quinta-feira, 3 de outubro de 2013

52 - DAENERYS


O céu era de um azul sem piedade, sem um fiapo de nuvem à vista. Os tijolos logo estarão assando ao sol, Dany pensou. Lá embaixo, nas areias, os lutadores sentirão o calor pelas solas de suas sandálias.
Jhiqui deslizou a túnica de seda pelos ombros da rainha, e Irri a ajudou a entrar na piscina de banho. A luz do sol que nascia brilhava na água, interrompida pelas sombras do caquizeiro.
- Mesmo que a arena deva abrir, Vossa Graça precisa ir até lá? - perguntou Missandei, enquanto lavava o cabelo de Dany.
- Metade de Meereen estará lá para me ver, coração gentil.
- Vossa Graça - falou Missandei - esta uma pede licença para dizer que metade de Meereen estará lá para ver homens sangrarem e morrerem.
Ela não está errada, a rainha sabia, mas não faz diferença.
Logo Dany estava tão limpa como sempre. Ficou em pé, espalhando a água suavemente. Gotas corriam por suas pernas e cobriam seus seios como pequenas pérolas. O sol se erguia no céu, e logo seu povo se reuniria. Ela preferia passar o dia na perfumada piscina, comendo frutas geladas de bandejas de prata e sonhando com uma casa com portas vermelhas, mas uma rainha pertence ao seu povo, não a si mesma.
Jhiqui trouxe uma toalha macia para secá-la.
- Khaleesi, que tokar quer vestir hoje? - perguntou Irri.
- O de seda amarela. - A rainha dos coelhos não podia ser vista sem suas orelhas de abano. A seda amarela era leve e fresca, e estaria fervendo lá embaixo, na arena. As areias vermelhas queimarão os pés daqueles prestes a morrer. - E, em cima dele, os longos véus vermelhos. - Os véus impediriam que o vento soprasse areia em sua boca. E o vermelho esconderá qualquer respingo de sangue.
Enquanto Jhiqui escovava os cabelos de Dany e Irri pintava as unhas da rainha, as aias conversavam alegremente sobre as disputas do dia. Missandei voltou.
- Vossa Graça. O rei a convida a se juntar a ele quando estiver vestida. E o Príncipe Quentyn veio com seus Homens Dornenses. Imploram por uma palavra, se for de seu agrado.
Pouca coisa neste dia pode ser do meu agrado.
- Outro dia.
Na base da Grande Pirâmide, Sor Barristan aguardava por eles ao lado de um palanquim aberto ornamentado, cercado por Bestas de Bronze. Sor Vovô, Dany pensou. Apesar de sua idade, ele parecia alto e bonito na armadura que ela lhe dera.
- Ficarei mais feliz se tiver guardas Imaculados por perto hoje, Vossa Graça - o velho cavaleiro disse enquanto Hizdahr cumprimentava o primo. - Metade destas Bestas de Bronze são libertos inexperientes. - E a outra metade são meereeneses de lealdade duvidosa, deixou sem dizer. Selmy desconfiava de todos os meereeneses, mesmo os cabeças-raspadas.
- E permanecerão inexperientes, a menos que os usemos.
- Uma máscara pode esconder muitas coisas, Vossa Graça. O homem por trás da máscara de coruja é o mesmo que foi seu guarda ontem e no dia anterior? Como podemos saber?
- Como Meereen vai confiar nas Bestas de Bronze se eu não confio? Há homens bons e corajosos atrás dessas máscaras. Ponho minha vida nas mãos deles. - Dany sorriu para o cavaleiro. - Você se preocupa demais, sor. Terei você ao meu lado, que outra proteção preciso?
- Sou um homem velho, Vossa Graça.
- Belwas, o Forte, estará comigo também.
- Como queira. - Sor Barristan baixou a voz. - Vossa Graça, libertamos a mulher Meris, como ordenou. Antes de partir, ela pediu para falar com você. Encontrei-me com ela em seu lugar. Ela afirma que o Príncipe Esfarrapado pretendia trazer os Soprados pelo Vento para a sua causa desde o início. Que ele a enviou para tratar com você secretamente, mas os dornenses os desmascararam e os traíram antes que ela pudesse fazer sua própria abordagem.
Traição da traição, a rainha pensou, cansada. Não há fim para isso?
- Em quanto disso acredita, sor?
- Pouco e ainda menos, Vossa Graça, mas essas foram as palavras dela.
- Eles virão para nosso lado, se for preciso?
- Ela diz que sim. Mas por um preço.
- Pague-o. - Meereen precisava de aço, não de ouro.
- O Príncipe Esfarrapado quer mais do que dinheiro, Vossa Graça. Meris diz que ele quer Pentos.
- Pentos? - Os olhos dela se estreitaram. - Como vou lhe dar Pentos? Está a meio mundo de distância.
- Ele poderia estar disposto a esperar, a mulher Meris sugeriu. Até que marchemos para Westeros.
E se eu nunca marchar para Westeros?
- Pentos pertence aos pentoshis. E o Magíster Illyrio está em Pentos. Foi ele quem arranjou meu casamento com Khal Drogo e me deu os ovos de dragão. Quem me enviou você, Belwas e Groleo. Devo muito e ainda mais a ele. Não pagarei essa dívida dando a cidade dele para algum mercenário. Não.
Sor Barristan inclinou a cabeça.
- Vossa Graça é sábia.
- Já viu algum dia mais auspicioso, meu amor? - Hizdahr zo Loraq comentou, quando ela se reuniu a ele. Ajudou Dany a subir no palanquim, onde dois tronos altos estavam lado a lado.
- Auspicioso para você, talvez. Menos para aqueles que devem morrer antes que o sol se ponha.
- Todos os homens devem morrer - disse Hizdahr - mas nem todos conseguem morrer em glória, com os aplausos da cidade soando em seus ouvidos. - Ergueu a mão para os soldados nas portas. - Abram.
A praça em frente à pirâmide era pavimentada com tijolos de muitas cores, e o calor subia deles em ondas cintilantes. As pessoas vinham de todos os lados. Alguns estavam em liteiras ou cadeirinhas, outros eram levados por burros, muitos estavam a pé. Nove em cada dez seguiam para oeste, pela ampla via pública pavimentada que levava à Arena Daznak. Quando viram sinal do palanquim saindo da pirâmide, aplausos vieram dos que estavam mais próximos e se espalharam pela praça. Que estranho, a rainha pensou. Estão me aplaudindo na mesma praça em que empalei cento e sessenta e três Grandes Mestres.
Um grande tambor liderava a procissão real, para abrir caminho pelas ruas. Entre cada batida, um arauto cabeça-raspada em uma camisa de discos de cobre polido gritava para a multidão se afastar. BUM.
- Estão vindo! - BUM. - Abram caminho! - BUM. - A rainha! - BUM. - O rei! -BUM.
Atrás do tambor marchavam Bestas de Bronze, em fileiras de quatro. Alguns levavam bastões, outros, clavas; todos vestiam saias plissadas, sandálias de couro e mantos de retalhos quadrados costurados de muitas cores, para combinar com os tijolos multicoloridos de Meereen. Suas máscaras brilhavam ao sol: javalis e touros, falcões e garças, leões, tigres e ursos, serpentes de línguas bifurcadas e hediondos basiliscos.
Belwas, o Forte, que não tinha nenhum amor por cavalos, andava na frente deles, com seu colete cravejado e sua barriga marrom, marcada por cicatrizes, balançando a cada passo. Irri e Jhiqui seguiam a cavalo, com Aggo e Rakharo, e depois Reznak em uma cadeirinha ornamentada com um toldo, para manter o sol afastado de sua cabeça. Sor Barristan Selmy cavalgava ao lado de Dany, sua armadura resplandecendo ao sol. Um longo manto saía de seus ombros, branco como osso. Em seu braço esquerdo estava um grande escudo branco. Um pouco atrás estava Quentyn Martell, o príncipe dornense, com seus dois companheiros.
A coluna arrastava-se lentamente pela comprida rua de tijolos. BUM.
- Estão vindo! - BUM. - Nossa rainha. Nosso rei. - BUM - Abram caminho!
Dany podia ouvir as aias discutindo atrás dela, debatendo sobre quem ganharia a disputa final do dia. Jhiqui preferia o gigantesco Goghor, que parecia mais um touro do que um homem, até com um anel de bronze no nariz. lrri insistia que o mangual de Belaquo Quebra-Ossos destruiria o gigante. Minhas aias são dothrakis, disse para si mesma. A morte cavalga com cada khalasar. No dia em que se casara com Khal Drogo, os arakhs brilhavam em seu banquete nupcial, e homens morriam enquanto outros bebiam e acasalavam. Vida e morte andavam de mãos dadas entre os senhores dos cavalos, e um respingo de sangue servia para abençoar um casamento. Seu novo casamento logo seria banhado em sangue. Que abençoado seria.
BUM, BUM, BUM, BUM, BUM, BUM, vieram as batidas de tambor, mais rápidas do que antes, repentinamente irritadas e impacientes. Sor Barristan desembainhou a espada quando a coluna fez uma parada repentina entre a pirâmide rosa e branca de Pahl e a verde e negra de Naqqan.
Dany se virou.
- Por que paramos?
Hizdahr se levantou.
- O caminho está bloqueado.
Um palanquim havia tombado no meio da rua. Um de seus carregadores havia caído nos tijolos, vencido pelo calor.
- Ajudem aquele homem. - Dany ordenou. - Tirem-no da rua antes que seja pisoteado, e deem água e comida para ele. Tem a aparência de quem não come há uma quinzena.
Sor Barristan olhava inquieto para a esquerda e para a direita. Rostos ghiscaris eram visíveis nos terraços, olhando para baixo com olhos frios e insensíveis.
- Vossa Graça, não gosto desta parada. Pode ser algum tipo de armadilha. Os Filhos da Harpia ...
- ... foram domados - declarou Hizdahr zo Loraq. - Por que iriam querer ferir minha rainha, quando ela me tomou para seu rei e consorte? Agora, ajudem aquele homem, como minha doce rainha ordenou. - Ele pegou a mão de Dany e sorriu.
As Bestas de Bronze fizeram como lhes foi dito. Dany observou-os trabalhar.
- Esses carregadores eram escravos antes da minha chegada. Eu os libertei. Mesmo assim, o palanquim não ficou mais leve.
- Verdade - disse Hizdahr - mas esses homens são pagos para carregar este peso, agora. Antes da sua vinda, o homem que caísse teria um capataz ao lado dele, tirando-lhe a pele das costas com um chicote. Em vez disso, está sendo ajudado.
Era verdade. Uma Besta de Bronze com máscara de javali oferecera um odre de água para o carregador.
- Suponho que devo ser grata pelas pequenas vitórias - a rainha falou.
- Um passo e depois o seguinte, e logo estaremos correndo. Juntos, faremos uma nova Meereen. - A rua finalmente estava liberada. - Vamos seguir?
O que podia fazer além de concordar? Um passo e depois o seguinte, mas para onde estou indo?
Nos portões da Arena de Daznak, dois guerreiros de bronze permaneciam em pose de combate mortal. Um empunhava uma espada, o outro, um machado; o escultor tinha representado os homens no ato de matar um ao outro, com a lâmina e o corpo deles formando um arco sobre a cabeça das pessoas que entravam na arena.
A arte mortal, pensou Dany.
Ela havia visto as arenas de luta muitas vezes de seu terraço. As pequenas salpicavam a face de Meereen como marcas de varíola; as maiores eram feridas purulentas, vermelhas e cruas. Mas nenhuma se comparava a esta. Belwas, o Forte, e Sor Barristan ficaram um de cada lado enquanto ela e o senhor seu marido passavam por baixo da arcada de bronze, para emergir no topo de uma grande bacia de tijolos cercada por fileiras descendentes de bancos, cada fila de uma cor.
Hizdahr zo Loraq levou-a para baixo, através do negro, púrpura, azul, verde, branco, amarelo e laranja, até o vermelho, onde os tijolos escarlate tinham a cor das areias abaixo. Ao redor deles, ambulantes vendiam linguiças de cachorro, cebolas assadas e filhotes não nascidos em um espeto, mas Dany não precisava daquilo. Hizdahr trouxera caixas com jarros de vinho gelado e água doce, além de figos, tâmaras, melões, romãs, nozes, pimentas e uma grande travessa de gafanhotos no mel. Belwas, o Forte, exclamou Gafanhotos! Pegou a travessa e começou a comê-los aos punhados.
- Estão muito saborosos - avisou Hizdahr. - Devia experimentar um pouco, meu amor. São passados em especiarias antes do mel, então são doces e picantes ao mesmo tempo.
- Isso explica o jeito que Belwas está suando - Dany falou. - Acho que vou me contentar com figos e tâmaras.
Do outro lado da arena, as Graças estavam sentadas com suas túnicas de muitas cores, ao redor da austera figura de Galazza Galare, a única entre elas a vestir o verde. Os Grandes Mestres de Meereen ocupavam os bancos vermelhos e laranja. As mulheres usavam véus, e os homens haviam penteado e laqueado seus cabelos em formatos de chifres, mãos e espigões. Todos os parentes de Hizdahr, da ancestral linhagem de Loraq, pareciam usar tokars de cor púrpura, índigo e lilás, enquanto os de Pahl vestiam listras rosa e brancas. Os enviados de Yunkai estavam todos de amarelo, e enchiam o camarote ao lado do rei, cada um deles com seus escravos e servos. Meereeneses de nascimento mais baixo lotavam as filas mais acima, mais distantes da carnificina. Os bancos de cor negra e púrpura, mais altos e mais afastados da areia, estavam cheios com libertos e outras pessoas do povo. Os mercenários haviam sido colocados ali também, Daenerys notou, com os capitães sentados entre os soldados comuns. Ela espiou o rosto marcado pelas intempéries de Ben Mulato, e o feroz e vermelho bigode e as longas tranças de Barbassangrenta.
O senhor seu marido se levantou e ergueu as mãos.
- Grandes Mestres! Minha rainha veio até aqui hoje para demonstrar o amor dela por vocês, seu povo. Por sua graça e com seu consentimento, darei para vocês, agora, sua arte mortal. Meereen! Deixem a Rainha Daenerys ouvir o amor de vocês!
Dez mil gargantas rugiram seus agradecimentos; então vinte mil; então todas. Não diziam seu nome, que poucos conseguiam pronunciar. Mãe! Gritavam, em vez disso; na velha língua morta de Ghis, a palavra era Mhysa! Batiam os pés, davam tapas na barriga e gritavam Mhysa, Mhysa, Mhysa, até que a arena inteira pareceu tremer. Dany deixou o som encobri-la. Não sou a mãe de vocês, poderia ter gritado de volta, sou a mãe de seus escravos, de cada garoto que morreu sobre estas areias enquanto vocês se empanturravam de gafanhotos no mel. Atrás dela, Reznak se inclinou para sussurrar em seu ouvido:
- Magnificência, ouça como eles a amam!
Não, ela sabia, eles amam sua arte mortal. Quando os aplausos começaram a diminuir, Dany se permitiu sentar. O camarote deles estava na sombra, mas sua cabeça latejava.
- Jhiqui - chamou - água doce, se puder. Minha garganta está muito seca.
- Khrazz terá a honra da primeira morte do dia - Hizdahr contou para ela. - Nunca houve lutador melhor.
- Belwas, o Forte, era melhor - insistiu Belwas, o Forte.
Khrazz era meereenês, de nascimento humilde; um homem alto com um tufo de cabelo duro vermelho e negro saindo do meio da cabeça. Seu inimigo era um lanceiro de pele de ébano das Ilhas do Verão, cujas estocadas mantiveram Khrazz afastado por um tempo, mas assim que ele deslizou para dentro da lança com sua espada curta só sobrou massacre. Depois que acabou, Khrazz cortou o coração do homem negro, ergueu-o sobre sua cabeça, vermelho e gotejante, e deu-lhe uma mordida.
- Khrazz acredita que o coração dos corajosos o deixará mais forte - comentou Hizdahr.
Jhiqui murmurou em aprovação. Certa vez, Dany comera o coração de um garanhão para dar força ao seu filho não nascido... mas aquilo não salvara Rhaego quando a maegi o assassinou em seu útero. Três traições você conhecerá. Ela foi a primeira, Jorah a segunda, Ben Mulato Plumm a terceira. As traições teriam acabado?
- Ah - falou Hizdahr, satisfeito. - Agora vem Gato Malhado. Veja como ele se move, minha rainha. Um poema em dois pés.
O inimigo que Hizdahr encontrara para o poema andante era tão alto quanto Goghor e tão largo quanto Belwas, mas lento. Estavam lutando a dois metros do camarote de Dany quando o Gato Malhado cortou os tendões do outro homem. Quando o lutador caiu de joelhos, o Gato colocou um pé em suas costas e uma mão em cima de sua cabeça e abriu sua garganta de orelha a orelha. As areias vermelhas beberam seu sangue, o vento levou suas últimas palavras. A multidão gritou em aprovação.
- Mau lutando, bom morrendo - disse Belwas, o Forte. - Belwas, o Forte, odeia quando gritam. - Acabara com todos os gafanhotos no mel. Deu um arroto e tomou um gole de vinho.
Qartenos pálidos, negros das Ilhas do Verão, dothrakis com a pele acobreada, tyroshinos com barbas azuis, homens ovelhas, jogos nhai, bravosis rabugentos, meios-homens de pele tigrada das florestas de Sothoros - dos confins do mundo, vieram morrer na Arena de Daznak.
- Este aí é muito promissor, meu doce - Hizdahr comentou, sobre um jovem liseno de longo cabelo loiro que se agitava com o vento ... mas seu inimigo agarrou um punhado desse cabelo, desequilibrou o rapaz e tirou suas vísceras. Na morte, ele parecia ainda mais jovem do que com uma espada na mão.
- Um garoto - disse Dany. - Era apenas um garoto.
- Dezesseis - Hizdahr insistiu. - Um homem feito, que livremente escolheu arriscar sua vida por ouro e glória. Nenhuma criança morre hoje em Daznak, como minha gentil rainha, em sua sabedoria, decretou.
Outra pequena vitória. Talvez eu não possa tornar meu povo bom, disse para si mesma, mas posso tentar fazê-lo um pouco menos mau. Daenerys teria proibido lutas entre mulheres, também, mas Barsena Cabelo Negro protestara que tinha tanto direito de arriscar a vida quanto qualquer homem. A rainha também desejara proibir as folias, combates cômicos nos quais aleijados, anões e anciãs lutavam uns contra os outros com clavas, tochas e martelos (quanto mais ineptos os lutadores, mais engraçada a folia), mas Hizdahr dissera que seu povo a amaria mais se risse com eles, e argumentou que, sem tais folias, os aleijados, anões e anciãs morreriam de fome. Então Dany cedera.
Havia sido costume sentenciar criminosos para as arenas; ela concordara em retomar aquela prática, mas apenas para determinados crimes.
- Assassinos e estupradores devem ser forçados a lutar, e todos aqueles que persistirem com a escravidão, mas não ladrões ou devedores.
Animais ainda eram permitidos, contudo. Dany viu um elefante dar cabo de uma matilha de seis lobos vermelhos. A seguir, um touro foi colocado para enfrentar um urso, em uma batalha sangrenta que deixou os dois animais dilacerados e moribundos.
- A carne não é desperdiçada - contou Hizdahr. - Os açougueiros usam as carcaças para fazer um saudável ensopado para os famintos. Qualquer homem que se apresentar no Portão do Destino ganha uma tigela.
- Uma boa lei - Dany dissera. Vocês têm tão poucas assim. - Temos que nos assegurar que essa tradição continue.
Depois das lutas dos animais, veio uma batalha simulada, entre seis homens a pé contra seis a cavalo, os primeiros armados com escudos e espadas longas, e os últimos com arakhs dothrakis. Os cavaleiros de mentira estavam vestidos com cotas de malha, enquanto os falsos dothrakis não usavam armaduras. Inicialmente, os homens a cavalo pareciam levar vantagem, cavalgando sobre dois de seus inimigos e cortando a orelha de um terceiro, mas então os cavaleiros sobreviventes começaram a atacar os cavalos e, um por um, os homens foram desmontados e mortos, para grande desgosto de Jhiqui.
- Isso não é um verdadeiro khalasar - comentou.
- Essas carcaças não são destinadas para seu saudável ensopado, espero - Dany falou, enquanto os mortos eram removidos.
- Os cavalos, sim - respondeu Hizdahr. - Os homens, não.
- Carne de cavalo e cebolas fazem você forte - falou Belwas.
A batalha foi seguida pela primeira folia do dia, dois anões que disputavam justas, apresentados por um dos senhores yunkaítas que Hizdahr convidara para os jogos. Um cavalgava um cão, outro uma porca. Suas armaduras de madeira estavam recém-pintadas, e um usava o veado do usurpador Robert Baratheon, o outro, o leão dourado da Casa Lannister. Aquilo era claramente por causa dela. Suas palhaçadas logo fizeram Belwas gargalhar, embora o sorriso de Dany fosse fraco e forçado. Quando o anão de vermelho caiu da sela e começou a perseguir sua porca pelas areias, enquanto o anão no cachorro galopava atrás dele cutucando seu traseiro com uma espada de madeira, ela disse:
- Isso é doce e tolo, mas ...
- Seja paciente, meu doce - falou Hizdahr. - Estão prestes a soltar os leões.
Daenerys lhe deu um olhar zombeteiro.
- Leões?
- Três deles. Os anões não esperam por isso.
Ela franziu o cenho.
- Os anões têm espada de madeira. Armadura de madeira. Como espera que lutem contra leões?
- Mal - falou Hizdahr - mas talvez nos surpreendam. É mais provável que gritem, corram e tentem sair escalando da arena. É o que faz disso uma folia.
Dany não estava satisfeita.
- Proíbo esse tipo de coisa.
- Gentil rainha. Você não quer desapontar seu povo.
- Você me jurou que os lutadores seriam homens feitos que haviam concordado livremente em arriscar a vida por ouro e honra. Estes anões não concordaram em lutar contra leões com espada de madeira. Pare isso. Agora.
O rei apertou os lábios. Por um segundo, Dany pensou ter visto um clarão de raiva naqueles olhos plácidos.
- Será como ordena. - Hizdahr acenou para o mestre da arena. - Nada de leões - disse, quando o homem trotou até ele, chicote na mão.
- Nenhum, Magnificência? Onde está a graça disso?
- Minha rainha falou. Os anões não serão feridos.
- A multidão não gostará disso.
- Então traga Barsena. Isso deve apaziguá-los.
- Vossa Veneração é quem sabe. - O mestre da arena agitou o chicote e gritou as ordens. Os anões foram retirados, porca, cão e tudo mais, enquanto os espectadores assobiavam sua desaprovação e atiravam pedras e frutas podres neles.
Um urro se ergueu quando Barsena Cabelo Negro caminhou pelas areias, nua, exceto por uma tanga e sandálias. Uma mulher alta e escura, com cerca de trinta anos, movia-se com a graça selvagem de uma pantera.
- Barsena é muito amada - Hizdarh falou, quando o som aumentou até encher a arena. - A mulher mais corajosa que já conheci.
Belwas, o Forte, disse:
- Lutar com garotas não é tão corajoso. Lutar contra Belwas, o Forte, seria corajoso.
- Hoje ela lutará contra um javali.
Sim, pensou Dany, porque você não encontrou uma mulher para enfrentá-la, não importa quão cheia fosse a bolsa de dinheiro.
- E não com uma espada de madeira, pelo que parece.
O javali era um animal imenso, com presas tão longas quanto o antebraço de um homem e olhos pequenos imersos em raiva. Dany se perguntava se o javali que matara Robert Baratheon teria parecido tão feroz. Uma criatura terrível, e uma morte terrível. Por um segundo, quase sentiu pena do Usurpador.
- Barsena é muito rápida - Reznak comentou. - Ela dançará com o javali, Magnificência, e o fatiará quando passar perto dela. Ele estará inundado de sangue antes de cair, você verá.
Começou do jeito que ele disse. O javali atacou, Barsena girou de lado, sua lâmina brilhando prateada no sol.
- Ela precisa de uma lança - Sor Barristan falou, quando Barsena desviou do segundo ataque do animal. - Isso não é jeito de enfrentar um javali. - Ele soava como o exigente e velho avô de alguém, como Daario sempre dizia.
A lâmina de Barsena já estava vermelha, mas o javali logo parou. Ele é mais esperto que um touro, Dany percebeu. Ele não atacará novamente. Barsena chegou à mesma conclusão. Gritando, ela se aproximou do javali, jogando a faca de uma mão para a outra. Quando o animal se afastou, ela xingou e cortou seu focinho, tentando provocá-lo ... e conseguiu. Desta vez a mulher saltou um instante atrasado, e a presa rasgou sua perna direita, do joelho até a virilha.
Um gemido saiu de trinta mil gargantas. Agarrando a perna rasgada, Barsena derrubou a faca e tentou fugir mancando, mas antes que andasse meio metro o javali estava sobre ela novamente. Dany virou o rosto.
- Isso foi corajoso o suficiente? - perguntou para Belwas, o Forte, quando um grito ecoou pela areia.
- Enfrentar porcos é corajoso, mas não é corajoso gritar tão alto. Machuca os ouvidos de Belwas, o Forte. - O eunuco esfregou sua barriga inchada, atravessada por velhas cicatrizes brancas. - Faz Belwas, o Forte, ficar doente da barriga, também.
O javali enterrou o focinho na barriga de Barsena e começou a arrancar suas entranhas. O cheiro era mais do que a rainha podia suportar. O calor, as moscas, os gritos da multidão ... Não posso respirar. Levantou o véu e deixou-o voar longe. Tirou o tokar também. As pérolas soaram levemente, umas contra as outras, enquanto ela desenrolava a seda.
- Khaleesi? - Irri perguntou. - O que está fazendo?
- Tirando minhas orelhas de abano. - Uma dúzia de homens com lanças de javali veio trotando pela areia, para afastar o animal do cadáver e levá-lo de volta ao cercado. O mestre da arena estava entre eles, um longo chicote farpado na mão. Enquanto retiravam o javali, a rainha se levantou. - Sor Barristan, pode me levar em segurança de volta ao meu jardim?
Hizdahr parecia confuso.
- Ainda há mais por vir. Uma folia com seis mulheres idosas, e três lutas. Belaquo e Goghor!
- Belaquo vencerá - Irri declarou. - Isso é sabido.
- Isso não é sabido - Jhiqui falou. - Belaquo morrerá.
- Um morrerá, ou o outro - disse Dany. - E o que viver vai morrer outro dia. Isto foi um erro.
- Belwas, o Forte, comeu gafanhotos demais. - Havia uma expressão enjoada no rosto amplo e marrom de Belwas. - Belwas, o Forte, precisa de leite.
Hizdahr ignorou o eunuco.
- Magnificência, o povo de Meereen veio celebrar nossa união. Ouviu-os aplaudindo você. Não jogue fora o amor deles.
- Eram minhas orelhas de abano que aplaudiam, não eu. Tire-me deste abatedouro, esposo. - Ela podia ouvir o ronco do javali, os gritos dos lanceiros, o estalar do chicote do mestre da arena.
- Doce senhora, não. Fique um pouco mais. Para a folia e uma última luta. Feche seus olhos, ninguém verá. Estarão assistindo Belaquo e Ghogor. Não é hora para ...
Uma sombra cruzou o rosto dele.
O tumulto e a gritaria morreram. Dez mil vozes silenciaram. Todos os olhos se voltaram para o céu. Um vento morno corou as bochechas de Dany, e sobre a batida de seu coração ela ouviu o som de asas. Os lanceiros trombavam uns nos outros, em busca de abrigo. O mestre da arena congelou onde estava. O javali foi fungando de volta para Barsena. Belwas, o Forte, deu um gemido, tropeçou em seu assento e caiu de joelhos.
Acima de todos eles, o dragão se virou, negro contra o sol. Suas escamas eram negras, seus olhos, chifres e chapas da coluna espinhal eram vermelho-sangue. Ainda que sempre tivesse sido o maior dos três, na natureza Drogon ficara ainda maior. Suas asas abertas tinham seis metros de ponta a ponta, negras como azeviche. Ele as bateu uma vez quando mergulhou sobre a areia, e o som era como o estalar de um trovão. O javali ergueu a cabeça, fungando ... e a chama o engoliu, fogo negro e vermelho. Dany sentiu a onda de calor a dez metros de distância. Os gritos do animal moribundo soavam quase humanos. Drogon aterrissou sobre a carcaça e enfiou as garras na carne defumada. Quando começou a comer, não fazia distinção entre Barsena e o javali.
- Oh, deuses - gemeu Reznak - ele a está comendo! - O senescal cobriu a boca.
Belwas, o Forte, estava vomitando ruidosamente. Um estranho olhar passou pelo rosto comprido e pálido de Hizdahr zo Loraq; parte medo, parte luxúria, parte arrebatamento. Ele lambeu os lábios. Dany podia ver os Pahl subindo os degraus, agarrando seus tokars e tropeçando nas franjas na pressa de se afastar. Outros os seguiam. Alguns corriam, empurrando um ao outro. A maioria ficou nas arquibancadas.
Um homem tomou para si a tarefa de bancar o herói.
Era um dos lanceiros enviados para levar o javali de volta ao cercado. Talvez estivesse bêbado, ou louco. Talvez amasse Barsena Cabelo Negro havia muito tempo, ou tivesse ouvido algum sussurro sobre a menina Hazzea. Talvez fosse apenas um homem comum que quisesse que bardos cantassem sobre ele. Avançou com a lança de javali nas mãos. A areia vermelha erguia-se embaixo de seus calcanhares, e gritos elevavam-se das arquibancadas. Drogon levantou a cabeça, sangue pingando dos dentes. O herói pulou nas costas do dragão e desceu a ponta de ferro da lança na base de seu longo pescoço escamado.
Dany e Drogon gritaram em uníssono.
O herói inclinou-se sobre a lança, usando seu peso para enterrar a ponta mais profundamente. Drogon arqueou-se para cima, com um silvo de dor. Sua cauda ia de um lado para o outro. Dany viu a cabeça do animal se erguer na extremidade do longo pescoço de serpente, viu as asas negras se abrirem. O matador de dragão se desequilibrou e caiu na areia. Estava tentando se levantar quando os dentes do dragão se fecharam com força ao redor de seu antebraço.
- Não - foi tudo o que o homem teve tempo de gritar. Drogon arrancou o braço do ombro e o atirou de lado como um cão arrancaria um rato de sua toca.
- Matem-no - Hizdahr zo Loraq gritou para os outros lanceiros. - Matem a besta!
Sor Barristan segurou-a com firmeza.
- Olhe para o outro lado, Vossa Graça.
- Deixe-me! - Dany escapou dele. O mundo parecia se mover lentamente quando ela pulou o parapeito. Quando aterrissou na arena, perdeu uma sandália. Correndo, podia sentir a areia entre seus dedos, quente e áspera. Sor Barristan gritava atrás dela. Belwas, o Forte, ainda estava vomitando. Ela correu mais rápido.
Os lanceiros estavam correndo também. Alguns avançavam em direção ao dragão, lança na mão. Outros fugiam, jogando suas armas enquanto escapavam. O herói estava tendo espasmos na areia, o sangue brilhante se derramando do pedaço arrancado em seu ombro. Sua lança continuava nas costas de Drogon, balançando quando o dragão batia as asas. Fumaça erguia-se da ferida. Quando as outras lanças se aproximaram, o dragão cuspiu fogo, banhando dois homens em chama negra. Sua cauda chicoteava de lado, e pegou o mestre da arena que se arrastava atrás dele, quebrando o homem em dois. Outro atacante tentava apunhalar seus olhos, até que o dragão o pegou entre suas mandíbulas e arrancou sua barriga. O meereeneses gritavam, xingavam, uivavam. Dany podia ouvir passos atrás dela.
- Drogon - gritou. - Drogon.
Ele virou a cabeça. Fumaça saía por entre seus dentes. Onde pingava no chão, seu sangue soltava fumaça também. Bateu as asas novamente,levantando uma asfixiante tempestade de areia escarlate. Dany tropeçou na quente nuvem vermelha, tossindo. Ele avançou.
- Não - foi tudo o que ela teve tempo de dizer. Não, não eu, você não me reconhece? Os dentes negros se fecharam a centímetros do rosto dela. Ele queria arrancar minha cabeça. Os olhos dela estavam cheios de areia. Tropeçou sobre o cadáver do mestre da arena e caiu de costas.
Drogon rugiu. O som encheu a arena. Um vento quente a engoliu. O longo pescoço escamado do dragão se esticou na direção dela. Quando sua boca se abriu, ela pôde ver pedaços de ossos quebrados e carne queimada entre seus dentes. Os olhos dele pareciam ferver. Estou olhando dentro do inferno, mas não ouso afastar o olhar. Nunca tivera tanta certeza de alguma coisa. Se eu correr dele, ele vai me queimar e me devorar. Em Westeros, os septões falavam sobre os sete infernos e os sete paraísos, mas os Sete Reinos e seus deuses estavam muito longe. Se morresse aqui, Dany se perguntava, o deus-cavalo dos dothrakis viria pela grama para reivindicá-la para seu khalasar estrelado e então ela poderia cavalgar pelas terras da noite ao lado de seu sol-e-estrelas? Ou os deuses zangados de Ghis enviariam suas harpias para apanhar sua alma e arrastá-la para o tormento? Drogon rugiu em seu rosto, seu hálito quente o suficiente para fazer bolhas na pele. À sua direita, Dany ouviu Barristan Selmy gritando:
- Aqui! Me ataque! Aqui! Eu!
Nos fossos vermelhos fumegantes dos olhos de Drogon, Dany viu seu próprio reflexo. Como ela parecia pequena, fraca, frágil e assustada. Não posso deixá-lo ver meu medo. Tateou pela areia, empurrando o cadáver do mestre da arena, e seus dedos roçaram no cabo do chicote. Tocá-lo a fez se sentir mais corajosa. O couro estava morno, vivo. Drogon rugiu novamente, o som tão alto que ela quase derrubou o chicote. Os dentes dele estalaram junto dela.
Dany bateu nele.
- Não - gritou, agitando o chicote com toda a força que tinha. O dragão lançou a cabeça para trás. - Não - ela gritou novamente. - NÃO! - As farpas arranharam o focinho do animal. Drogon se ergueu, suas asas cobrindo-a com sombras. Dany bateu com o chicote na barriga dele, uma vez após outra, até que seu braço começou a doer. O longo pescoço de serpente do dragão parecia um arco. Com um shiiiiiiiissssss, cuspiu fogo negro sobre ela. Dany correu embaixo das chamas, agitando o chicote e gritando. - Não, não, não. Para BAIXO! - Seu rugido de resposta estava cheio de medo e fúria, cheio de dor. Suas asas bateram uma vez, duas ...
... e se fecharam. O dragão deu um último silvo e deitou-se sobre a barriga. Sangue negro fluía da ferida feita pela lança, soltando fumaça onde pingava nas areias queimadas. Ele é fogo feito carne, ela pensou, e eu também.
Daenerys Targaryen curvou-se sobre as costas do dragão, pegou a lança e a arrancou. A ponta estava semi derretida, o ferro em brasa, incandescente. Jogou-a de lado. Drogon torceu-se embaixo dela, os músculos ondulando conforme reunia forças. O ar estava cheio de areia. Dany não podia ver, não podia respirar, não podia pensar. As asas negras estalaram como um trovão e, repentinamente, as areias escarlate estavam caindo sob ela.
Tonta, Dany fechou os olhos. Quando os abriu novamente, vislumbrou os meereeneses lá embaixo, através de uma névoa de lágrimas e poeira, espalhando-se pelos degraus e para fora, nas ruas.
O chicote ainda estava em sua mão. Ela o agitou contra o pescoço de Drogon e gritou:
- Mais alto! - Sua outra mão agarrava as escamas do animal, seus dedos lutando para se manter presos. As largas asas de Drogon batiam no ar. Dany podia sentir o calor dele entre suas coxas. Seu coração parecia estar prestes a explodir. Sim, pensou, sim, agora, agora, faça isso, faça isso, leve-me, leve-me, VOE! 

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