sussurrou para o animal com quem dividia a
pele. Deixe-o. Corra.
Verão
correu. Correu através do lago, suas patas levantando nuvens de neve
atrás dele. As árvores estavam ombro a ombro, como homens em uma
linha de batalha, tudo envolto em branco. Sobre raízes e rochas, o
lobo gigante acelerou, passando por um velho monte de neve, a crosta
de gelo crepitando sob seu peso. Suas patas ficavam cada vez mais
molhadas e frias. A colina seguinte estava coberta de pinheiros, e o
forte cheiro de suas folhas, longas e pontudas como agulhas, encheu o
ar. Quando chegou ao topo, virou em círculos, farejou o ar, então
levantou a cabeça e uivou.
Os
cheiros estavam lá. Cheiros humanos.
Cinzas,
pensou Bran, velhas e fracas, mas cinzas. Era cheiro de madeira
queimada, fuligem e carvão. Um fogo morto.
Ele
sacudiu a neve do focinho. O vento vinha em rajadas, o que
dificultava seguir os cheiros. O lobo virou para um lado e para o
outro, farejando. Para onde virasse só havia montes de neve e altas
árvores vestidas de branco. O lobo pendeu a língua entre os dentes,
sentindo o gosto do ar gelado, seu hálito transformando-se em flocos
de neve derretidos na língua. Quando trotou em direção ao cheiro,
Hodor imediatamente os seguiu. O alce levou mais tempo para se
decidir, então Bran, relutantemente, voltou para seu próprio corpo
e disse:
-
É por ali. Sigam Verão. Senti o cheiro.
Quando
a primeira fatia de lua crescente espreitou por entre as nuvens, eles
finalmente tropeçaram na vila. Quase tinham passado direto por ela.
Visto do gelo, o lugar não parecia em nada diferente do que uma
dúzia de outros pontos ao longo da margem do lago. Enterradas sobre
montes de neve, as casas de pedra redondas poderiam facilmente ser
pedras, montes, ou árvores caídas, como o tronco que Jojen havia
confundido com uma construção na noite anterior, até que cavaram e
encontraram apenas galhos quebrados e toras podres.
A
vila estava vazia, abandonada pelos selvagens que ali viveram um dia,
como todas as outras vilas pelas quais passaram. Algumas tinham sido
queimadas, como se os habitantes quisessem se assegurar de que nada
sairia rastejando de lá, mas esta fora poupada. Sob a neve,
encontraram uma dúzia de cabanas e um grande salão, com telhado de
grama e espessas paredes de toscas toras de madeira.
-
Pelo menos estaremos longe do vento - Bran disse.
-
Hodor - respondeu Hodor.
Meera
deslizou das costas do alce. Ela e o irmão ajudaram Bran a sair da
cesta de vime.
-
Talvez os selvagens tenham deixado um pouco de comida para trás- ela
disse.
A
esperança provou-se vã. Dentro do salão, encontraram cinzas de um
incêndio, chão de terra batida e um frio que atravessava os ossos.
Mas pelo menos tinham um teto sobre suas cabeças e paredes de
madeira para manter o vento afastado. Um córrego corria nas
proximidades, coberto por uma película de gelo. O alce teve que
quebrá-la com o casco para beber. Assim que Bran, Jojen e Hodor
foram acomodados de maneira segura, Meera trouxe alguns pedaços de
gelo quebrado para que chupassem. A água derretida estava tão fria
que fez Bran estremecer.
Verão
não os seguiu para dentro do salão. Bran podia sentir a fome do
lobo, uma sombra de seu próprio apetite.
-
Vá caçar - ele disse - mas deixe o alce em paz. - Parte dele
desejava ir caçar também. Talvez fosse, mais tarde.
A
ceia foi um punhado de bolotas amassadas até se transformarem em
pasta, tão amarga que Bran se esforçava para engoli-la. Jojen Reed
nem sequer tentou. Mais jovem e mais frágil que sua irmã, ele
ficava mais fraco a cada dia.
-
Jojen, você tem que comer - Meera disse a ele.
-
Mais tarde. Quero só descansar. - Jojen deu um sorriso amarelo. -
Este não é o dia em que morro, irmã. Prometo a você.
-
Você quase caiu do alce.
-
Quase. Estou com frio e com fome, é tudo.
-
Então coma.
-
Bolotas amassadas? Minha barriga dói, mas isso só vai piorá-la.
Deixe-me quieto, irmã. Estou sonhando com uma galinha assada.
-
Sonhos não vão alimentá-lo. Nem mesmo sonhos verdes.
-
Sonhos são o que temos.
Tudo
o que temos. A última comida que trouxeram do Sul acabara havia dez
dias. A partir daí, a fome andou ao lado deles dia e noite. Nem
mesmo Verão conseguia encontrar alguma coisa nessa floresta. Viviam
de bolotas amassadas e peixe cru. Os bosques estavam cheios de
riachos congelados e negros lagos frios, e Meera era tão boa
pescadora com sua lança de três pontas quanto a maioria dos homens
era com linha e anzol Algumas vezes seus lábios ficavam azuis de
frio, pelo tempo que passava lutando para voltar com a presa se
contorcendo nos dentes da lança. Mas já fazia mais de três dias
que Meera pegara um peixe. Bran sentia a barriga tão vazia que
parecia ter sido três anos antes.
Depois
de empurrarem goela abaixo sua escassa ceia, Meera sentou-se de
costas contra a parede, afiando sua adaga com uma pedra de amolar.
Hodor agachou-se ao lado da porta, balançando para a frente e para
trás e resmungando, Hodor, hodor, hodor.
Bran
fechou os olhos. Estava muito frio para conversar, e eles não
ousavam acender o fogo. Mãos Frias os avisara. Estas florestas não
estão tão vazias quanto pensam, dissera. Vocês não sabem o que a
luz pode atrair das trevas. A lembrança o fez tremer, apesar do
calor de Hodor ao seu lado.
O
sono não viria, não poderia vir. Em vez disso, havia vento, o frio
cortante, a luz da lua sobre a neve e fogo. Ele estava novamente
dentro do Verão, a léguas de distância, e a noite estava pesada
com o cheiro de sangue. O odor era forte. Uma matança, não muito
longe. A carne ainda estaria quente. A baba escorreu pelos dentes,
enquanto a fome acordou dentro dele. Nada de alce. Nada de veados.
Nada disso.
O
lobo gigante moveu-se em direção à carne, uma magra sombra cinza
deslizando de árvore em árvore, através de piscinas de luar e
sobre montes de neve. O vento soprava em torno dele, mudando de
direção. Perdeu o rastro, encontrou e perdeu novamente. Procurou
mais uma vez, e um som distante fez suas orelhas ficarem em pé.
Lobos,
soube imediatamente. Verão seguiu em direção ao som, mais
cauteloso. Logo o cheiro de sangue tinha voltado, mas havia outros
odores também; urina e peles mortas, merda de pássaros, penas e
lobo, lobo, lobo. Uma matilha. Precisaria lutar por sua carne.
Eles
também o haviam cheirado. Quando saiu da escuridão das árvores na
clareira sangrenta, eles o observavam. A fêmea mastigava uma bota de
couro que ainda tinha metade de uma perna dentro, mas deixou cair
conforme ele se aproximou. O líder da matilha, um velho macho com o
focinho grisalho e um olho cego, saiu para enfrentá-lo, rosnando,
com os dentes de fora. Atrás dele, um macho mais jovem também
mostrava as presas.
Os
claros olhos amarelos do lobo gigante absorveram os detalhes da
paisagem ao redor. Um ninho de entranhas enroscadas nos ramos de um
arbusto. Vapor saindo de uma barriga aberta, suculento com o cheiro
de sangue e carne. Uma cabeça olhando para o vazio até a lua
crescente, as bochechas rasgadas, destruídas até se tornarem osso
sangrento, covas no lugar dos olhos, o pescoço terminando em um toco
irregular. Uma poça de sangue congelado, brilhando vermelho e negro.
Homens.
O fedor deles enchia o mundo. Vivos, haviam sido tantos quantos os
dedos de uma pata humana, mas ali não eram nada. Mortos. Feito.
Carne. Haviam usado mantos e capuzes, mas os lobos haviam rasgado
suas roupas em pedaços, no frenesi de chegar à carne. Os que ainda
tinham rosto usavam barba espessa encrustada de gelo e ranho
congelado. A neve que caía começara a enterrar o que restava deles,
tão pálidos contra o negro dos mantos e das calças esfarrapadas.
Negro.
A
léguas de distância, o menino se agitava, inquieto.
Negro.
A Patrulha da Noite. Eram patrulheiros.
O
lobo gigante não se importava. Eram carne. Estava com fome.
Os
olhos dos três lobos brilharam, amarelos. O lobo gigante balançou a
cabeça de um lado para o outro, expandiu as narinas e arreganhou os
dentes num rosnado. O macho mais jovem recuou. O lobo gigante podia
sentir o cheiro do medo dele. Seguidor, ele sabia. Mas o lobo de um
olho respondeu com um rosnado e moveu-se para bloquear seu avanço.
Macho alfa. E não tem medo de mim, embora eu tenha o dobro do seu
tamanho.
Seus
olhos se encontraram.
Warg!
Então
os dois avançaram ao mesmo tempo, lobo e lobo gigante, e não havia
mais tempo para pensar. O mundo resumia-se a dentes e garras, e neve
a voar enquanto eles rolavam, giravam um ao outro e se rasgavam, os
outros lobos rosnando e andando em volta deles. Sua mandíbula fechou
no pelo liso emaranhado com a geada, em uma pata fina como um
graveto, mas o lobo caolho acertou a garra em sua barriga,
rasgando-a, e se libertou, partindo para cima dele. Presas amarelas
fecharam em uma dentada em sua garganta, mas ele sacudiu o velho
primo cinzento como se fosse um rato, jogando-o para longe e depois
derrubando-o. Rolando, rasgando, chutando, lutaram até ficarem
cobertos pelo sangue fresco espalhado na neve ao redor. Finalmente o
velho lobo caolho se deitou e mostrou a barriga. O lobo gigante o
agarrou mais duas vezes, cheirou seu traseiro e, em seguida, levantou
a perna sobre ele.
Algumas
dentadas e um rosnado de aviso, e a fêmea e o macho seguidor também
se submeteram. A matilha era dele.
E
a presa também. Passou de homem em homem, farejando, antes de
escolher o maior, uma coisa sem rosto que segurava um ferro negro em
uma das mãos. A outra mão estava faltando, cortada na altura do
pulso, o coto coberto com couro. O sangue fluiu espesso e lento, a
partir do corte na garganta. O lobo lambeu o sangue, lambeu o nariz e
as bochechas da esfarrapada ruína sem olhos, depois enterrou o
focinho no pescoço e rasgou-o, engolindo um pedaço de doce carne
crua. Nenhuma outra carne fora tão boa.
Quando
acabou com o primeiro, partiu para o próximo e devorou os melhores
pedaços dele também. Corvos assistiam das árvores, olhos escuros e
silenciosos empoleirados nos galhos, e a neve caindo ao redor deles.
Os outros lobos atacaram as sobras; o velho macho se alimentou
primeiro, depois a fêmea e então o seguidor. Eram seus agora. Eram
sua matilha.
Não,
o garoto sussurrou, nós temos outra matilha. Lady está morta e
talvez Vento Cinzento também, mas Cão Felpudo, Nymeria e Fantasma
ainda estão em algum lugar. Lembra do Fantasma?
A
neve caindo e o banquete dos lobos começaram a ficar indistintos. O
calor batia em seu rosto, reconfortante como beijos de uma mãe.
Fogo, ele pensou, fumaça. Seu nariz se contraiu com o cheiro de
carne assada. E então a floresta sumiu, e ele estava de volta ao
salão, novamente em seu corpo quebrado, olhando para o fogo. Meera
Reed virava um pedaço de carne vermelha crua sobre as chamas,
deixando-a chamuscar e pingar.
-
Bem na hora - ela disse. Bran esfregou os olhos com a palma da mão e
se contorceu contra a parede, para sentar. - Você quase dormiu
durante a ceia. O cavaleiro encontrou uma porca.
Atrás
dela, Hodor rasgava ansiosamente um pedaço quente de carne queimada,
enquanto sangue e gordura escorriam em sua barba. Fumaça subia pelos
dedos. Hodor, ele murmurava entre as mordidas, hodor, hodor. Sua
espada estava no chão, ao seu lado. Jojen Reed beliscava uma porção
com pequenas mordidas, mastigando cada pedaço de carne uma dúzia de
vezes antes de engolir.
O
cavaleiro matou um porco. Mãos Frias estava ao lado da porta, com um
corvo no braço, ambos olhando para o fogo. O reflexo das chamas
brilhava em quatro olhos negros. Ele não come, Bran se lembrou, e
tem medo das chamas.
-
Sem fogo, você disse - lembrou ao cavaleiro.
-
As paredes ao nosso redor escondem a luz, e o amanhecer está
próximo. Partiremos em breve.
-
O que aconteceu com os homens? Com os inimigos que nos seguiam?
-
Eles não o incomodarão.
-
Quem eram? Selvagens?
Meera
virou a carne para cozinhar do outro lado. Hodor mastigava e engolia,
murmurando alegremente sob sua respiração. Apenas Jojen parecia
perceber o que estava acontecendo, quando Mãos Frias virou a cabeça
para olhar Bran.
-
Eram inimigos.
Homens
da Patrulha da Noite. - Você os matou. Você e seus corvos. Seus
rostos estavam rasgados, e os olhos tinham sumido. - Mãos Frias não
negou. - Eram seus irmãos. Eu vi. Os lobos rasgaram suas roupas, mas
eu ainda consegui ver. As capas eram negras. Como suas mãos. - Mão
Frias não falou nada. - Quem é você? Por que suas mãos são
negras?
O
cavaleiro olhou as mãos, como se nunca as tivesse notado antes.
-
Assim que o coração para de bater, o sangue do homem corre para as
extremidades, onde engrossa e congela. - Sua voz falhava na garganta,
tão fina e fraca como ele. - As mãos e os pés incham e ficam
negros como chouriço. O resto dele torna-se branco como leite.
Meera
Reed se levantou, com a lança na mão, um naco de carne defumada
ainda espetado no tridente.
-
Mostre seu rosto.
O
cavaleiro não fez nenhum gesto para obedecer.
-
Ele está morto. - Bran podia sentir a bile em sua garganta. - Meera,
ele é alguma coisa morta. Os monstros não podem passar enquanto a
Muralha estiver em pé e os homens da Patrulha da Noite permanecerem
fiéis, era o que a Velha Ama costumava dizer. Ele nos encontrou na
Muralha, mas não podia passar. Mandou Sam em vez disso, e aquela
garota selvagem.
A
mão enluvada de Meera apertou o cabo do tridente.
-
Quem mandou você? Quem é o corvo de três olhos?
-
Um amigo. Sonhador, feiticeiro, você pode chamá-lo do que quiser. O
último vidente verde. - A porta de madeira do salão se abriu com um
estrondo. Lá fora o vento da noite uivava, sombrio e negro. As
árvores estavam cheias de corvos gritando. Mãos Frias não se
moveu.
-
Um monstro - Bran disse.
O
cavaleiro olhou para Bran como se o resto deles não existisse.
-
Seu monstro, Brandon Stark.
Seu,
o corvo ecoou, em seu ombro. Do lado de fora da porta, os corvos nas
árvores se uniram ao coro, e a floresta noturna parecia ecoar a
canção do assassino: Seu, seu, seu.
-
Jojen, você sonhou com isso? - Meera perguntou para o irmão. - Quem
é ele? O que é ele? O que fazemos agora?
-
Nós vamos com o cavaleiro - Jojen disse. - Viemos longe demais para
voltar agora, Meera. Nunca chegaríamos vivos à Muralha. Vamos com o
monstro de Bran, ou morreremos.
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