quinta-feira, 3 de outubro de 2013

54 - CERSEI


Cada noite parecia mais fria do que a anterior.
A cela não tinha lareira nem braseiro. A única janela era alta demais para permitir uma vista e pequena demais para se espremer por ela, mas mais do que suficiente para deixar entrar o frio. Cersei rasgara a primeira troca de roupa que lhe deram, exigindo que devolvessem a dela, mas aquilo apenas a deixara nua e tremendo. Quando lhe trouxeram outra muda, vestiu-a pela cabeça e agradeceu, sufocando com as palavras.
A janela também deixava entrar sons. Era a única maneira de a rainha saber o que estava acontecendo na cidade. As septãs que lhe traziam comida não diziam nada.
Ela odiava aquilo. Jaime devia estar voltando para ajudá-la, mas como ela saberia quando ele chegaria? Cersei só esperava que ele não fosse tão tolo a ponto de vir correndo antes de seu exército. Precisaria de todas as espadas disponíveis para lidar com a horda esfarrapada dos Pobres Companheiros que cercava o Grande Septo. Perguntava sobre seu irmão gêmeo com frequência, mas suas carcereiras não lhe davam respostas. Perguntava sobre Sor Loras também. A última notícia era que o Cavaleiro das Flores estava morrendo em Pedra do Dragão por causa dos ferimentos sofridos enquanto tentava tomar o castelo. Que morra, Cersei pensou, e que seja rápido. A morte do rapaz significaria um lugar vago na Guarda Real, e aquilo podia ser sua salvação. Mas as septãs mantinham a boca fechada sobre Loras Tyrell, tanto quanto sobre Jaime.
Lorde Qyburn fora seu último e único visitante. Seu mundo tinha uma população de quatro pessoas: ela e suas três carcereiras, piedosas e inflexíveis. Septã Unella tinha ossos largos e aspecto masculino, com mãos calosas e feições grosseiras e carrancudas. Septã Moelle tinha duros cabelos brancos e olhos pequenos sempre franzidos de desconfiança, em um rosto também enrugado, tão afiado quanto a lâmina de um machado. Septã Scolera tinha cintura grossa e baixa estatura, com peitos grandes, pele cor de oliva e um cheiro azedo como o de leite prestes a estragar. Elas lhe traziam água e comida, esvaziavam a latrina e levavam sua muda de roupa para lavar em intervalos de poucos dias, deixando-a nua sobre o cobertor até que voltassem. Algumas vezes, Scolera lia para ela o Estrela de Sete Pontas ou O Livro das Orações Sagradas, mas, de outro modo, nenhuma delas falava com ela ou respondia às suas perguntas.
Ela odiava e desprezava as três, quase tanto quanto odiava e desprezava os homens que a haviam traído.
Falsos amigos, servos traiçoeiros, homens que professavam amor eterno, até mesmo seu próprio sangue... todos eles a abandonaram na hora da necessidade. Osney Kettleblack, aquele fraco, fora quebrado sob o chicote e enchera os ouvidos do Alto Pardal com segredos que deveria ter levado para o túmulo. Os irmãos dele, escórias das ruas que ela havia alçado até a posição que ocupavam, fizeram de conta que não tinham nada com o assunto. Aurane Waters, seu almirante, havia fugido com a frota de navios que ela construíra para ele. Orton Merryweather partira para Mesalonga levando sua esposa Taena, que havia sido a única amiga verdadeira da rainha nesses tempos terríveis. Harys Swyfr e o Grande Meistre Pycelle a abandonaram ao cativeiro e ofereceram o reino aos mesmos homens que conspiraram contra ela. Meryn Trant e Boros Blount, protetores juramentados do rei, não haviam sido encontrados. Mesmo seu primo, Lancel, que certa vez afirmara amá-la, era um de seus acusadores. Seu tio se recusara a ajudá-la a governar quando quisera torná-lo Mão do Rei.
E Jaime ...
Não, ela não podia acreditar naquilo, não acreditaria naquilo. Jaime estaria ali assim que soubesse de sua situação. Venha imediatamente, escrevera para ele. Ajude-me. Salve-me. Preciso de você agora como nunca precisei antes. Amo você. Amo você. Amo você. Venha imediatamente. Qyburn havia jurado que se asseguraria de que a carta chegasse ao seu irmão gêmeo, que estava no Tridente com seu exército. Qyburn nunca retornara, no entanto. Pelo que ela sabia, podia estar morto, com a cabeça empalada em uma estaca sobre os portões da Fortaleza. Ou talvez estivesse definhando em uma das celas negras sob a Fortaleza Vermelha, sem ter enviado a carta dela. A rainha perguntara por ele uma centena de vezes, mas suas captoras não falavam nada. Tudo o que sabia com certeza era que Jaime não viera.
Ainda não, disse para si mesma. Mas em breve. E, assim que ele chegar, o Alto Pardal e suas cadelas cantarão uma música diferente.
Odiava se sentir desamparada.
Ela havia ameaçado, mas suas ameaças foram recebidas com rostos de pedra e ouvidos surdos. Ordenara, mas suas ordens haviam sido ignoradas. Invocara a misericórdia da Mãe, apelando para a simpatia natural de uma mulher por outra, mas as três septãs enrugadas pareciam ter posto sua feminilidade de lado quando fizeram os votos. Tentara usar seu charme, falando com elas gentilmente, aceitando cada novo ultraje com humildade. Elas não se deixaram influenciar. Oferecera recompensas, prometera clemência, honras, ouro, posições na corte. Elas trataram suas promessas como haviam feito com as ameaças.
E ela rezara. Oh, como rezara. Se eram orações que eles queriam, ela deu isso para eles, dera de joelhos, como se fosse uma prostituta qualquer das ruas e não uma filha do Rochedo. Rezara por alívio, por libertação, por Jaime. Em voz alta, pedira que os deuses defendessem sua inocência; silenciosamente rezara para que seus acusadores sofressem mortes súbitas e dolorosas. Rezara até os joelhos ficarem em carne viva e ensanguentados, até que a língua ficasse tão grossa e pesada que quase a sufocasse. Todas as orações que aprendera na infância voltaram para Cersei em sua cela, e ela inventava novas conforme precisava, chamando pela Mãe e pela Donzela, pelo Pai e pelo Guerreiro, pela Velha e pelo Ferreiro. Rezara até mesmo para o Estranho. Qualquer deus serve em uma tempestade. Os Sete se provaram tão surdos quanto suas servas terrenas. Cersei deu para eles todas as palavras que tinha dentro de si, deu tudo exceto lágrimas. Isso nunca terão, disse para si mesma.
Odiava sentir-se fraca.
Se os deuses tivessem lhe dado a força que deram a Jaime e àquele imbecil fanfarrão de Robert, ela poderia fugir. Oh, por uma espada e pela habilidade para empunhá-la. Ela tinha o coração de um guerreiro, mas os deuses, em sua malícia cega, haviam lhe dado o corpo fraco de uma mulher. A rainha tentara lutar contra elas, no início, mas as septãs a dominaram. Eram muitas, e eram mais fortes do que pareciam. Velhas feias, cada uma delas, mas toda uma vida dedicada a orar, esfregar o chão e bater em noviças com paus as haviam deixado duras como raízes.
E não a deixavam descansar. Noite ou dia, sempre que a rainha fechava os olhos para dormir, uma de suas captoras aparecia para despertá-la e exigir que confessasse seus pecados. Era acusada de adultério, fornicação, alta traição e até mesmo assassinato, uma vez que Osney Kettleblack confessara ter sufocado o último Alto Septão por ordem dela.
- Vim ouvir você falar sobre os assassinatos e as fornicações - a Septã Unella rosnava, enquanto sacudia a rainha para acordá-la.
A Septã Moelle dizia que eram seus pecados que a mantinham sem dormir.
- Apenas os inocentes conhecem a paz de um sono descansado. Confesse seus pecados, e dormirá como um bebê recém-nascido.
Acordar, dormir e acordar novamente, toda noite era quebrada em pedaços pelas mãos ásperas de suas torturadoras, e cada noite era mais fria e mais cruel do que a noite anterior. A hora da coruja, a hora do lobo, a hora do rouxinol, o nascer da lua e quando a lua se punha, anoitecer e amanhecer, passavam cambaleando como bêbados. Que horas eram? Que dia era? Quem era ela? Isso era um sonho, ou estava acordada? Os pequenos cacos de sono que lhe permitiam se transformavam em lâminas afiadas, fatiando seu juízo. Perdera todo o senso de quanto tempo estava presa naquela cela, no alto de uma das sete torres do Grande Septo de Baelor. Envelhecerei e morrerei aqui, pensou, desesperada.
Cersei não podia permitir que aquilo acontecesse. Seu filho precisava dela. O reino precisava dela. Tinha que se libertar, não importava o risco. Seu mundo reduzira-se a uma cela de dois metros por dois metros, uma latrina, um estrado irregular e um cobertor de lã marrom fino como a esperança e que lhe fazia a pele coçar, mas ainda era a herdeira de Lorde Tywin, uma filha do Rochedo.
Exausta pela falta de sono, tremendo com o frio que invadia a cela da torre a cada noite, febril e faminta por turnos, Cersei soube finalmente que deveria confessar.
Naquela noite, quando a Septá Unella veio arrancá-la de seu sono, encontrou a rainha esperando de joelhos.
- Eu pequei - disse Cersei. Sua língua estava grossa na boca, os lábios em carne viva e rachados. - Pequei gravemente. Vejo isso agora. Como pude ser tão cega por tanto tempo? A Velha veio até mim com sua lanterna erguida, e graças à sua sagrada luz vi a estrada que devo percorrer. Quero ser limpa novamente. Quero apenas absolvição. Por favor, boa septã, imploro, me leve até o Alto Septão para que eu possa confessar meus crimes e fornicações.
- Direi para ele, Vossa Graça - falou a Septã Unella. - Sua Alta Santidade ficará muito satisfeito. Apenas pela confissão e pela real penitência nossas almas imortais podem ser salvas.
E, pelo resto daquela noite, elas a deixaram dormir. Horas e horas de sono abençoado. A coruja, o lobo e o rouxinol passaram invisíveis e despercebidos, enquanto Cersei tinha um longo e doce sonho no qual Jaime era seu marido e o primogênito deles ainda vivia.
Quando a manhã chegou, a rainha quase se sentia ela mesma novamente. Quando suas captoras vieram, fez ruídos piedosos para elas novamente e disse o quão determinada estava em confessar seus pecados e ser perdoada por tudo o que havia feito.
- Regozijamo-nos em ouvir isso - disse Septá Moelle.
- Isso vai tirar um grande peso de sua alma - disse Septá Scolera. - Vai se sentir muito melhor depois, Vossa Graça.
Vossa Graça. Essas duas simples palavras a emocionaram. Durante seu longo cativeiro, suas carcereiras não haviam se incomodado nem mesmo com cortesias simples.
- Sua Alta Santidade está esperando - disse a Septã Unella.
Cersei abaixou a cabeça, humilde e obediente.
- Posso ter a permissão de tomar um banho antes? Não estou em estado adequado para ir até ele.
- Você pode se lavar mais tarde, se Sua Alta Santidade permitir - respondeu a Septã Unella. - E com a limpeza de sua alma imortal que deve se preocupar agora, não com tais vaidades da carne.
As três septãs a levaram pela escadaria da torre, com a Septã Unella indo na frente, e Septã Moelle e Septã Scolera em seus calcanhares, como se tivessem medo que pudesse tentar fugir.
- Faz muito tempo desde que tive uma visita - Cersei murmurou em uma voz tranquila, enquanto desciam. - O rei está bem? Pergunto apenas como uma mãe temerosa por seu filho.
- Sua Graça está bem de saúde - respondeu a Septá Scolera - e bem protegido, dia e noite. A rainha está com ele, sempre.
Eu sou a rainha! Ela engoliu, sorriu e disse:
- É bom saber isso. Tommen a ama tanto. Nunca acreditei nessas coisas terríveis que foram ditas sobre ela. - Teria Margaery Tyrell de algum modo se livrado das acusações de fornicação, adultério e alta traição? - Houve um julgamento?
- Em breve - falou a Septã Scolera - mas o irmão dela ...
- Quieta. - A Septã Unella virou-se sobre o ombro para olhar para Scolera. - Você tagarela demais, velha tola. Não devemos falar sobre essas coisas.
Scolera abaixou a cabeça.
- Por favor, me perdoe.
Fizeram o restante da descida em silêncio.
O Alto Pardal a recebeu em seu santuário, uma austera câmara de sete lados, onde rostos dos Sete rudemente esculpidos nas paredes de pedra encaravam com expressões quase tão azedas e desaprovadoras quanto a de Sua Alta Santidade. Quando Cersei entrou, ele estava sentado atrás de uma escrivaninha rústica. O Alto Septão não mudara desde a última vez que estivera em sua presença, o dia em que ele a dominara e a aprisionara. Ainda era um homem esquelético de cabelos grisalhos, com aparência magra, dura, meio faminta, o rosto alinhado e de feição mordaz, olhos desconfiados. No lugar das ricas vestes de seus predecessores, usava uma túnica disforme de lã sem tingir que caía até os tornozelos.
- Vossa Graça - disse, à guisa de saudação. - Entendo que deseja fazer sua confissão.
Cersei caiu de joelhos.
- Desejo, Alta Santidade. A Velha veio até mim enquanto eu dormia, com sua lamparina elevada ...
- Certamente. Unella, você ficará e fará um registro das palavras de Sua Graça. Scolera, Moelle, têm minha permissão para sair. - Ele juntou as pontas dos dedos das mãos umas nas outras, o mesmo gesto que ela vira seu pai fazer milhares de vezes.
Septã Unella sentou-se atrás dela, abriu um pergaminho, molhou uma pena em tinta de meistre. Cersei sentiu uma pontada de medo.
- Uma vez que tenha confessado, poderei ...
- Vossa Graça deve ser tratada de acordo com seus pecados.
Este homem é implacável, percebeu mais uma vez. Compenetrou-se por um momento.
- Que a Mãe tenha misericórdia de mim, então. Tenho me deitado com homens fora dos laços do casamento. Confesso.
- Com quem? - Os olhos do Alto Septão estavam fixos nos dela.
Cersei podia ouvir Unella escrevendo atrás de si. Sua pena fazia um som de raspar fraco e suave.
- Lancel Lannister, meu primo. E Osney Kettleblack. - Os dois homens confessaram ter se deitado com ela, não seria bom negar. - Com os irmãos dele também. Com os dois. - Ela não tinha como saber o que Osfryd e Osmund tinham dito. Era melhor confessar demais do que de menos. - Isso não perdoa meu pecado, Alta Santidade, mas eu estava sozinha e com medo. Os deuses tiraram o Rei Robert de mim, meu amor e meu protetor. Eu estava sozinha, cercada por conspirações, falsos amigos e traidores que planejavam a morte de meus filhos. Não sabia em quem confiar, então eu ... eu usei os únicos métodos que tinha para vincular os Kettleblack a mim.
- Com métodos você quer dizer suas partes femininas r
- Minha carne. - Apertou as mãos contra o rosto, estremecendo. Quando as abaixou novamente, seus olhos estavam úmidos de lágrimas. - Sim. Que a Donzela me perdoe. Mas foi por meus filhos, pelo reino. Não tive prazer nisso. Os Kettleblack... são homens duros e cruéis, e me usaram rudemente, mas o que mais eu podia fazer? Tommen precisava de homens ao redor dele nos quais eu pudesse confiar.
- Sua Graça era protegido pela Guarda Real.
- A Guarda Real se provou inútil quando seu irmão Joffrey morreu, assassinado em seu próprio banquete de casamento. Vi um de meus filhos morrer e não podia suportar perder outro. Cometi fornicação devassa, mas fiz isso por Tommen. Perdoe-me, Alta Santidade, mas eu abriria minhas pernas para cada homem em Porto Real se fosse necessário para manter meus filhos em segurança.
- O perdão vem apenas dos deuses. E com Sor Lancel, que era seu primo e escudeiro do senhor seu marido? Você o levou para a cama para conquistar a lealdade dele também?
- Lancel. - Cersei hesitou. Cuidado, disse para si mesma, Lancel deve ter contado tudo para ele. - Lancel me amava. Era meio menino, mas nunca duvidei de sua devoção por mim ou por meu filho.
- E, mesmo assim, você o corrompeu.
- Eu estava sozinha. - Engasgou com um soluço. - Tinha perdido meu marido, meu filho, o senhor meu pai. Era regente, mas uma rainha ainda é uma mulher, e mulheres são recipientes fracos, facilmente tentados ... Vossa Alta Santidade sabe a verdade disso. Mesmo santas septãs têm conhecido o pecado. Eu tive conforto com Lancel. Ele era gentil e meigo, e eu precisava de alguém. Foi errado, eu sei, mas não tinha mais ninguém ... uma mulher precisa ser amada, precisa de um homem ao lado dela, ela ... ela ... - Começou a soluçar incontrolavelmente.
O Alto Septão não fez nenhum movimento para confortá-la. Ficou sentado com os olhos duros fixos nela, vendo-a chorar, tão imóvel quanto uma das estátuas dos Sete no septo abaixo. Um longo momento se passou, mas finalmente as lágrimas dela secaram. Seus olhos estavam vermelhos e inchados de chorar, e ela se sentia como se fosse desmaiar.
O Alto Pardal não terminara com ela, no entanto.
- Esses são pecados comuns - disse. - A iniquidade das viúvas é bem conhecida, e todas as mulheres são lascivas em seu coração, dadas a usar artimanhas e sua beleza para fazer valer suas vontades sobre os homens. Não há traição aqui, contanto que você não tenha se desviado de sua cama enquanto Sua Graça, o Rei Robert, ainda estava vivo.
- Nunca - ela sussurrou, estremecendo. - Nunca, eu juro.
Ele não prestou atenção.
- Há outras acusações que pesam contra Vossa Graça, crimes muito mais sérios do que meras fornicações. Você admite que Sor Osney Kettleblack era seu amante, e Sor Osney insiste que sufocou meu predecessor a seu mando. Ele também insiste que deu falso testemunho contra a Rainha Margaery e as primas dela, contando histórias de fornicação, adultério e alta traição, novamente sob suas ordens.
- Não - falou Cersei. - Isso não é verdade. Amo Margaery como se fosse uma filha. E o outro ... reclamei do Alto Septão, admito. Era criatura de Tyrion, fraco e corrupto, uma mancha em nossa Santa Fé, Vossa Alta Santidade sabe tão bem quanto eu. Pode ser por isso que Osney pensou que a morte dele me agradaria. Se foi isso, levo uma parte da culpa ... mas assassinato? Não. Sou inocente. Leve-me para o septo e eu ficarei diante do assento de julgamento do Pai e jurarei a verdade disso.
- Em seu tempo - falou o Alto Septão. - Você também é acusada de conspirar para o assassinato do seu próprio senhor esposo, nosso saudoso e amado Rei Robert, Primeiro de Seu Nome.
Lancel, Cersei pensou.
- Robert foi morto por um javali. Dizem que sou uma troca-peles, agora? Uma warg? Sou acusada de matar Joffrey também, meu próprio doce filho, meu primogênito?
- Não. Apenas seu marido. Nega isso?
- Nego isso. Nego. Diante dos deuses e dos homens, nego.
Ele balançou a cabeça.
- E, por último, o pior de todos, alguns dizem que seus filhos não foram gerados pelo Rei Robert, que são bastardos nascidos do incesto e do adultério.
- Stannis diz isso - Cersei falou imediatamente. - Uma mentira, uma mentira, uma mentira palpável. Stannis quer o Trono de Ferro para si, mas os filhos de seu irmão estão em seu caminho, então ele precisa afirmar que não são do irmão. Aquela carta imunda ... não há um fragmento de verdade naquilo. Eu nego.
O Alto Septão colocou as duas mãos abertas sobre a mesa e empurrou a cadeira para se levantar.
- Bom. Lorde Stannis deixou a verdade dos Sete para venerar um demônio vermelho, e sua falsa fé não tem lugar nestes Sete Reinos.
Aquilo era quase reconfortante. Cersei assentiu.
- Mesmo assim - Sua Alta Santidade continuou - essas são acusações terríveis, e o reino precisa saber a verdade sobre elas. Se Vossa Graça disse a verdade, sem dúvida um julgamento provará sua inocência.
Um julgamento, ainda.
- Já confessei ...
- ... alguns pecados, sim. Outros, você negou. Seu julgamento separará as verdades das falsidades. Pedirei aos Sete que perdoem os pecados que confessou e rezarei para que a encontrem inocente das outras acusações.
Cersei ergueu-se lentamente de seus joelhos.
- Eu me curvo à sabedoria de Vossa Alta Santidade - disse - mas, se posso implorar por uma gota da misericórdia da Mãe, eu ... faz tanto tempo desde que vi meu filho, por favor...
Os olhos do velho eram pedaços de sílex.
- Não seria apropriado permitir que se aproxime do rei até que tenha sido limpa de todas as suas iniquidades. Contudo, você deu o primeiro passo em seu caminho de volta à honradez e, à luz disso, eu permitirei que tenha outros visitantes. Um por dia.
A rainha começou a chorar novamente. Desta vez, suas lágrimas eram verdadeiras.
- O senhor é tão gentil. Obrigada.
- A Mãe é misericordiosa. É a ela que deve agradecer.
Moelle e Scolera estavam esperando para levá-la de volta à cela da torre. Unella seguia logo atrás delas.
- Todas temos rezado por Vossa Graça - Septã Moelle disse enquanto subiam.
- Sim - Septã Scolera ecoou - e você deve se sentir tão mais leve, agora, limpa e inocente como uma donzela na manhã de seu casamento.
Trepei com Jaime na manhã do meu casamento, a rainha se lembrou.
- Eu me sinto - disse. - Sinto-me renascida, como se um furúnculo inflamado tivesse sido lancetado, e agora, ao menos, posso começar a me curar. Eu poderia quase voar. - Imaginava como seria agradável dar uma cotovelada no rosto da Septã Scolera e fazê-la rolar pela escada em espiral. Se os deuses fossem bons, a velha boceta enrugada podia trombar na Septã Unella e levá-la para baixo consigo.
- É bom vê-la sorrir novamente - Scolera falou.
- Sua Alta Santidade disse que eu posso receber visitas?
- Disse - falou a Septã Unella. - Se Vossa Graça disser quem deseja ver, enviaremos convites para eles.
Jaime, preciso de Jaime. Mas se seu irmão gêmeo estava na cidade, por que não tinha vindo até ela? Talvez fosse mais prudente esperar Jaime até que tivesse uma noção melhor do que estava acontecendo além das paredes do Grande Septo de Baelor.
- Meu tio - falou. - Sor Kevan Lannister, o irmão de meu pai. Ele está na cidade?
- Está - respondeu Septã Unella. - O Senhor Regente passou a residir na Fortaleza Vermelha. Enviaremos uma mensagem para ele imediatamente.
- Obrigada - disse Cersei, pensando, Senhor Regente, é? Ela não podia fingir estar surpresa.
Um coração humilde e contrito provou ter benefícios muito além da limpeza dos pecados da alma. Naquela noite, a rainha foi levada para uma cela maior, dois andares abaixo, com uma janela pela qual podia olhar para fora e cobertores quentes e macios para sua cama. E, quando chegou a hora da ceia, em vez de pão amanhecido e mingau de aveia, serviram capão assado, uma tigela de verduras crocantes polvilhadas com nozes picadas e uma porção de purê de nabo nadando em manteiga. Naquela noite, ela foi para a cama com o estômago cheio pela primeira vez desde que fora presa, e dormiu durante as negras horas da noite sem ser perturbada.
Na manhã seguinte, com a aurora, veio seu tio.
Cersei ainda estava quebrando seu jejum quando a porta se abriu e Sor Kevan Lannister entrou.
- Deixem-nos - ele disse às carcereiras. Septã Unella levou Scolera e Moelle para fora e fechou a porta atrás delas. A rainha ficou em pé.
Sor Kevan parecia mais velho do que quando o vira pela última vez. Era um homem grande, de ombros largos e cintura grossa, com uma barba loira cortada rente que seguia a linha de sua mandíbula pesada, e cabelos loiros curtos em franco recuo de sua testa. Um manto de lã pesado, tingido de carmesim, estava preso a um ombro por um broche de ouro com o formato de cabeça de leão.
- Obrigada por vir - a rainha falou.
Seu tio franziu o cenho.
- É melhor se sentar. Há coisas que preciso contar para você.
Ela não queria sentar.
- Ainda está bravo comigo. Posso ouvir isso em sua voz. Perdoe-me, tio. Eu estava errada em jogar meu vinho em você, mas ...
- Acha que me importo com uma taça de vinho? Lancel é meu filho, Cersei. Seu próprio primo. Se estou bravo com você, este é o motivo. Você deveria ter cuidado dele, guiado o rapaz, encontrado uma moça gentil de boa família para ele. Em vez disso, você...
- Eu sei. Eu sei. - Lancei me desejava mais do que eu jamais o desejei. Ainda deseja, eu apostaria. - Eu estava sozinha, fraca. Por favor. Tio. Oh, tio. É tão bom ver seu rosto, seu doce, doce rosto. Tenho feito coisas ruins, eu sei, mas não posso suportar que me odeie. - Ela jogou os braços ao redor dele e beijou-o na bochecha. - Perdoe··me. Perdoe-me.
Sor Kevan suportou o abraço por alguns segundos antes de finalmente levantar seus próprios braços para retribuir. Seu abraço foi curto e desajeitado.
- Basta - disse, sua voz ainda insípida e fria. - Está perdoada. Agora, sente-se. Trago algumas notícias difíceis, Cersei.
As palavras dele a assustaram.
- Alguma coisa aconteceu a Tommen? Por favor, não. Tenho tanto medo por meu filho. Ninguém me diz nada. Por favor, diga-me que Tommen está bem.
- Sua Graça está bem. Pergunta por você com frequência. - Sor Kevan colocou as mãos nos ombros dela e a manteve a distância.
- Jaime, então? É sobre Jaime?
- Não. Jaime ainda está no Tridente, em algum lugar.
- Em algum lugar? - Ela não gostou de como aquilo soou.
- Ele tomou Corvarbor e aceitou a rendição de Lorde Blackwood - seu tio contou - mas, no caminho de volta a Correrrio, ele deixou sua tropa e partiu com uma mulher.
- Uma mulher? - Cersei o encarou, sem compreender. - Que mulher? Por quê? Para onde foram?
- Ninguém sabe. Não tivemos mais notícias dele. A mulher pode ter sido a filha do Estrela da Tarde, a Senhora Brienne.
Ela. A rainha de lembrava da Donzela de Tarth, uma coisa imensa, feia e desajeitada que se vestia em cota de malha. Jaime nunca me abandonaria por tal criatura. Meu corvo nunca chegou até ele, de outra forma ele teria vindo.
- Temos tido relatos de mercenários desembarcando por todo o Sul - Sor Kevan estava dizendo. - Tarth, Passopedra, Cabo da Fúria ... onde Stannis conseguiu dinheiro para contratar uma companhia livre é algo que eu adoraria saber. Não tenho forças para lidar com eles, não aqui. Mace Tyrell tem, mas recusa-se a mover suas tropas até que a questão com sua filha esteja solucionada.
Um carrasco solucionaria a questão de Margaery bem rapidamente. Cersei não dava a mínima para Stannis e seus mercenários. Os Outros que o levem e aos Tyrell junto. Deixe-os matar uns aos outros, o reino ficará melhor assim.
- Por favor, tio, me tire daqui.
- Como? Pela força das armas? - Sor Kevan andou até a janela e olhou para fora, franzindo o cenho. - Eu teria que transformar este lugar sagrado em um abatedouro. E não tenho homens para isso. A maior parte de nossas forças estava em Correrrio, com seu irmão. Não tenho tempo de reunir uma nova tropa. - Virou-se para encará-la. - Falei com Sua Alta Santidade. Ele não a soltará até que tenha expiado seus pecados.
- Já confessei.
- Expiado, eu disse. Diante da cidade. Uma caminhada...
- Não. - Ela sabia o que o tio estava prestes a dizer e não queria ouvir aquilo. - Nunca. Diga isso para ele, se conversarem novamente. Sou uma rainha, não uma prostituta do cais.
- Nada de mau aconteceria com você. Ninguém tocará...
- Não - ela falou, mais rispidamente. - Eu prefiro morrer.
Sor Kevan não se abalou.
- Se for seu desejo, você pode tê-lo concedido em breve. Sua Alta Santidade está convencido de que você será julgada por regicídio, deicídio, incesto e alta traição.
- Deicídio? - Ela quase riu. - Quando eu matei um deus?
- O Alto Septão fala pelos Sete na terra. Atinja-o e você estará atingindo os próprios deuses. - Seu tio ergueu uma mão antes que ela pudesse protestar. - Não é bom falar dessas coisas. Não aqui. O momento para tudo isso é no julgamento. - Ele contemplou a cela. O olhar em seu rosto falava muito.
Alguém está ouvindo. Mesmo aqui, mesmo agora, ela não se atrevia a falar livremente. Respirou fundo.
- Quem vai me julgar?
- A Fé - seu tio respondeu - a menos que você insista em um julgamento por combate. Neste caso, terá que ser defendida por um cavaleiro da Guarda Real. Qualquer que seja o resultado, seu governo acabou. Eu serei regente de Tommen até que ele tenha idade. Mace Tyrell foi nomeado Mão do Rei. Grande Meistre Pycelle e Sor Harys Swyft continuarão como antes, mas Paxter Redwyne é agora senhor almirante e Randyll Tarly assumiu os deveres da justiça.
Vassalos dos Tyrell, ambos. A completa governança do reino estava sendo entregue aos inimigos dela, amigos e parentes da Rainha Margaery.
- Margaery continua acusada também. Ela e aquelas primas dela. Como é que os pardais a libertaram e não a mim?
- Randyll Tarly insistiu. Ele foi o primeiro a chegar a Porto Real quando a tempestade começou e trouxe seu exército consigo. As garotas Tyrell ainda serão julgadas, mas o caso contra elas é fraco, Sua Alta Santidade admite. Todos os homens acusados de serem amantes da rainha negaram as acusações ou abjuraram, exceto aquele cantor mutilado que parece estar meio louco. Então o Alto Septão entregou as garotas sob a custódia de Tarly, e Lorde Randyll fez um juramento sagrado de que as entregaria a julgamento quando fosse a hora.
- E os acusadores delas? - A rainha exigiu saber. - Quem está com eles?
- Osney Kettleblack e o Bardo Azul estão aqui, embaixo do septo. Os gêmeos Redwyne foram declarados inocentes, e Hamish, o Harpista, morreu. Os demais estão nos calabouços sob a Fortaleza Vermelha, a cargo de seu homem, Qyburn.
Qyburn, pensou Cersei. Aquilo era bom, uma palha ao menos na qual podia se agarrar. Lorde Qyburn estava com eles, e Lorde Qyburn podia fazer maravilhas. E horrores. Ele pode fazer horrores, também.
- Ainda há mais, pior. Quer se sentar?
- Sentar? - Cersei abanou a cabeça. O que poderia ser pior? Ela seria julgada por alta traição, enquanto a pequena rainha e suas primas voavam livres como pássaros. - Diga-me. O que é?
- Myrcella. Temos graves notícias de Dorne.
- Tyrion - ela disse, imediatamente. Tyrion enviara sua garotinha para Dorne, e Cersei despachara Sor Balon Swann para trazê-la para casa. Todos os dornenses eram serpentes, e os Martell eram os piores deles. A Víbora Vermelha tentara defender o Duende, e por um triz não conseguira a vitória que teria permitido que o anão escapasse da culpa pelo assassinato de Joffrey. - É ele, ele esteve em Dorne todo esse tempo e agora pegou minha filha.
Sor Kevan fez outra cara feia para ela.
- Myrcella foi atacada por um cavaleiro dornense chamado Gerold Dayne. Está viva, mas ferida. Ele cortou o rosto dela, ela ... sinto muito ... ela perdeu uma orelha.
- Uma orelha - Cersei o encarou, espantada. Ela era apenas uma criança, minha preciosa princesa. Era tão bonita também. - Ele cortou uma orelha dela. E o Príncipe Doran e seus cavaleiros dornenses, onde estavam? Não podiam defender uma garotinha? Onde estava Arys Oakheart?
- Assassinado, defendendo-a. Dayne o cortou também, pelo que dizem.
A Espada da Manhã havia sido um Dayne, a rainha se lembrou, mas estava morto havia muito tempo. Quem era esse Sor Gerold e por que desejava ferir a filha dela? Ela não conseguia ver sentido nisso, a menos ...
- Tyrion perdeu metade do nariz na Batalha da Água Negra. Cortando o rosto dela, arrancando uma orelha ... os dedinhos imundos do Duende estão nisso.
- O Príncipe Doran não diz nada sobre seu irmão. E Balon Swann escreve que Myrcella coloca toda a culpa neste tal de Gerold Dayne. Estrela Negra, eles o chamam.
Ela deu uma risada amarga.
- Como quer que o chamem, ele é pau mandado do meu irmão. Tyrion tem amigos entre os dornenses. O Duende planejou tudo isso. Foi Tyrion quem prometeu Myrcella ao Príncipe Trystane. Agora vejo o porquê.
- Você vê Tyrion em cada sombra.
- Ele é uma criatura das sombras. Matou Joffrey. Matou nosso pai. Você acha que ele parou aí? Eu temia que o Duende ainda estivesse em Porto Real planejando ferir Tommen, mas, em vez disso, ele foi para Dorne, para matar Myrcella primeiro. - Cersei andou pela cela. - Preciso estar com Tommen. Esses cavaleiros da Guarda Real são tão inúteis quanto mamilos em uma placa peitoral. - Ela se aproximou do tio. - Sor Arys está morto, você disse.
- Pelas mãos desse homem, Estrela Negra, sim.
- Morto, está morto, tem certeza disso?
- Foi o que nos disseram.
- Então há um lugar vago na Guarda Real. Preciso preenchê-lo imediatamente. Tommen deve ser protegido.
- Lorde Tarly está elaborando uma lista de cavaleiros dignos para que seu irmão possa considerar, mas até que Jaime reapareça ...
- O rei pode dar o manto branco a um homem. Tommen é um bom menino. Diga para ele quem nomear e ele o nomeará.
- E quem você diria para ele nomear?
Ela não tinha uma resposta pronta. Meu campeão precisará de um novo nome, assim como de um novo rosto.
- Qyburn saberá. Confie nele para isso. Você e eu tivemos nossas diferenças, tio, mas pelo sangue que dividimos e pelo amor que você tinha por meu pai, pela segurança de Tommen e pela segurança de sua pobre irmã mutilada, faça o que lhe peço. Vá até Lorde Qyburn em meu nome, leve um manto branco para ele e diga-lhe que a hora chegou. 

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