quinta-feira, 3 de outubro de 2013

56 - O PRETENDENTE DE FERRO


O Luto apareceu sozinho no raiar do dia, suas velas negras contra o rosa-claro do céu da manhã.
Cinquenta e quatro, Victarion pensou amargamente quando o acordaram, e navega sozinho. Silenciosamente, amaldiçoou o Deus da Tempestade por sua maldade, sua raiva uma pedra negra em sua barriga. Onde estão meus navios?
Zarpara dos Escudos com noventa e três, dos cem que outrora compunham a Frota de Ferro, uma frota que não pertencia a um único senhor, mas à própria Cadeira de Pedra do Mar, capitaneada e tripulada por homens de todas as ilhas. Navios menores do que os grandes dromons de guerra das terras verdes, sim, mas três vezes o tamanho de qualquer dracar comum, com cascos profundos e quilhas ferozes, aptos para enfrentar as frotas reais em batalha.
Em Passopedra, haviam parado para se reabastecer de cereais, diversão e água fresca, depois de uma longa viagem pela costa desolada e estéril de Dorne, com seus bancos de areia e redemoinhos. Ali, o Vitória de Ferro capturara um gordo navio mercante, o grande Senhora Nobre, a caminho de Vilavelha, passando por Vila Gaivotas, Valdocaso e Porto Real com um carregamento de bacalhau salgado, óleo de baleia e arenque em conserva. A comida era um reforço bem-vindo aos seus estoques. Outros cinco prêmios tomados no Estreito Redwyne e ao longo da costa dornense - três cocas, uma galé e uma galera - haviam elevado o número deles para noventa e nove.
Noventa e nove navios deixaram Passopedra em três orgulhosas frotas, com ordens para se juntar novamente na ponta sul da Ilha de Cedros. Quarenta e cinco tinham chegado, até agora, ao outro lado do mundo. Vinte e dois do próprio Victarion haviam se extraviado, em grupos de três ou quatro, algumas vezes sozinhos; catorze de Ralf, o Coxo; apenas nove dos que haviam zarpado com Ralf Vermelho Stonehouse. O próprio Ralf Vermelho estava entre os desaparecidos. A esse número, a frota havia somado nove novos prêmios tomados nos oceanos, então o resultado dava cinquenta e quatro ... mas os navios capturados eram cocas e barcos de pesca, navios mercantis e de traficantes de escravos, não embarcações de guerra. Em batalha, seriam substitutos pobres para os dracares perdidos da Frota de Ferro.
O último navio a aparecer fora o Desgraça da Donzela, três dias antes. No dia anterior, três navios haviam vindo juntos do sul - seu cativo Senhora Nobre, arrastando-se entre o Alimentador de Corvos e o Beijo de Ferro. Mas no dia antes desse e no anterior ainda, não havia aparecido nenhum, e apenas Jeyne Semcabeça e Medo, antes disso, então dois dias mais de mares vazios e céus sem nuvens depois que RalE, o Coxo, apareceu com os remanescentes de sua esquadra. Lorde Quellon, Viúva Branca, Lamentação, Aflição, Leviatã, Senhora de Ferro, Vento do Ceifeiro e Martelo de Guerra, com mais seis navios atrás deles, dois dos quais devastados pela tempestade e rebocados.
- Tempestades - Ralf, o Coxo, resmungara quando veio rastejando até Victarion. - Três grandes tempestades, e ventos abomináveis entre elas. Ventos vermelhos vindos de Valíria, que cheiravam a cinzas e enxofre, e ventos negros que nos levavam em direção àquela costa em ruínas. Esta viagem está amaldiçoada desde o início. O Olho de Corvo teme você, meu senhor, caso contrário, por que o mandaria tão longe? Ele não tem intenção de que retornemos.
Victarion pensara a mesma coisa quando encontrou a primeira tempestade, a um dia da Antiga Volantis. Os deuses odeiam os assassinos de parentes, meditou, caso contrário Euron Olho de Corvo teria morrido uma dúzia de mortes em minhas mãos. Enquanto o mar colidia em torno dele e o convés se erguia e caía sob seus pés, vira Banquete de Dagon e Maré Vermelha colidirem tão violentamente que ambos explodiram em pedaços. Obra do meu irmão, pensou. Aqueles foram os primeiros navios de um terço perdido de sua frota. Mas não foram os últimos.
Então esbofeteou o Coxo duas vezes no rosto e disse:
- O primeiro é pelos navios que você perdeu, o segundo por falar em maldições. Diga isso novamente e eu pregarei sua língua no mastro. Se Euron pode fazer mudos, eu também posso. - O latejar de dor em sua mão tornou as palavras mais ríspidas do que teriam sido de outro modo, mas ele pretendia dizer o que disse. - Mais navios virão. As tempestades pararam por enquanto. Terei minha frota.
Um macaco no mastro acima berrou de escárnio, quase como se sentisse o gosto de sua frustração. Imundo, besta barulhenta. Podia mandar um homem atrás dele, mas os macacos pareciam gostar daquele jogo, e haviam se provado mais ágeis do que sua tripulação. Os berros ficaram em seus ouvidos, contudo, e fizeram o latejar de sua mão parecer ainda pior.
- Cinquenta e quatro - resmungou. Teria sido demais esperar a força completa da Frota de Ferro depois de uma viagem tão longa ... mas setenta navios, mesmo oitenta, o Deus Afogado podia ter garantido aquele tanto para ele. Seria bom se tivéssemos Cabelo Molhado conosco, ou algum outro sacerdote. Victarion fizera um sacrifício antes de levantar velas, e novamente em Passopedra, quando dividiu a frota em três, mas talvez tenha dito as orações erradas. Isso, ou o Deus Afogado não tem poder aqui. Cada vez mais, temia que tivessem navegado longe demais, em mares desconhecidos onde até mesmo os deuses eram estranhos ... mas, essas dúvidas, ele confidenciava apenas para sua mulher morena, que não tinha língua para repeti-las.
Quando o Luto apareceu, Victarion convocou Wulfe Uma-Orelha.
- Quero conversar com A Ratazana. Mande chamar Ralf, o Coxo, Tom Sem-Sangue e o Negro Shepherd. Todos os grupos de caça devem retornar, e os acampamentos da costa devem ser desmontados à primeira luz. Carreguem o máximo de frutas que possam reunir e levem os porcos a bordo dos navios. Podemos matá-los quando necessário. O Tubarão ficará aqui para dizer a qualquer retardatário para onde fomos. - O navio precisaria daquele tempo para fazer reparos; as tempestades haviam deixado pouco mais do que o casco. Aquilo os reduziria a cinquenta e três, mas não tinha outro jeito. - A frota parte amanhã, na maré matutina.
- Ao seu comando - disse Wulfe - mas outro dia pode significar outro navio, senhor Capitão.
- Sim. E dez dias podem significar dez navios, ou nenhum. Já desperdiçamos tempo demais esperando a visão de velas. Nossa vitória será ainda mais doce se a conquistarmos com uma frota menor. - E eu preciso alcançar a rainha dragão antes dos volantinos.
Em Volantis, vira galeras sendo abastecidas com provisões. A cidade inteira parecia embriagada. Marinheiros, soldados e latoeiros eram vistos dançando nas ruas com nobres e gordos mercadores, e em cada estalagem e taberna brindes eram feitos para os novos triarcas. Toda a conversa girava em torno do ouro, das pedras preciosas e dos escravos que inundariam Volantis quando a rainha dragão estivesse morta. Um dia daqueles relatos foi tudo o que Victarion Greyjoy pôde suportar; pagou o preço em ouro por comida e água, embora isso o envergonhasse, e levou seus navios de volta ao mar.
As tempestades deviam ter espalhado e atrasado os volantinos, da mesma forma que acontecera com seus navios. Se a sorte sorrisse, muitos dos navios de guerra de Volantis podiam ter afundado ou encalhado. Mas não todos. Nenhum deus era tão bom, e aquelas galeras novas que tivessem sobrevivido podiam estar navegando perto de Valíria. Estarão correndo para o norte, em direção a Meereen e Yunkai, grandes dromons de guerra repletos de soldados-escravos. Se o Deus da Tempestade os poupou, eles já podem estar no Golfo da Mágoa. Trezentos navios, talvez até quinhentos. Os aliados deles já estavam todos em Meereen; yunkaítas e astaporis, homens de Nova Ghis, de Qarth e Tolos, e só o Deus da Tempestade podia saber quem mais, mesmo os navios de guerra de Meereen, aqueles que haviam zarpado antes da queda da cidade. Contra tudo isso, Victarion tinha cinquenta e quatro. Cinquenta e três, menos o Tubarão.
O Olho de Corvo havia navegado até o outro lado do mundo, saqueando e pilhando de Qarth até a Vila das Árvores Altas, alcançando portos profanos além dos quais apenas os loucos iam. Euron até mesmo enfrentara o Mar Fumegante e vivera para contar. E isso com um único navio. Se ele pode zombar dos deuses, eu também posso.
- Sim, Capitão - disse Wulfe Uma-Orelha. Ele não era nem metade do homem que Nute, o Barbeiro, era, mas o Olho de Corvo lhe havia roubado Nute. Ao torná-lo Senhor de Escudorroble, seu irmão pegara o melhor homem de Victarion para si. - Ainda será para Meereen?
- Para onde mais? A rainha dragão espera por mim em Meereen. - A mulher mais bonita da terra, se é possível acreditar no meu irmão. Seu cabelo é de ouro-prateado, seus olhos são ametistas.
Era demais esperar que pelo menos uma vez Euron tivesse dito a verdade? Talvez. Provavelmente, a garota provaria ser uma desmazelada bexiguenta, com tetas batendo contra os joelhos, seus “dragões” não mais do que tatuagens de lagartos dos pântanos de Sothoryos. Mas, se ela é tudo o que Euron afirma ... Ouviram conversas sobre a beleza de Daenerys Targaryen dos lábios de piratas em Passopedra e de gordos mercadores da Antiga Volantis. Podia ser verdade. E Euron não pretendia dar a moça de presente para Victarion; o Olho de Corvo pretendia tomá-la para si mesmo. Ele me envia como um servo para buscá-la. Como ele uivará quando eu a reivindicar para mim mesmo. Que os homens resmungassem. Haviam navegado muito longe e perdido muito para que Victarion voltasse para o oeste sem seu prêmio.
O capitão de ferro fechou sua mão boa.
- Assegure-se de que minhas ordens sejam cumpridas. E encontre o meistre onde quer que ele esteja escondido e envie-o à minha cabine.
- Sim. - Wulfe saiu mancando.
Victarion Greyjoy virou-se em direção à proa, seu olhar varrendo sua frota. Dracares enchiam o mar, velas arriadas e remos levantados, ancorados ou presos na praia de areias claras. A Ilha de Cedros. Onde estavam os tais cedros? Afogados há quatrocentos anos, pelo que parecia. Victarion havia desembarcado uma dúzia de vezes para caçar carne fresca, e ainda tinha que ver um cedro.
O meistre afeminado que Euron lhe impusera ainda em Westeros afirmava que este lugar uma vez fora chamado de “Ilha de Uma Centena de Batalhas”, mas os homens que lutaram tais batalhas haviam se transformado em pó séculos atrás. A Ilha dos Macacos, é assim que devia ser chamada. Havia porcos também; os maiores e mais negros javalis que qualquer homem de ferro já vira e uma abundância de leitões gritando no mato, criaturas ousadas que não tinham medo do homem. Mas estão aprendendo. As despensas da Frota de Ferro estavam se enchendo de presuntos defumados, porco salgado e toicinho.
Já os macacos ... os macacos eram uma praga. Victarion proibira seus homens de levar qualquer uma dessas criaturas demoníacas para bordo dos navios, mas de algum modo metade de sua frota estava infestada com eles, mesmo seu próprio Vitória de Ferro. Podia ver alguns nesse momento, balançando de um mastro para outro, de navio em navio. Gostaria de ter uma besta.
Victarion não gostava deste mar, nem desse infinito céu sem nuvens, nem do sol escaldante que batia em suas cabeças e cozinhava o convés até que as tábuas estivessem quentes o suficiente para queimar pés descalços. Não gostava dessas tempestades, que pareciam vir de lugar nenhum. Os mares ao redor de Pyke eram muitas vezes tempestuosos, mas ao menos um homem podia sentir o cheiro quando as tormentas estavam chegando. As tempestades do sul eram tão traiçoeiras quanto as mulheres. Até mesmo a água tinha a cor errada; um turquesa resplandecente perto da costa e, mais distante, um azul tão profundo que era quase negro. Victarion sentia falta das águas cinza-esverdeado de casa, com suas espumas brancas e suas ondas.
Tampouco gostava da Ilha de Cedros. A caça podia ser boa, mas as florestas eram muito verdes e quietas, cheias de árvores retorcidas e estranhas flores brilhantes como nenhuma que seus homens tivessem visto antes, e havia horrores à espreita entre os palácios destruídos e as estátuas quebradas da afogada Velos, a três quilômetros ao norte do ponto em que a frota ancorara. Da última vez em que Victarion passara uma noite em terra firme, seus sonhos foram sombrios e perturbadores e, quando acordou, sua boca estava cheia de sangue. O meistre disse que havia mordido a língua enquanto dormia, mas ele considerou isso um sinal do Deus Afogado, um aviso de que, se permanecesse por muito tempo naquele lugar, poderia se engasgar com seu próprio sangue.
No dia em que a Perdição chegara a Valíria, dizia-se, uma parede de água de quase cem metros de altura descera sobre a ilha, afogando centenas de milhares de homens, mulheres e crianças, não deixando ninguém para contar a história além de alguns pescadores que estavam no mar e um punhado de lanceiros velosinos postados em uma robusta torre de pedra na montanha mais alta da ilha, que haviam visto as colinas e os vales embaixo deles se transformarem em um mar agitado. A bela Velos com seus palácios de cedro e mármore rosa desaparecera em um piscar de olhos. No extremo norte da ilha, as antigas muralhas de tijolos e as pirâmides de degraus do porto escravista de Ghozai sofreram o mesmo destino.
Com tantos homens afogados, o Deus Afogado deve ser poderoso lá, Victarion pensara, ao escolher a ilha para que as três partes de sua frota se reunissem novamente. Mas ele não era nenhum sacerdote. E se tivesse entendido ao contrário? Talvez o Deus Afogado tivesse destruído a ilha em sua ira. Seu irmão Aeron teria sabido, mas o Cabelo Molhado ficara nas Ilhas de Ferro, pregando contra o Olho de Corvo e seu reinado. Nenhum homem sem deus pode se sentar na Cadeira de Pedra do Mar. Mesmo assim, os capitães e reis haviam gritado por Euron na assembleia de homens livres, escolhendo-o em detrimento de Victarion e de outros homens tementes ao deus.
O sol da manhã brilhava na água em ondas de luz resplandecentes demais para se olhar. A cabeça de Víctarion começara a latejar, embora não pudesse dizer se era pelo sol, por sua mão ou pelas dúvidas que o atormentavam. Desceu para a cabine, onde o ar estava mais fresco e escuro. A mulher morena sabia o que ele queria sem que tivesse que pedir. Quando ele relaxou em sua cadeira, ela pegou um pano úmido e macio da bacia e o colocou em sua testa.
- Bom - ele disse. - Bom. E, agora, a mão.
A mulher morena não respondeu. Euron havia cortado sua língua antes de dá-la para de. Victarion não duvidada que o Olho de Corvo tivesse dormido com ela também. Era o jeito do seu irmão. Os presentes de Euron são envenenados, o capitão lembrara a si mesmo no dia em que a mulher morena veio a bordo. Não quero nenhum de seus restos. Decidira, então, que cortaria a garganta dela e a atiraria ao mar, um sacrifício de sangue para o Deus Afogado. De alguma forma, contudo, jamais chegara nem perto de fazer isso.
Haviam percorrido um longo caminho a partir daí. Victarion podia falar com a mulher morena. Ela nunca tentava responder.
- O Luto é o último - disse, enquanto ela tirava sua luva. - Os outros estão perdidos ou afogados. - Fez uma careta quando a mulher deslizou a ponta da faca sob o linho sujo que cobria a ferida da sua mão do escudo. - Alguns dirão que eu não devia ter dividido a frota. Tolos. Noventa e nove navios, nós tínhamos ... um animal complicado de se guiar pelos mares até o final do mundo. Se eu tivesse mantido todos juntos, os navios mais rápidos teriam ficado reféns dos mais lentos. E onde encontrar provisões para tantas bocas? Nenhum porto quer tantos navios de guerra em suas águas. As tempestades teriam nos separado de qualquer jeito. Como folhas espalhadas no Mar do Verão.
Em vez disso, havia separado a grande frota em esquadras, e enviara cada uma delas por uma rota distinta para a Baía dos Escravos. Os navios mais rápidos foram entregues a Ralf Vermelho Stonehouse, para navegar pelo caminho dos corsários ao longo da costa norte de Sothoryos. Era melhor evitar as cidades mortas que apodreciam naquelas praias ardentes e sufocantes, todo marinheiro sabia, mas nas cidades de lama e sangue das Ilhas Basilisco, repletas de escravos fugidos, traficantes de escravos, traficantes de peles, caçadores, homens tigrados e coisas piores, havia sempre provisões a ser pegas por homens que não tinham medo de pagar o preço de ferro.
Os navios maiores, mais pesados e mais lentos, foram por Lys, para vender os cativos feitos nos Escudos, as mulheres e as crianças da Vila de Lorde Hewett e das outras ilhas, juntamente com os homens que decidiram que preferiam se render a morrer. Victarion tinha apenas desprezo por tais fracos. Mesmo assim, a venda deixava um gosto desagradável em sua boca. Tomar um homem como escravo, ou uma mulher como esposa de sal, era correto e adequado, mas homens não eram cabras ou galinhas para ser comprados e vendidos por ouro. Ficara feliz em deixar essa tarefa para Ralf, o Coxo, que poderia usar o dinheiro para carregar seus grandes navios com provisões para a longa e lenta travessia do meio leste.
Seus próprios navios rastejaram ao longo da costa das Terras Disputadas, para pegar comida, vinho e água fresca em Volantis antes de navegar para o sul, ao redor de Valíria. Esse era o caminho mais comum para o leste, e uma das rotas mais movimentadas, com prêmios para ser tomados e pequenas ilhas onde podiam se abrigar durante tempestades, fazer reparos e renovar seus estoques se fosse necessário.
- Cinquenta e quatro navios é muito pouco - disse para a mulher morena - mas não posso esperar mais. O único jeito... - Resmungou quando ela puxou o curativo, arrancando um pedaço da pele também. A carne embaixo estava verde e negra onde a espada havia cortado. - ... o único jeito de fazer isso é pegar os traficantes de escravos desprevenidos, como fiz uma vez em Lannisporto. Aparecer do nada e esmagá-los, então pegar a garota e correr para casa antes que os volantinos caiam sobre nós. - Victarion não era covarde, mas tampouco era tolo; não podia enfrentar trezentos navios com cinquenta e quatro. - Ela será minha esposa, e você será minha camareira. - Uma camareira sem língua nunca deixaria escapar nenhum segredo.
Ele poderia ter dito mais, mas foi então que o meistre chegou, batendo na porta da cabine, tímido como um rato.
- Entre - Victarion gritou - e tranque a porta. Você sabe por que está aqui.
- Senhor Capitão. - O meistre parecia um rato também, com sua túnica cinza e seu pequeno bigode castanho. Será que ele acha que isso o torna mais viril? Kerwin era seu nome. Era muito jovem, vinte e dois, talvez. - Posso ver sua mão? - perguntou.
Uma pergunta estúpida. Meistres tinham sua utilidade, mas Victarion não tinha nada além de desprezo por esse Kerwin. Com suas suaves bochechas rosadas, mãos macias e cachos castanhos, ele parecia mais feminino que a maioria das garotas. Na primeira vez que subira a bordo do Vitória de Ferro, tinha um sorrisinho estúpido também, mas, em uma noite em Passopedra, sorrira para o homem errado, e Quellon Humble arrebentara quatro de seus dentes. Não muito tempo depois daquilo, Kerwin fora se arrastando até o capitão para reclamar que quatro membros de sua tripulação o haviam arrastado para dentro do navio e o usado como mulher.
- É assim que você coloca um fim nisso - Victarion disse para ele, espetando uma adaga na mesa entre eles. Kerwin pegou a lâmina - assustado demais para recusá-la, o capitão julgou - mas nunca a usou.
- Minha mão está aqui - Victarion falou. - Olhe tudo o que quiser.
Meistre Kerwin se apoiou em um joelho, para inspecionar melhor a ferida. Até mesmo a farejou, como um cão.
- Terei que tirar o pus novamente. A cor... senhor capitão, o corte não está curando. Talvez eu precise amputar sua mão.
Haviam falado sobre isso antes.
- Se amputar minha mão, mato você. Mas, primeiro, eu o amarrarei no parapeito e darei sua bunda de presente para a tripulação. Vamos com isso.
- Haverá dor.
- Sempre há. - Vida é dor, seu tolo. Não há alegria, exceto nos salões molhados do Deus Afogado. - Faça.
O rapaz - era difícil pensar em alguém tão suave e rosado como um homem - colocou a ponta do punhal na palma da mão do capitão e cortou. O pus que irrompeu era grosso e amarelo como leite azedo. A mulher morena torceu o nariz para o cheiro, o meistre segurou a ânsia de vômito e até Victarion sentiu seu estômago revirar.
- Corte mais fundo. Tire tudo. Mostre-me sangue.
Meistre Kerwin apertou a adaga mais fundo. Dessa vez doeu, mas o sangue brotou, assim como o pus, um sangue tão escuro que parecia negro à luz da lanterna.
Sangue era bom. Victarion grunhiu em aprovação. Sentou-se firme enquanto o meistre secava, apertava e limpava o pus, com quadrados de tecido macio fervidos em vinagre. Quando terminou, a água limpa na bacia tinha se tornado uma sopa espumante. A visão por si só podia fazer qualquer homem enjoar.
- Pegue esta sujeira e vá. - Victarion acenou para a mulher morena. - Ela pode fazer o curativo.
Mesmo depois que o rapaz partiu, o fedor permaneceu. Ultimamente, não havia como escapar disso. O meistre sugerira que o ferimento seria mais bem drenado no convés, no ar fresco e à luz do sol, mas Victarion proibira. Aquilo não era algo que sua tripulação pudesse ver. Estavam a meio mundo de casa, longe demais para deixá-los ver seu capitão de ferro começar a enferrujar.
Sua mão esquerda ainda latejava - uma dor incômoda, mas persistente. Quando fechava a mão, sentia pontadas, como se uma faca estivesse sendo enfiada em seu braço. Não uma faca, uma espada longa. Uma espada longa na mão de um fantasma. Serry, aquele tinha sido o nome dele. Um cavaleiro, e herdeiro de Escudossul. Eu o matei, mas ele ainda me esfaqueia do além-túmulo. Do coração quente de seja lá qual inferno eu o mandei, ele empurra seu aço na minha mão e torce.
Victarion se lembrava da luta como se tivesse sido ontem. Seu escudo estava em pedaços, pendendo inútil em seu braço, então, quando a espada longa de Serry veio para baixo, ele estendeu a mão e a agarrou. O rapaz era mais forte do que parecia; sua lâmina atravessou o aço articulado da manopla do capitão e a luva forrada embaixo até atingir a carne da palma de sua mão. Um arranhão de um gatinho, Victarion disse para si mesmo, depois. Lavara o corte, despejara um pouco de vinagre fervido sobre ele, enfaixara-o e deixou de pensar naquilo, acreditando que a dor diminuiria e a mão se curaria com o tempo.
Em vez disso, a ferida tinha infeccionado, até que Victarion começou a se perguntar se a lâmina de Serry estava envenenada. Por que mais a ferida se recusaria a sarar? O pensamento o deixou com raiva. Nenhum homem de verdade matava com veneno. No Fosso Cailin, os demônios do pântano haviam arremessado flechas envenenadas em seus homens, mas era o que se podia esperar de tais criaturas degradadas. Serry tinha sido um cavaleiro, bem-nascido. Veneno era para covardes, mulheres e dornenses.
- Se não foi Serry, então quem? - perguntou para a mulher morena. - Poderia aquele rato daquele meistre estar causando isso? Meistres conhecem feitiços e outros truques. Ele pode estar usando um para me envenenar, esperando que eu o deixe cortar minha mão fora. - Quanto mais pensava nisso, mais provável lhe parecia. - O Olho de Corvo o deu para mim, criatura miserável que é. - Euron tirara Kerwin de Escudoverde, onde estava a serviço de Lorde Chester, cuidando de seus corvos e ensinando seus filhos, ou talvez de outros nas redondezas. E como o rato guinchava quando um dos mudos de Euron o entregara a bordo do Vitória de Ferro, arrastando-o pela corrente em seu pescoço. - Se isso é por vingança, ele se engana comigo. Foi Euron quem insistiu que ele fosse levado, para evitar que causasse danos com suas aves. - Seu irmão lhe dera três gaiolas de corvos também, para que Kerwin pudesse mandar notícias de sua viagem, mas Victarion proibira que fossem soltas. Que fique de molho, se perguntando o que está acontecendo.
A mulher morena estava enfaixando sua mão com linho limpo, enrolando a faixa seis vezes ao redor da palma, quando Aguado Pyke apareceu, batendo na porta da cabine, para dizer que o capitão do Luto viera a bordo com um prisioneiro.
- Dizem que nos traz um feiticeiro, Capitão. Dizem que o pescou no mar.
- Um feiticeiro? - Poderia o Deus Afogado ter lhe mandado um presente, aqui, do outro lado do mundo? Seu irmão Aeron saberia, mas Aeron vira a majestade dos salões molhados do Deus Afogado sob o mar, antes de ser trazido de volta à vida. Victarion tinha um temor saudável por seu deus, como todos os homens deveriam ter, mas colocava sua fé no aço. Flexionou a mão ferida, fazendo uma careta, então colocou a luva e se levantou. - Mostre-me esse feiticeiro.
O capitão do Luto esperava por ele no convés. Um homem pequeno, tão peludo quanto rústico, era um Sparr por nascimento. Seus homens o chamavam A Ratazana.
- Senhor Capitão - disse, quando Victarion apareceu - este é Moqorro. Um presente para nós, do Deus Afogado.
O feiticeiro era um monstro de homem, tão alto quanto o próprio Victarion e duas vezes mais largo, com urna barriga como uma rocha e um emaranhado de cabelos branco-osso que cresciam em seu rosto como a juba de um leão. Sua pele era negra. Não o marrom-castanho dos ilhéus do Verão com seus navios cisne, nem o marrom-avermelhado dos senhores dos cavalos dothrakis, nem a cor de carvão-e-terra da pele da mulher morena, mas negra. Mais negra que carvão, mais negra do que o azeviche, mais negra do que as asas de um corvo. Queimado, Victarion pensou, como um homem que foi tostado nas chamas até que sua carne carbonizou e caiu soltando fumaça de seus ossos. As chamas que o carbonizaram ainda dançavam em suas bochechas e testa, onde os olhos espiavam entre uma máscara de chamas congeladas. Tatuagens de escravo, o capitão sabia. Marcas do mal.
- Nós o encontramos agarrado a um mastro quebrado - disse A Ratazana. - Estava há dez dias na água, depois que seu navio afundou.
- Se estivesse há dez dias no mar, estaria morto ou louco de beber água salgada. - A água salgada era sagrada; Aeron Cabelo-Molhado e outros sacerdotes podiam abençoar homens com ela e engolir um bocado ou dois de tempos em tempos, para fortalecer sua fé, mas nenhum homem mortal podia beber do mar profundo por dias a fio e esperar viver.
- Você afirma ser feiticeiro? - Victarion perguntou ao prisioneiro.
- Não, Capitão - o homem negro respondeu na Língua Comum. Sua voz era tão profunda que parecia ter saído do fundo do mar. - Sou um humilde escravo de R'hllor, o Senhor da Luz.
R'hllor. Um sacerdote vermelho, então. Victarion havia visto tais homens nas cidades estrangeiras, cuidando de suas fogueiras sagradas. Aqueles vestiam ricas túnicas vermelhas de seda, veludo e lã de cordeiro. Esse aqui usava trapos desbotados e manchados pelo sal que se agarravam às suas pernas grossas e penduravam-se em seu torso em frangalhos ... mas, quando o capitão espiou os trapos mais de perto, lhe pareceram que alguma vez tinham sido vermelhos.
- Um sacerdote cor-de-rosa - Victarion anunciou.
- Um sacerdote do demônio - falou Wulfe Uma-Orelha. Cuspiu.
- Talvez suas vestes tenham pegado fogo, então ele pulou do barco para apagá-las - sugeriu Aguado Pyke, para riso geral. Até mesmo os macacos estavam se divertindo. Tagarelavam lá em cima, e um deles arremessou um punhado de sua própria merda no piso do convés.
Victarion desconfiava de risos. O som daquilo sempre o deixava com a desagradável sensação de que era alvo de alguma piada que não podia entender. Euron Olho de Corvo frequentemente zombava dele quando eram crianças. Aeron também, antes que se tornasse o Cabelo Molhado. A zombaria deles quase sempre vinha disfarçada de elogios, e algumas vezes Victarion não chegava a perceber que estava sendo zombado. Não até ouvir as risadas. Então vinha a raiva, fervendo no fundo de sua garganta até que ficasse prestes a engasgar com o gosto. Era como ele se sentia com zombarias. As brincadeiras da tripulação nunca traziam mais do que um sorriso ao rosto do capitão, embora os demais estivessem rugindo, vaiando e assobiando.
- Mande-o para o Deus Afogado antes que traga alguma maldição sobre nós - exigiu Burton Humble.
- Um navio afundou e só ele ficou agarrado aos destroços - falou Wulfe Uma-Orelha. - Onde está a tripulação? Será que ele convocou demônios para devorar todos eles? O que aconteceu com esse navio?
- Uma tempestade. - Moqorro cruzou os braços contra o peito. Não parecia assustado, embora todos ao redor dele pedissem sua morte. Nem mesmo os macacos pareciam gostar desse feiticeiro. Saltavam de corda em corda, sobre a cabeça deles, gritando.
Victarion tinha dúvidas. Ele saiu do mar. Por que o Deus Afogado o manteria na superfície, a menos que pretendesse que o encontrássemos? Seu irmão Euron tinha seu feiticeiro de estimação. Talvez o Deus Afogado quisesse que Victarion tivesse um também.
- Por que diz que este homem é um feiticeiro? - perguntou para A Ratazana. - Vejo apenas um sacerdote vermelho esfarrapado.
- Pensei o mesmo, Senhor Capitão ... mas ele sabe coisas. Sabia que íamos para a Baía dos Escravos antes que qualquer homem lhe contasse isso, e sabia que você estaria aqui, ancorado nesta ilha. - O homenzinho hesitou. - Senhor Capitão, ele me disse... ele me disse que você certamente morreria, a menos que eu o trouxesse até você.
- Que eu morreria? - Victarion bufou. Cortem a garganta dele e o atirem ao mar, estava prestes a dizer, quando uma pontada de dor em sua mão ferida esfaqueou seu braço até quase o cotovelo, a agonia tão intensa que suas palavras se tornaram bile em sua garganta.
Ele tropeçou e agarrou o parapeito para não cair.
- O feiticeiro amaldiçoou o capitão - uma voz falou.
Outros homens começaram a gritar.
- Cortem a garganta dele! Matem-no antes que ele chame seus demônios sobre nós!
Aguado Pyke foi o primeiro a desembainhar a adaga.
- NÃO! - Victarion gritou. - Para trás! Todos vocês. Pyke, guarde seu aço. Ratazana, de volta para seu navio. Humble, leve o feiticeiro à minha cabine. O resto de vocês, de volta aos seus deveres. - Por meio segundo, não estava seguro de que o obedeceriam. Ficaram murmurando, metade com as lâminas nas mãos, cada um olhando para os outros para se decidirem. Merda de macaco chovia em volta deles todos, splash, splash, splash. Ninguém se moveu, até que Victarion agarrou o feiticeiro pelo braço e o empurrou pelo alçapão.
Quando abriu a porta da cabine do capitão, a mulher morena se virou em sua direção, silenciosa e sorridente... mas, quando viu o sacerdote vermelho ao lado dele, seus lábios se afastaram de seus dentes, e ela sibilou em súbita fúria, como uma serpente. Victarion a acertou com as costas da mão boa e a derrubou no chão.
- Quieta, mulher. Vinho para nós dois. - Virou-se para o homem negro. - A Ratazana falou a verdade? Você viu minha morte?
- Isso, e mais.
- Onde? Quando? Eu morrerei em batalha? - Sua mão boa se abria e se fechava. - Se mentir para mim, abrirei sua cabeça como um melão e deixarei os macacos comerem seu cérebro.
- Sua morte está conosco agora, meu senhor. Dê-me sua mão.
- Minha mão. O que sabe sobre minha mão?
- Vi você em minhas chamas noturnas, Victarion Greyjoy. Você veio caminhando pelas chamas, severo e feroz, seu grande machado pingando sangue, cego para os tentáculos que o agarram pelos pulsos, pescoço e tornozelos, as cordas negras que o fazem dançar.
- Dançar? - Victarion se eriçou. - Suas chamas noturnas mentem. Não fui feito para dança, e não sou marionete de homem algum. - Arrancou a luva e enfiou a mão ruim no rosto do sacerdote. - Aqui. Era isso que você queria? - O linho novo já estava tingido de sangue e pus. - Ele tinha uma rosa em seu escudo, o homem que me deu isso. Arranhei minha mão em um espinho.
- Mesmo os menores arranhões podem se provar mortais, senhor Capitão, mas, se me permitir, posso curar isso. Precisarei de uma lâmina. Prata seria melhor, mas ferro servirá. Um braseiro, também. Preciso acender uma fogueira. Haverá dor. Uma dor terrível, como você nunca conheceu. Mas, quando terminarmos, sua mão retornará para você.
São todos iguais, esses homens mágicos. O rato me avisou da dor também.
- Sou um homem de ferro, sacerdote. Rio da dor. Você terá o que pede... mas, se falhar, e minha mão não ficar curada, eu mesmo cortarei sua garganta e o darei ao mar.
Moqorro curvou-se, seus olhos escuros brilhando.
- Que assim seja.
O capitão de ferro não foi visto novamente naquele dia, mas, enquanto as horas passavam, a tripulação do seu Vitória de Ferro relatou ter ouvido o som de risos selvagens vindos da cabine do capitão, risadas profundas, escuras e loucas, e, quando Aguado Pyke e Wulfe Uma-Orelha tentaram abrir a porta da cabine, encontraram-na trancada. Mais tarde, cantos foram ouvidos, uma estranha e chorosa canção em uma língua que o meistre disse ser Alto Valiriano. Foi quando os macacos deixaram o navio, gritando à medida que pulavam na água.
Veio o pôr do sol, enquanto o mar se tornava negro como tinta e o sol inchado tingia o céu de um vermelho profundo e sangrento, e Victarion voltou para o convés. Estava nu da cintura para cima, seu braço esquerdo ensanguentado até o cotovelo. Quando sua tripulação se reuniu, sussurrando e trocando olhares, ergueu uma mão queimada e enegrecida.
Filetes de fumaça escura saíam de seus dedos enquanto apontava para o meistre.
- Este aí. Cortem a garganta dele e joguem-no ao mar, e os ventos serão favoráveis por todo o caminho até Meereen. - Moqorro vira aquilo em suas chamas. Vira o casamento da moça também, mas e daí? Ela não seria a primeira mulher que Victarion Greyjoy deixaria viúva. 

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