Sam lia
sobre os Outros quando viu o rato.
Seus
olhos estavam vermelhos e ardiam. Não devia esfregá-los tanto,
dizia sempre a si mesmo enquanto os esfregava. A poeira os irritava e
fazia que lacrimejassem, e havia poeira por todo lado lá embaixo.
Pequenas nuvens enchiam o ar toda vez que uma página era virada, e
nuvens cinzentas erguiam-se sempre que ele movia uma pilha de livros
para ver o que poderia estar escondido por baixo.
Sam não
sabia quanto tempo passara desde que dormira pela última vez, mas
restavam pouco mais de dois centímetros da gorda vela de sebo que
acendera quando começara a ler o irregular monte de páginas soltas
que encontrara atadas com barbante. Estava brutalmente cansado, mas
era difícil parar. Mais um livro, dizia a si mesmo, depois paro.
Mais um fólio, só mais um. Mais uma página, e vou para cima
descansar e comer qualquer coisa. Mas havia sempre outra página
depois daquela, e outra a seguir, e outro livro à espera por baixo
da pilha. Vou só dar uma espiadela rápida para ver qual o assunto
deste, pensava, e antes de se dar conta já tinha lido metade. Nada
comera desde a tigela de sopa de feijão com toucinho que ingerira na
companhia de Pyp e Grenn. Bem, exceto o pão e o queijo, mas só dei
uma mordidinba, pensou. Foi então que lançou um rápido relance à
bandeja vazia e viu o rato banqueteando-se com as migalhas do pão.
O roedor
tinha metade do comprimento de seu mindinho, com olhos negros e pelo
cinzento e macio. Sam sabia que devia matá-lo. Os ratos podiam
preferir pão e queijo, mas também comiam papel. Encontrara bastante
cocô de rato entre as prateleiras e as pilhas, e algumas das
encadernações de couro dos livros mostravam sinais de terem sido
roídas.
Mas é
uma coisinha tão pequenina. E esfomeada. Como eu poderia lhe recusar
algumas migalhas? Mas está comendo livros...
Depois de
passar horas na cadeira, as costas de Sam estavam rígidas como uma
prancha, e ele sentia as pernas meio adormecidas. Sabia que não
seria suficientemente rápido para apanhar o rato, mas talvez
conseguisse esmagá-lo. Junto ao seu cotovelo encontrava-se uma
maciça cópia encadernada em couro dos Anais do Centauro Negro, o
exaustivamente detalhado relato do Septão Jorquen acerca dos nove
anos que Orbert Caswell servira como Senhor Comandante da Patrulha da
Noite. Havia uma página para cada dia de seu mandato, e todas
pareciam começar com: “Lorde Orbert levantou-se à alvorada e
moveu as tripas” exceto a última, que dizia: “Lorde Orbert foi
encontrado morto ao, amanhecer”.
Nenhum
rato é adversário à altura do Septão Jorquen. Muito lentamente,
Sam pegou o livro com a mão esquerda. Era grosso e pesado, e quando
tentou erguê-lo só com uma mão, o volume escorregou de seus dedos
gordos e voltou a cair com estrondo. O rato desapareceu em meio
segundo, com a rapidez de um raio. Sam sentiu-se aliviado. Esmagar o
pobre bicho teria lhe dado pesadelos.
- Mas não
devia comer os livros - disse em voz alta. Talvez devesse trazer mais
queijo da próxima vez que viesse àquele lugar.
Ficou
surpreso ao reparar no quanto a vela ardera. A sopa de feijão com
toucinho teria sido naquele dia ou no anterior? Foi ontem. Deve ter
sido ontem. Perceber aquilo o fez bocejar. Jon devia estar se
perguntando o que teria lhe acontecido, embora não houvesse dúvida
de que Meistre Aemon compreenderia. Antes de perder a vista, o
meistre amara tanto os livros como Samwell Tarly. Compreendia o modo
como por vezes se podia cair dentro deles, como se cada página fosse
um buraco aberto para outro mundo.
Pondo-se
de pé, Sam fez uma careta devido às pontadas e alfinetadas que
sentia na barriga das pernas. A cadeira era muito dura e enfiava-se
na parte de trás das coxas quando Sam se debruçava sobre um livro.
Tenho que me lembrar de trazer uma almofada. Seria melhor se pudesse
dormir ali embaixo, na cela que encontrara meio escondida atrás de
quatro arcas cheias de páginas soltas que tinham se separado dos
livros a que pertenciam, mas não queria deixar Meistre Aemon só por
tanto tempo. Nos últimos tempos, ele não andava forte e precisava
de ajuda, especialmente com os corvos, Aemon tinha Clydas, com
certeza, mas Sam era mais jovem e levava mais jeito com as aves.
Com uma
pilha de livros e pergaminhos debaixo do braço esquerdo e a vela na
mão direita, Sam abriu caminho através dos túneis a que os irmãos
chamavam caminhos de minhoca. Um pálido pilar de luz iluminava os
íngremes degraus de madeira que levavam à superfície, de modo que
soube que o dia tinha chegado lá em cima. Deixou a vela queimando
num nicho na parede e começou a subir. Ao alcançar o quinto degrau,
já arquejava. No décimo, parou para passar os livros para o braço
direito.
Emergiu
sob um céu da cor de chumbo branco. Um céu de neve, Sam pensou,
dando uma olhadela para cima. A perspectiva de neve o deixou
inquieto. Lembrou-se daquela noite no Punho dos Primeiros Homens,
quando as criaturas e a neve chegaram juntas. Não seja tão covarde,
pensou. Tem seus Irmãos Juramentados à sua volta, sem falar de
Stannis Baratheon e de todos os seus cavaleiros. As fortalezas e
torres de Castelo Negro erguiam-se à sua volta, tornadas
insignificantes pela imensidão de gelo da Muralha. Um pequeno
exército arrastava-se sobre o gelo com neve até os joelhos, onde
uma nova escada em zigue-zague trepava para se encontrar com os
restos da antiga. O som de suas serras e martelos ecoava no gelo. Jon
tinha os construtores trabalhando dia e noite naquela tarefa. Sam
ouvira alguns reclamar durante o jantar, insistindo que Lorde Mormont
nunca os encarregara nem de metade daquele trabalho. Mas sem a grande
escada não havia como chegar ao topo da Muralha, exceto pelo
elevador de correntes. E por mais que Samwell Tarly odiasse degraus,
odiava ainda mais a gaiola do elevador. Sempre fechava os olhos
quando subia ou descia nela, convencido de que a corrente estava
prestes a quebrar. Todas as vezes que a gaiola de ferro raspava no
gelo, seu coração parava de bater por um instante.
Dragões
existiram aqui há duzentos anos, Sam deu por si pensando enquanto
observava a gaiola descer lentamente. Eles teriam se limitado a voar
até o topo da Muralha. Rainha Alysanne visitara Castelo Negro
montada em seu dragão, e Jaehaerys, seu rei, viera à sua procura no
dele. Poderia Alaprata ter deixado um ovo para trás? Ou teria
Stannis encontrado um ovo em Pedra do Dragão? Mesm o se tiver um
ovo, como espera chocá-lo? Baelor, o Abençoado, rezara sobre seus
ovos, e outros Targaryen tentaram incubá-los com feitiçaria. Tudo
que conseguiram foi farsa e tragédia.
- Samwell
- disse uma voz sorumbática - vim buscá-lo. Disseram-me para levar
você até o Senhor Comandante.
Um floco
de neve pousou no nariz de Sam.
- Jon
quer me ver?
- Quanto
a isso, não sei dizer - disse Edd Doloroso Tollett. - Nunca quis ver
metade das coisas que vi, e nunca vi metade das coisas que quis ver.
Não me parece que o querer esteja envolvido na coisa. Mas é melhor
ir mesmo assim. Lorde Snow quer falar com você assim que terminar de
falar com a mulher de Craster.
- Goiva.
- Essa
mesma. Se minha ama de leite fosse como ela, ainda mamaria. A minha
tinha costeletas.
- A maior
parte das cabras tem costeletas - gritou Pyp, no momento em que, com
Grenn, surgia de uma esquina, com arcos nas mãos e aljavas de
flechas às costas. - Onde estava, Matador? Sentimos sua falta ontem
à noite no jantar. Um boi assado inteiro ficou sobrando.
- Não me
chame de Matador - Sam ignorou a piada sobre o boi. Era só o Pyp. -
Estava lendo. Apareceu um rato...
- Não
fale de ratos com o Grenn. Ele tem pavor deles.
- Não
tenho nada - Grenn declarou com indignação.
- Ia ter
medo de comer um.
- Comeria
mais ratos do que você.
Edd
Doloroso Tollett soltou um suspiro:
- Quando
eu era moço, só comíamos ratos em dias especiais de banquete. Eu
era o mais novo, por isso sempre ficava com o rabo. Não há carne no
rabo.
- Onde
está seu arco, Sam? - Grenn perguntou. Sor Alliser costumava
chamá-lo de Auroque, e cada dia que passava ele parecia crescer um
pouco mais para dentro da alcunha. Chegara à Muralha grande, mas
lento, de pescoço e cintura grossos, com o rosto vermelho e
desajeitado. Embora o pescoço ainda se ruborizasse quando Pyp lhe
fazia alguma brincadeira, horas de trabalho com a espada e o escudo
tinham lhe endireitado a barriga, endurecido os braços, alargado o
peito. Era forte, e também desgrenhado como um auroque.
- Ulmer
estava à sua espera junto aos alvos.
- Ulmer -
Sam repetiu, atrapalhado. Instituir exercícios diários de tiro com
arco para toda a guarnição, até os intendentes e os cozinheiros,
foi quase a primeira coisa que Jon Snow fez como Senhor Comandante. A
Patrulha colocara muita ênfase na espada e insuficiente no arco,
disse, uma relíquia dos dias em que um irmão em dez fora um
cavaleiro, e não um em cem. Sam compreendia a sensatez do decreto,
mas detestava o treino com arco com quase igual força como que
detestava subir escadas. Quando usava as luvas, nunca conseguia
acertar em nada, mas se as tirava ficava com bolhas nos dedos.
Aqueles arcos eram perigosos. Cetim arrancara metade de uma unha com
a corda de um arco. - Eu me esqueci.
- Partiu
o coração da princesa selvagem, Matador - disse Pyp. Nos últimos
tempos, Val ganhara o hábito de observá-los da janela de seu quarto
na Torre do Rei - Ela andou à sua procura.
- Não
andou nada! Não diga isso! - Sam só falara com Val duas vezes,
quando Meistre Aemon a visitara para se certificar de que os bebês
eram saudáveis. A princesa era tão bonita que era frequente dar por
si gaguejando e corando em sua presença.
- Por que
não? - perguntou Pyp. - Ela quer ter filhos seus. Talvez devêssemos
chamá-lo de Sam, o Sedutor.
Sam
enrubesceu. Sabia que Rei Stannis tinha planos para Val; ela era a
argamassa com a qual pretendia selar a paz entre os nortenhos e o
povo livre.
- Hoje
não tenho tempo para o tiro com arco, preciso encontrar Jon.
- Jon?
Jon? Conhecemos alguém chamado Jon, Grenn?
- Ele
fala do Senhor Comandante.
- Ahhh...
O Grande Lorde Snow. Com certeza. Por que quer ir ter com ele? Nem
sequer consegue mexer as orelhas - Pyp mexeu nas suas, para mostrar
que conseguia. Eram orelhas grandes, vermelhas de frio. - Ele agora é
Lorde Snow de verdade, bem-nascido, como um raio para gente como nós.
- Jon tem
deveres - Sam rebateu em sua defesa. - A Muralha é sua, com tudo o
que isto traz.
- Um
homem também tem deveres para com os amigos. Se não fôssemos nós,
nosso Senhor Comandante podia ser Janos Slynt. Lorde Janos teria
enviado Snow em patrulha nu e montado numa mula. “Galope até a
Fortaleza de Craster” ele teria dito “e traga-me de volta o manto
e as botas do Velho Urso” N ós o salvamos disso, mas agora ele tem
deveres demais para beber uma taça de vinho temperado junto à
lareira?
Grenn
concordou:
- Os
deveres dele não o afastam do pátio. Os dias em que está lá,
lutando com alguém, são mais numerosos do que os outros.
Sam tinha
de admitir que aquilo era verdade. Uma vez, quando Jon viera
consultar Meistre Aemon, Sam lhe perguntara por que passava tanto
tempo praticando com a espada.
- O Velho
Urso nunca treinou muito quando era Senhor Comandante - Sam comentou.
Em resposta, Jon pusera Garralonga na mão de Sam. Deixara-o sentir a
leveza e o equilíbrio da espada, fizera-o virar a lâmina para que
as ondulações cintilassem no metal escuro como fumaça.
- Aço
valiriano - disse - forjado com feitiços e afiado como uma navalha,
praticamente indestrutível. Um espadachim deve ser tão bom quanto
sua espada, Sam. Garralonga é aço valiriano, mas eu não sou. O
Meia-Mão podia ter me matado com a mesma facilidade com que você
esmaga um inseto.
Sam
devolveu-lhe a espada.
- Quando
tento esmagar um inseto, ele sempre voa para longe. Só consigo dar
um tapa no braço. Machuca,
Aquilo
fez Jon rir.
- Como
quiser. Qhorin podia ter me matado com a mesma facilidade com que
você come uma tigela de mingau de aveia - Sam gostava de mingau de
aveia, especialmente quando eram adoçados com mel.
- Não
tenho tempo para isso - Sam deixou os amigos e dirigiu-se ao armeiro,
apertando os livros ao peito. Sou o escudo que defende os reinos dos
homens, recordou. Perguntou a si mesmo o que esses homens diriam caso
percebessem que seus reinos eram defendidos por homens como Grenn,
Pyp e Edd Doloroso.
A Torre
do Senhor Comandante fora destruída pelo incêndio, e Stannis
Baratheon apropriara-se da Torre do Rei para sua residência, por
isso Jon Snow se estabelecera nos modestos quartos de Donal Noye por
trás do armeiro. Goiva saía quando Sam chegou, envolta no velho
manto que ele lhe dera quando fugiram da Fortaleza de Craster. Passou
por ele correndo, mas Sam agarrou seu braço, deixando cair dois
livros ao fazê-lo.
- Goiva.
- Sam - a
voz dela parecia rouca. Goiva tinha cabelos escuros e era magra, com
os grandes olhos castanhos de uma corça. As dobras do velho manto de
Sam a engoliam, com o rosto meio escondido pelo capuz, mas apesar
disso tremia. Parecia abatida e assustada.
- O que
houve? - perguntou-lhe Sam. - Como estão os bebês?
Goiva
libertou-se da mão dele.
- Estão
bem, Sam. Bem.
- Com os
dois, é um espanto que consiga dormir - disse Sam num tom agradável.
- Qual deles ouvi chorando ontem à noite? Achei que nunca mais
pararia.
- Foi o
filho de Dalla. Chora quando quer mamar. O meu... o meu quase nunca
chora. Às vezes gorgoleja, mas... - seus olhos encheram-se de
lágrimas. - Tenho que ir. Já passa da hora de alimentá-los. Se não
for, vou ficar cheia de leite - correu pátio afora, deixando um Sam
perplexo para trás.
Teve de
se ajoelhar para apanhar os livros que deixara cair, N ão devia ter
trazido tantos, disse a si mesmo, enquanto sacudia terra do Compêndio
de Jade de Colloquo Votar, um grosso volume de contos e lendas do
Oriente que Meistre Aemon lhe ordenara que encontrasse. O livro
parecia não ter sido danificado. Já Pele de Dragão, uma História
da Casa Targaryen do Exílio à Apoteose, com Considerações Sobre a
Vida e a Morte dos Dragões, de Meistre Thomax, não tivera tanta
sorte. Abrira-se ao cair, e algumas páginas tinham ficado
enlameadas, incluindo uma que exibia uma imagem bastante boa de
Balerion, o Terror Negro, feita com tintas coloridas. Sam
amaldiçoou-se por ser um idiota desastrado enquanto alisava as
páginas e as sacudia. A presença de Goiva agitava-o sempre e
levantava... bem, coisas. Um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite
não devia sentir o tipo de coisas que Goiva o fazia sentir,
especialmente quando falava sobre os seios, e...
- Lorde
Snow está à espera - dois guardas envergando manto negro e
meio-elmo de ferro encontravam-se em pé junto às portas do armeiro,
encostados às lanças. Quem falou foi Hal Peludo. Mully ajudou Sam a
se levantar. Proferiu um agradecimento atrapalhado e apressou-se para
passar por eles, agarrando-se desesperadamente à pilha de livros
enquanto abria caminho pela forja com sua bigorna e foles. Fantasma
estava deitado perto da bigorna, roendo um osso de boi para chegar ao
tutano. O grande lobo gigante branco ergueu os olhos quando Sam
passou, mas não soltou um som.
O
aposento privado de Jon ficava no fundo, atrás das fileiras de
lanças e escudos. Ele lia um pergaminho quando Sam entrou. O corvo
do Senhor Comandante Mormont encontrava-se empoleirado em seu ombro,
espreitando para baixo como se também estivesse lendo, mas, quando a
ave viu Sam, abriu as asas e voou em sua direção gritando “Grão,
grão!”.
Deslocando
os livros, Sam enfiou o braço no saco que se encontrava junto à
porta e, quando o tirou, trazia uma mão cheia de sementes. O corvo
pousou-lhe no pulso e comeu de sua palma, dando-lhe uma bicada tão
forte que Sam soltou um ganido e recolheu a mão. O corvo voltou a
levantar voo, e grãos vermelhos e amarelos voaram para todo lado.
- Feche a
porta, Sam - leves cicatrizes ainda marcavam a face de Jon, no local
onde uma águia tentara arrancar-lhe um olho. - Esse patife rasgou
sua pele?
Sam pôs
os livros de lado e tirou a luva.
- Rasgou
-sentiu a cabeça dando voltas. - Estou sangrando.
- Todos
derramamos nosso sangue pela Patrulha. Use luvas mais grossas - com
um pé, Jon empurrou uma cadeira para ele. - Sente-se e dê uma
olhada nisso - entregou-lhe o pergaminho.
- O que
é? - Sam quis saber. O corvo pôs-se à caça de grãos de milho
entre as esteiras.
- Um
escudo de papel.
Sam
chupou o sangue da palma da mão enquanto lia. Reconheceu a letra de
Meistre Aemon assim que a viu. Tinha uma escrita pequena e precisa,
mas o velho não conseguia ver onde a tinta borrara, e por vezes
deixava manchas disformes.
- Uma
carta para o Rei Tommen?
- Em
Winterfell, Tommen lutou com meu irmão Bran com uma espada de
madeira. Estava tão gordo que parecia um ganso estufado. Bran
jogou-o ao chão - Jon dirigiu-se à janela. - Mas Bran está morto,
e o rechonchudo Tommen de rosto rosado está sentado no Trono de
Ferro, com uma coroa aninhada entre seus cachos dourados.
Bran não
está morto, Sam desejou dizer. Foi para além da Muralha com o
Mãos-Frias. Mas ficou com as palavras presas na garganta. Jurei que
não contaria.
- Não
assinou a carta.
- O Velho
Urso suplicou ajuda ao Trono de Ferro uma centena de vezes.
Enviaram-lhe Janos Slynt. Nenhuma carta fará que os Lannister gostem
mais de nós. Especialmente depois de ouvirem dizer que temos ajudado
Stannis.
- Só
para defender a Muralha, não em sua rebelião - Sam voltou a ler
rapidamente a carta. - É o que diz aqui.
- A
diferença pode escapar a Lorde Tywin - Jon recuperou a carta. - Por
que haveria de nos ajudar agora? Nunca o fez antes.
- Bem -
disse Sam - ele não vai querer que se diga que Stannis correu em
defesa do reino enquanto o Rei Tommen brincava com seus brinquedos.
Isto faria cair o escárnio sobre a Casa Lannister.
- O que
eu quero fazer cair sobre a Casa Lannister é a morte e a destruição,
não o escárnio - Jon ergueu a carta. - A Patrulha da Noite não
participa nas guerras dos Sete Reinos - leu -Nossos juramentos são
prestados ao reino, e o reino encontra-se agora em terrível perigo.
Stannis Baratheon ajuda-nos contra nossos inimigos além da Muralha,
em hora nós não sejamos seus homens...
- Bem -
Sam respondeu, torcendo-se - e não somos. Somos?
- Dei a
Stannis alimentos, abrigo e Fortenoite, além de autorização para
instalar uma parte do povo livre na Dádiva. É tudo.
- Lorde
Tywin dirá que foi muito.
- Stannis
diz que não é o suficiente. Quanto mais der a um rei, mais ele vai
querer. Estamos percorrendo uma ponte de gelo com um abismo de cada
lado. Agradar a um rei já é bastante difícil. Agradar a dois é
praticamente impossível.
- Sim,
mas... se os Lannister prevalecerem e Lorde Tywin decidir que traímos
o rei ao ajudarmos Stannis, isto poderá significar o fim da Patrulha
da Noite. Ele tem os Tyrell atrás de si, com todo o poderio de
Jardim de Cima. E derrotou Lorde Stannis na Água Negra - ver sangue
podia fazer Sam desmaiar, mas sabia como as guerras eram vencidas.
Seu pai assegurara-se disso.
- Água
Negra foi uma batalha. Robb venceu todas as suas batalhas, e mesmo
assim perdeu a cabeça. Se Stannis for capaz de levantar o Norte...
Ele tenta
convencer a si próprio, Sam compreendeu, mas não consegue. Os
corvos tinham partido de Castelo Negro numa tempestade de asas
negras, apelando aos senhores do Norte para se declararem por Stannis
Baratheon e juntarem suas forças às dele. Fora o próprio Sam quem
enviara a maior parte das aves. Até então só um corvo regressara,
aquele que fora enviado a Karhold. A exceção deste, o silêncio
fora ensurdecedor.
Mesmo que
de algum modo conseguisse trazer os nortenhos para seu lado, Sam não
via como poderia Stannis esperar igualar o poderio combinado de
Rochedo Casterly, Jardim de Cima e das Gêmeas. Mas, sem o Norte, sua
causa certamente estaria perdida. Tão perdida quanto a Patrulha da
Noite, se Lorde Tywin nos considerar traidores.
- Os
Lannister têm seus próprios nortenhos. Lorde Bolton e seu bastardo.
- Stannis
tem os Karstark. Se conseguir conquistar Porto Branco...
- Se -
enfatizou Sam. - Se não... senhor, até um escudo de papel é melhor
do que nenhum.
Jon
sacudiu a carta.
- Suponho
que sim - suspirou, depois pegou uma pena e rabiscou uma assinatura
no fim da carta. - Traga-me a cera de selar - Sam aqueceu um pedaço
de cera negra na chama de uma vela, fez pingar um pouco sobre o
pergaminho e observou Jon comprimir com firmeza o selo do Senhor
Comandante na pequena poça que criara. - Leve isto a Meistre Aemon
quando sair - ordenou - e diga-lhe que despache uma ave para Porto
Real.
- Farei
isso - Sam hesitou - Senhor, se posso perguntar... vi Goiva sair
daqui. Estava quase chorando.
- Val a
enviou outra vez para suplicar por Mance.
- Oh -
Val era a irmã da mulher que o Rei-Para-Lá-da-Muralha tomara como
rainha. Stannis e seus homens chamavam-na a princesa selvagem. A irmã
Dalla morrera durante a batalha, embora nenhuma lâmina a tivesse
tocado; perecera ao dar à luz o filho de Mance Rayder. O próprio
Rayder iria em breve segui-la para o túmulo, se os murmúrios que
Sam ouvira tivessem algum fundo de verdade. - Que foi que lhe disse?
- Que
falaria com Stannis, embora duvide que minhas palavras o influenciem.
O primeiro dever de um rei é defender o reino, e Mance o atacou. Não
é provável que Sua Graça se esqueça deste fato. Meu pai costumava
dizer que Stannis Baratheon era um homem justo. Nunca ninguém disse
que era clemente - Jon fez uma pausa e franziu as sobrancelhas. -
Preferiria ser eu mesmo a decapitar Mance. Ele foi outrora um homem
da Patrulha da Noite. Por direito, sua vida nos pertence.
- Pyp diz
que a Senhora Melisandre pretende entregá-lo às chamas, a fim de
fazer algum feitiço.
- Pyp
devia aprender a controlar a língua. Ouvi a mesma história sobre
outros. Sangue de um rei para despertar um dragão. Onde Melisandre
pensa encontrar um dragão adormecido ninguém tem bem certeza. É um
absurdo. O sangue de Mance não é mais régio do que o meu. Nunca
usou uma coroa nem se sentou num trono. É um fora da lei, nada mais.
Não há qualquer poder em sangue de fora da lei.
O corvo
ergueu os olhos do chão e gritou: “Sangue".
Jon não
lhe deu atenção.
- Vou
mandar Goiva embora.
- Oh -
Sam balançou a cabeça, para cima e para baixo. - Bem, isso é...
isso é bom, senhor - seria o melhor para ela, ir para algum lugar
quente e seguro, bem longe da Muralha e da luta.
- Ela e o
bebê. Precisaremos arranjar outra ama de leite para seu irmão de
leite.
- Leite
de cabra pode servir até que encontre uma substituta. É melhor para
um bebê do que o de vaca - Sam lera aquilo em algum lugar. Mexeu-se
na cadeira. - Senhor, ao procurar nos anais, encontrei outro garoto
comandante. Quatrocentos anos antes da Conquista. Osric Stark tinha
dez anos quando foi escolhido, mas serviu durante sessenta. São
quatro, senhor. Não está nem perto de ser o mais novo. Até agora é
o quinto mais novo.
- Sendo
que os quatro mais novos são todos filhos, irmãos ou bastardos do
Rei no Norte. Diga-me algo útil. Fale-me de nosso inimigo.
- Os
Outros - Sam lambeu os lábios. - São mencionados nos anais, embora
não com tanta frequência como eu esperava. Isto é, nos anais que
encontrei e vasculhei. Sei que há mais que ainda não encontrei.
Alguns dos livros mais antigos estão se despedaçando. As páginas
se desfazem quando tento virá-las. E os livros realmente velhos...
ou se desfizeram por completo, ou estão enterrados em algum lugar
onde ainda não procurei, ou... bem, pode ser que esses livros não
existam, e nunca tenham existido. As histórias mais antigas que
temos foram escritas depois dos ândalos chegarem a Westeros. Os
Primeiros Homens só nos deixaram runas em pedras, de modo que tudo o
que julgamos saber sobre a Era dos Heróis, a Era da Alvorada e a Era
da Longa Noite vem de relatos escritos por septões milhares de anos
mais tarde. Há arquimeistres na Cidadela que questionam tudo isso.
Essas velhas histórias estão cheias de reis que governaram por
centenas de anos, e cavaleiros que andaram por aí mil anos antes de
serem cavaleiros. Conhece as histórias: Brandon, o Construtor,
Symeon Olhos de Estrela, o Rei da Noite... dizemos que é o nono
centésimo nonagésimo oitavo Senhor Comandante da Patrulha da Noite,
mas a lista mais antiga que encontrei menciona seiscentos e setenta e
quatro comandantes, o que sugere que foi escrita durante...
- Há
muito tempo - Jon interrompeu. - E os Outros?
-
Encontrei menções a vidro de dragão. Durante a Era dos Heróis, os
filhos da floresta costumavam oferecer à Patrulha da Noite cem
punhais de obsidiana todos os anos. A maior parte das histórias
concordam que os Outros vêm quando está frio. Ou então fica frio
quando eles vêm. Por vezes aparecem durante tempestades de neve e
somem quando os céus se limpam. Escondem-se da luz do sol e emergem
à noite... ou então a noite cai quando emergem. Algumas histórias
falam deles montados em cadáveres de animais mortos. Ursos, lobos
gigantes, mamutes, cavalos, não importa, desde que esteja morto.
Aquele que matou Paul Pequeno estava montado num cavalo morto, por
isso essa parte é realmente verdade. Alguns relatos falam também de
aranhas gigantes de gelo. Não sei o que elas são. Homens que caem
em batalha contra os Outros precisam ser queimados, caso contrário
os mortos voltarão a se erguer como seus servos.
- Já
sabíamos tudo isso. A questão é: como os combatemos?
- A
armadura dos Outros é à prova da maior parte das lâminas comuns,
se é possível crer nas histórias - Sam respondeu - e as espadas
que usam são tão frias que estilhaçam o aço. Mas o fogo os
afugenta, e são vulneráveis à obsidiana - recordou-se daquele que
enfrentara na floresta assombrada, e o modo como parecera se derreter
quando o ferira com o punhal de vidro de dragão que Jon lhe fizera.
- Encontrei um relato da Longa Noite que fala do último herói a
matar Outros com uma lâmina de aço de dragão. Supostamente não
conseguiam resisti-lo.
- Aço de
dragão? - Jon franziu as sobrancelhas - Aço valiriano?
- Esta
também foi minha primeira ideia.
- Então,
se eu conseguir convencer os senhores dos Sete Reinos a nos dar suas
lâminas valirianas, tudo será salvo? Isto não será tão difícil
- a gargalhada que soltou não tinha qualquer alegria. - Descobriu
quem os Outros são, de onde vêm, o que querem?
- Ainda
não, senhor, mas pode ser que simplesmente tenha lido os livros
errados. Há centenas que ainda não folheei. Dê-me mais tempo e
encontrarei tudo o que houver para encontrar.
- Não há
mais tempo - o tom de Jon era triste. - Tem que juntar suas coisas,
Sam. Vai com Goiva.
- Vou? -
por um momento, Sam não compreendeu. - Eu vou? Para Atalaialeste,
senhor? Ou... para onde...
-
Vilavelha.
-
Vilavelha? - o nome saiu num guincho. Monte Chifre ficava perto de
Vilavelha. Minha casa. A ideia deixou-lhe a cabeça zonza. Meu pai.
- Aemon
também.
- Aemon?
O Meistre Aemon? Mas... ele tem cento e dois anos de idade, senhor,
não pode... Está mandando ele e eu? Quem cuidará dos corvos? Se
adoecerem ou se se ferirem, quem...
- Clydas.
Ele está com Aemon há anos.
- Clydas
é só um intendente, e está ficando cego. Precisa de um meistre.
Meistre Aemon está tão fraco, que uma viagem marítima... - pensou
na Árvore e na Rainha da Árvore e quase se engasgou com a língua.
- Isso pode... ele é velho, e...
- Sua
vida estará em risco. Estou ciente disso, Sam, mas o risco aqui é
maior. Stannis sabe quem Aemon é. Se a mulher vermelha precisar de
sangue real para os seus feitiços...
- Oh -
Sam empalideceu.
- Daeron
se juntará a vocês em Atalaialeste. Minha esperança é que suas
canções nos conquistem alguns homens no sul. O Melro os levará até
Bravos. De lá, arranjará uma forma de chegar a Vilavelha. Se ainda
quiser assumir o bebê de Goiva como seu bastardo, mande-a, e a
criança, para Monte Chifre. Se não, Aemon encontrará para ela um
lugar de criada na Cidadela.
- Meu
b-b-bastardo - dissera, e era verdade, mas... Toda aquela água.
Posso me afogar. Os navios sem pre podem afundar, e o outono é uma
estação tempestuosa. Mas Goiva estaria com ele, e o bebê cresceria
em segurança - Sim, eu... minha mãe e irmãs ajudarão Goiva a
criar a criança - posso mandar um a carta, não terei de ir
pessoalmente a Monte Chifre. - Daeron podia levá-la para Vilavelha
tão bem quanto eu. Eu... venho treinando o tiro com arco todas as
tardes com Ulmer, conforme ordenou... Bem, menos quando estou nas
câmaras subterrâneas, mas disse-me para descobrir coisas sobre os
Outros. O arco deixa meus ombros doloridos e cria bolhas em meus
dedos - mostrou a Jon o lugar onde uma rebentara. - Mas continuo
treinando. Agora são mais numerosas as vezes que acerto no alvo do
que as que erro, mas continuo a ser o pior arqueiro que alguma vez
curvou um arco. Mas gosto das histórias de Ulmer. Alguém precisa
escrevê-las e colocá-las num livro.
- Faça
isto. Há pergaminho e tinta na Cidadela, e também arcos. Espero que
continue com seu treino. Sam, a Patrulha da Noite tem centenas de
homens capazes de disparar uma flecha, mas só uma mão cheia sabe
ler ou escrever. Preciso que se torne meu novo meistre.
A palavra
o fez estremecer. Não, Pai, po r favor, não voltarei a falar disso,
juro pelos Sete. Mostre-me uma saída, por favor, mostre-me um a
saída.
- Senhor,
eu... o meu trabalho é aqui, os livros...
- ...
ainda estarão aqui quando voltar para nós.
Sam pôs
a mão na garganta. Quase conseguia sentir a corrente ali,
sufocando-o.
- Senhor,
a Cidadela... lá nos obrigam a cortar cadáveres - obrigam-nos a
usar uma corrente em volta do pescoço. Se é corrente que quer,
venha comigo. Durante três dias e três noites Sam adormeceu
soluçando, com as mãos e os pés acorrentados a uma parede. A
corrente em volta da garganta estava tão apertada que rasgara sua
pele, e sempre que rolava para o lado errado, no sono, cortava-lhe a
respiração. - Não posso usar uma corrente.
- Pode.
Usará. Meistre Aemon está velho e cego. Suas forças o estão
abandonando. Quem tomará seu lugar quando ele morrer? Meistre
Mullin, da Torre Sombria, é mais guerreiro do que erudito, e Meistre
Harmune de Atalaialeste passa mais tempo bêbado do que sóbrio.
- Se
pedir mais meistres à Cidadela...
-
Pretendo pedir. Precisaremos de todos os que nos mandarem. Mas não é
assim tão fácil substituir Aemon Targaryen - Jon fez uma expressão
de surpresa. - Estava convencido de que isto lhe agradaria. Há
tantos livros na Cidadela que ninguém pode ter esperança de ler
todos. Vai se dar bem por lá, Sam. Eu sei que vai.
- Não.
Posso ler os livros, mas... um m-meistre tem de ser um curandeiro, e
o s-s-sangue me faz desmaiar - estendeu a mão trêmula para Jon ver.
- Sou Sam, o Assustado, não Sam, o Matador.
-
Assustado? Com o quê? As censuras de velhos? Sam, você viu as
criaturas atacarem o Punho, uma maré de mortos-vivos com mãos
negras e brilhantes olhos azuis. Matou um Outro.
- Foi o
vidro de d-d-d-dragão, não fui eu.
-
Cale-se. Mentiu, maquinou e conspirou para fazer de mim Senhor
Comandante. Irá me obedecer. Irá para a Cidadela e forjará uma
corrente, e se tiver de abrir cadáveres, que seja. Pelo menos em
Vilavelha os cadáveres não levantarão objeções.
Ele não
compreende.
- Senhor
- disse Sam - meu p-p-p-pai, Lorde Randyll, ele, ele, ele, ele,
ele... a vida de um meistre é uma vida de servidão - balbuciava,
bem o sabia. - Nenhum filho da Casa Tarly alguma vez usará uma
corrente. Os homens de Monte Chifre não se dobram nem se vergam
perante senhores insignificantes - se é corrente que quer, venha
comigo. - Jon, não posso desobedecer ao meu pai.
Jon, ele
repetiu, mas Jon desaparecera, Agora quem o encarava era Lorde Snow,
olhos cinzentos duros como gelo.
- Você
não tem pai - Lorde Snow o repreendeu. - Só irmãos. Só tem a nós.
Sua vida pertence à Patrulha da Noite, por isso vai enfiar sua roupa
num saco, com todas as coisas que quiser levar para Vilavelha.
Partirá uma hora antes do nascer do sol. E eis outra ordem. Deste
dia em diante, não chamará a si mesmo de covarde. Enfrentou mais
coisas neste último ano do que a maioria dos homens durante a vida.
Pode enfrentar a Cidadela, mas a enfrentará como Irmão Juramentado
da Patrulha da Noite. Não posso ordenar que seja valente, mas posso,
sim, que esconda seus medos. Proferiu as palavras, Sam. Lembra-se?
Sou a
espada na escuridão. Mas era uma desgraça com uma espada, e a
escuridão o assustava.
- Eu...
eu vou tentar.
- Não
vai tentar. Vai obedecer.
“Obedecer."
O corvo de Mormont bateu suas grandes asas negras.
- Às
suas ordens, senhor. O... o Meistre Aemon sabe?
- Isto
foi tanto ideia dele como minha - Jon abriu-lhe a porta. - Nada de
despedidas. Quanto menos pessoas souberem disso, melhor. Uma hora
antes da primeira luz da aurora, junto ao cemitério.
Mais
tarde, Sam não conseguiria se lembrar de ter saído do armeiro. Só
voltou a si quando já tropeçava em lama e manchas de neve velha, na
direção dos aposentos de Meistre Aemon. Podia me esconder, disse a
si mesmo. Podia me esconder nas câmaras subterrâneas entre os
livros. Podia viver lá em baixo com os ratos e me esgueirar à noite
para roubar comida. Pensamentos insanos, bem sabia, tão inúteis
quanto desesperados. As câmaras subterrâneas seriam o primeiro
lugar onde iriam procurá-lo. O último lugar onde o procurariam era
além da Muralha, mas aí a loucura seria ainda maior. Os selvagens
me apanhariam e me matariam lentamente. Podiam me queimar vivo, como
a mulher vermelha pretende fazer a Mance Rayder.
Quando
foi encontrar Meistre Aemon na colônia de corvos, entregou-lhe a
carta de Jon e despejou seus temores num grande jorro de palavras.
- Ele não
compreende - Sam sentia-se prestes a vomitar. - Se eu puser uma
corrente ao pescoço, o senhor meu p-p-p-pai... ele, ele, ele...
- Meu pai
levantou as mesmas objeções quando escolhi uma vida de serviço -
disse o velho. - Foi o pai dele quem me enviou para a Cidadela. O Rei
Daeron fora pai de quatro filhos, e três tinham filhos seus. Dragões
demais é tão perigoso quanto dragões de menos, ouvi Sua Graça
dizer ao senhor meu pai no dia em que me mandaram embora - Aemon
levou uma mão malhada à corrente de muitos metais que pendia,
solta, em volta de seu estreito pescoço. - A corrente é pesada,
Sam, mas meu bisavô tinha razão. E seu Lorde Snow também.
"Snow”
resmungou um corvo. "Snow", ecoou um outro. Então todos
uniram à palavra. “Snow, snow, snow, snow, snow." Sam lhes
ensinara. Viu que ali não receberia ajuda. Meistre Aemon estava tão
encurralado quanto ele. Ele morrerá no mar, pensou, desesperado. É
idoso demais para sobreviver a um a viagem dessas. O filhinho de
Goiva também pode morrer, não é tão grande e forte quanto o bebê
de Dalla. Será que Jon quer nos matar a todos?
Na manhã
seguinte, Sam deu por si selando a égua que trouxera de Monte Chifre
e levando-a pelos arreios até o cemitério que havia junto da
estrada oriental. Os alforjes transbordavam de queijo, salsichas e
ovos cozidos, e metade de um presunto salgado que Hobb Três-Dedos
lhe dera no dia do seu nome.
- É um
homem que aprecia a cozinha, Matador - dissera o cozinheiro. -
Precisamos de mais homens como você - o presunto ajudaria, sem
dúvida. O caminho até Atalaialeste era longo e frio, e não havia
vilas nem estalagens à sombra da Muralha.
A hora
que precedia o amanhecer era escura e calma. Castelo Negro parecia
estranhamente silencioso. No cemitério, um par de carroças de duas
rodas o esperava, com Jack Negro Bulwer e uma dúzia de patrulheiros
experientes, tão duros como os garranos que montavam. Kedge
Olho-Branco praguejou sonoramente quando seu único olho bom
vislumbrou Sam.
- Não
ligue para ele, Sam - disse Jack Negro. - Perdeu uma aposta, disse
que ia ter de arrastá-lo aos guinchos de debaixo de alguma cama.
Meistre
Aemon estava fraco demais para montar um cavalo, de modo que uma
carroça lhe fora preparada com uma cama coberta com uma alta pilha
de peles e um toldo de couro atado por cima, a fim de manter
afastadas a chuva e a neve. Goiva e o filho seguiriam com ele. A
segunda carroça levaria suas roupas e posses, bem como uma arca de
velhos livros raros que Aemon pensava que a Cidadela poderia não
ter. Sam passara metade da noite à procura deles, embora tivesse
encontrado apenas um em quatro. Ainda bem, senão precisaríamos de
outra carroça.
Quando o
meistre surgiu, vinha enrolado numa pele de urso com o triplo do seu
tamanho. Quando Clydas o levava para a carroça soprou uma rajada de
vento, e o velho cambaleou. Sam correu para ele e pôs-lhe um braço
em volta. O utra rajada como aquela poderia soprá-lo por cima da
Muralha.
-
Segure-se em meu braço, meistre. Não é longe.
O cego
fez um aceno enquanto o vento puxava para trás os capuzes de ambos.
- Em
Vilavelha sempre faz calor. Há uma estalagem numa ilha no Vinhomel,
onde costumava ir quando era um jovem noviço. Será agradável
voltar a me sentar lá e bebericar cidra.
Quando
por fim introduziram o meistre na carroça, Goiva já surgira, com a
criança agasalhada nos braços. Sob o capuz, seus olhos estavam
vermelhos de chorar. Jon apareceu no mesmo instante, com Edd
Doloroso.
- Lorde
Snow - chamou Meistre Aemon - deixei um livro em meus aposentos. O
Compêndio de Jade. Foi escrito pelo aventureiro volanteno Colloquo
Votar, que viajou até o Oriente e visitou todas as terras do Mar de
Jade. Há uma passagem que pode achar interessante. Disse a Clydas
para marcá-la para você.
-
Certamente a lerei - Jon Snow respondeu.
Um fio de
muco branco escorreu do nariz de Meistre Aemon. O velho o limpou com
as costas da luva.
- O
conhecimento é uma arma, Jon. Arme-se bem antes de partir para a
batalha.
- Farei
isso - uma leve nevasca começou a cair, com grandes flocos fofos
despencando preguiçosamente do céu. Jon virou-se para Jack Negro
Bulwer. - Faça o melhor tempo que puder, mas não corra riscos
desnecessários. Tem um velho e um bebê de peito com você. Trate de
mantê-los quentes e bem alimentados.
- Faça o
mesmo, senhor - disse Goiva. - Faça o mesmo com o outro. Encontre
outra ama de leite, como disse que faria. Você me prometeu. O
bebê... o bebê de Dalla... o principezinho, quer dizer... arranje
uma boa mulher para que ele cresça grande e forte.
- Tem a
minha palavra quanto a isto - Jon Snow disse solenemente.
- Não
lhe dê um nome. Não faça isto até que ele tenha mais de dois
anos. Dá azar dar-lhes nome quando ainda mamam no peito. Vocês, os
corvos, podem não saber disto, mas é verdade.
- Às
suas ordens, senhora.
Um
espasmo de ira relampejou no rosto de Goiva.
- Não me
chame assim. Sou uma mãe, não uma senhora. Sou mulher de Craster e
filha de Craster, e uma mãe.
Edd
Doloroso segurou o bebê enquanto Goiva subia na carroça e
cobriu-lhe as pernas com algumas peles cheirando a mofo. Àquela
altura, o céu oriental já se mostrava mais cinzento do que negro.
Lew Mão Esquerda estava ansioso para se pôr a caminho. Edd entregou
a criança, e Goiva a colocou no peito. Esta pode ser a última vez
que vejo Castelo Negro, pensou Sam enquanto montava na égua. Por
mais que outrora tivesse odiado Castelo Negro, deixar o lugar o
estava dilacerando.
- Vamos -
ordenou Bulwer. Um chicote estalou, e as carroças começaram a
retumbar lentamente pela estrada sulcada enquanto a neve caía ao
redor. Sam deixou-se ficar junto a Clydas, Edd Doloroso e Jon Snow.
- Bem -
disse - até a vista.
- Até a
vista, Sam - disse Edd Doloroso. - Não é provável que seu navio
afunde, parece-me. Os navios só naufragam quando estou a bordo.
Jon ficou
observando as carroças.
- Na
primeira vez que vi Goiva - disse - ela estava encostada à parede da
Fortaleza de Craster, uma garota magricela de cabelos escuros, com
uma grande barriga, encolhida com medo do Fantasma. Ele tinha se
metido no meio dos coelhos dela, e parece que ela tinha medo de que a
abrisse e devorasse o bebê... mas não era do lobo que ela devia ter
tido medo, não?
Não,
pensou Sam. O perigo era Craster, seu próprio pai.
- Ela tem
mais coragem do que imagina.
- E você
também, Sam. Faça uma viagem rápida e segura, e cuide dela, de
Aemon e da criança - Jon abriu um sorriso estranho e triste. - E
puxe o capuz para cima. Os flocos de neve estão derretendo em seus
cabelos.
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