quarta-feira, 18 de setembro de 2013

6 - ARYA



A luz ardia tênue e distante, baixa no horizonte, brilhando através das névoas marítimas.
- Parece uma estrela -Arya disse.
- A estrela do lar - Denyo respondeu.
O pai dele gritava ordens. Marinheiros subiam e desciam os três grandes mastros e moviam-se pelo cordame, rizando as pesadas velas púrpura. Embaixo, remadores arquejavam e se esforçavam em duas grandes fileiras de remos. Os conveses inclinaram-se, rangendo, quando a galeota Filha do Titã adernou para estibordo e começou a mudar de bordo.
A estrela do lar. Arya estava em pé, na proa, com a mão pousada na figura dourada, uma donzela que segurava uma taça de fruta. Durante meio segundo permitiu-se fingir que o que tinha em frente era o seu lar.
Mas era uma estupidez. Seu lar desaparecera, os pais estavam mortos, e todos os irmãos tinham sido assassinados, exceto Jon Snow, na Muralha. Fora para esse lugar que quisera ir. Dissera isso ao capitão, mas nem mesmo a moeda de ferro conseguira convencê-lo. Arya nunca parecia chegar aos lugares que se propunha alcançar. Yoren jurara entregá-la em Winterfell, mas acabara em Harrenhal, e Yoren, na sepultura. Quando fugira de Harrenhal na direção de Correrrio, Limo, Anguy e Tom das Sete tornaram-na cativa e, em vez disso, arrastaram-na para o monte oco. Então, Cão de Caça a raptara e a levara para as Gêmeas. Arya deixara-o moribundo junto ao rio e prosseguira até Salinas,
esperando arranjar passagem para Atalaialeste do Mar, só que...
Bravos p ode não ser tão ruim. Syrio era de Bravos, e Jaqen também pode estar lá. Fora Jaqen quem lhe dera a moeda de ferro. Ele não fora realmente seu amigo como Syrio tinha sido, mas que bem lhe tinham feito os amigos? Não preciso de amigos, desde que tenha a Agulha. Esfregou a ponta do polegar no suave botão de punho da espada, desejando, desejando...
Na verdade, Arya não sabia o que desejar, assim como não sabia o que a esperava sob aquela luz distante. O capitão dera-lhe passagem, mas não tivera tempo de conversar com ela. Alguns dos membros da tripulação evitavam-na, mas outros davam-lhe presentes, um garfo de prata, luvas sem dedos, um chapéu mole de lã remendado com couro. Um homem mostrara-lhe como fazer nós de marinheiro. Outro servia-lhe pequenas doses de vinho ardente. Os amigáveis batiam no peito, dizendo os nomes uma e outra vez até que Arya os repetisse, embora nenhum tivesse tido a ideia de perguntar seu nome. Chamavam-na Salgada, visto ter embarcado em Salinas, perto da foz do Tridente. Supunha que era um nome tão bom como qualquer outro.
As últimas das estrelas da noite tinham desaparecido... todas, menos o par que estava logo em frente.
- Agora são duas estrelas.
- Dois olhos - Denyo disse. - O Titã nos vê.
O Titã de Bravos, A Velha Ama contara-lhes histórias sobre o Titã, em Winterfell. Era um gigante alto como uma montanha, e sempre que Bravos estava em perigo acordava com fogo nos olhos, fazendo trovejar e ranger os membros de pedra enquanto entrava no mar para esmagar os inimigos.
"Os bravosianos alimentam-no com a carne suculenta e cor-de-rosa de garotinhas bem-nascidas” terminava a Ama, e Sansa soltava um guincho estúpido. Mas Meistre Luwin dizia que o Titã era apenas uma estátua, e as histórias da Velha Ama não passavam de histórias.
Winterfell ardeu e caiu, recordou Arya a si mesma. A Velha Ama e Meistre Luwin estavam ambos mortos, provavelmente, e Sansa também. Não fazia bem nenhum pensar neles. Todos os homens têm de morrer. Era isso que as palavras queriam dizer, as palavras que Jaqen H'ghar lhe ensinara quando lhe dera a gasta moeda de ferro. Aprendera mais palavras bravosianas desde que deixara Salinas, as palavras para por favor, obrigado, mar, estrela e vinho ardente, mas chegara até elas sabendo que todos os homens têm de morrer. A maior parte da tripulação da Filha tinha alguma noção do idioma comum, das noites passadas em terra, em Vilavelha, Porto Real e Lagoa da Donzela, embora apenas o capitão e os filhos o falassem suficientemente bem para conversar com ela. Denyo era o mais novo desses filhos, um gorducho e alegre garoto de doze anos que cuidava da cabine do pai e ajudava o irmão mais velho com as contas.
- Espero que seu Titã não esteja com fome - disse-lhe Arya.
- Fome? - perguntou Denyo, confuso.
- Não interessa - mesmo que o Titã realmente comesse carne suculenta e rosada de garotinhas, Arya não o temeria. Era uma coisinha magricela, não uma refeição decente para um gigante, e tinha quase onze anos, praticamente uma mulher-feita, E, além disso, a Salgada não é bem -nascida. - O Titã é o deus de Bravos? - ela perguntou. - Ou honram os Sete?
- Todos os deuses são honrados em Bravos - o filho do capitão gostava quase tanto de falar sobre sua cidade como apreciava falar sobre o navio do pai. - Os seus Sete têm aqui um septo, o Septo-do-Ultramar, mas só os marinheiros de Westeros prestam culto nele.
Não são os meus Sete. Eram os deuses da minha mãe, e deixaram que os Frey a assassinassem nas Gêmeas. Perguntou a si mesma se encontraria em Bravos um bosque sagrado com um represeiro no coração. Denyo talvez soubesse, mas não podia lhe perguntar. A Salgada era de Salinas, e o que saberia uma garota de Salinas dos velhos deuses do Norte? Os velhos deuses estão mortos, disse a si mesma, como a mãe, o pai, Robb, Bran e Rickon, todos mortos. Lembrava-se de seu pai ter dito, havia muito tempo, que, quando os ventos frios sopram, o lobo solitário morre e a alcateia sobrevive. Ele entendeu tudo ao contrário. Arya, a loba solitária, sobreviveu, mas os lobos da alcateia tinham sido capturados, mortos e esfolados.
- Os Cantores da Lua trouxeram-nos para este local de refúgio, onde os dragões de Valíria não conseguissem nos encontrar - disse Denyo. - O templo deles é o maior. Honramos também o Pai das Águas, mas sua casa é construída de novo sempre que toma uma noiva. O resto dos deuses vivem juntos numa ilha no centro da cidade. É aí que encontrará o... o Deus das Muitas Faces.
Os olhos do Titã pareciam agora brilhantes e mais afastados um do outro. Arya não conhecia nenhum Deus das Muitas Faces, mas, se respondia a preces, podia ser o deus que procurava. Sor Gregor, pensou, Dunsen, Rajf, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. Já são só seis. Joffrey estava morto, Cão de Caça matara Polliver e ela mesma apunhalara Cócegas e aquele estúpido escudeiro espinhento. Não o teria matado se ele não tivesse me agarrado. Cão de Caça estava moribundo quando o deixara nas margens do Tridente, ardendo em febre devido ao ferimento. Devia ter lhe oferecido a dádiva da misericórdia e enfiado um a faca em seu coração.
- Salgada, olhe! - Denyo pegou no braço de Arya e a fez se virar. - Consegue ver? Ali - ele apontou.
As névoas cederam à frente do navio, cortinas cinzentas esfarrapadas afastadas pela proa. A Filha do Titã abria caminho através das águas cinzentas esverdeadas, apoiada em asas enfunadas de cor púrpura. Arya ouvia os gritos das aves marinhas por cima de sua cabeça. Ali, no local para onde Denyo apontava, uma linha de cumeadas rochosas erguia-se, súbita, do mar, com vertentes íngremes cobertas de pinheiros marciais e abetos negros. Mas, mesmo em frente, o mar abrira caminho, e ali, sobre as águas abertas, erguia-se o Titã, com seus olhos em fogo e seus longos cabelos verdes soprados pelo vento. Suas pernas erguiam-se sobre a abertura, com um pé plantado em cada montanha, e os ombros subiam bem acima dos cumes irregulares. As pernas tinham sido esculpidas em pedra sólida, o mesmo granito negro dos montes submarinos sobre os quais se erguia, embora usasse em volta das ancas uma saia couraçada de bronze esverdeado. A placa de peito também era de bronze, e a cabeça era um meio-elmo com crista. Os cabelos que o vento soprava eram feitos de cordas de cânhamo tingidas de verde, e enormes fogueiras ardiam nas grutas que eram os seus olhos. Uma mão descansava no topo da cumeada da esquerda, com dedos de bronze enrolados em volta de uma protuberância de pedra; a outra projetava-se no ar, agarrando o cabo de uma espada quebrada.
É só um pouco maior do que a estátua do Rei Baelor em Porto Real, disse a si mesma quando ainda se encontravam bem distantes. Mas, à medida que a galeota se aproximou do local onde as ondas rebentavam contra a cumeada, o Titã cresceu ainda mais. Arya ouvia o pai de Denyo berrando ordens com sua voz profunda, e, no cordame, os homens enrolavam as velas. Vamos passar, a remo, por baixo das pernas do Titã. Arya viu as seteiras abertas na grande placa de peito em bronze, e manchas e salpicos nos braços e ombros do Titã, nos locais onde as aves marinhas faziam os ninhos. O pescoço virou-se para cima. Baelor, o Abençoado, não lhe chegaria ao joelho. Podia passar por cima das muralhas de Winterfell.
Então o Titã soltou um poderoso rugido.
O som foi tão monstruoso quanto ele, um terrível trovejar e ranger, tão forte que até afogou a voz do capitão e o estrondo que as ondas faziam contra aquelas elevações vestidas de pinheiros. Um milhar de aves marinhas levantou voo ao mesmo tempo, e Arya encolheu-se até ver que Denyo estava dando risada.
- Ele avisa o Arsenal de nossa chegada, é tudo - gritou. - Não precisa ter medo.
- Não tive - gritou Arya em resposta. - Foi do ruído, só isso.
O vento e as ondas tinham agora a Filha do Titã bem presa nas mãos, empurrando-a rapidamente para o canal. A dupla fileira de remos mergulhava ritmicamente, fustigando o mar com espuma branca enquanto a sombra do Titã caía sobre eles. Por um momento pareceu certo que se esmagariam contra as rochas sob as pernas dele. Aninhada à proa com Denyo, Arya sentia o sabor do sal onde a maresia lhe tocara o rosto. Tinha de olhar diretamente para cima para ver a cabeça do Titã.
“Os bravosianos alimentam-no com a carne suculenta e cor-de-rosa de garotinhas bem-nascidas” ouviu de novo a Velha Ama dizer, mas ela não era uma garotinha, e não se deixaria assustar por uma estúpida estátua.
Mesmo assim, manteve a mão pousada na Agulha enquanto se esgueiravam por entre as pernas do Titã. Mais seteiras pontilhavam o interior daquelas grandes coxas de pedra, e quando Arya virou o pescoço para ver o cesto da gávea passar com uns bons dez metros de folga, vislumbrou alçapões por baixo da saia couraçada do Titã, e rostos pálidos a fitá-los por detrás das barras de ferro.
E, então, estavam do lado de lá.
A sombra ergueu-se, as elevações cobertas de pinheiros afastaram-se de ambos os lados, os ventos reduziram-se e se acharam em movimento por uma grande lagoa. Em frente, erguia-se outro monte submarino, uma protuberância de rocha que se projetava da água como um punho coberto de espigões, com ameias rochosas eriçadas de balistas, catapultas de fogo e trabucos.
- O Arsenal de Bravos - disse Denyo, tão orgulhoso como se o tivesse construído. - Ali conseguem construir uma galé de guerra em um dia. - Arya via dezenas de galés amarradas ao cais e empoleiradas em rampas de lançamento. As proas pintadas de outras embarcações espreitavam de dentro de um sem-número de barracões de madeira erguidos ao longo das costas rochosas, esguias, más e famintas, como se fossem cães de caça num canil, à espera de serem chamados pelo berrante de um caçador. Tentou contá-las, mas havia muitas, e viam-se mais docas, barracões e cais onde a linha da costa fazia uma curva e se afastava.
Duas galés tinham vindo ao seu encontro. Pareciam pairar sobre a água como libélulas, com os remos de cor clara relampejando. Arya ouviu o capitão gritar-lhes, e os capitães delas gritando respostas, mas não compreendeu as palavras. Um grande berrante soou. As galés puseram-se de ambos os lados do navio deles, tão próximas que conseguia ouvir o som abafado dos tambores soando dentro de seus cascos de cor púrpura, bum bum bum bum bum bum bum bum, como as batidas de corações.
Então as galés ficaram para trás, e o Arsenal também. Em frente estendeu-se uma vastidão de água cor de ervilha, encrespada como uma folha de vidro colorido. De seu coração úmido ergueu-se a cidade propriamente dita, uma grande extensão de cúpulas, torres e pontes, cinzentas, douradas e vermelhas. As cem ilhas de Bravos no mar.
Meistre Luwin falara-lhes de Bravos, mas Arya esquecera a maior parte do que dissera. Era uma cidade plana, isto ela via mesmo de longe, ao contrário de Porto Real, que se erguia em suas três grandes colinas. As únicas colinas que havia ali eram aquelas que os homens tinham erguido com tijolo e granito, bronze e mármore. Faltava mais alguma coisa, embora Arya demorasse alguns momentos para compreender o que era. A cidade não tem muralhas. Mas quando disse isso a Denyo, o garoto riu dela.
- Nossas muralhas são feitas de madeira e pintadas de púrpura - disse-lhe. - Nossas muralhas são as nossas galés. Não precisamos de outras.
O convés rangeu sob seus pés. Arya virou-se para descobrir o pai de Denyo erguendo-se acima dela com seu grande casaco de capitão feito de lã púrpura. O Capitão-Mercador Ternesio Terys não usava barba, e mantinha curtos e bem tratados os cabelos grisalhos, emoldurando seu rosto quadrado queimado pelo vento. Durante a travessia vira-o com frequência trocando gracejos com a tripulação, mas quando franzia as sobrancelhas, os homens fugiam dele como quem foge de uma tempestade. Agora estava de testa franzida.
- Nossa viagem está no fim - disse a Arya. - Vamos para Porto Axadrezado, onde os oficiais da alfândega do Senhor do Mar virão a bordo inspecionar nossos porões. Levarão nisso meio dia, levam sempre, mas não é preciso que você espere que se despachem. Junte suas coisas. Vou baixar um bote e Yorko vai pôr você em terra.
Em terra. Arya mordeu o lábio. Atravessara o mar estreito para chegar ali, mas se o capitão tivesse perguntado lhe teria dito que queria ficar a bordo da Filha do Titã. Salgada era pequena demais para manejar um remo, agora sabia disso, mas podia aprender a costurar cabos e a rizar velas e traçar um rumo através do grande mar salgado. Certa vez, Denyo a levara até o cesto da gávea, e não sentira medo nenhum, embora o convés parecesse uma coisinha minúscula lá embaixo. E também sei fazer somas e manter uma cabine arrumada.
Mas a galeota não precisava de um segundo moço de cabine. Além do mais, bastava-lhe olhar para o rosto do capitão para saber como estava ansioso por se ver livre dela. Portanto, Arya limitou-se a assentir.
- Em terra - disse, embora em terra quisesse dizer apenas estranhos.
- Valar dohaeris - levou dois dedos à testa. - Eu lhe peço que se lembre de Ternesio Terys e do serviço que ele lhe prestou.
- Eu me lembrarei - disse Arya em voz baixa. O vento a puxava pelo manto, insistente como um fantasma. Era hora de ir embora.
Junte suas coisas, dissera o capitão, mas eram bem poucas. Só as roupas que usava, sua pequena bolsa de moedas, os presentes que a tripulação lhe dera, o punhal que trazia na anca esquerda e a Agulha que usava à direita.
O bote ficou pronto antes dela, e Yorko pôs-se aos remos. Era também filho do capitão, mas mais velho do que Denyo e menos amigável. Não cheguei a me despedir de Denyo, pensou enquanto descia para se juntar a Yorko. Perguntou a si mesma se alguma vez voltaria a ver o garoto. Devia ter lhe dito adeus.
A Filha do Titã minguou na esteira do bote enquanto a cidade crescia a cada movimento dos remos de Yorko. Um porto estava visível à direita, um emaranhado de quebra-mares e cais repletos de baleeiros de casco largo vindos de Ibben, navios cisne das Ilhas do Verão e mais galés do que uma garota conseguiria contar. Outro porto, mais distante, podia ser avistado à esquerda, para lá de uma ponta de terreno afundado, onde os topos de edifícios meio afogados se projetavam da água. Arya nunca vira tantos edifícios de grandes dimensões juntos num mesmo lugar. Porto Real tinha a Fortaleza Vermelha, o Grande Septo de Baelor e o Fosso dos Dragões, mas Bravos parecia fazer alarde de uma vintena de templos, torres e palácios de igual tamanho, ou até maiores. Voltarei a ser um rato, pensou sombriamente, tal como era em Harrenhal antes de fugir.
De onde o Titã se encontrava, a cidade parecia construída numa grande ilha, mas à medida que Yorko os levava para mais perto, Arya foi vendo que ela se erguia em muitas ilhas pequenas e muito próximas, ligadas por pontes arqueadas de pedra que transpunham um sem-número de canais. Para lá do porto vislumbrou ruas com casas de pedra cinzenta, tão próximas umas das outras que se encostavam. Aos olhos de Arya tinham um aspecto estranho, com quatro e cinco andares de altura e muito estreitas, com telhados de telha pontiagudos que eram como chapéus bicudos. Não viu colmo, e notou apenas algumas casas de madeira, do tipo que conhecia de Westeros. Eles não têm árvores, compreendeu. Bravos é toda em pedra, uma cidade cinzenta num mar verde.
Yorko virou para o norte das docas e para o interior da desembocadura de um grande canal, uma larga estrada aquática e verde que corria direto para o coração da cidade. Passaram sob os arcos de uma ponte recurva feita em pedra e decorada com meia centena de espécies de peixes, caranguejos e lulas. Uma segunda ponte surgiu em frente, esta esculpida com um rendilhado de vinhedos folhosos, e depois desta uma terceira, que os fitava com um milhar de olhos pintados. As embocaduras de canais menores abriam-se de ambos os lados, e as de outros ainda menores abriam-se nestes. Arya viu que algumas das casas eram construídas por cima dos canais, transformando-os numa espécie de túnel. Barcos esguios deslizavam de um lado para o outro, talhados de modo a tomarem a forma de serpentes aquáticas com cabeças pontiagudas e caudas erguidas. Arya viu que aqueles barcos não se moviam a remo, mas sim à vara, por homens que se mantinham em pé em suas popas, envoltos em mantos cinzentos, marrons e de um profundo verde-musgo. Viu também enormes barcaças de fundo chato, carregadas com grandes pilhas de caixotes e barris, empurradas por vinte vareiros de cada lado, e elegantes casas flutuantes com lanternas de vidro colorido, cortinados de veludo e brônzeas figuras de proa. A uma grande distância, erguendo-se tanto sobre os canais como sobre as casas, via-se uma espécie de massiva estrada de pedra, sustentada por três fileiras de poderosos arcos que marchavam para o sul, para o interior da neblina.
- O que é aquilo? - perguntou Arya a Yorko, apontando.
- O rio de água doce - ele respondeu. - Traz água doce do continente, através das planícies de maré e dos baixios salgados. Boa água doce para os fontanários.
Quando olhou para trás, o porto e a lagoa estavam fora de vista. Em frente, uma fileira
de grandes estátuas erguia-se de ambos os lados do canal, solenes homens de pedra com
longas vestes de bronze, salpicados com os excrementos de aves marinhas. Alguns segura­
vam livros, outros carregavam punhais, outros, martelos. Um tinha uma estrela dourada
na mão erguida. Outro emborcava um jarro de pedra, despejando no canal um infindável
jorro de água.
- São deuses? - ela quis saber.
- Senhores do Mar - disse Yorko. - A Ilha dos Deuses é mais adiante. Consegue ver? Depois de seis pontes, na margem direita. Aquele é o Templo dos Cantores da Lua.
Era um daqueles edifícios que Arya vislumbrara da lagoa, uma massa grandiosa de mármore branco como a neve, encimada por uma enorme cúpula prateada, cujas janelas de vidro leitoso mostravam todas as fases da lua. Um par de donzelas de mármore flanqueava seus portões, tão altas como os Senhores do Mar, sustentando um lintel em forma de crescente.
Depois erguia-se outro templo, um edifício de pedra vermelha, tão severo como qualquer fortaleza. No topo de sua grande torre quadrada ardia uma fogueira num braseiro de ferro com seis metros de largura, enquanto fogueiras menores flanqueavam suas portas de bronze.
- Os sacerdotes vermelhos adoram suas fogueiras - disse-lhe Yorko. - Seu deus é o Senhor da Luz, o rubro R’hllor.
Eu sei. Arya lembrou-se de Thoros de Myr com seus bocados de velha armadura, usada sobre vestes tão desbotadas que parecia mais um sacerdote cor-de-rosa do que vermelho. Mas seu beijo trouxera Lorde Beric de volta à vida. Observou a casa do deus vermelho enquanto passava por ela, perguntando-se se aqueles sacerdotes bravosianos de R’hllor seriam capazes de fazer a mesma coisa.
A seguir surgiu uma enorme estrutura de tijolo ornamentada de líquens. Arya poderia tê-la tomado por um armazém, se Yorko não tivesse dito:
- Aquele é o Refúgio Sagrado, onde honramos os deuses menores que o mundo esqueceu. Também vai ouvir as pessoas chamarem-no Coelheira - um pequeno canal corria entre as altas paredes cobertas de líquens da Coelheira, e foi aí que ele virou o barco para a direita. Passaram por um túnel e voltaram a sair para a luz do dia. Mais templos erguiam-se de ambos os lados.
- Não sabia que existiam tantos deuses - Arya disse.
Yorko soltou um grunhido. Fizeram uma curva e passaram por baixo de outra ponte. A esquerda surgiu um pequeno monte rochoso com um templo sem janelas, de pedra cinzenta escura no topo. Um lance de escadas de pedra levava de suas portas a uma doca coberta.
Yorko inverteu o sentido da remada e o bote colidiu suavemente com estacas de pedra. Agarrou uma argola de ferro destinada a segurá-los por um momento.
- É aqui que a deixo.
A doca estava coberta de sombras, os degraus eram íngremes. O telhado de telhas negras do templo fazia um bico aguçado, como o das casas ao longo dos canais. Arya mordeu o lábio. Syrio veio de Bravos. Pode ter visitado este templo. Pode ter subido esses degraus. Agarrou uma argola e pulou para a doca.
- Sabe o meu nome - disse Yorko de dentro do barco.
- Yorko Terys.
- Valar dohaeris - empurrou o cais com o remo e flutuou para águas mais profundas. Arya ficou vendo-o remar de volta para onde tinham vindo, até que o barco desapareceu nas sombras da ponte. Quando o marulhar dos remos se esvaiu, quase conseguiu ouvir o bater do seu coração. De súbito estava em outro lugar... de volta a Harrenhal com Gendry, talvez, ou com Cão de Caça nas florestas ao longo do Tridente. Salgada é um a criança estúpida, disse a si mesma. Sou uma loba, e não vou ter medo. Afagou o cabo da Agulha para lhe dar sorte e mergulhou nas sombras, subindo dois degraus de cada vez, para que ninguém pudesse alguma vez dizer que tinha medo.
No topo encontrou um conjunto de portas esculpidas em madeira com três metros e meio de altura. A porta da esquerda era feita de represeiro branco como osso; a da direita, de reluzente ébano. No centro encontrava-se esculpido um rosto de lua; ébano no lado do represeiro, represeiro no lado do ébano. O aspecto das portas fez que se lembrasse, sem saber por que, da árvore-coração no bosque sagrado de Winterfell. As portas me observam, pensou. Empurrou ambas ao mesmo tempo com o lado das mãos enluvadas, mas nenhuma quis se mover. Trancadas.
- Deixe-me entrar, suas estúpidas - disse. - Atravessei o mar estreito - fechou a mão em punho e bateu. - Jaqen disse-me para vir. Tenho a moeda de ferro - tirou-a da bolsa e a exibiu. - Veem? Valar morghulis.
As portas não responderam, exceto abrindo-se.
Abriram-se para dentro, num silêncio total, sem mão humana que as movesse. Arya deu um passo em frente, e depois outro. As portas se fecharam atrás dela, e por um momento ficou cega. Tinha a Agulha na mão, embora não se recordasse de tê-la desembainhado.
Algumas velas ardiam ao longo das paredes, mas emitiam tão pouca luz que Arya não conseguia ver os próprios pés. Alguém sussurrava, baixo demais para que distinguisse palavras. Outra pessoa chorava. Ouviu passos leves, couro deslizando sobre pedra, uma porta abrindo e fechando. Água, também ouço água.
Lentamente, seus olhos se ajustaram. O templo parecia muito maior por dentro do que parecera de fora. Os septos de Westeros tinham sete lados, com sete altares para os sete deuses, mas ali havia mais deuses do que sete. Estátuas deles erguiam-se ao longo das paredes, maciças e ameaçadoras. Em volta de seus pés, velas vermelhas tremeluziam, tênues como estrelas distantes. A mais próxima era uma mulher de mármore com seis metros e meio de altura. Lágrimas verdadeiras escorriam de seus olhos e enchiam a bacia que embalava nos braços. Atrás dela estava um homem com cabeça de leão sentado num trono, esculpido em ébano. Do outro lado das portas, um enorme cavalo de bronze e ferro empinava-se em duas grandes patas. Mais adiante conseguia distinguir um grande rosto de pedra, um bebê de cor clara com uma espada, uma hirsuta cabra preta do tamanho de um auroque, um homem encapuzado apoiado num cajado. O resto era-lhe apenas grandes silhuetas, entrevistas na escuridão. Entre os deuses havia alcovas escondidas, carregadas de sombras, aqui e ali com uma vela a arder.
Silenciosa como uma sombra, Arya avançou por entre fileiras de longos bancos de pedra de espada na mão. Os pés disseram-lhe que o chão era feito de pedra; não de mármore polido, como o do Grande Septo de Baelor, mas algo mais áspero. Passou por algumas mulheres que sussurravam juntas. O ar estava quente e pesado, tão pesado que bocejou. Sentiu o cheiro das velas. O odor não era familiar, e atribuiu-o a algum tipo estranho de incenso, mas, à medida que penetrava mais profundamente no templo, elas pareceram cheirar a neve, a agulhas de pinheiro e a guisado quente. Cheiros bons, disse Arya a si mesma, e sentiu-se um pouco mais corajosa. Suficientemente corajosa para voltar a embainhar a Agulha.
No centro do templo encontrou a água que ouvira; um tanque com três metros de largura, negro como tinta e iluminado por fracas velas vermelhas. Ao lado, encontrava-se sentado um homem jovem, com um manto prateado, chorando baixinho. Viu-o mergulhar a mão na água, fazendo correr ondinhas pelo tanque. Quando tirou os dedos da água chupou-os, um por um. Deve ter sede. Havia taças de pedra ao longo da borda do tanque. Arya encheu uma e a levou para ele beber. O jovem fitou a garota por um longo momento quando ela lhe ofereceu a água.
- Vaiar morgbulis - ele disse.
- Valar dohaeris - ela respondeu.
Ele bebeu até o fim e deixou cair a taça no tanque com um plop suave. Então, pôs-se em pé, cambaleando, segurando a barriga. Por um momento Arya pensou que o homem ia cair. Foi só então que viu a mancha escura, sob seu cinto, que se espalhava diante de seus olhos.
- Foi apunhalado - exclamou, mas o homem não lhe deu atenção. Arrastou-se na direção da parede com um andar instável e enfiou-se numa alcova, estendendo-se em uma dura cama de pedra. Quando Arya olhou em volta, viu outras alcovas. Em algumas, velhos dormiam.
Não, pareceu ouvir uma voz meio lembrada sussurrando em sua mente. Estão mortos, ou agonizando. Olhe com os olhos.
Uma mão tocou seu braço.
Arya girou para longe, mas era só uma garotinha; uma garotinha pálida envergando uma veste com capuz que parecia engoli-la, negra do lado direito e branca do esquerdo. Sob o capuz estava um rosto lúgubre e ossudo, chupado, e olhos escuros que pareciam grandes como pires.
- Não me agarre - disse Arya, num aviso, à criança abandonada. - Matei o último rapaz que fez isso.
A garota disse algumas palavras que Arya não compreendeu.
Balançou a cabeça.
- Não fala o idioma comum?
Uma voz atrás dela disse:
- Eu falo.
Arya não gostava da maneira como não paravam de surpreendê-la. O homem encapuzado era alto, envolto numa versão maior da veste preta e branca que a garota usava. Sob o capuz, tudo que conseguia ver era a tênue cintilação vermelha da luz das velas que se refletia em seus olhos.
- Que lugar é este? - perguntou-lhe.
- Um lugar de paz - a voz do homem era gentil. - Está em segurança aqui. Esta é a Casa do Preto e Branco, filha. Embora seja nova para procurar o favor do Deus de Muitas Faces.
- É como o deus do Sul, aquele com sete rostos?
- Sete? Não. As faces dele são incontáveis, pequena, tantas como as estrelas que há no céu. Em Bravos, os homens rezam como querem... mas no fim de todos os caminhos está o Deus de Muitas Faces à espera. Ele estará lá para você um dia, não tema. Não precisa correr para os seus braços.
- Só vim à procura de Jaqen H'ghar.
- Não conheço esse nome.
O coração de Arya afundou-se.
- Ele era de Lorath. Tinha cabelos brancos de um lado e vermelhos do outro. Disse que me ensinaria segredos e me deu isto - tinha a moeda de ferro apertada na mão. Quando abriu os dedos, ela ficou colada à palma suada.
O sacerdote estudou a moeda, embora não tenha feito nenhum movimento para tocar nela. A criança abandonada dos olhos grandes também a observava. Por fim, o homem encapuzado disse:
- Diga-me seu nome, filha.
- Salgada. Venho de Salinas, junto ao Tridente.
Embora não conseguisse ver-lhe o rosto, de algum modo sentiu-o sorrir.
- Não - disse o homem. - Diga-me o seu nome.
- Pombinha - respondeu novamente.
- O seu nome verdadeiro, filha.
- Minha mãe chamou-me Nan, mas os outros me chamavam Doninha...
- O seu nome.
Arya engoliu em seco.
- Arry. Sou Arry.
- Está mais perto. E agora, a verdade?
O medo golpeia mais profundam ente que as espadas, disse a si mesma.
- Arya - da primeira vez, murmurou a palavra. Da segunda, atirou-a. - Sou Arya, da Casa Stark.
- Sim - ele respondeu - mas a Casa do Preto e Branco não é lugar para Arya da Casa Stark.
- Por favor - ela pediu. - Não tenho para onde ir.
- Teme a morte?
Arya mordeu o lábio.
- Não.
- Vejamos - o sacerdote tirou o capuz. Por baixo não havia rosto, só uma caveira amarelecida com uns restos de pele ainda agarrados às bochechas e um verme branco contorcendo-se numa órbita vazia. - Beije-me, filha - crocitou, numa voz tão seca e enrouquecida como o matraquear da morte.
Será que ele quer me assustar? Arya beijou-o no lugar onde o nariz deveria estar e tirou-lhe o verme do olho, com a intenção de comê-lo, mas ele se desvaneceu como uma sombra em sua mão.
A caveira amarela também desapareceu, e o velho mais amável que Arya já vira sorriu.
- Nunca ninguém tentou comer meu verme - disse. - Tem fome, filha?
Sim, ela pensou, mas não de com ida.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados