quarta-feira, 18 de setembro de 2013

5 - SAMWELL


Sam lia sobre os Outros quando viu o rato.
Seus olhos estavam vermelhos e ardiam. Não devia esfregá-los tanto, dizia sempre a si mesmo enquanto os esfregava. A poeira os irritava e fazia que lacrimejassem, e havia poeira por todo lado lá embaixo. Pequenas nuvens enchiam o ar toda vez que uma página era virada, e nuvens cinzentas erguiam-se sempre que ele movia uma pilha de livros para ver o que poderia estar escondido por baixo.
Sam não sabia quanto tempo passara desde que dormira pela última vez, mas restavam pouco mais de dois centímetros da gorda vela de sebo que acendera quando começara a ler o irregular monte de páginas soltas que encontrara atadas com barbante. Estava brutalmente cansado, mas era difícil parar. Mais um livro, dizia a si mesmo, depois paro. Mais um fólio, só mais um. Mais uma página, e vou para cima descansar e comer qualquer coisa. Mas havia sempre outra página depois daquela, e outra a seguir, e outro livro à espera por baixo da pilha. Vou só dar uma espiadela rápida para ver qual o assunto deste, pensava, e antes de se dar conta já tinha lido metade. Nada comera desde a tigela de sopa de feijão com toucinho que ingerira na companhia de Pyp e Grenn. Bem, exceto o pão e o queijo, mas só dei uma mordidinba, pensou. Foi então que lançou um rápido relance à bandeja vazia e viu o rato banqueteando-se com as migalhas do pão.
O roedor tinha metade do comprimento de seu mindinho, com olhos negros e pelo cinzento e macio. Sam sabia que devia matá-lo. Os ratos podiam preferir pão e queijo, mas também comiam papel. Encontrara bastante cocô de rato entre as prateleiras e as pilhas, e algumas das encadernações de couro dos livros mostravam sinais de terem sido roídas.
Mas é uma coisinha tão pequenina. E esfomeada. Como eu poderia lhe recusar algumas migalhas? Mas está comendo livros...
Depois de passar horas na cadeira, as costas de Sam estavam rígidas como uma prancha, e ele sentia as pernas meio adormecidas. Sabia que não seria suficientemente rápido para apanhar o rato, mas talvez conseguisse esmagá-lo. Junto ao seu cotovelo encontrava-se uma maciça cópia encadernada em couro dos Anais do Centauro Negro, o exaustivamente detalhado relato do Septão Jorquen acerca dos nove anos que Orbert Caswell servira como Senhor Comandante da Patrulha da Noite. Havia uma página para cada dia de seu mandato, e todas pareciam começar com: “Lorde Orbert levantou-se à alvorada e moveu as tripas” exceto a última, que dizia: “Lorde Orbert foi encontrado morto ao, amanhecer”.
Nenhum rato é adversário à altura do Septão Jorquen. Muito lentamente, Sam pegou o livro com a mão esquerda. Era grosso e pesado, e quando tentou erguê-lo só com uma mão, o volume escorregou de seus dedos gordos e voltou a cair com estrondo. O rato desapareceu em meio segundo, com a rapidez de um raio. Sam sentiu-se aliviado. Esmagar o pobre bicho teria lhe dado pesadelos.
- Mas não devia comer os livros - disse em voz alta. Talvez devesse trazer mais queijo da próxima vez que viesse àquele lugar.
Ficou surpreso ao reparar no quanto a vela ardera. A sopa de feijão com toucinho teria sido naquele dia ou no anterior? Foi ontem. Deve ter sido ontem. Perceber aquilo o fez bocejar. Jon devia estar se perguntando o que teria lhe acontecido, embora não houvesse dúvida de que Meistre Aemon compreenderia. Antes de perder a vista, o meistre amara tanto os livros como Samwell Tarly. Compreendia o modo como por vezes se podia cair dentro deles, como se cada página fosse um buraco aberto para outro mundo.
Pondo-se de pé, Sam fez uma careta devido às pontadas e alfinetadas que sentia na barriga das pernas. A cadeira era muito dura e enfiava-se na parte de trás das coxas quando Sam se debruçava sobre um livro. Tenho que me lembrar de trazer uma almofada. Seria melhor se pudesse dormir ali embaixo, na cela que encontrara meio escondida atrás de quatro arcas cheias de páginas soltas que tinham se separado dos livros a que pertenciam, mas não queria deixar Meistre Aemon só por tanto tempo. Nos últimos tempos, ele não andava forte e precisava de ajuda, especialmente com os corvos, Aemon tinha Clydas, com certeza, mas Sam era mais jovem e levava mais jeito com as aves.
Com uma pilha de livros e pergaminhos debaixo do braço esquerdo e a vela na mão direita, Sam abriu caminho através dos túneis a que os irmãos chamavam caminhos de minhoca. Um pálido pilar de luz iluminava os íngremes degraus de madeira que levavam à superfície, de modo que soube que o dia tinha chegado lá em cima. Deixou a vela queimando num nicho na parede e começou a subir. Ao alcançar o quinto degrau, já arquejava. No décimo, parou para passar os livros para o braço direito.
Emergiu sob um céu da cor de chumbo branco. Um céu de neve, Sam pensou, dando uma olhadela para cima. A perspectiva de neve o deixou inquieto. Lembrou-se daquela noite no Punho dos Primeiros Homens, quando as criaturas e a neve chegaram juntas. Não seja tão covarde, pensou. Tem seus Irmãos Juramentados à sua volta, sem falar de Stannis Baratheon e de todos os seus cavaleiros. As fortalezas e torres de Castelo Negro erguiam-se à sua volta, tornadas insignificantes pela imensidão de gelo da Muralha. Um pequeno exército arrastava-se sobre o gelo com neve até os joelhos, onde uma nova escada em zigue-zague trepava para se encontrar com os restos da antiga. O som de suas serras e martelos ecoava no gelo. Jon tinha os construtores trabalhando dia e noite naquela tarefa. Sam ouvira alguns reclamar durante o jantar, insistindo que Lorde Mormont nunca os encarregara nem de metade daquele trabalho. Mas sem a grande escada não havia como chegar ao topo da Muralha, exceto pelo elevador de correntes. E por mais que Samwell Tarly odiasse degraus, odiava ainda mais a gaiola do elevador. Sempre fechava os olhos quando subia ou descia nela, convencido de que a corrente estava prestes a quebrar. Todas as vezes que a gaiola de ferro raspava no gelo, seu coração parava de bater por um instante.
Dragões existiram aqui há duzentos anos, Sam deu por si pensando enquanto observava a gaiola descer lentamente. Eles teriam se limitado a voar até o topo da Muralha. Rainha Alysanne visitara Castelo Negro montada em seu dragão, e Jaehaerys, seu rei, viera à sua procura no dele. Poderia Alaprata ter deixado um ovo para trás? Ou teria Stannis encontrado um ovo em Pedra do Dragão? Mesm o se tiver um ovo, como espera chocá-lo? Baelor, o Abençoado, rezara sobre seus ovos, e outros Targaryen tentaram incubá-los com feitiçaria. Tudo que conseguiram foi farsa e tragédia.
- Samwell - disse uma voz sorumbática - vim buscá-lo. Disseram-me para levar você até o Senhor Comandante.
Um floco de neve pousou no nariz de Sam.
- Jon quer me ver?
- Quanto a isso, não sei dizer - disse Edd Doloroso Tollett. - Nunca quis ver metade das coisas que vi, e nunca vi metade das coisas que quis ver. Não me parece que o querer esteja envolvido na coisa. Mas é melhor ir mesmo assim. Lorde Snow quer falar com você assim que terminar de falar com a mulher de Craster.
- Goiva.
- Essa mesma. Se minha ama de leite fosse como ela, ainda mamaria. A minha tinha costeletas.
- A maior parte das cabras tem costeletas - gritou Pyp, no momento em que, com Grenn, surgia de uma esquina, com arcos nas mãos e aljavas de flechas às costas. - Onde estava, Matador? Sentimos sua falta ontem à noite no jantar. Um boi assado inteiro ficou sobrando.
- Não me chame de Matador - Sam ignorou a piada sobre o boi. Era só o Pyp. - Estava lendo. Apareceu um rato...
- Não fale de ratos com o Grenn. Ele tem pavor deles.
- Não tenho nada - Grenn declarou com indignação.
- Ia ter medo de comer um.
- Comeria mais ratos do que você.
Edd Doloroso Tollett soltou um suspiro:
- Quando eu era moço, só comíamos ratos em dias especiais de banquete. Eu era o mais novo, por isso sempre ficava com o rabo. Não há carne no rabo.
- Onde está seu arco, Sam? - Grenn perguntou. Sor Alliser costumava chamá-lo de Auroque, e cada dia que passava ele parecia crescer um pouco mais para dentro da alcunha. Chegara à Muralha grande, mas lento, de pescoço e cintura grossos, com o rosto vermelho e desajeitado. Embora o pescoço ainda se ruborizasse quando Pyp lhe fazia alguma brincadeira, horas de trabalho com a espada e o escudo tinham lhe endireitado a barriga, endurecido os braços, alargado o peito. Era forte, e também desgrenhado como um auroque.
- Ulmer estava à sua espera junto aos alvos.
- Ulmer - Sam repetiu, atrapalhado. Instituir exercícios diários de tiro com arco para toda a guarnição, até os intendentes e os cozinheiros, foi quase a primeira coisa que Jon Snow fez como Senhor Comandante. A Patrulha colocara muita ênfase na espada e insuficiente no arco, disse, uma relíquia dos dias em que um irmão em dez fora um cavaleiro, e não um em cem. Sam compreendia a sensatez do decreto, mas detestava o treino com arco com quase igual força como que detestava subir escadas. Quando usava as luvas, nunca conseguia acertar em nada, mas se as tirava ficava com bolhas nos dedos. Aqueles arcos eram perigosos. Cetim arrancara metade de uma unha com a corda de um arco. - Eu me esqueci.
- Partiu o coração da princesa selvagem, Matador - disse Pyp. Nos últimos tempos, Val ganhara o hábito de observá-los da janela de seu quarto na Torre do Rei - Ela andou à sua procura.
- Não andou nada! Não diga isso! - Sam só falara com Val duas vezes, quando Meistre Aemon a visitara para se certificar de que os bebês eram saudáveis. A princesa era tão bonita que era frequente dar por si gaguejando e corando em sua presença.
- Por que não? - perguntou Pyp. - Ela quer ter filhos seus. Talvez devêssemos chamá-lo de Sam, o Sedutor.
Sam enrubesceu. Sabia que Rei Stannis tinha planos para Val; ela era a argamassa com a qual pretendia selar a paz entre os nortenhos e o povo livre.
- Hoje não tenho tempo para o tiro com arco, preciso encontrar Jon.
- Jon? Jon? Conhecemos alguém chamado Jon, Grenn?
- Ele fala do Senhor Comandante.
- Ahhh... O Grande Lorde Snow. Com certeza. Por que quer ir ter com ele? Nem sequer consegue mexer as orelhas - Pyp mexeu nas suas, para mostrar que conseguia. Eram orelhas grandes, vermelhas de frio. - Ele agora é Lorde Snow de verdade, bem-nascido, como um raio para gente como nós.
- Jon tem deveres - Sam rebateu em sua defesa. - A Muralha é sua, com tudo o que isto traz.
- Um homem também tem deveres para com os amigos. Se não fôssemos nós, nosso Senhor Comandante podia ser Janos Slynt. Lorde Janos teria enviado Snow em patrulha nu e montado numa mula. “Galope até a Fortaleza de Craster” ele teria dito “e traga-me de volta o manto e as botas do Velho Urso” N ós o salvamos disso, mas agora ele tem deveres demais para beber uma taça de vinho temperado junto à lareira?
Grenn concordou:
- Os deveres dele não o afastam do pátio. Os dias em que está lá, lutando com alguém, são mais numerosos do que os outros.
Sam tinha de admitir que aquilo era verdade. Uma vez, quando Jon viera consultar Meistre Aemon, Sam lhe perguntara por que passava tanto tempo praticando com a espada.
- O Velho Urso nunca treinou muito quando era Senhor Comandante - Sam comentou. Em resposta, Jon pusera Garralonga na mão de Sam. Deixara-o sentir a leveza e o equilíbrio da espada, fizera-o virar a lâmina para que as ondulações cintilassem no metal escuro como fumaça.
- Aço valiriano - disse - forjado com feitiços e afiado como uma navalha, praticamente indestrutível. Um espadachim deve ser tão bom quanto sua espada, Sam. Garralonga é aço valiriano, mas eu não sou. O Meia-Mão podia ter me matado com a mesma facilidade com que você esmaga um inseto.
Sam devolveu-lhe a espada.
- Quando tento esmagar um inseto, ele sempre voa para longe. Só consigo dar um tapa no braço. Machuca,
Aquilo fez Jon rir.
- Como quiser. Qhorin podia ter me matado com a mesma facilidade com que você come uma tigela de mingau de aveia - Sam gostava de mingau de aveia, especialmente quando eram adoçados com mel.
- Não tenho tempo para isso - Sam deixou os amigos e dirigiu-se ao armeiro, apertando os livros ao peito. Sou o escudo que defende os reinos dos homens, recordou. Perguntou a si mesmo o que esses homens diriam caso percebessem que seus reinos eram defendidos por homens como Grenn, Pyp e Edd Doloroso.
A Torre do Senhor Comandante fora destruída pelo incêndio, e Stannis Baratheon apropriara-se da Torre do Rei para sua residência, por isso Jon Snow se estabelecera nos modestos quartos de Donal Noye por trás do armeiro. Goiva saía quando Sam chegou, envolta no velho manto que ele lhe dera quando fugiram da Fortaleza de Craster. Passou por ele correndo, mas Sam agarrou seu braço, deixando cair dois livros ao fazê-lo.
- Goiva.
- Sam - a voz dela parecia rouca. Goiva tinha cabelos escuros e era magra, com os grandes olhos castanhos de uma corça. As dobras do velho manto de Sam a engoliam, com o rosto meio escondido pelo capuz, mas apesar disso tremia. Parecia abatida e assustada.
- O que houve? - perguntou-lhe Sam. - Como estão os bebês?
Goiva libertou-se da mão dele.
- Estão bem, Sam. Bem.
- Com os dois, é um espanto que consiga dormir - disse Sam num tom agradável. - Qual deles ouvi chorando ontem à noite? Achei que nunca mais pararia.
- Foi o filho de Dalla. Chora quando quer mamar. O meu... o meu quase nunca chora. Às vezes gorgoleja, mas... - seus olhos encheram-se de lágrimas. - Tenho que ir. Já passa da hora de alimentá-los. Se não for, vou ficar cheia de leite - correu pátio afora, deixando um Sam perplexo para trás.
Teve de se ajoelhar para apanhar os livros que deixara cair, N ão devia ter trazido tantos, disse a si mesmo, enquanto sacudia terra do Compêndio de Jade de Colloquo Votar, um grosso volume de contos e lendas do Oriente que Meistre Aemon lhe ordenara que encontrasse. O livro parecia não ter sido danificado. Já Pele de Dragão, uma História da Casa Targaryen do Exílio à Apoteose, com Considerações Sobre a Vida e a Morte dos Dragões, de Meistre Thomax, não tivera tanta sorte. Abrira-se ao cair, e algumas páginas tinham ficado enlameadas, incluindo uma que exibia uma imagem bastante boa de Balerion, o Terror Negro, feita com tintas coloridas. Sam amaldiçoou-se por ser um idiota desastrado enquanto alisava as páginas e as sacudia. A presença de Goiva agitava-o sempre e levantava... bem, coisas. Um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite não devia sentir o tipo de coisas que Goiva o fazia sentir, especialmente quando falava sobre os seios, e...
- Lorde Snow está à espera - dois guardas envergando manto negro e meio-elmo de ferro encontravam-se em pé junto às portas do armeiro, encostados às lanças. Quem falou foi Hal Peludo. Mully ajudou Sam a se levantar. Proferiu um agradecimento atrapalhado e apressou-se para passar por eles, agarrando-se desesperadamente à pilha de livros enquanto abria caminho pela forja com sua bigorna e foles. Fantasma estava deitado perto da bigorna, roendo um osso de boi para chegar ao tutano. O grande lobo gigante branco ergueu os olhos quando Sam passou, mas não soltou um som.
O aposento privado de Jon ficava no fundo, atrás das fileiras de lanças e escudos. Ele lia um pergaminho quando Sam entrou. O corvo do Senhor Comandante Mormont encontrava-se empoleirado em seu ombro, espreitando para baixo como se também estivesse lendo, mas, quando a ave viu Sam, abriu as asas e voou em sua direção gritando “Grão, grão!”.
Deslocando os livros, Sam enfiou o braço no saco que se encontrava junto à porta e, quando o tirou, trazia uma mão cheia de sementes. O corvo pousou-lhe no pulso e comeu de sua palma, dando-lhe uma bicada tão forte que Sam soltou um ganido e recolheu a mão. O corvo voltou a levantar voo, e grãos vermelhos e amarelos voaram para todo lado.
- Feche a porta, Sam - leves cicatrizes ainda marcavam a face de Jon, no local onde uma águia tentara arrancar-lhe um olho. - Esse patife rasgou sua pele?
Sam pôs os livros de lado e tirou a luva.
- Rasgou -sentiu a cabeça dando voltas. - Estou sangrando.
- Todos derramamos nosso sangue pela Patrulha. Use luvas mais grossas - com um pé, Jon empurrou uma cadeira para ele. - Sente-se e dê uma olhada nisso - entregou-lhe o pergaminho.
- O que é? - Sam quis saber. O corvo pôs-se à caça de grãos de milho entre as esteiras.
- Um escudo de papel.
Sam chupou o sangue da palma da mão enquanto lia. Reconheceu a letra de Meistre Aemon assim que a viu. Tinha uma escrita pequena e precisa, mas o velho não conseguia ver onde a tinta borrara, e por vezes deixava manchas disformes.
- Uma carta para o Rei Tommen?
- Em Winterfell, Tommen lutou com meu irmão Bran com uma espada de madeira. Estava tão gordo que parecia um ganso estufado. Bran jogou-o ao chão - Jon dirigiu-se à janela. - Mas Bran está morto, e o rechonchudo Tommen de rosto rosado está sentado no Trono de Ferro, com uma coroa aninhada entre seus cachos dourados.
Bran não está morto, Sam desejou dizer. Foi para além da Muralha com o Mãos-Frias. Mas ficou com as palavras presas na garganta. Jurei que não contaria.
- Não assinou a carta.
- O Velho Urso suplicou ajuda ao Trono de Ferro uma centena de vezes. Enviaram-lhe Janos Slynt. Nenhuma carta fará que os Lannister gostem mais de nós. Especialmente depois de ouvirem dizer que temos ajudado Stannis.
- Só para defender a Muralha, não em sua rebelião - Sam voltou a ler rapidamente a carta. - É o que diz aqui.
- A diferença pode escapar a Lorde Tywin - Jon recuperou a carta. - Por que haveria de nos ajudar agora? Nunca o fez antes.
- Bem - disse Sam - ele não vai querer que se diga que Stannis correu em defesa do reino enquanto o Rei Tommen brincava com seus brinquedos. Isto faria cair o escárnio sobre a Casa Lannister.
- O que eu quero fazer cair sobre a Casa Lannister é a morte e a destruição, não o escárnio - Jon ergueu a carta. - A Patrulha da Noite não participa nas guerras dos Sete Reinos - leu -Nossos juramentos são prestados ao reino, e o reino encontra-se agora em terrível perigo. Stannis Baratheon ajuda-nos contra nossos inimigos além da Muralha, em hora nós não sejamos seus homens...
- Bem - Sam respondeu, torcendo-se - e não somos. Somos?
- Dei a Stannis alimentos, abrigo e Fortenoite, além de autorização para instalar uma parte do povo livre na Dádiva. É tudo.
- Lorde Tywin dirá que foi muito.
- Stannis diz que não é o suficiente. Quanto mais der a um rei, mais ele vai querer. Estamos percorrendo uma ponte de gelo com um abismo de cada lado. Agradar a um rei já é bastante difícil. Agradar a dois é praticamente impossível.
- Sim, mas... se os Lannister prevalecerem e Lorde Tywin decidir que traímos o rei ao ajudarmos Stannis, isto poderá significar o fim da Patrulha da Noite. Ele tem os Tyrell atrás de si, com todo o poderio de Jardim de Cima. E derrotou Lorde Stannis na Água Negra - ver sangue podia fazer Sam desmaiar, mas sabia como as guerras eram vencidas. Seu pai assegurara-se disso.
- Água Negra foi uma batalha. Robb venceu todas as suas batalhas, e mesmo assim perdeu a cabeça. Se Stannis for capaz de levantar o Norte...
Ele tenta convencer a si próprio, Sam compreendeu, mas não consegue. Os corvos tinham partido de Castelo Negro numa tempestade de asas negras, apelando aos senhores do Norte para se declararem por Stannis Baratheon e juntarem suas forças às dele. Fora o próprio Sam quem enviara a maior parte das aves. Até então só um corvo regressara, aquele que fora enviado a Karhold. A exceção deste, o silêncio fora ensurdecedor.
Mesmo que de algum modo conseguisse trazer os nortenhos para seu lado, Sam não via como poderia Stannis esperar igualar o poderio combinado de Rochedo Casterly, Jardim de Cima e das Gêmeas. Mas, sem o Norte, sua causa certamente estaria perdida. Tão perdida quanto a Patrulha da Noite, se Lorde Tywin nos considerar traidores.
- Os Lannister têm seus próprios nortenhos. Lorde Bolton e seu bastardo.
- Stannis tem os Karstark. Se conseguir conquistar Porto Branco...
- Se - enfatizou Sam. - Se não... senhor, até um escudo de papel é melhor do que nenhum.
Jon sacudiu a carta.
- Suponho que sim - suspirou, depois pegou uma pena e rabiscou uma assinatura no fim da carta. - Traga-me a cera de selar - Sam aqueceu um pedaço de cera negra na chama de uma vela, fez pingar um pouco sobre o pergaminho e observou Jon comprimir com firmeza o selo do Senhor Comandante na pequena poça que criara. - Leve isto a Meistre Aemon quando sair - ordenou - e diga-lhe que despache uma ave para Porto Real.
- Farei isso - Sam hesitou - Senhor, se posso perguntar... vi Goiva sair daqui. Estava quase chorando.
- Val a enviou outra vez para suplicar por Mance.
- Oh - Val era a irmã da mulher que o Rei-Para-Lá-da-Muralha tomara como rainha. Stannis e seus homens chamavam-na a princesa selvagem. A irmã Dalla morrera durante a batalha, embora nenhuma lâmina a tivesse tocado; perecera ao dar à luz o filho de Mance Rayder. O próprio Rayder iria em breve segui-la para o túmulo, se os murmúrios que Sam ouvira tivessem algum fundo de verdade. - Que foi que lhe disse?
- Que falaria com Stannis, embora duvide que minhas palavras o influenciem. O primeiro dever de um rei é defender o reino, e Mance o atacou. Não é provável que Sua Graça se esqueça deste fato. Meu pai costumava dizer que Stannis Baratheon era um homem justo. Nunca ninguém disse que era clemente - Jon fez uma pausa e franziu as sobrancelhas. - Preferiria ser eu mesmo a decapitar Mance. Ele foi outrora um homem da Patrulha da Noite. Por direito, sua vida nos pertence.
- Pyp diz que a Senhora Melisandre pretende entregá-lo às chamas, a fim de fazer algum feitiço.
- Pyp devia aprender a controlar a língua. Ouvi a mesma história sobre outros. Sangue de um rei para despertar um dragão. Onde Melisandre pensa encontrar um dragão adormecido ninguém tem bem certeza. É um absurdo. O sangue de Mance não é mais régio do que o meu. Nunca usou uma coroa nem se sentou num trono. É um fora da lei, nada mais. Não há qualquer poder em sangue de fora da lei.
O corvo ergueu os olhos do chão e gritou: “Sangue".
Jon não lhe deu atenção.
- Vou mandar Goiva embora.
- Oh - Sam balançou a cabeça, para cima e para baixo. - Bem, isso é... isso é bom, senhor - seria o melhor para ela, ir para algum lugar quente e seguro, bem longe da Muralha e da luta.
- Ela e o bebê. Precisaremos arranjar outra ama de leite para seu irmão de leite.
- Leite de cabra pode servir até que encontre uma substituta. É melhor para um bebê do que o de vaca - Sam lera aquilo em algum lugar. Mexeu-se na cadeira. - Senhor, ao procurar nos anais, encontrei outro garoto comandante. Quatrocentos anos antes da Conquista. Osric Stark tinha dez anos quando foi escolhido, mas serviu durante sessenta. São quatro, senhor. Não está nem perto de ser o mais novo. Até agora é o quinto mais novo.
- Sendo que os quatro mais novos são todos filhos, irmãos ou bastardos do Rei no Norte. Diga-me algo útil. Fale-me de nosso inimigo.
- Os Outros - Sam lambeu os lábios. - São mencionados nos anais, embora não com tanta frequência como eu esperava. Isto é, nos anais que encontrei e vasculhei. Sei que há mais que ainda não encontrei. Alguns dos livros mais antigos estão se despedaçando. As páginas se desfazem quando tento virá-las. E os livros realmente velhos... ou se desfizeram por completo, ou estão enterrados em algum lugar onde ainda não procurei, ou... bem, pode ser que esses livros não existam, e nunca tenham existido. As histórias mais antigas que temos foram escritas depois dos ândalos chegarem a Westeros. Os Primeiros Homens só nos deixaram runas em pedras, de modo que tudo o que julgamos saber sobre a Era dos Heróis, a Era da Alvorada e a Era da Longa Noite vem de relatos escritos por septões milhares de anos mais tarde. Há arquimeistres na Cidadela que questionam tudo isso. Essas velhas histórias estão cheias de reis que governaram por centenas de anos, e cavaleiros que andaram por aí mil anos antes de serem cavaleiros. Conhece as histórias: Brandon, o Construtor, Symeon Olhos de Estrela, o Rei da Noite... dizemos que é o nono centésimo nonagésimo oitavo Senhor Comandante da Patrulha da Noite, mas a lista mais antiga que encontrei menciona seiscentos e setenta e quatro comandantes, o que sugere que foi escrita durante...
- Há muito tempo - Jon interrompeu. - E os Outros?
- Encontrei menções a vidro de dragão. Durante a Era dos Heróis, os filhos da floresta costumavam oferecer à Patrulha da Noite cem punhais de obsidiana todos os anos. A maior parte das histórias concordam que os Outros vêm quando está frio. Ou então fica frio quando eles vêm. Por vezes aparecem durante tempestades de neve e somem quando os céus se limpam. Escondem-se da luz do sol e emergem à noite... ou então a noite cai quando emergem. Algumas histórias falam deles montados em cadáveres de animais mortos. Ursos, lobos gigantes, mamutes, cavalos, não importa, desde que esteja morto. Aquele que matou Paul Pequeno estava montado num cavalo morto, por isso essa parte é realmente verdade. Alguns relatos falam também de aranhas gigantes de gelo. Não sei o que elas são. Homens que caem em batalha contra os Outros precisam ser queimados, caso contrário os mortos voltarão a se erguer como seus servos.
- Já sabíamos tudo isso. A questão é: como os combatemos?
- A armadura dos Outros é à prova da maior parte das lâminas comuns, se é possível crer nas histórias - Sam respondeu - e as espadas que usam são tão frias que estilhaçam o aço. Mas o fogo os afugenta, e são vulneráveis à obsidiana - recordou-se daquele que enfrentara na floresta assombrada, e o modo como parecera se derreter quando o ferira com o punhal de vidro de dragão que Jon lhe fizera. - Encontrei um relato da Longa Noite que fala do último herói a matar Outros com uma lâmina de aço de dragão. Supostamente não conseguiam resisti-lo.
- Aço de dragão? - Jon franziu as sobrancelhas - Aço valiriano?
- Esta também foi minha primeira ideia.
- Então, se eu conseguir convencer os senhores dos Sete Reinos a nos dar suas lâminas valirianas, tudo será salvo? Isto não será tão difícil - a gargalhada que soltou não tinha qualquer alegria. - Descobriu quem os Outros são, de onde vêm, o que querem?
- Ainda não, senhor, mas pode ser que simplesmente tenha lido os livros errados. Há centenas que ainda não folheei. Dê-me mais tempo e encontrarei tudo o que houver para encontrar.
- Não há mais tempo - o tom de Jon era triste. - Tem que juntar suas coisas, Sam. Vai com Goiva.
- Vou? - por um momento, Sam não compreendeu. - Eu vou? Para Atalaialeste, senhor? Ou... para onde...
- Vilavelha.
- Vilavelha? - o nome saiu num guincho. Monte Chifre ficava perto de Vilavelha. Minha casa. A ideia deixou-lhe a cabeça zonza. Meu pai.
- Aemon também.
- Aemon? O Meistre Aemon? Mas... ele tem cento e dois anos de idade, senhor, não pode... Está mandando ele e eu? Quem cuidará dos corvos? Se adoecerem ou se se ferirem, quem...
- Clydas. Ele está com Aemon há anos.
- Clydas é só um intendente, e está ficando cego. Precisa de um meistre. Meistre Aemon está tão fraco, que uma viagem marítima... - pensou na Árvore e na Rainha da Árvore e quase se engasgou com a língua. - Isso pode... ele é velho, e...
- Sua vida estará em risco. Estou ciente disso, Sam, mas o risco aqui é maior. Stannis sabe quem Aemon é. Se a mulher vermelha precisar de sangue real para os seus feitiços...
- Oh - Sam empalideceu.
- Daeron se juntará a vocês em Atalaialeste. Minha esperança é que suas canções nos conquistem alguns homens no sul. O Melro os levará até Bravos. De lá, arranjará uma forma de chegar a Vilavelha. Se ainda quiser assumir o bebê de Goiva como seu bastardo, mande-a, e a criança, para Monte Chifre. Se não, Aemon encontrará para ela um lugar de criada na Cidadela.
- Meu b-b-bastardo - dissera, e era verdade, mas... Toda aquela água. Posso me afogar. Os navios sem pre podem afundar, e o outono é uma estação tempestuosa. Mas Goiva estaria com ele, e o bebê cresceria em segurança - Sim, eu... minha mãe e irmãs ajudarão Goiva a criar a criança - posso mandar um a carta, não terei de ir pessoalmente a Monte Chifre. - Daeron podia levá-la para Vilavelha tão bem quanto eu. Eu... venho treinando o tiro com arco todas as tardes com Ulmer, conforme ordenou... Bem, menos quando estou nas câmaras subterrâneas, mas disse-me para descobrir coisas sobre os Outros. O arco deixa meus ombros doloridos e cria bolhas em meus dedos - mostrou a Jon o lugar onde uma rebentara. - Mas continuo treinando. Agora são mais numerosas as vezes que acerto no alvo do que as que erro, mas continuo a ser o pior arqueiro que alguma vez curvou um arco. Mas gosto das histórias de Ulmer. Alguém precisa escrevê-las e colocá-las num livro.
- Faça isto. Há pergaminho e tinta na Cidadela, e também arcos. Espero que continue com seu treino. Sam, a Patrulha da Noite tem centenas de homens capazes de disparar uma flecha, mas só uma mão cheia sabe ler ou escrever. Preciso que se torne meu novo meistre.
A palavra o fez estremecer. Não, Pai, po r favor, não voltarei a falar disso, juro pelos Sete. Mostre-me uma saída, por favor, mostre-me um a saída.
- Senhor, eu... o meu trabalho é aqui, os livros...
- ... ainda estarão aqui quando voltar para nós.
Sam pôs a mão na garganta. Quase conseguia sentir a corrente ali, sufocando-o.
- Senhor, a Cidadela... lá nos obrigam a cortar cadáveres - obrigam-nos a usar uma corrente em volta do pescoço. Se é corrente que quer, venha comigo. Durante três dias e três noites Sam adormeceu soluçando, com as mãos e os pés acorrentados a uma parede. A corrente em volta da garganta estava tão apertada que rasgara sua pele, e sempre que rolava para o lado errado, no sono, cortava-lhe a respiração. - Não posso usar uma corrente.
- Pode. Usará. Meistre Aemon está velho e cego. Suas forças o estão abandonando. Quem tomará seu lugar quando ele morrer? Meistre Mullin, da Torre Sombria, é mais guerreiro do que erudito, e Meistre Harmune de Atalaialeste passa mais tempo bêbado do que sóbrio.
- Se pedir mais meistres à Cidadela...
- Pretendo pedir. Precisaremos de todos os que nos mandarem. Mas não é assim tão fácil substituir Aemon Targaryen - Jon fez uma expressão de surpresa. - Estava convencido de que isto lhe agradaria. Há tantos livros na Cidadela que ninguém pode ter esperança de ler todos. Vai se dar bem por lá, Sam. Eu sei que vai.
- Não. Posso ler os livros, mas... um m-meistre tem de ser um curandeiro, e o s-s-sangue me faz desmaiar - estendeu a mão trêmula para Jon ver. - Sou Sam, o Assustado, não Sam, o Matador.
- Assustado? Com o quê? As censuras de velhos? Sam, você viu as criaturas atacarem o Punho, uma maré de mortos-vivos com mãos negras e brilhantes olhos azuis. Matou um Outro.
- Foi o vidro de d-d-d-dragão, não fui eu.
- Cale-se. Mentiu, maquinou e conspirou para fazer de mim Senhor Comandante. Irá me obedecer. Irá para a Cidadela e forjará uma corrente, e se tiver de abrir cadáveres, que seja. Pelo menos em Vilavelha os cadáveres não levantarão objeções.
Ele não compreende.
- Senhor - disse Sam - meu p-p-p-pai, Lorde Randyll, ele, ele, ele, ele, ele... a vida de um meistre é uma vida de servidão - balbuciava, bem o sabia. - Nenhum filho da Casa Tarly alguma vez usará uma corrente. Os homens de Monte Chifre não se dobram nem se vergam perante senhores insignificantes - se é corrente que quer, venha comigo. - Jon, não posso desobedecer ao meu pai.
Jon, ele repetiu, mas Jon desaparecera, Agora quem o encarava era Lorde Snow, olhos cinzentos duros como gelo.
- Você não tem pai - Lorde Snow o repreendeu. - Só irmãos. Só tem a nós. Sua vida pertence à Patrulha da Noite, por isso vai enfiar sua roupa num saco, com todas as coisas que quiser levar para Vilavelha. Partirá uma hora antes do nascer do sol. E eis outra ordem. Deste dia em diante, não chamará a si mesmo de covarde. Enfrentou mais coisas neste último ano do que a maioria dos homens durante a vida. Pode enfrentar a Cidadela, mas a enfrentará como Irmão Juramentado da Patrulha da Noite. Não posso ordenar que seja valente, mas posso, sim, que esconda seus medos. Proferiu as palavras, Sam. Lembra-se?
Sou a espada na escuridão. Mas era uma desgraça com uma espada, e a escuridão o assustava.
- Eu... eu vou tentar.
- Não vai tentar. Vai obedecer.
“Obedecer." O corvo de Mormont bateu suas grandes asas negras.
- Às suas ordens, senhor. O... o Meistre Aemon sabe?
- Isto foi tanto ideia dele como minha - Jon abriu-lhe a porta. - Nada de despedidas. Quanto menos pessoas souberem disso, melhor. Uma hora antes da primeira luz da aurora, junto ao cemitério.
Mais tarde, Sam não conseguiria se lembrar de ter saído do armeiro. Só voltou a si quando já tropeçava em lama e manchas de neve velha, na direção dos aposentos de Meistre Aemon. Podia me esconder, disse a si mesmo. Podia me esconder nas câmaras subterrâneas entre os livros. Podia viver lá em baixo com os ratos e me esgueirar à noite para roubar comida. Pensamentos insanos, bem sabia, tão inúteis quanto desesperados. As câmaras subterrâneas seriam o primeiro lugar onde iriam procurá-lo. O último lugar onde o procurariam era além da Muralha, mas aí a loucura seria ainda maior. Os selvagens me apanhariam e me matariam lentamente. Podiam me queimar vivo, como a mulher vermelha pretende fazer a Mance Rayder.
Quando foi encontrar Meistre Aemon na colônia de corvos, entregou-lhe a carta de Jon e despejou seus temores num grande jorro de palavras.
- Ele não compreende - Sam sentia-se prestes a vomitar. - Se eu puser uma corrente ao pescoço, o senhor meu p-p-p-pai... ele, ele, ele...
- Meu pai levantou as mesmas objeções quando escolhi uma vida de serviço - disse o velho. - Foi o pai dele quem me enviou para a Cidadela. O Rei Daeron fora pai de quatro filhos, e três tinham filhos seus. Dragões demais é tão perigoso quanto dragões de menos, ouvi Sua Graça dizer ao senhor meu pai no dia em que me mandaram embora - Aemon levou uma mão malhada à corrente de muitos metais que pendia, solta, em volta de seu estreito pescoço. - A corrente é pesada, Sam, mas meu bisavô tinha razão. E seu Lorde Snow também.
"Snow” resmungou um corvo. "Snow", ecoou um outro. Então todos uniram à palavra. “Snow, snow, snow, snow, snow." Sam lhes ensinara. Viu que ali não receberia ajuda. Meistre Aemon estava tão encurralado quanto ele. Ele morrerá no mar, pensou, desesperado. É idoso demais para sobreviver a um a viagem dessas. O filhinho de Goiva também pode morrer, não é tão grande e forte quanto o bebê de Dalla. Será que Jon quer nos matar a todos?
Na manhã seguinte, Sam deu por si selando a égua que trouxera de Monte Chifre e levando-a pelos arreios até o cemitério que havia junto da estrada oriental. Os alforjes transbordavam de queijo, salsichas e ovos cozidos, e metade de um presunto salgado que Hobb Três-Dedos lhe dera no dia do seu nome.
- É um homem que aprecia a cozinha, Matador - dissera o cozinheiro. - Precisamos de mais homens como você - o presunto ajudaria, sem dúvida. O caminho até Atalaialeste era longo e frio, e não havia vilas nem estalagens à sombra da Muralha.
A hora que precedia o amanhecer era escura e calma. Castelo Negro parecia estranhamente silencioso. No cemitério, um par de carroças de duas rodas o esperava, com Jack Negro Bulwer e uma dúzia de patrulheiros experientes, tão duros como os garranos que montavam. Kedge Olho-Branco praguejou sonoramente quando seu único olho bom vislumbrou Sam.
- Não ligue para ele, Sam - disse Jack Negro. - Perdeu uma aposta, disse que ia ter de arrastá-lo aos guinchos de debaixo de alguma cama.
Meistre Aemon estava fraco demais para montar um cavalo, de modo que uma carroça lhe fora preparada com uma cama coberta com uma alta pilha de peles e um toldo de couro atado por cima, a fim de manter afastadas a chuva e a neve. Goiva e o filho seguiriam com ele. A segunda carroça levaria suas roupas e posses, bem como uma arca de velhos livros raros que Aemon pensava que a Cidadela poderia não ter. Sam passara metade da noite à procura deles, embora tivesse encontrado apenas um em quatro. Ainda bem, senão precisaríamos de outra carroça.
Quando o meistre surgiu, vinha enrolado numa pele de urso com o triplo do seu tamanho. Quando Clydas o levava para a carroça soprou uma rajada de vento, e o velho cambaleou. Sam correu para ele e pôs-lhe um braço em volta. O utra rajada como aquela poderia soprá-lo por cima da Muralha.
- Segure-se em meu braço, meistre. Não é longe.
O cego fez um aceno enquanto o vento puxava para trás os capuzes de ambos.
- Em Vilavelha sempre faz calor. Há uma estalagem numa ilha no Vinhomel, onde costumava ir quando era um jovem noviço. Será agradável voltar a me sentar lá e bebericar cidra.
Quando por fim introduziram o meistre na carroça, Goiva já surgira, com a criança agasalhada nos braços. Sob o capuz, seus olhos estavam vermelhos de chorar. Jon apareceu no mesmo instante, com Edd Doloroso.
- Lorde Snow - chamou Meistre Aemon - deixei um livro em meus aposentos. O Compêndio de Jade. Foi escrito pelo aventureiro volanteno Colloquo Votar, que viajou até o Oriente e visitou todas as terras do Mar de Jade. Há uma passagem que pode achar interessante. Disse a Clydas para marcá-la para você.
- Certamente a lerei - Jon Snow respondeu.
Um fio de muco branco escorreu do nariz de Meistre Aemon. O velho o limpou com as costas da luva.
- O conhecimento é uma arma, Jon. Arme-se bem antes de partir para a batalha.
- Farei isso - uma leve nevasca começou a cair, com grandes flocos fofos despencando preguiçosamente do céu. Jon virou-se para Jack Negro Bulwer. - Faça o melhor tempo que puder, mas não corra riscos desnecessários. Tem um velho e um bebê de peito com você. Trate de mantê-los quentes e bem alimentados.
- Faça o mesmo, senhor - disse Goiva. - Faça o mesmo com o outro. Encontre outra ama de leite, como disse que faria. Você me prometeu. O bebê... o bebê de Dalla... o principezinho, quer dizer... arranje uma boa mulher para que ele cresça grande e forte.
- Tem a minha palavra quanto a isto - Jon Snow disse solenemente.
- Não lhe dê um nome. Não faça isto até que ele tenha mais de dois anos. Dá azar dar-lhes nome quando ainda mamam no peito. Vocês, os corvos, podem não saber disto, mas é verdade.
- Às suas ordens, senhora.
Um espasmo de ira relampejou no rosto de Goiva.
- Não me chame assim. Sou uma mãe, não uma senhora. Sou mulher de Craster e filha de Craster, e uma mãe.
Edd Doloroso segurou o bebê enquanto Goiva subia na carroça e cobriu-lhe as pernas com algumas peles cheirando a mofo. Àquela altura, o céu oriental já se mostrava mais cinzento do que negro. Lew Mão Esquerda estava ansioso para se pôr a caminho. Edd entregou a criança, e Goiva a colocou no peito. Esta pode ser a última vez que vejo Castelo Negro, pensou Sam enquanto montava na égua. Por mais que outrora tivesse odiado Castelo Negro, deixar o lugar o estava dilacerando.
- Vamos - ordenou Bulwer. Um chicote estalou, e as carroças começaram a retumbar lentamente pela estrada sulcada enquanto a neve caía ao redor. Sam deixou-se ficar junto a Clydas, Edd Doloroso e Jon Snow.
- Bem - disse - até a vista.
- Até a vista, Sam - disse Edd Doloroso. - Não é provável que seu navio afunde, parece-me. Os navios só naufragam quando estou a bordo.
Jon ficou observando as carroças.
- Na primeira vez que vi Goiva - disse - ela estava encostada à parede da Fortaleza de Craster, uma garota magricela de cabelos escuros, com uma grande barriga, encolhida com medo do Fantasma. Ele tinha se metido no meio dos coelhos dela, e parece que ela tinha medo de que a abrisse e devorasse o bebê... mas não era do lobo que ela devia ter tido medo, não?
Não, pensou Sam. O perigo era Craster, seu próprio pai.
- Ela tem mais coragem do que imagina.
- E você também, Sam. Faça uma viagem rápida e segura, e cuide dela, de Aemon e da criança - Jon abriu um sorriso estranho e triste. - E puxe o capuz para cima. Os flocos de neve estão derretendo em seus cabelos.  

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