quinta-feira, 3 de outubro de 2013

53 - JON


Tormund Terror dos Gigantes não era um homem alto, mas o deuses haviam lhe dado um peito largo e uma barriga maciça. Mance Rayder o chamava de Tormund Soprador de Chifres, por causa do poder de seus pulmões, e costumava dizer que a risada de Tormund podia tirar a neve do topo das montanhas. Em sua ira, seus gritos faziam Jon se lembrar do trombetear de um mamute.
Naquele dia, Tormund gritou muitas vezes e bem alto. Rosnou, berrou, bateu o punho contra a mesa com tanta força que virou um jarro de água. Um corno de hidromel nunca estava longe de sua mão, então a saliva que espalhava enquanto fazia ameaças era doce como mel. Chamou Jon de covarde, mentiroso e vira-casaca, xingou-o de ajoelhador sodomizado de coração negro, ladrão e corvo carniceiro, acusou-o de querer enrabar o povo livre. Por duas vezes arremessou o corno que bebia na cabeça de Jon, mas apenas depois de esvaziá-lo. Tormund não era o tipo de homem que desperdiçava um bom hidromel. Jon deixou tudo atingi-lo. Em nenhum momento ergueu a própria voz ou respondeu ameaça com ameaça, mas tampouco lhe deu mais terras do que estava preparado para dar.
Finalmente, quando as sombras da tarde cresciam do lado de fora da tenda, Tormund Terror dos Gigantes - Alto-Falante, Soprador de Chifres e Quebrador de Gelo, Tormund Punho de Trovão, Esposo de Ursas, Rei-Hidromel de Solar Ruivo, Falador com os Deuses e Pai de Tropas - estendeu a mão.
- Feito, então, e que os deuses me perdoem. Há uma centena de mães que nunca me perdoarão, sei disso.
Jon apertou a mão que lhe era oferecida. As palavras de seu juramento soavam em sua cabeça. Sou a espada na escuridão. Sou o vigilante nas muralhas. Sou o fogo que queima contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que guarda o reino dos homens. E, para ele, um novo refrão: Sou o guarda que abriu o portão e deixou o inimigo passar por ele. Teria dado muito e ainda mais para saber se estava fazendo a coisa certa. Mas havia ido longe demais para voltar atrás.
- Feito e refeito - disse.
O aperto de mão de Tormund era de partir ossos. Isso não mudara nele. A barba era a mesma também, embora o rosto embaixo daquele cabelo branco emaranhado tivesse emagrecido consideravelmente, e profundas linhas marcassem suas bochechas rosadas.
- Mance devia ter matado você quando teve chance - disse, enquanto fazia o melhor possível para transformar a mão de Jon em uma papa de ossos. - Ouro por mingau de aveia, e meninos ... um preço cruel. O que aconteceu com o doce rapaz que conheci?
Fizeram dele o senhor comandante.
- Uma barganha justa deixa os dois lados infelizes, ouvi dizer. Três dias?
- Se eu viver tanto. Alguns dos meus vão cuspir em mim quando ouvirem esses termos. - Tormund soltou a mão de Jon. - Seus corvos vão reclamar também, se os conheço. E devo conhecê-los. Matei mais dos seus pederastas negros do que posso contar.
- Seria melhor se não mencionasse isso tão alto quando vier para o sul da Muralha.
- Har! - Tormund riu. Aquilo tampouco mudara; ele ainda ria tão facilmente quanto antes. - Sábias palavras. Não quero seus corvos me bicando até a morte. - Bateu nas costas de Jon. - Quando todo meu povo estiver seguro atrás da sua Muralha, vamos dividir um pouco de carne e hidromel. Até lá... - O selvagem tirou a braçadeira que usava no braço esquerdo e jogou-a para Jon, então fez o mesmo com a idêntica que estava no direito. - Seu primeiro pagamento. Ganhei isso de meu pai, e ele, do dele. Agora são suas, seu ladrão bastardo negro.
As braçadeiras eram de ouro antigo, sólidas e pesadas, gravadas com antigas runas dos Primeiros Homens. Tormund Terror dos Gigantes usava-as desde que Jon o conhecera; pareciam mais parte dele do que sua barba.
- Os bravosis vão derreter isso pelo ouro. É uma pena. Talvez você devesse ficar com elas.
- Não. Não quero que digam que Tormund Punhos de Trovão fez o povo livre dar seus tesouros enquanto manteve os dele. - Ele riu. - Mas vou ficar com o anel que uso no meu membro. Muito maior do que essas coisinhas. Em você serviria como colar.
Jon teve que rir.
- Você não muda.
- Oh, eu mudo. - O riso derreteu como neve no verão. - Não sou mais o homem que era em Solar Ruivo. Vi muitas mortes e coisas piores também. Meus filhos ... - O pesar torceu o rosto de Tormund. - Dormund foi abatido na batalha da Muralha, e ainda era meio garoto. Um dos cavaleiros do seu rei o matou, algum bastardo todo em aço cinza com mariposas no escudo. Vi o ataque, mas meu menino estava morto antes que o alcançasse. E Torwynd ... foi o frio que o reivindicou. Sempre adoentado, aquele ali. Uma noite, apenas se deitou e morreu. O pior foi que antes que soubéssemos que estava morto, ele se levantou pálido com aqueles olhos azuis. Eu mesmo tive que cuidar dele. Foi difícil, Jon. - Lágrimas brilharam em seus olhos. - Ele não era muito homem, verdade seja dita, mas tinha sido meu garotinho antes, e eu o amava.
Jon colocou a mão no ombro dele.
- Sinto muito.
- Por quê? Não foi sua culpa. Há sangue em suas mãos, sim, assim como nas minhas. Mas não o sangue dele. - Tormund sacudiu a cabeça. - Ainda tenho dois filhos fortes.
- Sua filha ... ?
- Munda. - Aquilo trouxe o sorriso de Tormund de volta. - Tomou aquele Ryk Lança Longa como marido, acredita? O garoto tem mais pau do que juízo, se você me perguntar, mas ele a trata bem o suficiente. Eu disse que, se alguma vez a machucasse, eu arrancaria seu membro fora e bateria nele com a coisa sangrando. - Deu outro tapa vigoroso em Jon. - É hora de você voltar. Se o mantivermos por mais tempo, vão pensar que devoramos você.
- Ao amanhecer, então. Três dias a partir de agora. Os garotos primeiro.
- Ouvi você nas primeiras dez vezes, corvo. Um homem poderia pensar que não há confiança entre nós. - Ele cuspiu. - Os garotos primeiro, sim. Os mamutes vão pelo caminho mais longo. Assegure-se que Atalaialeste espere por eles. Eu vou me assegurar de que não haja luta nem correria em seus malditos portões. Entrarão ordenados e bonitinhos, como patinhos em fila. E eu serei a pata mãe. Har! - Tormund levou Jon para fora da tenda.
Do lado de fora, o dia estava claro e sem nuvens. O sol voltara ao céu depois de uma quinzena de ausência e, ao sul, a Muralha erguia-se branco-azulada e brilhante. Havia um dito que Jon ouvira dos homens mais velhos no Castelo Negro: a Muralha é mais temperamental que o Louco Rei Aerys, diziam, ou algumas vezes, a Muralha é mais temperamental que uma mulher. Em dias nublados, parecia de pedra branca. Em noites sem lua, era negra como carvão. Durante tempestades de neve, parecia escavada na neve. Mas, em dias como esse, não podia ser confundida com nada mais do que gelo. Em dias como esse, a Muralha brilhava como o cristal de um septão, cada rachadura e fenda delineada pela luz do sol, enquanto arco-íris congelados dançavam e morriam em ondulações translúcidas. Em dias como esse, a Muralha era bela.
O filho mais velho de Tormund estava perto dos cavalos, conversando com Couros. Toregg, o Alto, era chamado entre o povo livre. Embora dificilmente tivesse mais do que alguns centímetros a mais que Couros, era quase trinta centímetros mais alto que seu pai. Hareth, o robusto garoto de Vila Toupeira chamado Cavalo, estava agachado perto do fogo, de costas para os outros dois. Ele e Couros eram os únicos homens que Jon trouxera consigo para a conferência; mais do que isso teria sido um sinal de medo, e vinte homens não teriam mais utilidade do que dois se Tormund tivesse sede de sangue. Fantasma era a única proteção que Jon precisava; o lobo gigante podia farejar seus inimigos, mesmo aqueles que escondiam sua inimizade atrás de sorrisos.
Mas Fantasma tinha partido. Jon tirou uma das luvas negras, colocou dois dedos na boca e deu um assobio.
- Fantasma! Comigo.
De cima veio o súbito som de asas. O corvo de Mormont voou do galho de um velho carvalho para pousar na sela de Jon. Grão, gritou. Grão, grão, grão.
- Você me seguiu também? - Jon tentou espantar a ave, mas acabou acariciando suas penas. O corvo levantou os olhos para ele. Snow, murmurou, balançando a cabeça intencionalmente. Então Fantasma apareceu entre duas árvores, com Val ao seu lado.
Parecem pertencer um ao outro. Val estava toda vestida de branco, também; calção de lã branca enfiado em botas altas de couro branco, um manto branco de pele de urso, preso ao ombro por um rosto esculpido em represeiro, túnica branca com fechos de ossos. Sua respiração era branca também ... mas os olhos eram azuis, a longa trança, da cor de mel escuro, as bochechas rosadas pelo frio. Fazia tempo desde que Jon Snow tivera uma visão tão adorável.
- Está tentando roubar meu lobo? - perguntou para ela.
- Por que não? Se cada mulher tivesse um lobo gigante, os homens seriam muito mais gentis. Mesmo os corvos.
- Har! - riu Tormund Terror dos Gigantes. - Não troque palavras com esta uma, Lorde Snow, ela é esperta demais para tipos como você e eu. Melhor roubá-la rapidamente, antes que Toregg acorde e pegue-a primeiro.
O que aquele idiota do Axell Florent dissera de Val? Uma garota em idade de se casar, não difícil de ser olhada. Bons quadris, bons seios, bem feita para parir crianças. Tudo verdade, mas a mulher selvagem era muito mais. Provara isso encontrando Tormund quando patrulheiros experientes da Muralha haviam falhado. Ela pode não ser uma princesa, mas daria uma esposa digna de qualquer senhor.
Mas aquela ponte havia sido queimada havia muito tempo, e o próprio Jon atirara a tocha.
- Toregg está disponível para ela - anunciou. - Eu fiz um voto.
- Ela não se importará. Se importará, garota?
Val acariciou a faca de osso comprida em seus quadris.
- Lorde Corvo pode me roubar em minha cama na noite que quiser. Uma vez castrado, manter os votos será muito mais fácil para ele.
- Har! - Tormund bufou de novo. - Ouviu isso, Toregg? Fique longe desta aí. Já tenho uma filha, não preciso de outra. - Sacudindo a cabeça, o chefe selvagem inclinou-se e entrou em sua tenda.
Enquanto Jon coçava Fantasma atrás da orelha, Toregg trouxe o cavalo de Val. Ela ainda cavalgava o garrano cinzento que Mully lhe dera no dia em que deixara a Muralha, uma coisa raquítica e desgrenhada, cega de um olho. Quando se virou em direção à Muralha, perguntou:
- Como vai o pequeno monstro?
- Duas vezes maior do que quando você o deixou, e três vezes mais barulhento. Quando quer teta, é possível ouvi-lo em Atalaialeste. - Jon montou seu próprio cavalo.
Val se inclinou para o lado dele.
- Então... eu trouxe Tormund para você, como disse que faria. E agora? Volto para minha antiga cela?
- Sua antiga cela está ocupada. A Rainha Selyse reivindicou a Torre do Rei para si. Você se lembra da Torre de Hardin?
- Aquela que parece prestes a desabar?
- Ela tem essa aparência há centenas de anos. Mandei preparar o piso superior para você, minha senhora. Terá mais espaço do que na Torre do Rei, embora não seja tão confortável. Ninguém chama aquele lugar de Palácio de Hardin.
- Eu sempre escolheria liberdade no lugar de conforto.
- Liberdade no castelo você pode ter, mas sinto dizer que deve permanecer cativa. Posso prometer que não será incomodada por visitantes indesejados, no entanto. Meus próprios homens guardam a Torre de Hardin, não os da rainha. E Wun Wun dorme no salão de entrada.
- Um gigante como protetor? Nem Dalla podia se gabar disso.
Os selvagens de Tormund os observaram passar, espiando das tendas e barracas construídas sob as árvores sem folhas. Para cada homem em idade de lutar, Jon viu três mulheres e muitas crianças, coisas magras, com bochechas chupadas e olhos famintos. Quando Mance Rayder liderou o povo livre até a Muralha, seus seguidores levavam grandes rebanhos de ovinos, caprinos e suínos com eles, mas agora os únicos animais que podiam ser vistos eram os mamutes. Se não fosse pela ferocidade dos gigantes, teriam sido mortos também, não duvidava. Havia muita carne nos ossos dos mamutes.
Jon viu sinais de doenças também. Aquilo o inquietou mais do que poderia dizer. Se o bando de Tormund estava faminto e doente, como estariam os milhares que seguiram Mãe Toupeira até Durolar? Logo Cotter Pyke deve alcançá-los. Se os ventos forem gentis, sua frota pode estar no caminho de volta a Atalaialeste agora, com a maior quantidade de povo livre que conseguiu enfiar a bordo.
- Como se saiu com Tormund? - perguntou Val.
- Pergunte-me daqui a um ano. A parte difícil ainda espera por mim. A parte em que convenço os meus a engolir esta refeição que preparei para eles. Nenhum deles gostará do sabor, temo.
- Deixe-me ajudar.
- Você ajudou. Trouxe-me Tormund.
- Posso fazer mais.
Por que não? Pensou Jon. Estão todos convencidos de que ela é uma princesa. Val olhava os arredores e cavalgava como se tivesse nascido no lombo de um cavalo. Uma princesa guerreira, ele decidiu, não uma criatura graciosa que se senta em uma torre, escovando os cabelos e esperando que algum cavaleiro a resgate.
- Preciso informar a rainha sobre este acordo - falou. - Você será bem-vinda se quiser vir comigo encontrá-la e achar que é capaz de se ajoelhar. - Não queria ofender Sua Graça antes dele mesmo abrir a boca.
- Posso rir quando me ajoelhar?
- Não. Isto não é um jogo. Um rio de sangue corre entre nossos povos, antigo, profundo e vermelho. Stannis Baratheon é um dos poucos a admitir selvagens no reino. Preciso do apoio da rainha dele para o que fiz.
O sorriso brincalhão de Val morreu.
- Tem minha palavra, Lorde Snow. Serei uma princesa selvagem adequada para sua rainha.
Ela não é minha rainha, Jon poderia ter dito. Verdade seja dita, o dia da partida dela parece levar uma eternidade para chegar. E, se os deuses forem bons, ela levará Melisandre consigo.
Cavalgaram o resto do percurso em silêncio, com Fantasma galopando em seus calcanhares. O corvo de Mormont os seguiu até o portão, então voou para cima, enquanto o restante deles desmontava. Cavalo foi na frente com um ferro em brasa para iluminar o caminho pelo túnel congelado.
Uma pequena multidão de irmãos negros esperava no portão quando Jon e seus companheiros emergiram ao sul da Muralha. Ulmer da Mata de Rei estava entre eles, e foi o velho arqueiro que veio adiante para falar pelos demais.
- Se for do agrado do meu senhor, os rapazes querem saber. Será paz, 'nhor? Ou sangue e ferro?
- Paz - Jon Snow respondeu. - Daqui a três dias, Tormund Terror dos Gigantes levará seu povo pela Muralha. Como amigos, não inimigos. Alguns podem até mesmo engrossar nossas fileiras, como irmãos. Vai depender de nós fazê-los sentir-se bem-vindos. Agora, de volta aos seus deveres. - Jon entregou as rédeas de seu cavalo para Cetim. - Preciso ver a Rainha Selyse. - Sua Graça tomaria como desfeita se não fosse vê-la imediatamente. - Depois, tenho cartas para escrever. Leve pergaminho, penas e um frasco de tinta de meistre para meus aposentos. E então reúna Marsh, Yarwyck, Septão Cellador e Clydas. - Cellador estaria meio bêbado, e Clydas era um substituto pobre para um meistre de verdade, mas era o que ele tinha. Até que Sam voltasse. - Os nortenhos também. Flint e Norrey. Couros, você deve estar presente também.
- Hobb está assando tortas de cebola - disse Cetim. - Devo pedir que todos eles se juntem a você para a ceia?
Jon considerou.
- Não. Peça que me encontrem no topo da Muralha ao pôr do sol. - Virou-se para Val. - Minha senhora. Venha comigo, se for de seu agrado.
- O corvo ordena, a cativa deve obedecer. - Seu tom era brincalhão. - Essa rainha de vocês deve ser feroz, se as pernas de homens crescidos tremem quando a encontram. Devo usar cota de malha em vez de lã e peles? Estas roupas foram dadas para mim por Dalla, e não gostaria de manchas de sangue sobre elas.
- Se palavras derramassem sangue, você teria motivo de temor. Creio que suas roupas estão salvas, minha senhora.
Foram em direção à Torre do Rei, por caminhos recém-escavados entre montes de neve suja.
- Ouvi dizer que sua rainha tem uma grande barba escura.
Jon sabia que não devia sorrir, mas sorriu.
- Apenas um bigode. Muito ralo. Dá para contar os fios.
- Que decepção.
Apesar de toda a conversa de querer ser a dona de seu castelo, Selyse Baratheon não parecia ter muita pressa de abandonar os confortos de Castelo Negro pelas sombras de Fortenoite. Mantinha guardas, é claro; quatro homens postados na porta, dois do lado de fora, nos degraus, dois do lado de dentro, perto do braseiro. Comandando todos eles estava Sor Patrek da Montanha do Rei, vestido com sua roupa de cavaleiro branca, azul e prata, seu manto coberto de estrelas de cinco pontas. Quando foi apresentado a Val, o cavaleiro apoiou-se em um joelho para beijar a luva da moça.
- É mais encantadora do que disseram, princesa - declarou. - A rainha me falou muito e ainda mais sobre sua beleza.
- Que estranho, ela nunca me viu. - Deu um tapinha na cabeça de Sor Patrek. - Em pé agora, sor ajoelhador. Em pé, em pé. - Parecia estar falando com um cão.
Jon fez o que pôde para não rir. Com o rosto impassível, disse ao cavaleiro que requeriam uma audiência com a rainha. Sor Patrek enviou um dos homens em armas degraus acima, para perguntar se Sua Graça poderia recebê-los.
- Mas o lobo fica aqui - Sor Patrek insistiu.
Jon esperava aquilo. O lobo gigante deixava a Rainha Selyse ansiosa, quase tanto quanto Wun Weg Wun Dar Wun.
- Fantasma, fique.
Encontraram Sua Graça bordando ao lado do fogo, enquanto o bobo dançava uma música que só ele podia ouvir, os guizos chocalhando no chapéu de pontas.
- O corvo, o corvo - Cara-Malhada gritou quando viu Jon. - Sob o mar, os corvos são brancos como a neve, eu sei, eu sei, oh, oh, oh. - A Princesa Shireen estava enroscada em um banco sob a janela, com o capuz erguido para cobrir o escamagris que desfigurara seu rosto.
Não havia sinal da Senhora Melisandre. Jon estava grato por aquilo. Cedo ou tarde teria que encarar a sacerdotisa vermelha, mas preferia que não fosse na presença da rainha.
- Vossa Graça. - Ajoelhou-se. Val fez o mesmo.
A Rainha Selyse deixou o bordado de lado.
- Podem se levantar.
- Se for do agrado de Vossa Graça, posso lhe apresentar a Senhora Val? Sua irmã, Dalla, era ...
- ... mãe daquele bebê chorão que nos mantém acordados à noite. Sei quem ela é, Lorde Snow. - A rainha fungou. - Tem sorte que ela voltou antes do rei, meu marido, ou isso teria acabado muito mal para você. Muito mal mesmo.
- Você é a princesa selvagem? - Shireen perguntou para Val.
- Alguns me chamam assim - disse Val. - Minha irmã era esposa de Mance Rayder, o Rei-para-lá-da-Muralha. Ela morreu dando à luz o filho dele.
- Também sou uma princesa - Shireen anunciou - mas nunca tive uma irmã. Tive um primo, certa vez, mas ele foi embora. Era só um bastardo, mas eu gostava dele.
- Honestamente, Shireen - sua mãe falou. - Tenho certeza de que o senhor comandante não veio até aqui para ouvir sobre os filhos ilegítimos de Robert. Cara-Malhada, seja um bom bobo e acompanhe a princesa até seu quarto.
Os guizos no chapéu dele tocaram.
- Vamos, vamos - o bobo cantou. - Venha comigo para o fundo do mar, vamos, vamos, vamos. - Pegou a princesa pela mão e a levou para fora da sala, pulando.
Jon falou.
- Vossa Graça, o líder do povo livre concordou com meus termos.
A Rainha Selyse deu o mais ínfimo dos acenos.
- Sempre foi desejo do senhor meu marido conceder refúgio a esses povos selvagens. Desde que mantenham a paz do rei e as leis do rei, são bem-vindos ao nosso reino. - Apertou os lábios. - Ouvi dizer que há mais gigantes com eles.
Val respondeu.
- Quase duzentos, Vossa Graça. E mais de oitenta mamutes.
A rainha estremeceu.
- Criaturas terríveis. - Jon não sabia dizer se ela falava dos mamutes ou dos gigantes. - Embora tais bestas possam ser úteis ao senhor meu marido em suas batalhas.
- Podem ser, Vossa Graça - Jon falou - mas os mamutes são grandes demais para passar pelos nossos portões.
- O portão não pode ser alargado?
- Isso ... isso seria imprudente, acredito.
Selyse fungou.
- Se é o que diz. Sem dúvida você conhece essas coisas. Onde pretende colocar esses selvagens? Certamente Vila Toupeira não é grande o suficiente para conter... quantos são?
- Quatro mil, Vossa Graça. Eles ajudarão a guarnecer nossos castelos abandonados, a fim de defender a Muralha.
- Eu tinha entendido que esses castelos estavam em ruínas. Lugares lúgubres, sombrios e frios, pouco mais do que montes de escombros. Em Atalaialeste, ouvimos falar de ratos e aranhas.
O frio já deve ter matado as aranhas, Jon pensou, e os ratos podem ser uma fonte importante de carne no inverno.
- É tudo verdade, Vossa Graça ... mas mesmo ruínas oferecem algum abrigo. E a Muralha ficará entre eles e os Outros.
- Vejo que considerou tudo isso cuidadosamente, Lorde Snow. Estou certa de que o Rei Stannis ficará satisfeito quando retornar triunfante de sua batalha.
Partindo do princípio de que voltará.
- É claro - a rainha continuou - os selvagens primeiro devem reconhecer Stannis como seu rei e R'hllor como seu deus.
E aqui estamos nós, cara a cara com a passagem estreita.
- Vossa Graça, me perdoe. Esses não foram os termos com os quais concordamos.
O rosto da rainha endureceu.
- Um descuido grave. - Todo traço de calor desapareceu imediatamente da voz dela.
- O povo livre não se ajoelha - Val falou para ela.
- Então devem ser ajoelhados - a rainha declarou.
- Faça isso, Vossa Graça, e eles se erguerão novamente na primeira oportunidade - Val prometeu. - E se erguerão com lâminas nas mãos.
Os lábios da rainha se apertaram, e seu queixo tremeu ligeiramente.
- Você é insolente. Imagino que é isso que se deva esperar de uma selvagem. Devemos encontrar um marido que possa lhe ensinar cortesia. - A rainha voltou seu olhar penetrante para Jon. - Não aprovo isso, senhor comandante. Nem meu marido aprovará. Não posso impedi-lo de abrir seus portões, como ambos sabemos bem, mas prometo que responderá por isso quando o rei retornar da batalha. Talvez queira reconsiderar.
- Vossa Graça - Jon se ajoelhou novamente. Dessa vez, Val não se juntou a ele. - Sinto se minhas atitudes a desagradaram. Fiz como achei melhor. Temos sua permissão para sair?
- Têm. Imediatamente.
Uma vez do lado de fora e bem distante dos homens da rainha, Val deu vazão à sua ira.
- Você mentiu sobre a barba dela. Aquela uma tem mais pelos na cara do que eu tenho entre as pernas. E a filha ... o rosto dela ...
- Escamagris.
- A morte cinza é como chamamos isso.
- Nem sempre é mortal em crianças.
- Ao norte da Muralha é. Cicuta é uma cura certa, mas um travesseiro ou uma lâmina também servem. Se eu tivesse dado à luz aquela pobre criança, teria lhe dado o presente da misericórdia há muito tempo.
Aquela era uma Val que Jon nunca vira antes.
- A Princesa Shireen é a única filha da rainha.
- Uma pena para ambas. A criança não está limpa.
- Se Stannis vencer sua guerra, Shireen será a herdeira do Trono de Ferro.
- Então, uma pena para seus Sete Reinos.
- Os meistres dizem que o escamagris não é...
- Os meistres podem acreditar no que quiserem. Pergunte para uma feiticeira da floresta se quer saber a verdade. A morte cinza dorme, apenas para despertar novamente. A criança não está limpa!
- Ela parece uma garota doce. Você não pode saber...
- Posso. Você não sabe nada, Jon Snow. - Val segurou o braço dele. - Quero o monstro fora de lá. Ele e suas amas de leite. Você não pode deixá-lo na mesma torre que a menina morta.
Jon tirou a mão dela.
- Ela não está morta.
- Está. A mãe dela não consegue ver. Nem você, pelo que parece. Mesmo assim a morte está ali. - Afastou-se dele, parou e virou-se novamente. - Trouxe Tormund Terror dos Gigantes para você. Traga-me meu monstro.
- Se eu puder, trarei.
- Você trará. Tem uma dívida comigo, Jon Snow.
Jon observou-a ir embora. Ela está errada. Tem que estar errada. Escamagris não é tão mortal quanto afirma, não em crianças.
Fantasma se fora novamente. O sol estava baixo no oeste. Uma taça de vinho quente com especiarias me cairia bem agora. Duas taças cairiam melhor ainda. Mas aquilo teria que esperar. Tinha inimigos para enfrentar. Inimigos da pior espécie: irmãos.
Encontrou Couros esperando por ele na gaiola de manivela. Os dois subiram juntos. Quanto mais alto subiam, mais forte era o vento. A quinze metros de altura, a pesada gaiola começou a balançar com cada rajada. De tempos em tempos, raspava contra a Muralha, criando pequenas chuvas cristalinas de gelo que brilhavam na luz do sol enquanto caíam. Erguiam-se acima da torre mais alta do castelo. A cento e vinte metros, o vento tinha dentes e rasgava seu manto negro, que batia ruidosamente nas barras de ferro. A duzentos metros, o vento o atravessava. A Muralha é minha, Jon lembrou para si mesmo enquanto os homens prendiam a gaiola, pelo menos por mais dois dias.
Jon pulou no gelo, agradeceu aos homens na manivela e acenou com a cabeça para os lanceiros de sentinela. Ambos usavam capuzes de lã sobre a cabeça, então não dava para ver seus rostos, mas ele reconheceu Ty pela corda emaranhada de cabelos negros oleosos que caía em suas costas, e Owen pelas linguiças que recheavam a bainha em sua cintura. Seria capaz de reconhecê-los de qualquer maneira, apenas pelo jeito que ficavam parados. Um bom senhor deve conhecer seus homens, seu pai dissera uma vez para ele e Robb, em Winterfell.
Jon foi até a beirada da Muralha e olhou para o campo desolado onde as tropas de Mance Rayder haviam morrido. Perguntava-se onde Mance estaria agora. Ele a encontrou, irmãzinha? Ou você foi apenas um truque que ele usou para que eu o libertasse?
Fazia muito tempo desde a última vez que vira Arya. Qual seria a aparência dela agora? Ele a reconheceria? Arya Sob os Pés. Seu rosto estava sempre sujo. Ainda teria a pequena espada que ele pedira para Mikken forjar para ela? Espete neles a ponta aguçada, dissera para ela. Prudente para a noite de seu casamento, se metade do que ouvira sobre Ramsay Snow fosse verdade. Traga-a para casa, Mance. Salvei seu filho de Melisandre e agora estou prestes a salvar quatro mil de seu povo livre. Você me deve esta única garotinha.
Na floresta assombrada, ao norte, as sombras da tarde penetravam nas árvores. O céu ocidental era uma explosão de vermelho, mas, a leste, as primeiras estrelas já espreitavam. Jon Snow flexionou os dedos da mão da espada, lembrando-se de tudo o que perdera. Sam, seu doce e tolo gordo, você me pregou uma peça cruel quando me fez senhor comandante. Um senhor comandante não tem amigos.
- Lorde Snow? - falou Couros. - A gaiola está subindo.
- Eu escutei. - Jon se afastou da beirada.
Os primeiros a chegar foram os chefes dos clãs Flint e Norrey, vestidos em peles e ferro. O Norrey parecia uma raposa velha; enrugado e de constituição leve, mas com olhos astutos e ágeis. Torghen Flint era meia cabeça mais baixo, mas pesava duas vezes mais; um homem rude e corpulento, com mãos nodosas tão grandes quanto presuntos, apoiado em uma bengala de espinheiro-negro enquanto mancava através do gelo. Bowen Marsh veio em seguida, empacotado em uma pele de urso. Depois dele, Othell Yarwyck. E, finalmente, o Septão Cellador, meio embriagado.
- Caminhem comigo - Jon falou para eles. Andaram para oeste pela Muralha, por caminhos cobertos de cascalho, em direção ao pôr do sol. Quando estavam a cinquenta metros da área mais aquecida, disse: - Sabem por que os convoquei. Daqui a três dias, nossos portões serão abertos para que Tormund e seu povo atravessem a Muralha. Há muito o que fazer para nos prepararmos para isso.
O silêncio saudou seu pronunciamento. Então, Othell Yarwyck falou:
- Senhor Comandante, há milhares de...
- ... selvagens esqueléticos, exaustos, famintos e longe de casa. - Jon apontou para as luzes das fogueiras no acampamento deles. - Ali estão eles. Quatro mil, Tormund afirma.
- Três mil, eu diria, pelas fogueiras. - Bowen Marsh vivia para contas e medidas. - Mais do que duas vezes este número em Durolar, com a feiticeira da floresta, pelo que sabemos. E Sor Denys escreve sobre um grande acampamento nas montanhas além da Torre Sombria.
Jon não podia negar aquilo.
- Tormund diz que o Chorão pretende atacar a Ponte das Caveiras novamente.
A Velha Romã tocou sua cicatriz. Ele a conseguira defendendo a Ponte das Caveiras na última vez que o Chorão tentara abrir caminho pela Garganta.
- Certamente o senhor comandante não pretende permitir isso ... que aquele demônio atravesse também?
- Não fico contente com isso. - Jon não esquecera as cabeças que o Chorão deixara para ele, com buracos sangrentos no lugar dos olhos. Jack Negro Bulwer, Hal Peludo, Garth Pena-Cinza. Não posso vingá-los, mas não esquecerei seus nomes. - Mas, sim, meu senhor, ele também. Não podemos escolher entre o povo livre, dizendo que este pode passar e aquele, não. Paz significa paz para todos.
O Norrey pigarreou e cuspiu.
- Melhor fazer paz com lobos e corvos carniceiros.
- É pacífico no meu calabouço - resmungou o Velho Flint. - Dê o Chorão para mim.
- Quantos patrulheiros o Chorão matou? - perguntou Othell Yarwyck. - Quantas mulheres ele estuprou, matou ou roubou?
- Três da minha própria estirpe - falou o Velho Flint. - E cegou as garotas que não levou.
- Quando um homem toma o negro, seus crimes são perdoados - Jon recordou-lhes. - Se queremos o povo livre lutando ao nosso lado, devemos perdoar os crimes passados como fazemos com nossos próprios erros.
- O Chorão não dirá as palavras - insistiu Yarwyck. - Ele não usará o manto. Nem os outros saqueadores confiam nele.
- Você não precisa confiar em um homem para usá-lo. - De outro modo, como eu faria uso de todos vocês? - Precisamos do Chorão e de outros como ele. Quem conhece a floresta melhor do que um selvagem? Quem conhece nossos inimigos melhor do que um homem que lutou contra eles?
- Tudo o que o Chorão sabe é estuprar e matar - falou Yarwyck.
- Assim que passarem a Muralha, os selvagens terão três vezes nosso número - comentou Bowen Marsh. - E isso é só o grupo de Tormund. Some a isso os homens do Chorão e os que estão em Durolar e eles terão força suficiente para acabar com a Patrulha em uma única noite.
- Números sozinhos não vencem uma guerra. Você não os viu. Metade deles está morrendo em pé.
- Preferia que estivessem mortos no chão - disse Yarwyck. - Se for do agrado de meu senhor.
- Não é do meu agrado. - A voz de Jon era fria como o vento que agitava seus mantos. - Há crianças naquele acampamento. Centenas delas, milhares. Mulheres também.
- Esposas de lança.
- Algumas. Juntamente com mães, avós, viúvas e donzelas ... você condenaria todas elas à morte, meu senhor?
- Irmãos não devem brigar - falou o Septão Cellador. - Vamos nos ajoelhar e orar para que a Velha ilumine nosso caminho para a sabedoria.
- Lorde Snow - disse O Norrey - onde você pretende colocar esses seus selvagens? Não nas minhas terras, espero.
- Sim - declarou o Velho Flint - Se quer deixá-los na Dádiva, é problema seu, mas assegure-se de que não vão ficar vagando por aí, ou mandarei a cabeça deles para você. O inverno está próximo e não quero mais bocas para alimentar.
- Os selvagens ficarão na Muralha - Jon lhes assegurou. - A maioria será alojada em um dos nossos castelos abandonados. - A Patrulha tinha agora guarnições em Marcagelo, Monte Longo, Solar das Trevas, Guardagris e Lago Profundo, todos com menos homens do que o necessário, e dez castelos ainda permaneciam vazios e abandonados. - Homens com esposas e crianças, todas as meninas órfãs e qualquer menino órfão com menos de dez anos, mulheres velhas, mães viúvas, qualquer mulher que não se importe de lutar. As esposas de lança serão enviadas para Solar das Trevas, para se juntar às suas irmãs, homens sozinhos para os outros fortes que reabriremos. Os que tomarem o negro ficarão aqui, ou serão enviados para Atalaialeste ou Torre Sombria. Tormund tomará Escudo de Carvalho como sua sede, para que possamos tê-lo por perto.
Bowen Marsh suspirou.
- Se não nos matarem com suas espadas, farão isso com suas bocas. Como o senhor comandante pretende alimentar Tormund e seus milhares?
Jon havia antecipado essa questão.
- Por Atalaialeste. Traremos comida de navio, tanta quanto for necessário. Da região do Tridente e de Ponta Tempestade, do Vale de Arryn, de Dorne e da Campina, do outro lado do mar estreito, das Cidades Livres.
- E essa comida será paga com ... como, se posso perguntar?
Com ouro, do Banco de Ferro de Bravos, Jon poderia ter respondido. Em vez disso, falou:
- Concordei que o povo livre ficasse com suas peles e couros. Vão precisar deles para aquecê-los quando o inverno chegar. Todas as demais riquezas devem ser entregues. Ouro e prata, âmbar, pedras preciosas, gravuras, qualquer coisa de valor. Levaremos tudo de navio pelo mar estreito para ser vendido nas Cidades Livres.
- Toda a riqueza dos selvagens - disse O Norrey. - Isso deve dar para comprar um alqueire de milho. Dois alqueires, talvez.
- Senhor Comandante, por que não exigir que os selvagens entreguem suas armas também? - perguntou Clydas.
Couros riu daquilo.
- Querem que o povo livre lute ao lado de vocês contra o inimigo comum. Como farão isso sem armas? Devemos jogar bolas de neve nas criaturas? Ou vocês nos darão bastões para cutucá-los?
As armas que a maioria dos selvagens carrega são pouco mais que bastões, pensou Jon. Clavas de madeira, machados de pedra, marretas, lanças com ponta endurecida no fogo, facas de ossos, pedra e vidro de dragão, escudos de vime, armaduras de ossos, couro fervido. Os thenns trabalhavam com bronze, e saqueadores como o Chorão levavam aço e espadas de ferro roubados de cadáveres ... mas mesmo essas eram antigas, amassadas pelo uso contínuo e manchadas de ferrugem.
- Tormund Terror dos Gigantes nunca desarmará seu povo voluntariamente - Jon respondeu. - Ele não é o Chorão, mas tampouco é covarde. Se eu tivesse pedido isso para ele, teríamos terminado em sangue.
O Norrey passou os dedos pela barba.
- Você pode colocar os selvagens nesses castelos em ruínas, Lorde Snow, mas como fará que fiquem lá? O que os impedirá de ir para o sul, para terras mais quentes e mais agradáveis?
- Nossas terras - falou o Velho Flint.
- Tormund me deu sua palavra. Ele servirá conosco até a primavera. O Chorão e os outros capitães terão que prometer a mesma coisa, ou não os deixaremos passar.
O Velho Flint abanou a cabeça.
- Eles nos trairão.
- A palavra do Chorão não vale nada - afirmou Othel Yarwyck.
- São bárbaros sem deuses - falou o Septão Cellador. - Mesmo no Sul, a perfídia dos selvagens é renomada.
Couros cruzou os braços sobre o peito.
- Aquela batalha lá embaixo? Eu estava do outro lado, vocês se lembram? Agora uso o negro de vocês e treino seus rapazes para matar. Alguns podem me chamar de vira-casaca. Pode ser... mas não sou mais bárbaro do que vocês, corvos. Temos deuses também. Os mesmos deuses que veneram em Winterfell.
- Os deuses do Norte, desde antes que esta Muralha fosse erguida - falou Jon. - Foi por esses deuses que Tormund jurou. Ele manterá sua palavra. Eu o conheço, como conhecia Mance Rayder. Marchei com eles por um tempo, como devem se lembrar.
- Eu não esqueci - disse o Senhor Intendente.
Não, pensou Jon, não achei que tivesse.
- Mance Rayder fez um voto também - Marsh continuou. - Jurou não usar coroa, não tomar esposa, não gerar filhos. Depois virou a casaca, fez todas essas coisas e liderou uma tropa assustadora contra o reino. São os remanescentes dessa tropa que esperam para lá da Muralha.
- Remanescentes quebrados.
- Uma espada quebrada pode ser forjada novamente. Uma espada quebrada ainda pode matar.
- O povo livre não tem leis nem senhores - Jon falou - mas amam suas crianças. Você admitiria isso ao menos?
- Não são suas crianças que nos preocupam. Tememos os pais, não os filhos.
- E eu também temo. Por isso insisti em mantermos reféns. - Não sou o tolo crente pelo qual me toma ... nem sou meio-selvagem, não importa no que você acredite. - Cem garotos com idade entre oito e dezesseis. Um filho de cada um de seus chefes e capitães, o restante escolhido por grupo. Esses rapazes servirão como pajens e escudeiros, livrando nossos próprios homens desses deveres. Alguns deles podem escolher tomar o negro algum dia. Coisas estranhas acontecem. Os demais ficarão como garantia da lealdade dos pais.
Os nortenhos olharam um para o outro.
- Reféns - ponderou O Norrey. - Tormund concordou com isso?
Era isso, ou ver seu povo morrer.
- Meu preço de sangue, ele chamou - falou Jon Snow - mas pagará.
- Sim, e por que não? - O Velho Flint bateu sua bengala contra o gelo. - Protegidos, nós sempre os chamávamos, quando Winterfell exigia rapazes de nós, mas eram reféns, e nada pior que isso.
- Nada, exceto para aqueles cujos pais desagradavam os Reis do Inverno - falou O Norrey. - Esses voltavam para casa uma cabeça mais curtos. Então me diga, rapaz ... se esses seus amigos selvagens se mostrarem falsos, você terá estômago para fazer o que precisa ser feito?
Pergunte a Janos Slynt.
- Tormund Terror dos Gigantes me conhece o suficiente para não me testar. Posso ser um rapaz inexperiente aos seus olhos, Lorde Norrey, mas ainda sou um filho de Eddard Stark.
Mas nem mesmo aquilo agradou seu Senhor Intendente.
- Você diz que esses rapazes servirão como escudeiros. Certamente o senhor comandante não pretende que sejam treinados em armas?
A raiva de Jon chamejou.
- Não, meu senhor, pretendo que eles nos costurem roupas íntimas de rendas. É claro que serão treinados em armas. Também deverão bater manteiga, cortar lenha, limpar os estábulos, esvaziar as latrinas, levar mensagens ... e nos intervalos serão ensinados a usar lanças, espadas e arcos.
O rosto de Marsh foi tomado por um rubor intenso.
- O senhor comandante deve perdoar minha franqueza, mas não há modo suave de dizer isso. O que está propondo não é nada menos do que traição. Por oito mil anos, os homens da Patrulha da Noite permaneceram sobre a Muralha e lutaram contra esses selvagens. Agora você pretende deixá-los passar, quer abrigá-los em nossos castelos, alimentá-los, vesti-los e ensiná-los a lutar. Lorde Snow, tenho que recordá-lo? Você fez um juramento.
- Sei o que jurei. - Jon falou as palavras. - Sou a espada na escuridão. Sou o vigilante nas muralhas. Sou o fogo que queima contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que guarda o reino dos homens. Essas foram as mesmas palavras que você disse quando fez seus votos?
- Foram. Como o senhor comandante sabe.
- Está seguro de que não me esqueci de nenhuma? Aquelas sobre o rei e suas leis, e como devemos defender cada metro de suas terras e nos prender a cada castelo em ruínas? Como é essa parte? - Jon esperou uma resposta. Não veio nenhuma. - Sou o escudo que guarda o reino dos homens. Essas são as palavras. Então diga-me, meu senhor: o que esses selvagens são, se não homens?
Bowen Marsh abriu a boca. Nenhuma palavra saiu. Um rubor subiu por seu pescoço.
Jon se afastou. A última luz do sol começava a desvanecer. Viu as rachaduras ao longo da Muralha indo do vermelho ao cinza, até o preto, de riscos de fogo para rios de gelo negro. Lá embaixo, a Senhora Melisandre estaria acendendo sua fogueira noturna e cantando, Senhor da Luz, defenda-nos, pois a noite é escura e cheia de terrores.
- O inverno está chegando - Jon falou finalmente, quebrando o silêncio constrangedor. - E, com ele, os caminhantes brancos. A Muralha é onde os deteremos. A Muralha foi feita para detê-los ... mas a Muralha precisa estar ocupada. Esta discussão termina aqui. Temos muito o que fazer antes que os portões sejam abertos. Tormund e seu povo precisarão ser alimentados, vestidos e abrigados. Alguns estão doentes e precisarão de cuidados. Esses serão enviados para você, Clydas. Salve quantos homens puder.
Clydas piscou com seus opacos olhos rosados.
- Farei o melhor possível, Jon. Meu senhor, quero dizer.
- Precisaremos de cada charrete e carroça disponível para transportar o povo livre até seus novos lares. Othell, você fica encarregado disso.
Yarwyck fez uma careta.
- Sim, Senhor Comandante.
- Lorde Bowen, você deve coletar o pedágio. Ouro, prata, âmbar, torques, braceletes e colares. Classifique todos eles, conte-os, assegure-se de que cheguem em segurança em Atalaialeste.
- Sim, Lorde Snow - respondeu Bowen Marsh.
E Jon pensou, Gelo, ela disse, e adagas na escuridão. Sangue congelado vermelho e duro, e aço nu. Sua mão da espada flexionou. O vento estava aumentando. 

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