quarta-feira, 18 de setembro de 2013

7 - CERSEI



Caía uma chuva fria que deixava as muralhas e os baluartes da Fortaleza Vermelha escuros como sangue. A rainha pegou na mão do rei e o levou com firmeza pelo pátio lamacento, até onde a liteira esperava com a sua escolta.
- Tio Jaime disse que eu podia montar a cavalo e atirar moedas ao povo - argumentou o garoto.
- Quer ficar doente? - ela não arriscaria; Tommen nunca fora tão robusto quanto Joffrey. - Seu avô iria querer que parecesse um rei de verdade em seu velório. Não vamos aparecer no Grande Septo molhados e enlameados - já é ruim demais que eu tenha de voltar a usar luto. O negro nunca lhe favorecera. Com sua pele clara, fazia que parecesse meio cadavérica. Ela se levantara uma hora antes da alvorada para tomar banho e arrumar os cabelos, e não pretendia deixar que a chuva arruinasse seu trabalho.
Dentro da liteira, Tommen recostou-se às almofadas e espreitou a chuva que caía.
- Os deuses estão chorando pelo avô. A Senhora Jocelyn diz que as gotas de chuva são suas lágrimas.
- Jocelyn Swyfit é uma tola. Se os deuses pudessem chorar, teriam chorado por seu irmão. Chuva é chuva. Feche a cortina antes que deixe entrar mais. Essa capa é de zibelina, quer ensopá-la?
Tommen fez o que lhe era pedido. Sua docilidade preocupava-a. Um rei tinha de ser forte. Joffrey teria discutido. Nunca foi fácil de intimidar.
- Não se esparrame dessa maneira - ela advertiu Tommen. - Sente-se como um rei. Ponha os ombros para trás e endireite a coroa. Quer que ela caia da sua cabeça diante de todos os seus lordes?
- Não, mãe - o garoto se endireitou e ergueu as mãos para arrumar a coroa. A coroa de Joff era grande demais para ele. Tommen sempre tendera para a robustez, mas seu rosto agora parecia mais magro. Ele anda comendo bem? Não podia se esquecer de perguntar ao intendente. Não podia correr o risco de que Tommen adoecesse, não enquanto Myrcella estivesse nas mãos dos dorneses. Ele, a seu tempo, crescerá até que a coroa de Joff lhe sirva bem . Até que isso acontecesse, podia ser necessária uma menor, uma que não ameaçasse engolir sua cabeça. Levaria o assunto aos ourives.
A liteira desceu lentamente a Colina de Aegon. Dois dos membros da Guarda Real seguiam à frente deles, cavaleiros brancos montados em cavalos brancos com mantos brancos que pendiam, ensopados, de seus ombros. Atrás vinham cinquenta guardas Lannister vestidos de ouro e carmesim.
Tommen espreitou as ruas vazias através das cortinas.
- Pensei que houvesse mais gente. Quando o pai morreu, o povo veio todo nos ver passar.
- A chuva os empurrou para casa - Porto Real nunca amara Lorde Tywin. Mas ele nunca quis amor. “Não pode comer amor, nem comprar um cavalo com ele, nem aquecer os salões numa noite fria”, ouvira-o dizer uma vez a Jaime, quando o irmão não era mais velho do que Tommen.
No Grande Septo de Baelor, aquela magnificência em mármore erguida no cume da Colina de Visenya, o pequeno aglomerado de pessoas de luto era menos numeroso que os homens de manto dourado que Sor Addam Marbrand espalhara pela praça. Mais tarde virão mais, disse a rainha a si mesma enquanto Sor Meryn Trant a ajudava a descer da liteira. Só os bem-nascidos e seus séquitos seriam admitidos no serviço fúnebre; haveria outro à tarde para os plebeus, e as preces da noite eram abertas a todos. Cersei teria de regressar a essa altura, para que o povo a visse de luto. A turba precisa ter o seu espetáculo. Era um aborrecimento. Tinha cargos a preencher, uma guerra a vencer, um reino a governar. O pai teria compreendido.
O Alto Septão veio ao seu encontro no topo da escadaria. Um velho corcunda, com uma barba grisalha e pouco densa, era de tal modo vergado pelo peso de suas ornamentadas vestes que tinha os olhos ao nível dos seios da rainha... embora sua coroa, uma estrutura elevada de cristal cortado e ouro tecido, lhe acrescentasse um bom meio metro de altura.
Lorde Tywin dera-lhe aquela coroa para substituir a que fora perdida quando a turba matara o Alto Septão anterior. Depois de arrancarem o gordo idiota de sua liteira, tinham-no despedaçado, no dia em que Myrcella zarpara para Dorne. Esse era um grande glutão e um homem manejável. Este... Aquele Alto Septão era obra de Tyrion, recordou Cersei de súbito. Era uma ideia inquietante.
A mão malhada do velho pareceu uma pata de galinha quando espreitou de dentro de uma manga coberta de arabescos dourados e pequenos cristais. Cersei ajoelhou no mármore molhado e beijou-lhe os dedos, e disse a Tommen para fazer o mesmo. Que sabe ele de mim? Quanto lhe terá dito o anão? O Alto Septão sorria ao entrar com ela no septo. Mas seria um sorriso traiçoeiro, cheio de conhecimento silencioso, ou não passaria de uma torção vazia nos lábios enrugados de um velho? A rainha não conseguiu ter certeza.
Atravessaram o Salão das Lâmpadas sob globos coloridos de vitral, com a mão de Tommen na sua. Trant e Kettleblack os flanqueavam, com água pingando de seus mantos molhados formando poças no chão. O Alto Septão caminhava lentamente, apoiado a um cajado de represeiro encimado por um globo de cristal. Era servido por sete dos Mais Devotos, que cintilavam em pano de prata. Tommen usava pano de ouro sob sua capa de zibelina, e a rainha, um velho vestido de veludo negro forrado de arminho. Não houvera tempo para mandar fazer um novo, e não podia usar o mesmo que usara para Joffrey, nem aquele com que enterrara Robert.
Pelo menos não se esperará de mim que vista luto por Tyrion. Para isto vestirei seda carmesim e pano de ouro, e usarei rubis nos cabelos. Proclamara que o homem que lhe trouxesse a cabeça do anão seria elevado a lorde, ainda que seu nascimento ou estatuto social fosse ruim e baixo. Corvos levavam a promessa a todas as partes dos Sete Reinos, e logo a notícia atravessaria o mar estreito até as Nove Cidades Livres e as terras que se estendiam mais para diante. Que o Duende fuja até o fim do mundo, não me escapará.
A procissão régia cruzou as portas interiores e entrou no cavernoso coração do grande Septo, percorrendo uma larga coxia, uma das sete que se encontravam sob a cúpula. A esquerda e à direita, os bem-nascidos caíam de joelhos quando o rei e a rainha passavam. Muitos dos vassalos do pai encontravam-se presentes, bem como cavaleiros que tinham lutado ao lado de Lorde Tywin em meia centena de batalhas. Vê-los fez Cersei sentir-se mais confiante. Não estou desprovida de amigos.
Sob a majestosa cúpula de vidro, ouro e cristal do Grande Septo, o corpo de Lorde Tywin descansava sobre uma plataforma de mármore com degraus. À cabeça, encontrava-se Jaime em pé, em vigília, com sua única mão boa fechada sobre o cabo de uma grande espada dourada cuja ponta se apoiava no chão. O manto com capuz que envergava era branco como neve recém-caída, e as escamas de seu longo camisão eram de madrepérola ornamentadas com ouro. Lorde Tywin teria preferido vê-lo vestido com o ouro e carmesim Lannister, pensou. Sempre o irritou ver Jaime todo de branco. E o irmão estava de novo deixando crescer a barba. Os pelos cobriam-lhe o maxilar e as bochechas, dando ao seu rosto um aspecto rude e tosco. Podia pelo menos ter esperado que os ossos do pai fossem enterrados sob o Rochedo.
Cersei levou o rei a subir três curtos degraus, para se ajoelhar junto ao corpo. Os olhos de Tommen estavam cheios de lágrimas.
- Chore baixinho - disse-lhe, debruçando-se em sua direção - É um rei, não um bebê chorão. Seus senhores o estão observando - o garoto limpou as lágrimas com as costas da mão. Tinha os olhos dela, verde-esmeralda, tão grandes e brilhantes como os de Jaime tinham sido na idade de Tommen. O irmão fora um rapaz tão bonito... mas também feroz, tão feroz como Joffrey, uma verdadeira cria de leão. A rainha pôs o braço em volta de Tommen e beijou-lhe os cachos dourados. Ele vai precisar de mim para lhe ensinar como governar e mantê-lo a salvo dos inimigos. Alguns estavam em volta deles naquele exato momento, fingindo ser amigos.
As irmãs silenciosas tinham couraçado Lorde Tywin como se ele fosse travar uma última batalha. Usava sua melhor armadura, aço pesado esmaltado de um carmesim profundo e escuro, com ornamentos de ouro nas manoplas, grevas e placa de peito. Os ristes eram esplendores dourados; tinha uma leoa de ouro agachada sobre cada ombro; um leão provido de juba coroava o grande elmo pousado ao lado de sua cabeça. Sobre o peito encontrava-se uma espada enfiada em uma bainha dourada incrustada de rubis, e as mãos do morto fechavam-se em volta do cabo da espada, calçadas com luvas de cota de malha dourada. Até na morte seu rosto é nobre, pensou, se bem que a boca... Os cantos dos lábios do pai curvavam-se muito ligeiramente para cima, dando-lhe um ar de vago assombro. Isto não está bom . Culpou Pycelle; ele devia ter dito às irmãs silenciosas que Lorde Tywin Lannister nunca sorria. O homem é tão inútil quanto mamilos numa placa de peito. Aquele meio sorriso fazia que Lorde Tywin parecesse, de algum modo, menos terrível. Isto, e o fato de ter os olhos fechados. Os olhos do pai sempre tinham sido perturbadores; verde-claros, quase luminosos, semeados de ouro. Os olhos que conseguiam ver o interior das pessoas, conseguiam ver como no seu íntimo elas eram fracas, incapazes e feias. Quando ele nos olhava, descobríamos isso.
Sem ser chamada, uma recordação a assaltou, a do banquete que o Rei Aerys dera quando Cersei chegara à corte, uma garota tão verde como a erva do verão. O velho Merryweather lamentava ter que subir as taxas sobre o vinho quando Lorde Rykker disse:
- Se precisarmos de ouro, Sua Graça podia sentar Lorde Tywin em seu penico - Aerys e seus bajuladores gargalharam ruidosamente, enquanto o pai fitava Rykker por cima de sua taça de vinho. O olhar permaneceu até muito depois de a graça terminar. Rykker virou a cabeça, voltou a virá-la, encontrou os olhos do pai, depois os ignorou, bebeu uma caneca de cerveja e foi embora, vermelho, derrotado por um par de olhos inflexíveis.
Os olhos de Lord e Tywin agora estão fechados para sempre, pensou Cersei. É com o meu olhar que a partir deste momento irão vacilar, é o meu franzir de sobrancelhas que têm de temer. Também sou uma leoa.
Com o céu tão cinzento lá fora, a escuridão tomava conta do septo. Se a chuva parasse, o sol passaria através dos cristais suspensos para envolver o cadáver em arcos-íris. O Senhor de Rochedo Casterly merecia arcos-íris. Fora um grande homem. Mas eu serei maior. Daqui a mil anos, quando os meistres escreverem sobre esta época, você será lembrado apenas como pai da Rainha Cersei.
- Mãe - Tommen puxou-lhe pela manga. - O que é que cheira tão mal?
O senhor meu pai.
- A morte - também sentia o cheiro; um tênue sopro de decomposição que a fazia querer franzir o nariz. Cersei o ignorou. Os sete septões de vestes prateadas encontravam-se atrás da plataforma, implorando ao Pai no Céu que julgasse Lorde Tywin com justiça. Quando terminaram, setenta e sete septãs reuniram-se diante do altar da Mãe e puseram-se a cantar para ela, em busca de misericórdia. Tommen já estava inquieto àquela altura, e até os joelhos da rainha tinham começado a doer. Olhou Jaime de relance. O gêmeo mantinha-se imóvel como se tivesse sido esculpido em pedra, e não respondeu ao seu olhar.
Nos bancos, tio Kevan estava ajoelhado com os ombros curvados e o filho ao seu lado. Lancel tem pior aspecto do que meu pai. Apesar de ter apenas dezessete anos, podia ter passado por um homem de setenta; tinha o rosto cinzento, estava muito magro, mostrava bochechas mirradas, olhos afundados e cabelos tão brancos e quebradiços como giz. Com o pode Lancel estar entre os vivos quando Tywin Lannister está morto? Terão os deuses perdido o juízo?
Lorde Gyles tossia mais do que de costume e cobria o nariz com um quadrado de seda vermelha. Ele também sente o cheiro. O Grande Meistre Pycelle tinha os olhos fechados. Se se deixou dormir, juro que m andarei chicoteá-lo. A direita da plataforma ajoelhavam-se os Tyrell: o Senhor de Jardim de Cima, sua hedionda mãe e a desenxabida esposa, o filho Garlan e a filha Margaery. A Rainha Margaery, lembrou a si mesma; viúva de Joffrey e futura esposa de Tommen. Margaery parecia-se muito com o irmão, o Cavaleiro das Flores. A rainha perguntou a si mesma se teriam outras coisas em comum. Nossa pequena rosa tem um bom número de senhoras a fazer-lhe companhia, de noite e de dia. Estavam agora com ela, quase uma dúzia. Cersei estudou seus rostos, curiosa. Quem é a mais temerosa, a mais libertina, a mais faminta de favores? Quem tem a língua mais solta? Trataria de descobrir.
Foi um alívio quando as cantorias finalmente terminaram. O cheiro que vinha do cadáver do pai parecia ter se tornado mais intenso. A maioria dos presentes teve a decência de fingir que nada estava errado, mas Cersei viu duas das primas da Senhora Margaery franzir seus pequenos narizes Tyrell. Enquanto ela e Tommen percorriam lentamente a coxia, a rainha julgou ouvir alguém murmurar “latrina” e rir, mas quando virou a cabeça para ver quem teria falado, encontrou um mar de rostos solenes a olhá-la sem expressão. Nunca se atreveriam a gracejar sobre ele quando ainda era vivo. Teria transformado suas tripas em água com um olhar.
De volta ao Salão das Lâmpadas, os presentes zumbiram à sua volta, densos como moscas, ansiosos por fazer chover sobre si condolências inúteis. Ambos os gêmeos Redwyne lhe beijaram a mão, e o pai fez-lhe o mesmo às faces. Hallyne, o Piromante, prometeu-lhe que uma mão flamejante arderia no céu por cima da cidade no dia em que os ossos do pai partissem para oeste. Entre ataques de tosse, Lorde Gyles disse-lhe que contratara um mestre escultor para fazer uma estátua de Lorde Tywin, a fim de ser colocada em eterna vigília junto ao Portão do Leão. Sor Lambert Turnberry surgiu com uma pala sobre o olho direito, jurando que a usaria até conseguir trazer-lhe a cabeça do anão seu irmão.
Assim que a rainha conseguiu escapar às garras daquele idiota, achou-se encurralada pela Senhora Falyse de Stokeworth e pelo marido, Sor Balman Byrch.
- A senhora minha mãe manda condolências, Vossa Graça - borbulhou-lhe Falyse. - Lollys foi forçada a ficar de cama por causa do bebê, e a mãe sentiu que devia ficar com ela. Suplica que a perdoe e disse-me para lhe perguntar... minha mãe admirava seu falecido pai acima de todos os homens. Se minha irmã tiver um menino, é seu desejo que o chamemos Tywin, se... se agradar à senhora.
Cersei fitou-a, horrorizada:
- Sua irmã idiota encontra uma forma de ser violada por metade de Porto Real e Tanda pensa honrar o bastardo com o nome do senhor meu pai? Parece-me que não.
Falyse recuou como se tivesse sido esbofeteada, mas o marido limitou-se a afagar o espesso bigode loiro com um polegar.
- Eu disse isto mesmo à Senhora Tanda, Arranjaremos um nome mais, ah... adequado para o bastardo de Lollys, dou-lhe a minha palavra.
- Assegure-se disto - Cersei os empurrou com o ombro e se afastou. Viu que Tommen caíra nas garras de Margaery Tyrell e da avó. A Rainha dos Espinhos era tão baixa que por um instante Cersei a tomou por outra criança. Antes de conseguir salvar o filho das rosas, a multidão a levou para encontrar-se cara a cara com o tio. Quando a rainha lhe lembrou o encontro que tinham marcado para mais tarde, Sor Kevan fez um aceno fatigado e pediu licença para se retirar. Mas Lancel deixou-se ficar, a imagem perfeita de um homem com um pé na sepultura. Mas estará saindo ou entrando?
Cersei forçou-se a sorrir:
- Lancel, estou feliz por vê-lo assim mais forte. Meistre Ballabar trouxe-nos relatos tão terríveis que tememos por sua vida. Mas achava que a essa altura estaria a caminho de Darry, para tomar posse de sua senhoria - o pai promovera Lancel a lorde depois da Batalha da Água Negra, como presente para o irmão Kevan.
- Ainda não. Há bandos de fora da lei no meu castelo - a voz do primo era tão tênue quanto o bigode em seu lábio superior. Embora seus cabelos tivessem se tornado brancos, o buço mantinha-se cor de areia. Cersei fitara-o com frequência quando tivera o rapaz dentro de si, agitando-se obedientemente. Parece uma mancha de sujeira no lábio. Costumava ameaçar limpá-la com um pouco de cuspe. - Meu pai diz que as terras fluviais precisam de uma mão forte.
Uma pena que vão receber a sua, teve vontade de dizer. Em vez disso, sorriu.
- E também irá se casar.
Uma expressão sombria passou pelo rosto devastado do jovem cavaleiro:
- Uma garota Frey, e não de minha escolha. Nem sequer é donzela. Uma viúva, de sangue Darry. Meu pai diz que isto me ajudará com os camponeses, mas estes estão todos mortos - estendeu-lhe a mão. - É uma crueldade, Cersei. Vossa Graça sabe que eu amo...
- ... a Casa Lannister -Cersei terminou por ele. - Ninguém pode pôr isso em dúvida, Lancel. Que sua esposa lhe dê filhos fortes - é melhor não deixar que o senhor seu avô organize a boda, porém. - Eu sei que desempenhará muitos feitos nobres em Darry.
Lancel assentiu, claramente infeliz:
- Quando pareceu que eu poderia vir a morrer, meu pai trouxe o Alto Septão para rezar por mim. É um bom homem - os olhos do primo estavam úmidos e brilhantes, olhos de criança num rosto de velho. - Diz que a Mãe me poupou para algum santo propósito, para que possa expiar os meus pecados.
Cersei perguntou a si mesma como pretenderia o rapaz expiá-la a ela. Armá-lo cavaleiro foi um erro, e dormir com ele um maior. Lancel era erva fraca, e não gostava nada daquela religiosidade que acabara de surgir; ele era muito mais divertido quando tentava ser Jaime. Que terá esse pateta chorão dito ao Alto Septão? E o que dirá à sua pequena Frey quando se deitarem juntos no escuro? Se confessasse ter dormido com Cersei, bem, ela podia lidar com isso. Os homens andavam sempre mentindo sobre as mulheres; atribuiria a confissão à fanfarronice de um rapazinho imberbe impressionado por sua beleza. Mas se se puser a cantar sobre Robert e o vinho-forte...
- A expiação é mais eficiente através da prece - disse-lhe Cersei. - Da prece silenciosa - deixou-o a refletir sobre aquilo e preparou-se para enfrentar a hoste Tyrell.
Margaery abraçou-a como uma irmã, o que a rainha achou presunçoso, mas aquele não era local para repreendê-la. A Senhora Alerie e as primas contentaram-se com beijar dedos. A Senhora Graceford, que estava muito grávida, pediu à rainha licença para chamar o bebê de Tywin, se fosse menino, ou Lanna, se fosse menina. Outro? Quase gemeu. O reino irá afogar-se em Tywins. Consentiu com a amabilidade que conseguiu arranjar, fingindo deleite.
Foi a Senhora Merryweather quem realmente lhe agradou.
- Vossa Graça - disse, com sua apaixonada entoação de Myr enviei uma mensagem aos meus amigos do outro lado do mar estreito, pedindo-lhes para capturarem imediatamente o Duende caso ele mostre sua feia cara nas Cidades Livres.
- Tem muitos amigos do outro lado do mar?
- Em Myr, muitos. Em Lys também, e em Tyrosh. Homens de poder.
Cersei podia acreditar perfeitamente. A mulher de Myr era muito mais bela do que devia; de pernas longas e seios cheios, com uma pele lisa cor de oliva, lábios maduros, enormes olhos escuros e espessos cabelos negros que lhe davam sempre o aspecto de alguém que tivesse acabado de sair da cama. Até cheira a pecado, como uma lótus exótica qualquer.
- Lorde Merryweather e eu temos o único desejo de servir Vossa Graça e o pequeno rei - ronronou a mulher, com um olhar que era tão prenhe como a Senhora Graceford.
Esta é ambiciosa, e seu senhor é orgulhoso m as pobre.
- Temos de voltar a conversar, senhora. Taena, não é? E muito gentil. Eu sei que seremos grandes amigas.
Então o Senhor de Jardim de Cima caiu sobre ela.
Mace Tyrell não era mais do que dez anos mais velho que Cersei, mas ela pensava nele como se tivesse a idade do pai, e não a sua. Não chegava bem à altura de Lorde Tywin, mas fora isto, era maior, com um peito largo e uma barriga que crescera até se tornar ainda mais larga. Os cabelos eram cor de avelã, mas havia manchas de branco e cinzento em sua barba. O rosto mostrava-se frequentemente rubro.
- Lorde Tywin era um grande homem, um homem extraordinário - declarou em tom solene depois de lhe beijar ambos os lados do rosto. - Nunca voltaremos a ver alguém como ele, temo.
Está olhando para alguém como ele, seu palerma, pensou Cersei. É a filha dele que está na sua frente. Mas precisava de Tyrell e do poderio de Jardim de Cima para manter Tommen no seu trono, portanto, disse apenas:
- Sentiremos muito sua falta.
Tyrell pôs-lhe a mão no ombro.
- Não há homem vivo que seja digno de vestir a armadura de Lorde Tywin, isto é evidente. Contudo, o reino continua a existir e tem de ser governado. Se houver alguma coisa que eu possa fazer para servir nesta hora sombria, Vossa Graça tem apenas de pedir.
Se quer ser Mão do Rei, senhor, tenha a coragem de anunciá-lo claramente. A rainha sorriu. Que leia nisto o que bem quiser.
- Decerto o senhor é necessário na Campina?
- Meu filho Willas é um moço capaz - respondeu o homem, recusando-se a aceitar a sugestão. - Pode ter uma perna torta, mas não lhe faltam miolos. E, em breve, Garlan tomará Águas Claras. Entre ambos, a Campina ficará em boas mãos, se eu por acaso for necessário em outro lugar. O governo do reino deve vir em primeiro lugar, dizia com frequência Lorde Tywin. E apraz-me trazer à Vossa Graça boas notícias a este respeito. Meu tio Garth concordou em servir como mestre da moeda, tal como o senhor seu pai desejava. Está a caminho de Vilavelha para embarcar. Os filhos o acompanharão. Lorde Tywin mencionou qualquer coisa sobre encontrar lugares também para eles. Talvez na Patrulha da Cidade.
O sorriso da rainha congelou com tamanha rigidez, que temeu que seus dentes rachassem. Garth, o Grosso, no pequeno conselho, e seus dois bastardos com manto dourado... será que os Tyrell acham que vou me limitar a lhes servir o reino numa bandeja dourada? A arrogância daquilo a deixou sem fôlego.
- Garth serviu-me bem como Senhor Senescal, tal como serviu meu pai antes de mim - prosseguia Tyrell. - Mindinho tinha nariz para o ouro, admito, mas Garth...
- Senhor - Cersei o interrompeu - temo que tenha havido algum mal-entendido. Pedi a Lorde Gyles Rosby para servir como nosso novo mestre da moeda, e ele me deu a honra de aceitar.
Mace fitou-a boquiaberto.
- Rosby? Aquele... débil dado a ataques de tosse? Mas... o assunto foi objeto de um acordo, Vossa Graça. Garth segue para Vilavelha.
- É melhor enviar uma ave a Lorde Hightower e pedir-lhe para se assegurar de que seu tio não embarque. Detestaríamos que Garth enfrentasse um mar de outono para nada - e exibiu um sorriso agradável.
Um rubor subiu pelo grosso pescoço do Tyrell.
- Isso... o senhor seu pai assegurou-me... - e pôs-se a falar atrapalhadamente.
Então, apareceu a mãe e deu-lhe o braço.
- Aparentemente Lorde Tywin não partilhou seus planos com nossa regente, não consigo imaginar por quê. Seja como for, é o que temos, não vale a pena ameaçar Sua Graça. Ela tem toda a razão, precisa escrever a Lorde Leyton antes que Garth embarque num navio. Sabe que o mar vai deixá-lo enjoado e piorar seu problema de gases - a Senhora Olenna concedeu a Cersei um sorriso desdentado. - Os salões de seu conselho cheirarão melhor com Lorde Gyles, embora me pareça que aquela tosse me causaria distração. Todos adoramos o velho querido tio Garth, mas o homem é flatulento, não há como negá-lo. E eu detesto maus cheiros - sua face enrugada enrugou-se um pouco mais. - Para falar a verdade, veio-me ao nariz algo desagradável no septo sagrado. Talvez também o tenha percebido?
- Não - Cersei respondeu friamente. - Um odor, diz?
- Era mais um fedor.
- Talvez sinta saudades de suas rosas de outono. Mantivemos a senhora aqui tempo demais - quanto mais depressa livrasse a corte da Senhora Olenna, melhor. Lorde Tyrell sem dúvida despacharia um bom número de cavaleiros para levar a mãe para casa em segurança, e quanto menos espadas Tyrell houvesse na cidade, melhor dormiria a rainha.
- Realmente sinto falta das fragrâncias de Jardim de Cima, confesso - disse a velha senhora - mas claro que não posso partir até ver minha querida Margaery casada com seu precioso pequeno Tommen.
- Também aguardo esse dia com ansiedade - interveio Tyrell. - Acontece que Lorde Tywin e eu estávamos prestes a definir uma data. Talvez possamos prosseguir essa conversa, Vossa Graça.
- Em breve.
- Em breve servirá - disse a Senhora Olenna com uma fungadela. - E agora venha, Mace, deixe Sua Graça prosseguir com a sua... dor.
Hei de vê-la morta, velha, prometeu Cersei a si mesma enquanto a Rainha dos Espinhos se afastava com passinhos titubeantes entre seus enormes guardas, um par de homens com dois metros e dez que a divertia chamar Esquerdo e Direito. Veremos se dará um bom cadáver. A velha era duas vezes mais esperta do que o senhor seu filho, isto era evidente.
A rainha arrancou o filho a Margaery e às primas e dirigiu-se para as portas. Lá fora, a chuva finalmente parara. O ar de outono cheirava bem, a frescor. Tommen tirou a coroa.
- Volte a pôr isso na cabeça - ordenou-lhe Cersei.
- Faz meu pescoço doer - disse o garoto, mas fez o que lhe era pedido. - Eu vou me casar em breve? Margaery diz que assim que casarmos podemos ir para Jardim de Cima.
- Você não vai para Jardim de Cima, mas pode voltar ao castelo a cavalo - Cersei chamou Sor Meryn Trant com um gesto. - Traga um montaria para Sua Graça e pergunte a Lorde Gyles se me dá a honra de partilhar minha liteira - as coisas estavam acontecendo mais depressa do que antecipara; não havia tempo a perder.
Tommen ficou feliz com a perspectiva de andar a cavalo, e claro que Lorde Gyles se sentiu honrado com o convite... se bem que quando Cersei lhe pediu para ser seu mestre da moeda tenha desatado a tossir com tal violência que ela temeu que o homem pudesse morrer ali mesmo. Mas a Mãe mostrou-se misericordiosa, e Gyles acabou por se recuperar o suficiente para aceitar e até começar a tossir o nome dos homens que queria substituir, oficiais das alfândegas e agentes de lãs nomeados pelo Mindinho, e até um dos guarda-chaves.
- Nomeie a vaca como quiser, desde que o leite flua. E se a questão surgir, juntou-se ao conselho ontem.
- Ont... - um ataque de tosse o obrigou a dobrar-se sobre si mesmo. - Ontem. Com certeza - Lorde Gyles tossiu num quadrado de seda vermelha, como que para esconder o sangue que vinha com a saliva. Cersei fingiu não reparar.
Quando ele morrer, arranjarei outra pessoa. Talvez devesse voltar a chamar Mindinho. A rainha não conseguia imaginar que deixassem Petyr Baelish continuar como Senhor Protetor do Vale por muito tempo com Lysa Arryn morta. Os senhores do Vale já se agitavam, se o que Pycelle dizia fosse verdade. Assim que afastarem dele aquele maldito garoto, Lorde Petyr regressará de quatro.
- Vossa Graça? - tossiu Lorde Gyles e limpou a boca. - Poderia... - voltou a tossir. - ... perguntar quem... - foi sacudido por outro ataque de tosse - ... quem será Mão do Rei?
- Meu tio - Cersei respondeu num tom ausente.
Foi um alívio ver os portões da Fortaleza Vermelha erguerem-se diante de si. Pôs Tommen a cargo dos escudeiros e retirou-se para os seus aposentos a fim de descansar, sentindo-se grata.
Mas, assim que descalçou os sapatos, Jocelyn entrou timidamente para dizer que Qyburn se encontrava lá fora implorando uma audiência.
- Mande-o entrar - ordenou a rainha. Um governante não tem descanso.
Qyburn era velho, mas os cabelos ainda tinham mais cinza do que neve, e as rugas de riso em volta de sua boca faziam-no parecer o avô preferido de uma garotinha qualquer. Um avô bastante maltrapilho, porém . O colarinho de sua toga mostrava-se puído, e uma manga fora arrancada e cosida deficientemente.
- Tenho de pedir perdão a Vossa Graça por minha aparência - ele disse. - Estive lá embaixo nas masmorras investigando a fuga do Duende, conforme ordenou.
- E o que foi que descobriu?
- Na noite em que Lorde Varys e seu irmão desapareceram, um terceiro homem também desapareceu.
- Sim, o carcereiro. Que há com ele?
- O homem se chamava Rugen. Um carcereiro de segunda que estava encarregado das celas negras. O carcereiro-chefe descreve-o como corpulento, com a barba por fazer e um modo áspero de falar. Foi nomeado pelo velho rei, Aerys, e ia e vinha conforme lhe convinha. As celas negras não estiveram ocupadas com frequência nos últimos anos. Os outros carcereiros tinham medo dele, ao que parece, mas nenhum sabia muito sobre o homem. Não tinha amigos nem família. E também não bebia ou frequentava bordéis. A cela onde dormia era úmida e lúgubre, e a palha do catre estava bolorenta. O penico transbordando.
- Eu sei de tudo isso - Jaime examinara a cela de Rugen, e os homens de manto dourado de Sor Addam tinham voltado a examiná-la.
- Sim, Vossa Graça - disse Qyburn - mas sabia que por baixo daquele penico fedorento havia uma pedra solta, que se abria para um pequeno buraco? O tipo de lugar onde um homem podia esconder coisas de valor que não queria que fossem descobertas?
- Coisas de valor? - aquilo era novidade. - Moedas, você quer dizer? - sempre suspeitara de que Tyrion teria, de algum modo, comprado o carcereiro.
- Para lá de qualquer dúvida. É certo que o buraco estava vazio quando o encontrei. Não há dúvida de que, quando fugiu, Rugen levou consigo seu tesouro ilegalmente adquirido. Mas quando me agachei sobre o buraco com o archote, vi qualquer coisa cintilando e raspei a terra até desenterrá-la - Qyburn abriu a palma da mão. - Uma moeda de ouro.
Sim, de ouro, mas assim que Cersei pegou nela soube que não estava certa. Pequena demais, pensou, fina demais. A moeda era velha e estava gasta. De um lado mostrava um rosto de rei, de perfil, do outro, a impressão de uma mão.
- Isto não é dragão nenhum - disse.
- Não mesmo - concordou Qyburn. - Data de antes da Conquista, Vossa Graça. O rei é Garth Décimo Segundo, e a mão é o símbolo da Casa Gardener.
De Jardim de Cima. Cersei fechou a mão em volta da moeda. Que traição é esta? Mace Tyrell fora um dos juizes de Tyrion e clamara ruidosamente por sua morte. Seria algum estratagema? Poderia ter passado o tempo todo conspirando com o Duende, planejando a morte do pai? Com Tywin Lannister em sua sepultura, Lorde Tyrell era uma escolha óbvia para Mão do Rei, mesmo assim...
- Não falará disto a ninguém - ordenou.
- Vossa Graça pode confiar em minha discrição. Qualquer homem que acompanhe uma companhia de mercenários sabe como controlar a língua, caso contrário não a manterá por muito tempo.
- Na minha companhia também - a rainha guardou a moeda. Pensaria naquilo mais tarde. - E o outro assunto?
- Sor Gregor - Qyburn encolheu os ombros. - Examinei-o, conforme me ordenou. O veneno na lança da Víbora era de manticora vindo do leste, apostaria nisso minha vida.
- Pycelle diz que não. Ele disse ao senhor meu pai que o veneno de manticora mata no instante em que chega ao coração.
- E é verdade. Mas esse veneno foi de algum modo engrossado, para prolongar a morte da Montanha.
- Engrossado? Engrossado como? Com alguma outra substância?
- Pode ser como Vossa Graça sugere, embora na maior parte dos casos adulterar um veneno limite-se a diminuir sua potência. Pode ser que a causa seja... menos natural, digamos. Um feitiço, julgo eu.
Será este sujeito um palerma tão grande quanto Pycelle?
- Então está me dizendo que a Montanha foi vítima de algum tipo de feitiçaria negra?
Qyburn ignorou o escárnio na voz dela.
- Ele está morrendo por causa do veneno, mas lentamente, e numa intensa agonia. Meus esforços para lhe diminuir as dores mostraram-se tão infrutíferos como os de Pycelle. Sor Gregor está habituado demais à papoula, temo. Seu escudeiro me diz que é atormentado por cegantes dores de cabeça, e que é frequente emborcar leite de papoula como homens menores emborcam cerveja. Seja como for, suas veias tornaram-se negras dos pés à cabeça, suas águas estão baças de pus, e o veneno comeu-lhe um buraco no flanco do tamanho do meu punho. Na verdade, é um milagre que o homem ainda esteja vivo.
- O tamanho que tem - sugeriu a rainha, franzindo a sobrancelha. - Gregor é um homem muito grande. E também muito estúpido. Estúpido demais para saber quando morrer, ao que parece - estendeu a taça e Senelle voltou a enchê-la. - Seus gritos assustam Tommen. Até chegaram a me acordar certas noites. Diria que já passa do momento de chamarmos Ilyn Payne.
- Vossa Graça - Qyburn retrucou - talvez seja possível que eu leve Sor Gregor para as masmorras? Seus gritos não a incomodarão ali, e poderei tratar dele com mais liberdade.
- Tratar dele? - ela riu. - Que Sor Ilyn trate dele.
- Se é esse o desejo de Vossa Graça - Qyburn respondeu mas o veneno... seria útil saber mais sobre ele, não? Mande um cavaleiro matar um cavaleiro e um arqueiro atingir um arqueiro, diz o povo com frequência. Para combater as artes negras... - não concluiu o pensamento, apenas limitou-se a sorrir-lhe.
Ele não é Pycelle, isto é evidente. A rainha avaliou o homem, curiosa.
- Por que foi que a Cidadela tirou sua corrente?
- Os arquimeistres são todos covardes em seu íntimo. Marwyn os chama as ovelhas cinzentas. Eu era um curandeiro tão dotado quanto Ebrose, mas aspirava superá-lo. Ao longo de centenas de anos os homens da Cidadela abriram os corpos dos mortos para estudar a natureza da vida. Eu desejava compreender a natureza da morte, por isso abri os corpos dos vivos. Por este crime, as ovelhas cinzentas envergonharam-me e me forçaram ao exílio... mas compreendo melhor a natureza da vida e da morte do que qualquer homem em Vilavelha.
- Compreende? - aquilo a intrigou. - Muito bem. A Montanha é sua. Faça o que quiser com ele, mas confine seus estudos às celas negras. Quando ele morrer, traga-me a cabeça. Meu pai a prometeu a Dorne. Príncipe Doran preferiria matar Gregor pessoalmente, sem dúvida, mas todos temos de sofrer desapontamentos nesta vida.
- Muito bem, Vossa Graça - Qyburn pigarreou. - No entanto, não estou tão bem fornecido como Pycelle. Tenho de me equipar com certos...
- Darei instruções a Lorde Gyles para fornecer ouro suficiente para suas necessidades. Compre também algumas vestes novas. Tem o aspecto de alguém que acabou de chegar da Baixada das Pulgas - estudou-lhe os olhos, perguntando a si mesma até onde se atreveria a confiar naquele homem. - Terei de dizer que não será bom para você se alguma notícia dos seus... trabalhos... atravessar estas paredes?
- Não, Vossa Graça - Qyburn concedeu-lhe um sorriso tranquilizador. - Seus segredos estão seguros comigo.
Depois de ele ir embora, Cersei serviu-se de uma taça de vinho-forte e a bebeu junto à janela, observando as sombras que se estendiam do outro lado do pátio e pensando na moeda. Ouro da Campina. Por que um carcereiro de segunda em Porto Real teria ouro da Campina, a menos que tenha sido pago para ajudar a trazer a morte ao pai?
Por mais que tentasse, não parecia ser capaz de trazer à memória o rosto de Lorde Tywin sem ver aquele meio sorrisinho pateta e se lembrar do mau cheiro que vinha de seu cadáver. Perguntou a si mesma se Tyrion também estaria de algum modo por trás daquilo. É coisa pequena e cruel, como ele, Poderia Tyrion ter transformado Pycelle num instrumento seu? Ele enviou o velho para as celas negras, e esse Rugen estava encarregado das celas negras, lembrou-se. Os fios estavam todos emaranhados de maneira que não lhe agradavam. Esse Alto Septão também é um a criatura de Tyrion, Cersei recordou de súbito, e o pobre corpo do pai esteve ao seu cuidado do pôr do sol ao amanhecer.
O tio chegou pontualmente ao pôr do sol, usando um gibão acolchoado de lã cor de carvão, tão sombrio quanto seu rosto. Como todos os Lannister, Sor Kevan tinha pele clara e era loiro, embora com cinquenta e cinco anos tivesse perdido a maior parte dos cabelos. Ninguém nunca diria que era bonito. Largo de cintura, ombros redondos, um queixo quadrado e protuberante que a barba cortada rente pouco fazia para esconder, lembrava-lhe um velho mastim... mas um velho mastim fiel era precisamente aquilo de que necessitava.
Comeram um jantar simples de beterrabas, pão e bife malpassado, com um jarro de tinto de Dorne para empurrá-lo para baixo. Sor Kevan pouco disse, e quase não tocou na taça de vinho. Ele rumina demais, decidiu Cersei. Precisa ser posto para trabalhar a fim de acabar com o desgosto.
E foi o que disse, depois de os últimos restos de comida serem levados e os criados saírem.
- Eu sei como meu pai confiava em você, tio. Agora tenho de fazer o mesmo.
- Precisa de uma Mão - ele disse - e Jaime recusou.
Ele vai direito ao assunto. Assim seja.
-Jaime ... senti-me tão desamparada com o pai morto que quase não sabia o que estava dizendo. Jaime é galante, mas um pouco tolo, para falar a verdade. Tommen precisa de um homem mais experiente. Alguém mais velho...
- Mace Tyrell é mais velho.
As narinas de Cersei dilataram-se.
- Nunca - afastou uma madeixa da testa. - Os Tyrell vão longe demais.
- Seria uma tola se fizesse de Mace Tyrell sua Mão - Sor Kevan admitiu - mas uma tola maior se fizesse dele seu inimigo. Ouvi falar sobre o que aconteceu no Salão das Lâmpadas. Mace devia saber que não era boa ideia abordar tais assuntos em público, mas, mesmo assim, você se mostrou pouco sensata ao envergonhá-lo perante metade da corte.
- É preferível isto a ter de aguentar outro Tyrell no conselho - a censura do tio a aborreceu. - Rosby será um mestre de moeda adequado. Já viu aquela liteira dele, com os entalhes e as cortinas de seda? Seus cavalos são mais bem ataviados do que os da maior parte dos cavaleiros. Um homem tão rico não deve ter problemas em encontrar ouro. Quanto à posição de Mão... quem melhor para concluir o trabalho de meu pai do que o irmão que estava presente em todos os seus conselhos?
- Todos os homens precisam de alguém em quem possam confiar. Tywin tinha a mim, e antes teve sua mãe.
- Ele a amava muito - Cersei recusava-se a pensar na prostituta morta na cama do pai. - Eu sei que agora estão juntos.
- Assim espero - Sor Kevan estudou-lhe o rosto por um longo momento antes de responder. - Pede muito de mim, Cersei.
- Não peço mais do que o meu pai.
- Estou cansado - o tio estendeu a mão para a taça de vinho e bebeu um gole. - Tenho uma esposa que já não vejo há dois anos, um filho morto para chorar, outro prestes a se casar e assumir uma senhoria. O castelo Darry precisa recuperar sua força, suas terras têm de ser protegidas, seus campos queimados devem ser arados e replantados. Lancel precisa da minha ajuda.
- Assim como Tommen - Cersei não esperara que fosse necessário aliciar Kevan. Ele nunca se mostrou renitente com meu pai. - O reino precisa de você.
- O reino. Pois. E a Casa Lannister - voltou a bebericar o vinho. - Muito bem. Ficarei para servir Sua Graça...
- Ótimo - ela começou a dizer, mas Sor Kevan levantou a voz e não a deixou prosseguir.
- ... desde que também me nomeie regente, além de Mão, e volte para Rochedo Casterly.
Durante meio segundo Cersei só conseguiu olhá-lo.
- A regente sou eu - lembrou-lhe.
- Era. Tywin não pretendia que continuasse a desempenhar este papel. Ele me falou dos planos que tinha de enviá-la de volta para Rochedo e lhe arranjar um novo marido.
Cersei sentiu a ira aumentar.
- Ele falou disso, sim. E eu lhe disse que não era meu desejo voltar a me casar.
O tio mostrou-se inflexível.
- Se está decidida contra outro casamento, não a forçarei. Mas no que toca ao resto... Agora é a Senhora de Rochedo Casterly. Seu lugar é lá.
Como se atreve? Quis gritar. Em vez disso, disse:
- Também sou a Rainha Regente. Meu lugar é com meu filho.
- Seu pai não pensava isso.
- Meu pai está morto.
- Para meu desgosto e para desgraça de todo o reino. Abra os olhos e olhe em volta, Cersei. O reino está em ruínas. Tywin poderia ter sido capaz de pôr as coisas nos eixos, mas...
- Eu colocarei as coisas nos eixos! - Cersei suavizou o tom de voz. - Com a sua ajuda, tio. Se me servir tão fielmente como serviu meu pai...
- Você não é seu pai. E Tywin sempre considerou Jaime seu legítimo herdeiro.
- Jaime... Jaime proferiu votos. Ele nunca pensa, ri de tudo e de todos, e diz a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Jaime é um tolo bonito.
- E no entanto foi sua primeira escolha para Mão do Rei. O que isso faz de você, Cersei?
- Eu lhe disse, estava doente de desgosto, não pensei...
- Não - concordou Sor Kevan. - E é por isso mesmo que deve regressar a Rochedo Casterly e deixar o reino nas mãos de quem pensa.
- O rei é m eu filbo! - Cersei pôs-se em pé,
- Sim - disse o tio - e pelo que vi de Joffrey, é tão incapaz no papel de mãe como no de governante.
Ela atirou-lhe no rosto o conteúdo da taça.
Sor Kevan ergueu-se com solene dignidade.
- Vossa Graça - vinho escorria-lhe pelas bochechas e pingava de sua barba cortada rente. - Com a sua licença, posso me retirar?
- Com que direito ousa propor-me condições? Não é mais do que um dos cavaleiros a serviço do meu pai.
- Não possuo terras, é verdade. Mas tenho certos rendimentos e arcas de dinheiro guardadas. Meu pai não se esqueceu de nenhum dos filhos quando morreu, e Tywin sabia como recompensar bons serviços. Dou de comer a duzentos cavaleiros e posso duplicar esse número se for necessário. Há cavaleiros livres que seguiriam meu estandarte, e tenho o ouro necessário para contratar mercenários. Seria sensata em não me subestimar, Vossa Graça... e mais sábia ainda em não fazer de mim um inimigo.
- Está me ameaçando?
- Estou aconselhando-a. Se não me ceder a regência, nomeie-me seu castelão em Rochedo Casterly e faça de Mathis Rowan ou de Randyll Tarly a Mão do Rei.
Vassalos Tyrell, ambos. A sugestão a deixou sem fala. Será que foi comprado? Perguntou a si mesma. Terá aceitado ouro Tyrell para trair a Casa Lannister?
- Mathis Rowan é sensível, prudente e estimado - prosseguiu o tio, absorto. - Randyll Tarly é o melhor soldado do reino. Fraca Mão para tempos de paz, mas com Tywin morto não há melhor homem para terminar esta guerra. Lorde Tyrell não pode se ofender se você escolher um de seus vassalos como Mão. Tanto Tarly como Rowan são homens capazes... e leais. Nomeie qualquer um e o tornarei seu. Fortalecerá a si mesma e enfraquecerá Jardim de Cima, mas é provável que Mace lhe agradeça - encolheu os ombros. - É este o meu conselho, aceite-o ou não. Por mim, pode até nomear o Rapaz Lua como sua Mão. Meu irmão está morto, mulher. Vou levá-lo para casa.
Traidor, ela pensou. Vira-casaca. Perguntou a si mesma quanto Mace Tyrell lhe teria dado.
- Quer abandonar seu rei quando ele mais precisa de você - disse-lhe. - Quer abandonar Tommen.
- Tommen tem a mãe - os olhos verdes de Sor Kevan encontraram os seus, sem pestanejar. Uma última gota de sangue tremeluziu, úmida e rubra, sob seu queixo, e finalmente caiu. - Sim - acrescentou em voz baixa, após uma pausa - e o pai também, julgo eu.  

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