quarta-feira, 18 de setembro de 2013

9 - BRIENNE



Os portões de Valdocaso estavam fechados e trancados. Na escuridão que antecedia a alvorada, as muralhas da vila brilhavam com uma luz pálida e difusa. Em suas ameias moviam-se farrapos de nevoeiro como sentinelas fantasmagóricas. Uma dúzia de carroças e carros de bois tinha se alinhado fora dos portões, à espera do nascer do sol. Brienne ocupou seu lugar atrás de um monte de nabos. Doía-lhe a barriga das pernas, e desejava desmontar e estendê-las. Não muito depois, outra carroça saiu ribombando da floresta. Quando o sol começou a brilhar, a fila estendia-se ao longo de um quarto de milha.
Os lavradores lançavam-lhe relances curiosos, mas ninguém falou com ela. Cabe a mim falar com eles, disse Brienne a si mesma, mas sempre achara difícil falar com estranhos. Desde garota sempre fora tímida. Longos anos de escárnio apenas a tinham tornado mais tímida. Preciso perguntar por Sansa. De que outro modo a encontrarei? Limpou a garganta:
- Mulher - disse à mulher da carroça dos nabos por acaso viu minha irmã na estrada? Uma jovem donzela, com treze anos e de rosto bonito, com olhos azuis e cabelos ruivos. Pode estar acompanhada de um cavaleiro bêbado.
A mulher balançou a cabeça, mas o marido disse:
- Então não é donzela nenhuma, aposto. A pobre garota tem nome?
A cabeça de Brienne estava vazia. Devia ter inventado um nome qualquer para ela, Qualquer nome serviria, mas nenhum lhe ocorreu.
- Sem nome? Bem, as estradas estão cheias de garotas sem nome.
- E o cemitério está mais cheio ainda - a mulher completou.
Quando a aurora rebentou, os guardas apareceram nos baluartes. Os agricultores subiram para seus carros e sacudiram as rédeas. Brienne também montou e lançou um relance para trás. A maioria das pessoas que esperavam para entrar em Valdocaso era composta por gente do campo com cargas de frutas e legumes para vender. Um par de homens ricos da vila seguiam em palafréns de boa criação uma dúzia de lugares atrás dela, e mais para trás vislumbrou um garoto magricela num cavalo malhado. Não havia sinal dos dois cavaleiros, nem de Sor Shadrich, o Rato Louco.
Os guardas mandavam as carroças passar quase sem olhar, mas quando Brienne chegou ao portão chamou-lhes a atenção.
- Alto! - gritou o capitão. Dois homens que envergavam camisas de cota de malha cruzaram as lanças para lhe barrar o caminho. - Declare o que pretende fazer aqui.
- Procuro o Senhor de Valdocaso, ou seu meistre.
Os olhos do capitão demoraram-se em seu escudo.
- O morcego negro de Lothston. Essas são armas de má reputação.
- Não são minhas. Pretendo mandar pintar o escudo de novo.
- Ah, é mesmo? - o capitão esfregou o queixo coberto de barba por fazer. - Pois minha irmã faz esses trabalhos. Você a encontrará na casa com as portas pintadas, em frente das Sete Espadas - fez um gesto para os guardas. - Deixem-na passar, rapazes. É uma garota.
O portão abria-se para uma praça de mercado, onde aqueles que tinham entrado antes dela descarregavam, preparando-se para oferecer seus nabos, cebolas amarelas e sacas de cevada. Outros vendiam armas e armaduras, e muito barato, a julgar pelos preços que gritavam quando ela passava. Os saqueadores chegaram com as gralhas pretas depois de todas as batalhas. Brienne levou o cavalo a passo por perto de armaduras sujas de sangue marrom, elmos amassados, espadas denteadas. Também se arranjava roupa: botas de couro, mantos de peles, sobretudos manchados com rasgões suspeitos. Conhecia muitos dos símbolos. O punho coberto de cota de malha, o alce, o sol branco, o machado de lâmina dupla, todos eram símbolos do Norte. Mas homens de Tarly também tinham morrido ali, bem como muitos vindos das terras da tempestade. Viu maçãs verdes e vermelhas, um escudo que ostentava os três relâmpagos de Leygood, arreios decorados com as formigas de Ambrose. O caçador andante de Lorde Tarly aparecia em muitos símbolos, broches e gibões. Amigo ou inimigo, os corvos não fazem distinção.
Era possível comprar escudos de pinho e tília por pouco dinheiro, mas Brienne limitou-se a passar por eles. Pretendia ficar com o escudo de carvalho que Jaime lhe dera, o escudo que ele mesmo usara de Harrenhal a Porto Real. Um escudo de pinho tinha suas vantagens. Era mais leve e, portanto, mais fácil de usar, e a madeira macia era mais propícia a prender o machado ou a espada de um inimigo. Mas o carvalho oferecia maior proteção, se fosse suficientemente forte para suportar o peso.
Valdocaso fora construída em volta do porto. Ao norte da vila erguiam-se falésias de calcário; ao sul, um promontório rochoso abrigava os navios ancorados das tempestades que subiam do mar estreito. O castelo tinha vista para o porto, e a fortaleza quadrada e as grandes torres cilíndricas podiam ser vistas de todos os pontos da vila. Nas ruas calçadas com pedras e densamente povoadas era mais fácil caminhar do que seguir a cavalo, e Brienne levou a égua para um estábulo e continuou a pé, com o escudo a tiracolo e o rolo de dormir debaixo do braço.
Não foi difícil encontrar a irmã do capitão. Sete Espadas era a maior estalagem da vila, uma estrutura de quatro andares que se elevava acima da vizinhança, e as portas duplas da casa em frente estavam maravilhosamente pintadas. Mostravam um castelo numa floresta de outono, com as árvores cobertas de tons de dourado e marrom-avermelhado. Hera trepava pelos troncos de antigos carvalhos, e até as bolotas tinham sido representadas com um cuidado afetuoso. Quando Brienne olhou mais de perto, viu criaturas na folhagem: uma raposa vermelha escondida, dois pardais num ramo e, por trás dessas folhas, a sombra de um javali.
- Sua porta é muito bela - disse à mulher de cabelos escuros que abriu quando ela bateu. - Que castelo é este?
- Todos os castelos - disse a irmã do capitão. - O único que conheço é o Forte Pardo, junto ao porto. Inventei o outro na minha cabeça, imaginei o aspecto que um castelo devia ter. Também nunca vi um dragão, nem um grifo, nem um unicórnio - a mulher tinha modos bem-dispostos, mas quando Brienne lhe mostrou o escudo o rosto tornou-se sombrio. - Minha velha mãe costumava dizer que morcegos gigantes voavam de Harrenhal em noites sem luar para levar as crianças más às panelas da Doida Danelle. As vezes eu os ouço arranhar as janelas - chupou os dentes por um momento, pensativa. - O que vai colocar no lugar disto?
As armas de Tarth eram esquarteladas de rosa e azul e ostentavam um sol amarelo e um crescente de lua. Mas, enquanto os homens a julgassem uma assassina, Brienne não se atrevia a usá-las.
- Sua porta me fez lembrar de um velho escudo que há tempos vi no armeiro de meu pai - ela descreveu as armas o melhor que conseguia se lembrar.
A mulher assentiu:
- Posso pintá-lo já, mas a tinta vai precisar secar. Arranje um quarto na Sete Espadas, se achar por bem. Eu levo o escudo para você amanhã de manhã.
Brienne não pretendia passar a noite em Valdocaso, mas talvez fosse melhor. Não sabia se o senhor do castelo se encontrava presente, ou se consentiria em falar com ela. Agradeceu à pintora e cruzou a rua de pedras até a estalagem. Por cima da porta do estabelecimento, sete espadas de madeira balançavam sob um espigão de ferro. A cal que as cobria estava fendida e descascando, mas Brienne conhecia seu significado. Representavam os sete filhos de Darklyn que tinham usado o manto branco da Guarda Real. Nenhuma outra casa em todo o reino podia se orgulhar de tantos. Foram a glória da sua Casa. E agora são um letreiro por cima de uma estalagem. Abriu caminho para a sala comum e pediu ao estalajadeiro um quarto e banho.
O homem a colocou no segundo andar, e uma mulher com uma marca de nascença cor de fígado no rosto trouxe para cima uma banheira de madeira e depois a água, balde por balde.
- Restam alguns Darklyn em Valdocaso? - perguntou Brienne ao entrar na banheira.
- Bem, há Darkes, eu mesma sou uma. Meu marido diz que eu era Darke antes de nos casarmos e mais escura depois - ela riu. - Não pode atirar uma pedra em Valdocaso sem acertar em algum Darke, Darkwood ou Dargood, mas os fidalgos Darklyn desapareceram todos. Lorde Denys foi o último deles, o querido tolinho. Sabia que os Darklyn eram reis em Valdocaso antes de os ândalos chegarem? Nunca o diria olhando para mim, mas tenho sangue real. Consegue vê-lo? Devia obrigá-los a dizer: “Vossa Graça, outra taça de cerveja. Vossa Graça, o penico precisa ser esvaziado, e vá buscar mais uns molhos de lenha novos, Vossa Maldita Graça, que a lareira está apagando” - voltou a dar risada e despejou as últimas gotas do balde. - Bom, aí está. Essa água está quente o suficiente para você?
- Há de servir - a água estava morna.
- Eu traria mais, mas só faria derramar. Uma garota com seu tamanho enche uma banheira.
Só um a banheira apertada e pequena como esta. Em Harrenhal, as banheiras eram enormes e feitas de pedra. O ar da casa de banhos estava pesado com o vapor que se erguia da água, e Jaime aparecera, caminhando através dessa névoa, nu como no dia de seu nome, parecendo meio cadáver e meio deus. Ele entrou na banheira comigo, recordou, corando. Pegou num bocado de sabão duro e esfregou-se debaixo dos braços, tentando evocar o rosto de Renly.
Quando a água esfriou, Brienne estava tão limpa como era possível ficar. Vestiu a mesma roupa que despira e apertou bem o cinto da espada em volta das ancas, mas deixou ficar para trás a cota de malha e o elmo, para não parecer tão ameaçadora no Forte Pardo. Era agradável esticar as pernas. Os guardas nos portões do castelo usavam jaquetas de couro com um símbolo que exibia martelos de guerra cruzados sobre uma aspa branca.
- Desejo falar com seu senhor - disse-lhes Brienne.
Um dos homens riu:
- Então é melhor gritar bem alto.
- Lorde Rykker seguiu para Lagoa da Donzela com Randyll Tarly - disse o outro. - Deixou Sor Rufus Leek como castelão, para cuidar da Senhora Rykker e dos pequenos.
E foi a Leek que a levaram. Sor Rufus era um homem baixo, robusto e de barba grisalha, cuja perna esquerda terminava num coto.
- Perdoe-me se não me levanto - disse. Brienne entregou-lhe a carta, mas Leek não sabia ler e mandou buscar o meistre, um homem calvo com o couro cabeludo sardento e um bigode hirto e vermelho.
Quando ouviu o nome Hollard, o meistre franziu as sobrancelhas com irritação.
- Quantas vezes preciso cantar essa canção? - o rosto dela deve tê-la denunciado. - Julgava que seria a primeira a vir à procura de Dontos? Está mais perto da vigésima primeira. Os homens de manto dourado estiveram aqui dias depois do assassinato do rei, com mandato do Lorde Tywin. E o que você tem, se me permite a curiosidade?
Brienne mostrou-lhe a carta, com o selo de Tommen e a assinatura infantil. O meistre fez hmmm, e aaa, arranhou a cera e por fim a devolveu.
- Parece estar em ordem - sentou-se em um banco e indicou outro a Brienne - Não cheguei a conhecer Sor Dontos. Ele era rapaz quando saiu de Valdocaso. Os Hollard foram outrora uma Casa nobre, é certo. Conhece suas armas? Riscas horizontais em vermelho e rosa sob um fundo azul portando três coroas de ouro. Os Darklyn foram reis pouco importantes durante a Era dos Heróis, e três deles tomaram esposas Hollard. Mais tarde, seu pequeno reino foi engolido por reinos maiores, mas os Darklyn sobreviveram e os Hollard os serviam... sim, até mesmo em desafio. Sabia disso?
- Um pouco - seu meistre costumava dizer que fora o Desafio de Valdocaso que enlouquecera o Rei Aerys.
- Em Valdocaso os plebeus ainda amam Lorde Denys, apesar da desgraça que lhes trouxe. E à Senhora Serala, sua esposa de Myr, que atribuem a culpa. Chamam-na a Serpente de Renda. Se ao menos Lorde Darklyn tivesse se casado com uma Staunton ou uma Stokeworth... bem, sabe como os plebeus gostam de falar. A Serpente de Renda encheu os ouvidos do marido com veneno de Myr, eles dizem, até que Lorde Denys se ergueu contra seu rei e o tornou cativo. Ao fazê-lo, seu mestre de armas, Sor Symon Hollard, abateu Sor Gwayne Gaunt da Guarda Real. Durante meio ano, Aerys foi mantido dentro destas mesmas muralhas, enquanto a Mão do Rei se mantinha fora de Valdocaso com uma poderosa hoste. Lorde Tywin tinha força suficiente para assaltar a vila assim que quisesse, mas Lorde Denys mandou-lhe uma mensagem dizendo que ao primeiro sinal de assalto mataria o rei.
Brienne lembrava-se do que acontecera em seguida.
- O rei foi salvo - disse. - Barristan, o Ousado, o levou daqui.
- Pois levou - disse o meistre. - Assim que Lorde Denys perdeu o refém, preferiu abrir os portões e pôr fim ao desafio a permitir que Lorde Tywin tomasse a vila. Dobrou o joelho e suplicou por misericórdia, mas o rei não era dado ao perdão. Lorde Denys perdeu a cabeça, tal como os irmãos e as irmãs, os tios, os primos, todos os Darklyn fidalgos. A Serpente de Renda foi queimada viva, pobre mulher, se bem que a língua lhe tivesse sido arrancada primeiro, bem como as partes femininas, com as quais, se dizia, ela teria escravizado seu senhor. Metade de Valdocaso ainda lhe dirá que Aerys foi demasiado brando com ela.
- E os Hollard?
- Proscritos e destruídos - o meistre respondeu. - Eu forjava minha corrente na Cidadela quando isso aconteceu, mas li os relatos de seus julgamentos e punições. Sor Jon Hollard, o Intendente, era casado com a irmã de Lorde Denys e morreu com a esposa, tal como o filho pequeno de ambos, que era meio Darklyn. Robin Hollard era um escudeiro e, quando o rei foi capturado, dançou em volta dele e puxou-lhe a barba. Morreu na roda. Sor Symon Hollard foi morto por Sor Barristan durante a fuga do rei. As terras Hollard foram confiscadas, o castelo derrubado, as aldeias passadas pelo archote. Tal como aconteceu com os Darklyn, a Casa Hollard foi extinta.
- Exceto Dontos.
- É bem verdade. O jovem Dontos era filho de Sor Steffon Hollard, irmão gêmeo de Sor Symon, que morrera alguns anos antes e não participou no Desafio. Aerys queria cortar a cabeça do rapaz mesmo assim, mas Sor Barristan pediu que a vida lhe fosse poupada. O rei não podia dizer não ao homem que o salvara, e assim Dontos foi levado para Porto Real como escudeiro. Tanto quanto eu saiba, ele nunca regressou a Valdocaso. E por que haveria de regressar? Não possuía terras aqui, não tinha nem família nem castelo. Se Dontos e essa garota nortenha ajudaram a assassinar nosso querido rei, parece-me que gostariam de colocar tantas léguas quantas pudessem entre si e a justiça. Procure-os em Vilavelha, se quiser insistir, ou do outro lado do mar estreito. Procure-os em Dorne ou na Muralha. Procure-os em outro lugar - ergueu-se. - Ouço meus corvos chamando. Perdoe-me se me despeço de você.
A caminhada de volta à estalagem pareceu mais longa do que a caminhada até o Forte Pardo, embora isso talvez se devesse apenas ao seu estado de espírito. Não encontraria Sansa Stark em Valdocaso, isso parecia evidente. Se Sor Dontos a tivesse levado para Vilavelha ou para lá do mar estreito, como o meistre parecia pensar, não havia esperança para a demanda de Brienne. O que há para ela em Vilavelha? Perguntou a si mesma. O meistre não a conheceu, assim como não conheceu Hollard. Ele não teria ido para junto de estranhos.
Em Porto Real, Brienne encontrara uma das antigas aias de Sansa empregada num bordel como lavadeira.
- Servi ao Lorde Renly antes da Senhora Sansa, e os dois tornaram-se traidores - lamentou-se amargamente a mulher, que se chamava Brella. - Não há lorde que me toque agora, por isso tenho de lavar para prostitutas - mas quando Brienne a interrogou sobre Sansa, ela disse: - Eu lhe direi o que disse a Lorde Tywin. Aquela garota estava sempre rezando. Ia ao septo e acendia as velas como uma senhora respeitável, mas quase todas as noites ia ao bosque sagrado. Ela voltou para o Norte, ah, se voltou. É lá que estão os deuses dela.
Mas o Norte era enorme, e Brienne não fazia nenhuma ideia de qual seria o vassalo do pai em quem Sansa mais se inclinaria a confiar. Ou será que ela procuraria seu próprio sangue? Embora todos os irmãos tivessem sido mortos, Brienne sabia que Sansa ainda tinha um tio e um meio-irmão bastardo na Muralha, a serviço da Patrulha da Noite. Outro tio, Edmure Tully, estava cativo nas Gêmeas, mas o tio deste, Sor Brynden, ainda controlava Correrrio. E a irmã mais nova da Senhora Catelyn governava o Vale. O sangue cham a pelo sangue. Sansa podia perfeitamente ter corrido para junto de um deles. Mas, qual?
A Muralha ficava decerto longe demais, e além disso era um lugar ermo e amargo. E para chegar a Correrrio, a garota teria de atravessar as terras fluviais dilaceradas pela guerra e passar através das linhas de cerco dos Lannister. O Ninho da Águia seria mais simples, e a Senhora Lysa certamente acolheria a filha da irmã...
Em frente, a viela dobrava-se. Sem saber como, Brienne fizera uma curva errada. Deu por si num beco sem saída, um pequeno pátio lamacento onde três porcos fuçavam em volta de um poço baixo de pedra. Um deles guinchou ao vê-la, e uma velha que tirava água do poço a olhou de cima a baixo com um ar desconfiado,
- O que você quer?
- Estou à procura da Sete Espadas.
- Volte pelo caminho por onde veio. À esquerda no septo.
- Agradeço-lhe - Brienne virou-se para voltar a percorrer seus passos e deu um encontrão em alguém que dobrava apressadamente a esquina. A colisão desequilibrou-o e o fez cair sobre o traseiro e a lama. - Perdão - Brienne murmurou. Ele não passava de um garoto; um garoto magricela com cabelos lisos e finos e terçol debaixo de um olho.
- Machucou-se? - ofereceu a mão para ajudá-lo a se erguer, mas o garoto afastou-se precipitadamente, sobre os calcanhares e os cotovelos. Não podia ter mais de dez ou doze anos, embora usasse uma camisa de cota de malha e tivesse uma espada numa bainha de couro a tiracolo. - Eu o conheço? - perguntou Brienne, O rosto dele lhe parecia vagamente familiar, embora não conseguisse identificá-lo.
- Não. Não conhece. Você nunca... - o garoto pôs-se desajeitadamente em pé. - P-p-perdoe-me, senhora. Não estava olhando. Quer dizer, estava, mas para baixo. Estava olhando para baixo. Para os meus pés - o garoto fugiu, mergulhando rapidamente pelo caminho por onde tinha vindo.
Algo nele despertou todas as suspeitas de Brienne, mas não ia começar a persegui-lo pelas ruas de Valdocaso. Fora dos portões, esta m anhã, foi lá que o vi, lembrou-se. Ele vinha montado num cavalo malhado. E parecia que o tinha visto também em outro lugar, mas onde?
Quando Brienne voltou a encontrar a Sete Espadas, a sala comum estava cheia. Quatro septãs sentavam-se ao lado da lareira, trajando vestes manchadas e empoeiradas pela estrada. O resto dos bancos era ocupado por gente da terra, que enfiava bocados de pão em tigelas de guisado quente de caranguejo e os levava à boca. O cheiro pôs-lhe o estômago a trovejar, mas não viu lugares vazios. Então uma voz atrás dela disse:
- Senhora, aqui, fique com o meu lugar - só quando ele saltou do banco é que Brienne percebeu que quem falara era um anão. O homenzinho não chegava a ter metro e meio de altura. Tinha um nariz bulboso e cheio de veias, os dentes estavam vermelhos da folhamarga, e trazia as vestes marrons, feitas de tecido grosseiro, de um santo irmão, com o martelo de ferro do Ferreiro pendurado no grosso pescoço.
- Fique com seu lugar - ela respondeu. - Posso ficar em pé tão bem quanto você.
- Sim, mas minha cabeça não tende tanto a bater no teto - a fala do anão era rude, mas cortês. Brienne via a coroa de seu couro cabeludo, onde raspara o cabelo. Muitos dos santos irmãos usavam tonsuras como aquela. A Septã Roelle dissera-lhe uma vez que aquilo pretendia mostrar que nada tinham a esconder do Pai.
- O Pai não consegue ver através do cabelo? - Brienne perguntara. Coisa estúpida de se dizer. Fora uma criança lenta; a Septã Roelle dizia isso com frequência. Agora sentia-se quase tão estúpida como na época, por isso ocupou o lugar do homenzinho na ponta do banco, pediu guisado com um gesto e virou-se para agradecer ao anão.
- Serve alguma santa casa em Valdocaso, irmão?
- Era mais perto de Lagoa da Donzela, senhora, mas os lobos correram com a gente com o fogo - respondeu o homem, roendo uma casca de pão. - Reconstruímos o melhor que pudemos, até chegarem uns mercenários. Não sei dizer quem eles eram, mas roubaram-nos os porcos e mataram os irmãos. Enfiei-me num tronco oco e me escondi, mas os outros eram grandes demais. Levei muito tempo para enterrar todos, mas o Ferreiro, o Ferreiro deu-me forças. Quando acabei, desenterrei umas moedas que o irmão mais velho tinha escondido e fui-me embora sozinho.
- Encontrei mais alguns irmãos a caminho de Porto Real.
- Sim, há centenas nas estradas. E não só irmãos. Septões também, e povo comum. Todos pardais. Pode ser que eu também seja um pardal. O Ferreiro fez-me suficientemente pequeno - soltou um risinho - E que triste história é a sua, senhora?
- Ando à procura de minha irmã. É bem-nascida, tem só treze anos, uma donzela bonita com olhos azuis e cabelos ruivos. Talvez a tenha visto viajando com um homem. Um cavaleiro, talvez um bobo. Há ouro para o homem que me ajude a encontrá-la.
- Ouro? - o homem dirigiu-lhe um sorriso vermelho. - Uma tigela daquele guisado de caranguejo era recompensa bastante para mim, mas temo que não possa ajudá-la. Encontrei bobos, e em grande número, mas não muitas donzelas bonitas - inclinou a cabeça e pensou por um momento. - Houve um bobo em Lagoa da Donzela, agora que penso nisso. Estava vestido de trapos e sujeira, pelo que consegui ver, mas por baixo da sujeira havia retalhos de várias cores.
Dontos Hollard usava retalhos? Ninguém disse a Brienne que sim... mas também ninguém disse que não. Mas por que o homem usaria trapos? Teria algum infortúnio caído sobre ele e sobre Sansa depois de fugirem de Porto Real? Podia bem ser que sim, com as estradas tão perigosas. E podia não ser que não fosse.
- Esse bobo tinha um nariz vermelho, cheio de veias rotas?
- Quanto a isso, não posso jurar. Confesso que prestei pouca atenção nele. Tinha ido para Lagoa da Donzela depois de enterrar meus irmãos, achando que talvez encontrasse um navio que me levasse para Porto Real. A primeira vez que vi o bobo foi junto às docas. Tinha um ar furtivo e teve o cuidado de evitar os soldados de Lorde Tarly. Mais tarde voltei a encontrá-lo no Ganso Fedorento.
- O Ganso Fedorento? - ela disse, demonstrando incerteza.
- Um lugar duvidoso - admitiu o anão. - Os homens de Lorde Tarly patrulham o porto em Lagoa da Donzela, mas o Ganso está sempre cheio de marinheiros, e há notícias de alguns terem introduzido homens às escondidas a bordo de seus navios, se o preço lhes agradasse. Esse bobo andava à procura de passagem para três para o outro lado do mar estreito. Vi-o ali com frequência, conversando com remadores das galés. Às vezes cantava uma canção engraçada.
- À procura de passagem para três? Não para dois?
- Três, senhora. Quanto a isso já eu juro, pelos Sete.
Três, ela pensou. Sansa, Sor Dontos... mas quem seria o terceiro? O Duende?
- O bobo encontrou o navio que procurava?
- Isso já não sei responder - disse-lhe o anão - mas uma noite alguns dos soldados de Lorde Tarly visitaram o Ganso à procura dele, e alguns dias mais tarde ouvi outro homem gabando-se de que tinha enganado um bobo e tinha o ouro que o provava. Estava bêbado, e pagou cerveja a toda a gente.
- Enganou um bobo - ela repetiu. - Que queria o homem dizer com isso?
- Não sei responder. Mas o nome dele era Lesto Dick, disso eu me lembro - o anão abriu as mãos. - Temo que seja tudo o que posso lhe oferecer, além das preces de um homem pequeno.
Fiel à sua palavra, Brienne comprou-lhe uma tigela de guisado quente de caranguejo... e também um pouco de pão fresco aquecido e uma taça de vinho. Enquanto o homem comia, em pé ao seu lado, ela se pôs a pensar sobre o que lhe tinha sido dito. Poderia o Duende ter se juntado a eles? Se fosse Tyrion Lannister, e não Dontos Hollard, por trás do desaparecimento de Sansa, fazia sentido que tivessem de fugir para o lado de lá do mar estreito.
Depois de o homenzinho terminar sua tigela de guisado, terminou também o que Brienne deixara na sua.
- Devia comer mais - ele disse. - Uma mulher tão grande como você precisa manter as forças. Daqui à Lagoa da Donzela não é longe, mas por esses dias a estrada é perigosa.
Eu sei. Fora naquela mesma estrada que Sor Cleos Frey morrera, e ela e Sor Jaime tinham sido capturados pelos Saltimbancos Sangrentos. Jaime tentou me matar, recordou, embora estivesse magro e fraco, e com os pulsos acorrentados. Mesmo assim quase conseguiu, mas isso tinha sido antes de Zoilo ter lhe cortado a mão. Zoilo, Rorge e Shagwell a teriam violado meia centena de vezes se Sor Jaime não lhes tivesse dito que ela valia seu peso em safiras.
- Senhora? Parece triste. Está pensando em sua irmã? - o anão deu-lhe palmadinhas na mão - A Velha iluminará seu caminho até ela, nada tema. A Donzela a manterá a salvo.
- Rezo para que tenha razão.
- Tenho - ele fez uma reverência. - Mas agora devo prosseguir. Ainda tenho um longo caminho a percorrer até chegar a Porto Real.
- Tem um cavalo? Uma mula?
- Duas mulas - o homenzinho deu risada. - Ali estão elas, na ponta de minhas pernas. Levam-me onde eu quero ir - fez nova reverência e bamboleou-se na direção da porta, balançando a cada passo.
Brienne ficou à mesa depois de o anão partir, demorando-se com um copo de vinho aguado. Não bebia vinho com frequência, mas muito de vez em quando o achava útil para lhe acalmar a barriga. E para onde desejo ir? Perguntou a si mesma. Para Lagoa da Donzela, à procura de um homem chamado Lesto Dick, num lugar cham ado Ganso Fedorento?
Da última vez que vira Lagoa da Donzela, a vila era uma desolação, com seu senhor trancado dentro do castelo e o povo morto, fugido ou escondido. Lembrava-se de casas queimadas e ruas vazias, portões esmagados e quebrados. Cães selvagens escondiam-se atrás dos cavalos do grupo, enquanto cadáveres inchados flutuavam como enormes lírios-d'água brancos na lagoa alimentada por uma nascente que emprestava o nome à vila, Jaime cantou “Seis Donzelas numa Lagoa ” e deu risada quando lhe pedi p ara se calar. E Randyll Tarly também estava em Lagoa da Donzela, outro motivo para ela evitar o lugar. Talvez fizesse melhor em embarcar para Vila Gaivota ou Porto Branco. Podia fazer as duas coisas, porém. Fazer uma visita ao Ganso Fedorento e falar com esse Lesto Dick, e depois arranjar um navio em Lagoa da Donzela que me levasse mais para o norte.
A sala comum começava a se esvaziar. Brienne partiu ao meio um bocado de pão, escutando as conversas nas outras mesas. A maioria relacionava-se com a morte de Lorde Tywin Lannister.
- Assassinado pelo próprio filho, dizem - contava um homem da terra, pelo aspecto, um sapateiro - aquele vil anãozinho.
- E o rei é só um garoto - disse a mais velha das quatro septãs. - Quem irá nos governar até que ele tenha idade?
- O irmão de Lorde Tywin - disse um guarda. - Ou aquele Lorde Tyrell, se calhar. Ou o Regicida.
- Esse não - declarou o estalajadeiro. - Esse perjuro não - cuspiu para a lareira.
Brienne deixou o pão cair-lhe das mãos e sacudiu dos calções as migalhas. Já ouvira o suficiente.
Naquela noite sonhou que se encontrava de novo na tenda de Renly. Todas as velas estavam se apagando, e o frio era intenso à sua volta. Algo se movia pela escuridão verde, algo maligno e horrível precipitava-se para o seu rei. Brienne quis protegê-lo, mas tinha os membros rígidos e gelados, e precisava de mais energia do que aquela de que dispunha apenas para erguer a mão. E quando a espada de sombra cortou o gorjal de aço verde e o sangue começou a jorrar, Brienne viu que o rei moribundo afinal não era Renly, mas sim Jaime Lannister, e ela falhara com ele.
A irmã do capitão foi encontrá-la na sala comum, bebendo uma taça de leite e mel, com três ovos crus atirados lá para dentro.
- Fez um belíssimo trabalho - disse, quando a mulher lhe mostrou o escudo recém-pintado. Era mais um quadro do que um brasão propriamente dito, e vê-lo a levou de volta através de longos anos até a escuridão fria do armeiro do pai. Recordou como fizera passar as pontas dos dedos pela tinta lascada que se desvanecia, pelas folhas verdes da árvore e ao longo do trajeto da estrela cadente.
Brienne pagou à irmã do capitão vez e meia a soma que tinham combinado e meteu o escudo ao ombro quando deixou a estalagem, depois de comprar do cozinheiro um pouco de pão duro, queijo e farinha. Abandonou a vila pelo portão norte, cavalgando lentamente através dos campos e quintas onde se desenrolara o pior da luta quando os lobos caíram sobre Valdocaso.
Lorde Randyll Tarly comandara o exército de Joffrey, composto por homens do oeste, homens da tempestade e cavaleiros da Campina. Seus homens que ali tinham morrido tinham sido levados para dentro das muralhas, a fim de repousarem em tumbas de heróis sob os septos de Valdocaso. Os mortos do Norte, muito mais numerosos, foram enterrados em valas comuns junto ao mar. Por cima do dólmen que marcava o lugar de seu repouso, os vencedores tinham erguido uma placa de madeira rudemente talhada. Tudo o que dizia era AQUI JAZEM OS LOBOS. Brienne parou ao seu lado e proferiu uma prece silenciosa por eles, e também por Catelyn Stark, pelo filho Robb e por todos os homens que tinham morrido com eles.
Recordou a noite em que a Senhora Catelyn soubera que os filhos estavam mortos, os dois garotinhos que deixara em Winterfell para mantê-los a salvo. Brienne compreendera que algo estava terrivelmente errado. Perguntara-lhe se tinha recebido notícias dos filhos.
“Não tenho nenhum filho a não ser Robb", a Senhora Catelyn lhe respondera. Soara como se uma faca estivesse torcendo em sua barriga. Brienne estendera a mão por sobre a mesa para lhe dar conforto, mas parara antes que os dedos roçassem nos da mulher mais velha, por temer que ela se retraísse. Senhora Catelyn virara as mãos, para mostrar a Brienne as cicatrizes nas palmas e nos dedos, onde um a faca outrora se enterrara profundamente em sua carne. Então, pusera-se a falar das filhas. "Sansa era uma dama", dissera, “sempre cortês e ansiosa por agradar. Nada amava mais do que histórias sobre valentes cavaleiros. Vê-se que quando crescer se tornará uma mulher muito mais bela do que eu. Era frequente escovar-lhe eu mesma seus cabelos. Tinha cabelos ruivos, espessos e macios... o vermelho nele brilhava como cobre à luz dos archotes".
Também falara de Arya, a filha mais nova, mas Arya andava perdida, e o mais provável era que estivesse morta. Mas Sansa... Eu a encontrarei, senhora, jurou Brienne ao fantasma insatisfeito da Senhora Catelyn. Nunca deixarei de procurá-la. Abrirei mão de minha vida se necessário, abrirei mão da minha honra, abrirei mão de todos os meus sonhos, mas eu a encontrarei.
Para além do campo de batalha, a estrada corria paralela à costa, entre o ondulante mar cinza-esverdeado e uma linha de colinas baixas de calcário. Brienne não era a única viajante na estrada. Havia aldeias de pescadores junto à costa ao longo de muitas léguas, e os pescadores usavam aquela estrada para levar seus peixes para o mercado. Passou por uma peixeira acompanhada das filhas, que seguiam para casa com cestos vazios sobre os ombros. Com a armadura posta, tomaram-na por um cavaleiro até lhe verem o rosto. Então, as garotas sussurraram uma para a outra e lançaram-lhe olhares.
- Viram um a donzela de treze anos ao longo da estrada? - perguntou-lhes. - Uma donzela bem-nascida, com olhos azuis e cabelos ruivos? - Sor Shadrich deixara-a cautelosa, mas tinha de continuar tentando. - Pode viajar com um bobo - mas elas se limitaram a balançar a cabeça e riram-se dela por trás das mãos.
Na primeira aldeia a que chegou, rapazes descalços puseram-se a correr junto ao seu cavalo. Tinha colocado o elmo, ferida pelos risinhos dos pescadores, por isso a tomaram por um homem. Um rapaz ofereceu-lhe todas as suas amêijoas, outro caranguejos, e outro a irmã.
Brienne comprou três caranguejos do segundo rapaz. Quando deixou a aldeia, começava a chover e a ventar. Tempestade a caminho, pensou, olhando de relance para o mar. As gotas de chuva pingaram ruidosamente no aço de seu elmo, ressoando em seus ouvidos enquanto avançava, mas era melhor do que estar distante, num barco.
Depois de um a hora rumo ao norte, a estrada dividia-se numa pilha de pedras derrubadas que assinalava as ruínas de um pequeno castelo. O ramo direito seguia o litoral, serpenteando ao longo da costa na direção de Ponta da Garra Rachada, uma terra lúgubre de pântanos e pinhais baldios; o da esquerda corria por colinas, campos de cultivo e bosques até Lagoa da Donzela. A chuva caía com mais força a essa altura. Brienne desmontou e levou a égua para fora da estrada, a fim de se abrigar entre as ruínas. O trajeto das muralhas do castelo ainda se discernia entre as sarças, as ervas daninhas e os ulmeiros silvestres, mas as pedras que as tinham erguido estavam espalhadas como cubos de brinquedo por entre as estradas. Contudo, parte da fortaleza principal ainda se encontrava em pé. Suas torres triplas eram de granito cinzento, tal como as muralhas quebradas, mas os merlões eram de arenito amarelo. Três coroas, percebeu, ao fitá-las através da chuva. Três coroas douradas. Aquilo fora um castelo Hollard. Certamente Sor Dontos teria nascido ali.
Levou a égua através dos detritos até a entrada principal da fortaleza. Da porta restavam apenas dobradiças enferrujadas, mas o telhado ainda se encontrava em bom estado, e o interior estava seco. Brienne prendeu a égua a uma arandela de parede, tirou o elmo e sacudiu os cabelos. Estava à procura de um pouco de madeira seca para acender uma fogueira quando ouviu o ruído de outro cavalo que se aproximava. Um instinto qualquer fez que recuasse para as sombras, onde não podia ser vista da estrada. Aquela era a mesma estrada onde ela e Sor Jaime tinham sido capturados. Não pretendia voltar a passar pelo mesmo perigo.
O cavaleiro era um homem pequeno. O Rato Louco, pensou, ao vê-lo pela primeira vez. De algum modo conseguiu me seguir. Sua mão caiu sobre o cabo da espada, e perguntou a si mesma se Sor Shadrich a julgaria presa fácil só porque era uma mulher. O castelão de Lorde Grandison um dia tinha cometido esse erro. Seu nome era Humfrey Wagstaff; um velho orgulhoso de sessenta e cinco anos, com nariz de falcão e cabeça malhada. No dia em que ficaram noivos, prevenira Brienne de que esperava que ela agisse como uma mulher decente depois de se casarem.
"Não terei a senhora minha esposa andando por aí em cota de malha masculina. Nisto vai me obedecer, caso contrário serei forçado a puni-la.”
Ela tinha dezesseis anos, e as espadas não lhe eram estranhas, mas ainda era acanhada, apesar da perícia demonstrada no pátio. Mas, sem que soubesse onde, encontrara coragem para dizer a Sor Humfrey que só aceitaria punições de um homem que fosse capaz de derrotá-la. O velho cavaleiro enrubesceu, mas concordou em envergar sua armadura para lhe ensinar qual era o lugar próprio de uma mulher. Lutaram com armas embotadas de torneio, de modo que a maça de Brienne não tinha espigões. Quebrou a clavícula de Sor Humfrey, duas de suas costelas e o noivado. Foi seu terceiro marido em perspectiva, e o último. O pai não voltou a insistir.
Se fosse Sor Shadrich quem lhe farejava o rasto, podia perfeitamente ter nas mãos uma luta. Não pretendia se associar ao homem ou deixar que ele a seguisse até Sansa. Ele tinha o tipo de arrogância fácil que vem com a habilidade com as armas, pensou, mas era pequeno. Terei sobre ele a vantagem do alcance, e devo também ser mais forte.
Brienne era tão forte quanto a maioria dos cavaleiros, e seu antigo mestre de armas costumava dizer que era mais rápida do que qualquer mulher de seu tamanho tinha o direito de ser. Os deuses também lhe tinham concedido vigor, o que Sor Goodwin julgava ser uma nobre dádiva. Lutar com espada e escudo era coisa cansativa, e era frequente que a vitória coubesse ao homem com maior resistência. Sor Goodwin ensinara-lhe a lutar cautelosamente, a conservar as forças enquanto deixava que os adversários gastassem as suas em ataques furiosos.
"Os homens irão sempre subestimá-la”, dizia, “ seu orgulho os levará a querer vencê-la e rapidamente, para que não se diga que uma mulher lhes deu forte luta” Brienne percebeu a verdade daquelas palavras assim que partiu para o mundo. Até Jaime Lannister caíra sobre ela daquela forma, na floresta perto de Lagoa da Donzela. Se os deuses fossem bons, o Rato Louco cometeria o mesmo erro. Ele pode ser um cavaleiro experiente, pensou, mas não é nenhum Jaime Lannister. Desembainhou a espada.
Mas não foi o corcel acastanhado de Sor Shadrich que se aproximou do ponto onde a estrada bifurcava, e sim um velho e estafado cavalo malhado, com um garoto sobre o dorso. Quando Brienne viu o cavalo, recuou, confusa. É só um garoto qualquer, pensou, até ver o rosto que espreitava por baixo do capuz. O garoto de Valdocaso, aquele que esbarrou em mim. É ele.
O garoto não deitou sequer um relance ao castelo arruinado, mas olhou primeiro ao longo de uma estrada, e depois da outra. Após um momento de hesitação, virou o cavalo na direção das colinas e avançou penosamente. Brienne o observou enquanto desaparecia por entre a chuva que caía, e de repente lembrou-se de que vira aquele mesmo garoto em Rosby. Ele anda me seguindo, compreendeu, mas esse é um jogo que pode ser jogado por dois. Desamarrou a égua, subiu para a sela e foi atrás dele.
O garoto fitava o chão enquanto avançava, observando os sulcos da estrada que se enchiam de água. A chuva abafou o som da aproximação de Brienne, e não havia dúvida de que o capuz também desempenhou seu papel. O garoto não olhou para trás nem uma vez, até Brienne surgir a trote atrás dele e dar ao cavalo malhado uma pancada na garupa com o lado da espada.
O cavalo empinou-se, e o garoto magricela levantou voo, com o manto batendo como um par de asas. Afundou-se na lama e se ergueu com terra e erva morta e marrom entre os dentes, deparando com Brienne em pé por cima dele. Era o mesmo garoto, sem sombra de dúvida. Reconheceu o terçol.
- Quem é você? - quis saber.
A boca do garoto moveu-se sem um som. Seus olhos estavam grandes como ovos.
- Pu - foi só o que conseguiu emitir - Pu - sua camisa de cota de malha fez um som de chocalho quando ele estremeceu. - Pu. Pu.
- Por favor? - disse Brienne. - Está pedindo por favor? - encostou-lhe a ponta da espada ao pomo de Adão. - Por favor, diga-me quem é e por que está me seguindo.
- Não pu-pu-por favor - meteu um dedo na boca e fez saltar um torrão de terra, cuspindo - Pu-pu-Pod. Meu nome. Pu-pu-Podrick. Pu-Payne.
Brienne abaixou a espada. Sentiu uma onda de simpatia pelo garoto. Lembrou-se de um dia em Entardecer, e de um jovem cavaleiro com uma rosa na mão. Ele trouxe a rosa para me dar. Ou pelo menos foi o que a septã lhe dissera. Tudo o que tinha de fazer era dar-lhe as boas-vindas ao castelo do pai. Ele tinha dezoito anos, com longos cabelos ruivos que lhe caíam sobre os ombros. Ela tinha doze, e estava bem apertada num vestido novo e rígido, com o corpete reluzente de granadas. Os dois eram da mesma altura, mas ela não fora capaz de olhá-lo nos olhos, nem de proferir as palavras simples que a septã lhe ensinara. Sor Ronnet. Dou-lhe as boas-vindas ao salão do senhor meu pai. É bom contemplar finalmente seu rosto.
- Por que está me seguindo? - perguntou ao garoto. - Disseram-lhe para me espionar? Pertence a Varys ou à rainha?
- Não. Nem a um nem a outro. A ninguém.
Brienne calculou-lhe a idade em dez anos, mas era péssima para avaliar a idade das crianças. Achava sempre que eram mais novas do que a idade real, talvez por sempre ter sido grande para a idade. Monstruosamente grande, costumava dizer a Septã Roelle, e masculinizada.
- Esta estrada é perigosa demais para um garoto sozinho.
- Para um escudeiro não é. Sou escudeiro dele. O escudeiro da Mão.
- De Lorde Tywin? - Brienne embainhou a espada.
- Não. Dessa Mão não. Da outra antes. O filho dele. Lutei com ele na batalha. Gritei “Meio-Homem! Meio-Homem!”.
O escudeiro do Duende. Brienne nem sequer soubera que ele tinha escudeiro. Tyrion Lannister não era nenhum cavaleiro. Talvez tivesse um criado ou dois para servi-lo, supunha, um pajem e um copeiro, alguém que o ajudasse a se vestir. Mas um escudeiro?
- Por que anda me seguindo? - quis saber. - O que quer?
- Encontrá-la - o garoto pôs-se em pé. - A senhora dele. Você anda à procura dela. Brella me disse. Ela é mulher dele. Brella não, a Senhora Sansa. Por isso pensei, se a encontrasse... - o rosto do garoto torceu-se numa súbita angústia. - Sou seu escudeiro - repetiu, enquanto a chuva lhe escorria pelo rosto mas ele me abandonou.  

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