quinta-feira, 3 de outubro de 2013

55 - O GUARDA DA RAINHA

- Você era homem da rainha - disse Reznak mo Reznak. - O rei deseja seus próprios homens com ele quando estiver em audiência.
Ainda sou homem da rainha. Hoje, amanhã, sempre, até meu último suspiro, ou o dela. Barristan Selmy se recusava a acreditar que Daenerys Targaryen estivesse morta.
Talvez fosse por isso que estivesse sendo colocado de lado. Um a um, Hizdahr removerá todos nós. Belwas, o Forte, permanecia às portas da morte no templo, sob os cuidados das Graças Azuis ... mas Selmy suspeitava que elas estavam terminando o trabalho que os gafanhotos no mel tinham começado. Skahaz Cabeça-Raspada fora despojado de seu comando. Os Imaculados se retiraram para os quartéis. Jhogo, Daario Naharis, o Almirante Groleo e Herói, dos Imaculados, permaneciam reféns dos yunkaítas. Aggo, Rakharo e o restante do khalasar de Daenerys haviam sido despachados pelo rio para procurar sua rainha desaparecida. Mesmo Missandei fora substituída; o rei não achava apropriado usar uma criança como arauto, muito menos uma ex-escrava naathi. E, agora, eu.
Houve um tempo em que teria considerado essa destituição como uma mancha em sua honra. Mas aquilo era em Westeros. No poço de serpentes que era Meereen, a honra parecia tão tola quanto a roupa colorida de um bobo. E esta desconfiança era mútua. Hizdahr zo Loraq podia ser o consorte da rainha, mas nunca seria o rei de Barristan Selmy.
- Se Sua Graça deseja que eu me afaste da corte...
- Seu Iluminado - o senescal corrigiu. - Não, não, não, você me entendeu mal. Sua Veneração está recebendo uma delegação de yunkaítas para discutir a retirada de seus exércitos. Eles podem pedir... ah ... recompensas por aqueles que perderam suas vidas na ira do dragão. Uma situação delicada. O rei acha que será melhor se virem um rei meereenês sobre o trono, protegido por guerreiros meereeneses,. Certamente você compreende isso, sor.
Compreendo mais do que você imagina.
- Posso saber que homens Sua Graça escolheu para protegê-lo?
Reznak mo Reznak sorriu seu sorriso gosmento.
- Guerreiros terríveis, que amam Sua Veneração também. Goghor, o Gigante. Khrazz. O Gato Malhado. Belaquo Quebra-Ossos. Todos heróis.
Todos lutadores de arenas. Sor Barristan não estava surpreso. Hizdahr zo Loraq sentava-se desconfortavelmente em seu novo trono. Já fazia mil anos desde que Meereen tivera seu último rei, e havia alguns entre o sangue antigo que se julgavam uma escolha melhor do que ele. Do lado de fora da cidade estavam os yunkaítas e seus mercenários e aliados; do lado de dentro estavam os Filhos da Harpia.
E os protetores do rei diminuíam a cada dia. O erro estúpido que Hizdahr cometera com Verme Cinzento lhe custara os Imaculados. Quando Sua Graça tentou colocar a tropa sob comando de um primo, como fizera com as Bestas de Bronze, Verme Cinzento informou ao rei que eles eram homens livres, comandados apenas por sua mãe. E, quanto às Bestas de Bronze, metade era de libertos e o restante era de cabeças-raspadas, cuja lealdade verdadeira ainda estava com Skahaz mo Kandaq. Os lutadores de arenas eram o único apoio confiável do Rei Hizdahr contra um oceano de inimigos.
- Eles podem defender Sua Graça contra todas as ameaças. - O tom grave de Sor Barristan não dava pista de seus sentimentos reais; aprendera a escondê-los em Porto Real, anos atrás.
- Sua Magnificência - Reznak mo Reznak sublinhou. - Seus outros deveres permanecem os mesmos, sor. Se esta paz falhar, Seu Iluminado ainda deseja que você comande suas forças contra os inimigos de nossa cidade.
Ele tem consciência disso, ao menos. Belaquo Quebra-Ossos e Goghor, o Gigante, podiam servir como escudos de Hizdahr, mas a ideia de um deles liderando um exército em batalha era tão ridícula que o velho cavaleiro quase sorriu.
- Estou às ordens de Sua Graça.
- Não é Graça - o senescal reclamou. - Esse tipo de tratamento é westerosi. Sua Magnificência, Seu Iluminado, Sua Veneração.
Sua Vaidade cairia melhor.
- Como queira.
Reznak passou a língua pelos lábios.
- Então terminamos. - Dessa vez, seu sorriso gorduroso denotava despedida. Sor Barristan partiu, grato por deixar o cheiro pestilento do perfume do senescal para trás. Um homem deve cheirar suor, não flores.
A Grande Pirâmide de Meereen tinha mais de duzentos metros de altura da base até o topo. Os aposentos do senescal ficavam no segundo nível. Os quartos da rainha, e os seus próprios, ocupavam o andar mais alto. Uma longa subida para um homem da minha idade, Sor Barristan pensou, quando começou a escalada. Ficara conhecido por subir cinco ou seis vezes por dia para resolver assuntos da rainha, como as dores cortantes em seus joelhos e o encurtamento das costas podiam atestar. Virá o dia em que não poderei mais encarar estes degraus, pensou, e esse dia está mais próximo do que eu gostaria. Antes que isso acontecesse, tinha que se assegurar de que pelo menos alguns de seus rapazes estivessem prontos para tomar seu lugar ao lado da rainha. Eu mesmo os sagrarei cavaleiros quando forem dignos, e darei a cada um deles um cavalo e esporas de ouro.
Os aposentos reais estavam tranquilos e silenciosos. Hizdahr não viera morar ali, preferindo estabelecer sua própria suíte em quartos bem no coração da Grande Pirâmide, onde tijolos maciços o cercavam por todos os lados. Mezzara, Miklaz, Qezza, e o resto dos jovens copeiros da rainha - reféns, na verdade, mas tanto Selmy quanto a rainha haviam se afeiçoado tanto a eles que era difícil pensar nos garotos e garotas daquela maneira - foram com o rei, enquanto Irri e Jhiqui partiram com os outros dothrakis. Apenas Missandei permanecera, um pequeno fantasma desamparado, assombrando as câmaras da rainha no alto da pirâmide.
Sor Barristan caminhou até o terraço. O céu sobre Meereen tinha a cor da carne de cadáveres, embotada, branca e pesada, uma massa de nuvens ininterrupta de horizonte a horizonte. O sol estava escondido atrás de uma muralha de nuvens. Iria se pôr sem ser visto, como havia se erguido naquela manhã. A noite seria quente; o tipo de noite suada, sufocante, pegajosa, sem um pingo de ar. Por três dias a chuva ameaçara, mas nem uma gota caíra. A chuva seria um alívio. Poderia ajudar a lavar a cidade.
Dali, podia ver quatro pirâmides menores, as muralhas ocidentais da cidade e os acampamentos dos yunkaítas nas margens da Baía dos Escravos, onde uma grossa coluna de fumaça engordurada retorcia-se para cima como uma serpente monstruosa. Os yunkaítas queimando seus mortos, percebeu. A égua descorada está galopando pelo acampamento do cerco. Apesar de tudo o que a rainha fizera, a doença se espalhara, tanto no interior das muralhas quanto fora delas. Os mercados de Meereen estavam fechados, as ruas vazias. O Rei Hizdahr permitira que as arenas de luta permanecessem abertas, mas as multidões eram escassas. O meereeneses tinham começado a evitar até mesmo o Templo das Graças, segundo relatos.
Os mercadores de escravos encontrarão alguma maneira de culpar Daenerys por isso também, Sor Barristan pensou, amargamente. Quase podia ouvi-los quando sussurravam; Grandes Mestres, Filhos da Harpia, yunkaítas, todos dizendo uns aos outros que a rainha dele estava morta. Metade da cidade acreditava naquilo, embora ainda não tivesse coragem de dizer as palavras em voz alta. Mas logo terão, acredito.
Sor Barristan sentia-se muito cansado, muito velho. Para onde foram todos os anos? Ultimamente, sempre que se ajoelhava para beber de um espelho d'água, via um rosto estranho encarando-o das profundezas da água. Quando esses pés de galinha apareceram ao redor de seus claros olhos azuis? Havia quanto tempo seu cabelo deixara a luz do sol para tornar-se neve? Anos atrás, velho. Décadas.
Mesmo assim, parecia ontem que fora sagrado cavaleiro, depois do torneio em Porto Real. Ainda se lembrava do toque da espada do Rei Aegon sobre seu ombro, leve como o beijo de uma donzela. As palavras ficaram presas na garganta quando disse seus votos. No banquete daquela noite, comera costelas de javali selvagem, preparadas à moda de Dorne, com pimentas-dragão, tão quentes que queimaram sua língua. Quarenta e sete anos, e o gosto ainda estava em sua memória, mas não saberia dizer o que ceara dez dias atrás, mesmo se os sete reinos dependessem disso. Cão cozido, provavelmente. Ou algum outro prato desagradável tão ruim quanto.
Não pela primeira vez, Selmy admirou o estranho destino que o levara até ali. Era um cavaleiro de Westeros, um homem das terras da tempestade e das marcas dornenses; seu lugar era nos Sete Reinos, não nas praias sufocantes da Baía dos Escravos. Vim para levar Daenerys para casa. E, mesmo assim, ele a perdera, exatamente como perdera seu pai e seu irmão. Até mesmo Robert. Falhei com ele, também.
Talvez Hizdahr fosse mais sábio do que ele pensava. Dez anos atrás, eu teria percebido o que Daenerys pretendia fazer. Dez anos atrás, eu teria sido rápido o suficiente para detê-la. Em vez disso, ficara perplexo e gritando seu nome quando ela pulara na arena, correndo depois inutilmente atrás dela pelas areias escarlate. Eu me tornei velho e lento. Não admirava que Naharis zombasse dele chamando-o de Sor Vovô. Será que Daario teria se mexido com mais rapidez, se estivesse ao lado da rainha naquele dia? Selmy acreditava saber a resposta daquele pergunta, embora não fosse algo que o agradasse.
Sonhara com aquilo novamente noite passada. Belwas de joelhos, vomitando bile e sangue, Hizdahr instando os matadores de dragão, homens e mulheres fugindo aterrorizados, lutando nos degraus, subindo uns sobre os outros, berrando e gritando. E Daenerys ...
O cabelo dela estava em chamas. Ela tinha o chicote nas mãos e estava gritando e, então, estava nas costas do dragão, voando. A areia que Drogon espalhou quando bateu as asas entrou em seus olhos, mas, mesmo atrás de um véu de lágrimas, Sor Barristan vira a besta voar da arena, elevando-se com suas grandes asas negras até os ombros dos guerreiros de bronze nos portões.
O resto, soube mais tarde. Além dos portões, a multidão se comprimia. Enlouquecidos pelo cheiro do dragão, os cavalos empinavam, aterrorizados, dando coices com as ferraduras. Tanto barracas de comida quanto palanquins foram virados, homens derrubados e pisoteados. Lanças foram arremessadas, bestas foram disparadas. Algumas acertaram o alvo. O dragão virou-se violentamente no ar, com os ferimentos soltando fumaça, a garota pendurada em suas costas. Então, soltou fogo.
Levara o resto do dia e quase a noite toda para as Bestas de Bronze reunirem os cadáveres. A contagem final era de duzentos e catorze mortos, e três vezes essa quantidade de queimados ou feridos. Drogon partira da cidade depois disso, sendo visto pela última vez sobre o Skahazadhan, voando para o norte. Nenhum sinal de Daenerys Targaryen foi encontrado. Alguns juravam tê-la visto cair. Outros insistiam que o dragão a levara e a devorara. Estão errados.
Sor Barristan não sabia mais de dragões do que as histórias que toda criança escutava, mas conhecia os Targaryen. Daenerys estava cavalgando aquele dragão, como Aegon antes cavalgara Balerion.
- Ela pode estar voando para casa - disse para si mesmo, em voz alta.
- Não - murmurou uma voz suave atrás dele. - Ela não faria isso, soro Ela não iria para casa sem nós.
Sor Barristan se virou.
- Missandei. Filha. Há quanto tempo está aí?
- Não muito. Esta uma sente se o incomodou. - Ela hesitou. - Skahaz mo Kandaq deseja falar com você.
- O Cabeça-Raspada? Você falou com ele? - Aquilo era imprudente, imprudente. A inimizade era profunda entre Skahaz e o rei, e a garota era esperta o suficiente para saber aquilo. Skahaz fora franco em sua oposição ao casamento da rainha, um fato que Hizdahr não esquecera. - Ele está aqui? Na pirâmide?
- Quando ele quer. Ele vem e vai, sor.
Sim. Ele pode fazer isso.
- Quem disse para você que ele quer falar comigo?
- Uma Besta de Bronze. Usava uma máscara de coruja.
Usava uma máscara de coruja quando falou com você. Agora pode ser um chacal, um tigre, um bicho-preguiça. Sor Barristan odiara as máscaras desde o início, e nunca mais do que agora. Homens honestos não precisam esconder seu rosto. E o Cabeça-Raspada...
O que ele estaria pensando? Depois que Hizdahr dera o comando das Bestas de Bronze para seu primo Marghaz zo Loraq, Skahaz fora nomeado Protetor do Rio, ficando a cargo das balsas, dragas e diques de irrigação ao longo do Skahazadhan por trezentos quilômetros, mas o Cabeça-Raspada recusara o “antigo e honorável cargo”; como Hizdahr chamara, preferindo se retirar para a modesta pirâmide de Kandaq. Sem a rainha para protegê-lo, ele assume um grande risco vindo aqui. E se Sor Barristan fosse visto falando com ele, as suspeitas cairiam sobre si, também.
Não gostava daquilo. Cheirava a engano, sussurros e mentiras, e tramas eclodidas na escuridão, todas as coisas que esperava ter deixado para trás com o Aranha, Lorde Mindinho e sua laia. Barristan Selmy não era um homem dado à leitura, mas várias vezes folheara as páginas do Livro Branco, onde os feitos de seus predecessores haviam sido gravados. Alguns foram heróis, outros fracos, patifes ou covardes. A maioria era apenas homens; mais rápidos e mais fortes que os demais, mais habilidosos com a espada e o escudo, mas ainda presas do orgulho, da ambição, da luxúria, do amor, da raiva, do ciúme, ávidos por ouro, famintos por poder, e todas as outras falhas que afligiam meros mortais. Os melhores deles superaram seus erros, cumpriram seu dever e morreram com as espadas nas mãos. Os piores ...
Os piores foram aqueles que jogaram o jogo dos tronos.
- Pode encontrar essa coruja novamente? - perguntou para Missandei.
- Esta uma pode tentar, sor.
- Diga para ele que falarei com... com nosso amigo ... depois que escurecer, nos estábulos. - As portas principais da pirâmide eram fechadas e lacradas ao pôr do sol. Os estábulos estariam tranquilos nesse horário. - Assegure-se de que seja a mesma coruja. - Não serviria de nada se a Besta de Bronze errada ouvisse isso.
- Esta uma entende. - Missandei virou-se para ir embora, então parou por um momento e disse: - Dizem que os yunkaítas cercaram a cidade com catapultas, para lançar dardos de ferro no céu se Drogon retornar.
Sor Barristan ouvira aquilo também.
- Não é uma coisa simples matar um dragão no céu. Em Westeros, muitos tentaram derrubar Aegon e suas irmãs. Ninguém conseguiu.
Missandei assentiu. Era difícil dizer se aquilo a tranquilizara.
- Acha que a encontrarão, sor? As terras de grama são tão vastas, e dragões não deixam rastros no céu.
- Aggo e Rakharo são sangue do seu sangue... e quem conhece o mar dothraki melhor do que os dothrakis? - Ele apertou o ombro dela. - Eles a encontrarão, se ela puder ser encontrada. - Se ainda estiver viva. Outros khals rondavam a região, senhores dos cavalos com khalasars cujos membros chegavam a dezenas de milhares. Mas a garota não precisava escutar aquilo. - Você a ama também, eu sei. Juro, manterei a rainha a salvo.
As palavras pareceram trazer algum conforto para a garota. Mas palavras são vento, pensou Sor Barristan. Como posso proteger a rainha se não estou com ela?
Barristan Selmy conhecera muitos reis. Nascera durante o reinado conturbado de Aegon, o Improvável, amado pelos camponeses, e tinha sido sagrado cavaleiro por suas mãos. O filho de Aegon, Jaehaerys, lhe dera o manto branco quando ele tinha vinte e três, depois de matar Maelys, o Monstruoso, durante a Guerra dos Reis de Nove Moedas. Com aquele mesmo manto, ele ficara ao lado do Trono de Ferro enquanto a loucura consumia o filho de Jaehaerys, Aerys. Fiquei lá, vi e escutei, e mesmo assim não fiz nada.
Mas, não. Aquilo não era justo. Cumprira seu dever. Algumas noites, Sor Barristan se perguntava se não tinha cumprido aquele dever bem demais. Jurara seus votos diante dos olhos dos deuses e dos homens e não podia ir contra eles com honra ... mas manter esses votos ficara mais difícil nos últimos anos do reinado do Rei Aerys. Vira coisas que eram doloridas de lembrar, e mais de uma vez se perguntou quanto do sangue estava em suas próprias mãos. Se não tivesse ido para Valdocaso resgatar Aerys do calabouço de Lorde Darklyn, o rei bem que poderia ter morrido quando Tywin Lannister saqueou a cidade. Então, o Príncipe Rhaegar teria assumido o Trono de Ferro, talvez para curar o reino. Valdocaso havia sido o melhor momento de Barristan Selmy e, mesmo assim, a memória deixava um gosto amargo em sua língua.
Eram seus fracassos que o assombravam à noite, no entanto. Jaehaerys, Aerys, Robert. Três reis mortos. Rhaegar, que teria sido um rei melhor do que qualquer um deles. A Princesa Elia e seus filhos. Aegon, apenas um bebê, Rhaenys com seu gatinho. Mortos, cada um deles, e mesmo assim ele ainda vivia, aquele que havia jurado protegê-los. E, agora, Daenerys, sua brilhante rainha criança. Ela não está morta. Não acreditarei nisso.
A tarde trouxe para Sor Barristan uma pausa em suas dúvidas. Ele a passou na sala de treino do terceiro nível da pirâmide, trabalhando com seus garotos, ensinando para eles a arte da espada e do escudo, cavalo e lança ... e cavalheirismo, o código que fazia de um cavaleiro mais do que qualquer lutador de arena. Daenerys precisaria de protetores de sua idade quando ele se fosse, e Sor Barristan estava determinado a lhe dar tais homens.
Os rapazes que estava instruindo tinham idade que ia de oito a vinte anos. Começara com mais de sessenta deles, mas o treinamento se provara rigoroso demais para muitos. Menos de metade daquele número permanecia agora, mas alguns mostravam grande promessa. Sem nenhum rei para guardar, agora tenho mais tempo para treiná-los, percebeu, enquanto andava de par em par, observando-os irem um até o outro com espadas cegas e lanças com pontas arredondadas. Bravos garotos. De baixo nascimento, sim, mas alguns serão bons cavaleiros, e amam a rainha. Se não fosse por ela, todos teriam terminado nas arenas. O Rei Hizdahr tem seus lutadores de arena, mas Daenerys terá cavaleiros.
- Mantenham os escudos levantados - gritou. - Mostrem-me seus ataques. Juntos, agora. Embaixo, em cima, embaixo, embaixo, em cima, embaixo ...
Selmy teve sua ceia simples no terraço da rainha naquela noite, e comeu enquanto o sol se punha. Através do crepúsculo púrpura, via fogueiras despertando uma a uma nas grandes pirâmides de degraus, enquanto os tijolos multicoloridos de Meereen desbotavam em tons de cinza e, depois, negro. Sombras se reuniam nas ruas e becos lá embaixo, formando piscinas e rios. Na escuridão, a cidade parecia um lugar tranquilo, até mesmo bonito. Isso é a peste, não paz, o velho cavaleiro disse para si mesmo, com o último gole de vinho.
Ele não desejava ser notado, então, quando terminou a ceia, tirou as roupas da corte, trocando o manto branco da Guarda da Rainha por um marrom com capuz que qualquer homem do povo poderia usar. Manteve sua espada e sua adaga. Isso pode ser uma armadilha. Tinha pouca confiança em Hizdahr, e menos ainda em Reznak mo Reznak. O senescal perfumado poderia muito bem ser parte daquilo, tentando atraí-lo para um encontro secreto para que pudesse capturar tanto ele quanto Skahaz e acusá-los de conspiração contra o rei. Se o Cabeça-Raspada falar em traição, não me deixará outra alternativa que não prendê-lo. Hizdahr é o consorte da minha rainha, por menos que eu goste dele. Meu dever é com ele, não com Skahaz.
Ou era?
O primeiro dever da Guarda Real era defender o rei de danos ou ameaças. Os cavaleiros brancos juravam obedecer as ordens do rei também, manter seus segredos, aconselhá-lo quando conselhos eram pedidos e manter silêncio caso contrário, servir ao seu prazer e defender seu nome e honra. Estritamente falando, era escolha apenas do rei se a proteção da Guarda Real devia ou não ser estendida a outros, mesmo àqueles de sangue real. Alguns reis achavam correto e adequado despachar a Guarda Real para servir e defender suas esposas e filhos, irmãos, tias, tios e primos em maior ou menor grau, e, ocasionalmente, até suas namoradas, amantes e bastardos. Mas outros preferiam usar cavaleiros de suas casas e homens em armas para esses propósitos, enquanto mantinham seus sete bem próximos para sua guarda pessoal.
Se a rainha tivesse me ordenado proteger Hizdahr, eu não teria outra escolha senão obedecer. Mas Daenerys Targaryen nunca estabelecera uma Guarda da Rainha de fato, nem para si mesma, ou emitira qualquer ordem a respeito de seu consorte. O mundo era mais simples quando eu tinha um senhor comandante para decidir essas questões, Selmy refletiu. Agora sou o senhor comandante, e é difícil saber qual o caminho correto.
Quando finalmente chegou à base do último lance de escadas, encontrou-se sozinho entre os corredores iluminados por tochas dentro das maciças paredes de tijolos da pirâmide. Os grandes portões estavam fechados e lacrados, como antecipara. Quatro Bestas de Bronze estavam de guarda do lado de fora, mais quatro do lado de dentro. Foram esses últimos que o velho cavaleiro encontrou - homens grandes, mascarados como javali, urso, ratazana e manticora.
- Tudo tranquilo, sor - o urso falou para ele.
- Mantenha assim. - Não era incomum que Sor Barristan desse uma volta, à noite, para ter certeza de que a pirâmide estava segura.
Nas profundezas da pirâmide, outras quatro Bestas de Bronze haviam sido escolhidas para guardar as portas de ferro do lado de fora do fosso onde Viserion e Rhaegal estavam presos. A luz das tochas brilhava em suas máscaras - macaco, carneiro, lobo e crocodilo.
- Eles têm sido alimentados? - Sor Barristan perguntou.
- Sim, sor - respondeu o macaco. - Uma ovelha para cada.
E por quanto tempo isso será suficiente, me pergunto? Os dragões cresciam, assim como seus apetites.
Era hora de encontrar o Cabeça-Raspada. Sor Barristan fez o caminho de volta, passando pelos elefantes e pela égua prateada da rainha, até os estábulos. Um burro relinchou quando ele passou, e alguns cavalos se agitaram sob a luz de sua lanterna. Além disso, tudo era escuridão e silêncio.
Então uma sombra se destacou de dentro de um estábulo vazio e transformou-se em outra Besta de Bronze, vestido com saia pregueada, grevas e uma musculosa placa peitoral.
- Um gato? - perguntou Barristan Selmy, quando viu o bronze sob o capuz. Quando o Cabeça-Raspada comandava as Bestas de Bronze, protegia-se com uma máscara de cabeça de serpente, imperiosa e assustadora.
- Gatos vão a qualquer lugar - respondeu a voz familiar de Skahaz mo Kandaq. - Ninguém nem olha para eles.
- Se Hizdahr souber que você está aqui...
- E quem vai dizer para ele? Marghaz? Marghaz sabe o que eu quero que ele saiba. As Bestas ainda são minhas. Não se esqueça disso. - A voz do Cabeça-Raspada estava abafada pela máscara, mas Selmy podia sentir a raiva nela. - Tenho o envenenador.
- Quem?
- O pasteleiro de Hizdahr. O nome dele não significaria nada para você. O homem era apenas um pau mandado. Os Filhos da Harpia pegaram a filha dele e juraram que ela retornaria intacta assim que a rainha estivesse morta. Belwas e o dragão salvaram Daenerys. Ninguém salvou a garota. Ela retornou para seu pai na escuridão da noite, em nove pedaços. Um para cada ano que viveu.
- Por quê? - Dúvidas o torturavam. - Os Filhos haviam parado sua matança. A paz de Hizdahr...
- ... é uma farsa. No início, não. Os yunkaítas estavam com medo de nossa rainha, de seus Imaculados e de seus dragões. Esta terra conhecera dragões antes. Yurkhaz zo Yunzak lera suas histórias, ele sabia. Hizdahr também. Por que não uma paz? Daenerys queria isso, eles podiam ver. Queria demais. Ela deveria ter marchado para Astapor. - Skahaz se aproximou. - Isso foi antes. A arena mudou tudo. Daenerys se foi, Yurkhaz morreu. No lugar de um velho leão, uma matilha de chacais. Barbassangrenta ... aquele um não tem gosto pela paz. E há mais. Pior. Volantis lançou sua frota contra nós.
- Volantis. - A mão da espada de Selmy formigava. Fizemos a paz com Yunkai. Não com Volantis. - Tem certeza?
- Certeza. Os Sábios Mestres sabem. Assim como os amigos deles. A Harpia, Reznak, Hizdahr. O rei abrirá os portões da cidade para os volantinos quando eles chegarem. Todos aqueles que Daenerys libertou serão escravizados novamente. Até alguns que nunca foram escravos serão colocados em correntes. Você pode terminar seus dias em uma arena de luta, velho. Khrazz comerá seu coração.
A cabeça dele latejava.
- Daenerys precisa ser informada.
- Encontre-a primeiro. - Skahaz agarrou seu antebraço. Seus dedos eram como ferro. - Não podemos esperar por ela. Falei com os Irmãos Livres, com os Homens da Mãe, com os Escudos Robustos. Eles não confiam em Loraq. Devemos quebrar os yunkaítas. Mas precisamos dos Imaculados. Verme Cinzento escutará você. Fale com ele.
- Com que finalidade? - Ele está falando em traição. Conspiração.
- Vida. - Os olhos do Cabeça-Raspada eram piscinas negras atrás da máscara de bronze de gato. - Devemos atacar antes que os volantinos cheguem. Quebrar o cerco, matar os senhores mercadores de escravos, trazer os mercenários para nosso lado. Os yunkaítas não esperam um ataque. Tenho espiões no acampamento deles. Há doença, dizem, pior a cada dia. A disciplina está apodrecendo. Os senhores ficam bêbados com frequência, empanturrando-se em banquetes, falando uns para os outros sobre as riquezas que dividirão quando Meereen cair, disputando a primazia. Barbassangrenta e o Príncipe Esfarrapado desprezam um ao outro. Ninguém espera uma luta. Não agora. A paz de Hizdahr nos embalou no sono, eles acreditam.
- Daenerys assinou aquela paz - Sor Barristan falou. - Não podemos quebrá-la sem seu consentimento.
- E se ela estiver morta? - quis saber o Cabeça-Raspada. - E então, sor? Eu digo que ela iria querer que protegêssemos sua cidade. Seus filhos.
Seus filhos eram os libertos. Mhysa, eles a chamavam, todos aqueles cujas correntes ela quebrara. “Mãe”. O Cabeça-Raspada não estava errado. Daenerys iria querer seus filhos protegidos.
- E quanto a Hizdahr? Ele ainda é o consorte dela. Seu rei. Seu marido.
- Seu envenenador.
Ele é?
- Onde está sua prova?
- A coroa que ele usa é prova suficiente. O trono onde ele senta. Abra seus olhos, velho. Isso é tudo o que ele precisava de Daenerys, tudo o que ele sempre quis. Uma vez que conseguiu, por que compartilhar o governo?
Por que, realmente? Estivera tão quente lá na arena. Ele ainda podia ver o ar cintilando sobre as areias escarlate, sentir o cheiro do sangue derramado de homens que morreram para o divertimento da multidão. E ainda podia ouvir Hizdahr incentivando a rainha a provar os gafanhotos com mel. Estes são muito saborosos ... doces e quentes ... e, mesmo assim, ele mesmo não tocou em nenhum ... Selmy esfregou as têmporas. Não fiz nenhum juramento a Hizdahr zo Loraq. E, se tivesse feito, ele me colocou de lado, exatamente como Joffrey fez.
- Este... este pasteleiro, quero interrogá-lo eu mesmo. Sozinho.
- É desse jeito? - O Cabeça-Raspada cruzou os braços contra o peito. - Feito, então. Interrogue-o como quiser.
- Se ... se o que ele disser me convencer... se eu me juntar a você neste, neste... exijo sua palavra de que nenhum mal acontecerá a Hizdahr zo Loraq até... a menos que... possa ser provado que ele teve alguma participação nisso.
- Por que se importa tanto com Hizdahr, velho? Se ele não é a Harpia, é o primogênito da Harpia.
- Tudo o que sei com certeza é que ele é o consorte da rainha. Quero sua palavra nisso, ou, eu juro, me oporei a você.
O sorriso de Skahaz era selvagem.
- Minha palavra, então. Nenhum mal a Hizdahr até que sua culpa seja provada. Mas quando tivermos a prova, pretendo matá-lo com minhas próprias mãos. Quero arrancar suas entranhas e mostrá-las para ele antes de fazê-lo morrer.
Não, o velho cavaleiro pensou. Se Hizdahr conspirou pela morte da minha rainha, eu terei com ele pessoalmente, mas sua morte será rápida e limpa. Os deuses de Westeros estavam longe, mas mesmo assim Sor Barristan Selmy parou por um momento para dizer uma prece silenciosa, pedindo à Velha que iluminasse seu caminho até a sabedoria. Pelos filhos, disse para si mesmo. Pela cidade. Por minha rainha.
- Falarei com Verme Cinzento - disse. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO DÊ SPOILERS!
Encontrou algum erro ortográfico no texto? Comente aqui para que possa arrumar :)
Se quer comentar e não tem uma conta no blogger ou google, escolha a opção nome/url e coloque seu nome. Nem precisa preencher o url.
Comentários anônimos serão ignorados