sexta-feira, 4 de outubro de 2013

62 - O SACRIFÍCIO


Na praça da vila, os homens da rainha construíam sua pira.
Ou seriam jardins de inverno? A neve estava na altura dos joelhos por todos os lados, exceto onde os homens a haviam tirado com pás, para abrir buracos no chão congelado com machados, espadas e picaretas. O vento soprava do oeste, levando ainda mais neve pela superfície congelada dos lagos.
- Você não quer ver isto - Aly Mormont disse.
- Não, mas verei. - Asha Greyjoy era a filha da lula gigante, não uma donzela mimada que não aguentava olhar a feiura.
Tinha sido um dia escuro, frio e pouco produtivo, como o dia anterior e o dia antes desse. Passaram a maior parte dele no gelo, tremendo ao lado de um par de buracos que haviam cortado no menor dos lagos congelados, com linhas de pesca enroladas em desajeitadas mãos enluvadas. Não muito tempo atrás, podiam contar um ou dois peixes pegos por pessoa, e os homens da Matadelobos, mais acostumados com a pesca no gelo, pegavam quatro ou cinco. Hoje, tudo o que Asha conseguira fora um frio de penetrar nos ossos. Aly não se saíra melhor. Fazia três dias que nenhuma das duas pegava um peixe.
A Mulher-Ursa tentou de novo.
- Eu não preciso ver isso.
Não é você a quem os homens da rainha querem queimar.
- Então, vá. Você tem minha palavra, não tentarei fugir. Para onde iria? Para Winterfell? - Asha riu. - São apenas três dias de cavalgada, me disseram.
Seis homens da rainha lutavam para colocar dois enormes postes de pinheiro em buracos que outros seis homens da rainha haviam cavado. Asha não teve que perguntar para que serviam. Ela sabia. Estacas. O anoitecer estaria sobre eles em breve, e o deus vermelho precisava ser alimentado. Uma oferenda de sangue e fogo, os homens da rainha chamavam, para que o Senhor da Luz possa voltar seus olhos de fogo sobre nós e derreter estas neves três vezes amaldiçoadas.
- Mesmo neste lugar de medo e escuridão, o Senhor da Luz nos protege - Sor Godry Farring disse para os homens que haviam se reunido para ver as estacas sendo marteladas dentro dos buracos.
- O que esse seu deus sulista tem a ver com a neve? - exigiu saber Artos Flint. Sua barba negra tinha uma crosta de gelo. - Isso é a ira dos antigos deuses sobre nós. É a eles que devemos agradar.
- Sim - disse Grande Balde Wull. - O Rahloo vermelho não significa nada aqui. Vocês apenas deixarão os antigos deuses mais zangados. Eles estão nos observando de sua ilha.
A vila de arrendatários estava entre dois lagos, o maior deles salpicado com pequenas ilhas arborizadas que saíam pelo gelo como punhos congelados de algum gigante afogado. Em uma dessas ilhas erguia-se um represeiro retorcido e antigo, seu tronco e galhos brancos como a neve ao redor. Oito dias atrás, Asha havia caminhado até lá com Aly Mormont e dera uma olhada de perto nos olhos vermelhos semi cerrados e na boca sangrenta. É apenas seiva, dissera para si mesma, a seiva vermelha que escorre de dentro desses represeiros. Mas seus olhos não estavam convencidos; ver era acreditar, e o que via era sangue congelado.
- Vocês, nortenhos, trouxeram estas neves sobre nós - insistiu Corliss Penny. - Vocês e seus deuses demoníacos. R'hllor nos salvará.
- R'hllor nos condenará - disse Artos Flint.
Para o inferno com os deuses de todos vocês, pensou Asha Greyjoy.
Sor Godry, o Matador de Gigantes, supervisionava as estacas, empurrando uma para ter certeza de que estava colocada com firmeza.
- Bom. Bom. Servirão. Sor Clayton, traga o sacrifício.
Sor Clayton Suggs era o braço direito de Godry. Ou seria seu braço atrofiado? Asha não gostava de Sor Clayton. Onde Farring parecia feroz em sua devoção ao deus vermelho, Suggs era simplesmente cruel. Ela o vira nas fogueiras noturnas, olhando, os lábios entreabertos e os olhos ávidos. Não é o deus que ele ama, são as chamas, ela concluíra. Quando perguntou a Sor Justin se Suggs sempre fora assim, ele fez uma careta.
- Em Pedra do Dragão, ele apostava com os torturadores e os ajudava a interrogar os prisioneiros, especialmente se o prisioneiro fosse uma mulher jovem.
Asha não ficara surpresa. Suggs teria um prazer especial em queimá-la, não duvidava. A menos que as tempestades parem.
Estavam a três dias de Winterfell havia dezenove dias. Quinhentos e cinquenta quilômetros de Bosque Profundo até Winterfell. Menos de quinhentos quilômetros no voo de um corvo. Mas nenhum deles era corvo, e a tempestade era implacável. A cada manhã Asha acordava esperando poder ver o sol, apenas para encarar outro dia de neve. A tempestade havia enterrado cada cabana e casebre sob pilhas de neve suja, e os montes logo estariam profundos o suficiente para engolir o salão da vila.
E não havia comida, além dos cavalos que morriam, dos peixes pegos nos lagos (menos a cada dia) e qualquer outro escasso sustento que os forrageadores conseguissem encontrar nessas florestas frias e mortas. Com os cavaleiros do rei e os senhores exigindo para si a “parte do leão” da carne de cavalo, pouco e ainda menos restava para os homens comuns. Não era de se admirar, portanto, que tivessem começado a comer seus próprios mortos.
Asha ficara tão horrorizada quanto os demais quando a Mulher-Ursa lhe contou que quatro homens Peasebury haviam sido encontrados retalhando um dos homens do falecido Lorde Fell, pegando pedaços de carne de suas coxas e nádegas enquanto um de seus antebraços se transformara em espeto, mas não pudera fingir estar surpresa. Os quatro não eram os primeiros a provar carne humana durante essa marcha sinistra, podia apostar - apenas os primeiros a ser descobertos.
Os quatro Peasebury pagariam pelo banquete com suas vidas, por decisão do rei ... e ao ser queimados acabariam com a tempestade, os homens da rainha afirmavam. Asha Greyjoy não colocava fé no deus vermelho, mas rezou para que tivessem razão. Senão haveria outras piras, e Sor Clayton Suggs poderia conseguir o que seu coração desejava.
Os quatro comedores de carne humana estavam nus quando Sor Clayton os trouxe, os punhos amarrados atrás das costas com tiras de couro. O mais jovem deles chorava enquanto tropeçava pela neve. Outros dois andavam como homens que já estavam mortos, olhos fixos no chão. Asha estava surpresa em ver como pareciam comuns. Não são monstros, percebeu, apenas homens.
O mais velho dos quatro era o oficial deles. Era o único que permanecia desafiador, cuspindo maldade nos homens da rainha enquanto o incitavam a seguir adiante com suas lanças.
- Fodam-se todos vocês, e foda-se seu deus vermelho também - disse. - Você me ouviu, Farring? Matador de Gigantes? Ri quando seu maldito primo morreu, Godry. Devíamos ter comido ele também, cheirava tão bem quando o assaram. Aposto que o garoto era saboroso de tenro. Suculento. - Uma pancada do cabo de uma lança fez o homem cair de joelhos, mas não o calou. Quando se ergueu, cuspiu um punhado de sangue e dentes quebrados e continuou. - O pau é a melhor parte, todo crocante no espeto. Uma gorda e pequena linguiça. - Mesmo quando colocaram as correntes em volta dele, ele seguiu vociferando. - Corliss Penny, venha aqui. Que tipo de nome é Penny?' Uma moeda de valor baixo? É quanto sua mãe cobrava? E você, Suggs, seu maldito bastardo, você...
Sor Clayton não disse uma palavra. Um corte rápido abriu a garganta do oficial, mandando um jato de sangue para seu peito.
O rapaz que estava chorando chorou ainda mais, seu corpo sacudindo a cada soluço. Era tão magro que Asha podia contar cada costela.
- Não - ele implorou - por favor, ele estava morto, estava morto e estávamos famintos, por favor...
- O oficial foi o mais inteligente - Asha disse para Aly Mormont. - Incitou Suggs a matá-lo. - Ela se perguntava se o mesmo truque funcionaria duas vezes, se sua vez chegasse.
Os quatro foram acorrentados de costas uns para os outros, dois em cada estaca. Ali foram suspensos, três homens vivos e um morto, enquanto os devotos do Senhor da Luz empilhavam lenha partida e galhos quebrados sob os pés deles, e então encharcaram as pilhas com óleo de lamparina. Tinham que ser rápidos com isso. A neve estava caindo mais pesada, como sempre, e a madeira logo estaria encharcada.
- Onde está o rei? - perguntou Sor Corliss Penny.
Havia quatro dias, um dos escudeiros do próprio rei sucumbira ao frio e à fome, um menino chamado Byren Farring, que fora parente de Sor Godry. Stannis Baratheon permanecera com o rosto triste ao lado da pira funerária, enquanto o corpo do rapaz era consumido pelas chamas. Depois, o rei se retirara para sua torre de vigia. Não saíra de lá desde esse dia ... embora de tempos em tempos Sua Graça fosse visto sobre o telhado da torre, delineado contra o fogo do farol que queimava ali noite e dia. Falando com o deus vermelho, alguns diziam. Chamando pela Senhora Melisandre, insistiam outros. De qualquer modo, parecia para Asha Greyjoy que o rei estava perdido e gritando por ajuda.
- Canty, encontre o rei e diga-lhe que está tudo pronto - Sor Godry falou para o homem em armas mais próximo.
- O rei está aqui. - A voz era de Richard Horpe.
Sobre sua armadura de placas e cota de malha, Sor Richard vestia um gibão acolchoado, com o brasão de três borboletas-caveira em um campo de cinzas e ossos. O Rei Stannis caminhava ao seu lado. Atrás deles, lutando para manter o ritmo, Arnolf Karstark vinha mancando, apoiado em sua bengala de abrunheiro. Lorde Arnolf os encontrara havia oito noites. O nortenho trouxera um filho, três netos, quatrocentas lanças, dois grupos de arqueiros, uma dúzia de lanças montadas, um meistre e uma gaiola de corvos ... mas provisões suficientes para sustentar apenas os seus.
Karstark não era um senhor verdadeiro, Asha tinha sido dada a entender, apenas o castelão de Karhold enquanto o verdadeiro senhor permanecesse cativo dos Lannister. Magro, curvado e torto, com o ombro esquerdo trinta centímetros mais alto do que o direito, ele tinha o pescoço descarnado, olhos cinzentos estrábicos e dentes amarelos. Alguns cabelos brancos eram tudo o que o separava da calvície total; sua barba bifurcada tinha partes iguais branca e cinza, mas sempre misturadas. Asha achava que havia algo azedo em seus sorrisos. No entanto, se as conversas fossem verdadeiras, seria Karstark quem ficaria com Winterfell se tomassem o castelo. Em algum lugar no passado distante, a Casa Karstark brotara da Casa Stark, e Lorde Arnolf fora o primeiro dos vassalos de Eddard Stark a se declarar por Stannis.
Tanto quanto Asha sabia, os deuses dos Karstark eram os antigos deuses do Norte, deuses que partilhavam com os Wull, os Norrey, os Flint e com todos os outros clãs das montanhas. Ela se perguntava se Lorde Arnolf viera ver a queima por ordem do rei, para que pudesse testemunhar o poder do deus vermelho.
À visão de Stannis, dois dos homens atados às estacas começaram a implorar por misericórdia. O rei ouviu em silêncio, sua mandíbula cerrada. Então disse para Godry Farring:
- Pode começar.
O Matador de Gigantes ergueu os braços.
- Senhor da Luz, escute-nos.
- Senhor da Luz, defenda-nos - os homens da rainha entoaram - pois a noite é escura e cheia de terrores.
Sor Godry ergueu a cabeça em direção ao céu que escurecia.
- Agradecemos pelo sol que nos aquece e oramos para que o devolva para nós, oh, senhor,
que isso possa iluminar nosso caminho até nossos inimigos. - Flocos de neve derretiam em
seu rosto. - Agradecemos pelas estrelas que nos vigiam à noite, e oramos para que rasgue este
véu que as esconde, para que possamos nos regozijar à visão delas mais uma vez.
- Senhor da Luz, proteja-nos - os homens da rainha rezaram - e mantenha esta escuridão selvagem afastada.
Sor Corliss Penny foi para a frente, segurando a tocha com as duas mãos. Balançou-a
sobre a cabeça, em um círculo, atiçando as chamas. Um dos cativos começou a choramingar.
- R'hllor - Sor Godry entoou - nós lhe damos quatro homens maus. Com corações felizes e verdadeiros, nós os entregamos para suas chamas purificadoras, para que a escuridão de suas almas possam ser queimadas. Deixe sua carne vil ser cauterizada e enegrecida, para que os espíritos deles possam se erguer livres e puros para ascender até a luz. Aceite seu sangue, oh, senhor, e derreta as correntes geladas que prendem seus servos. Ouça a dor deles, e conceda força às nossas espadas, para que possamos derramar o sangue de nossos inimigos. Aceite este sacrifício e nos mostre o caminho para Winterfell, para que possamos vencer os infiéis.
- Senhor da Luz, aceite este sacrifício - uma centena de vozes ecoou. Sor Corliss acendeu a primeira pira com a tocha, então a levou para a madeira na base da segunda. Alguns tufos de fumaça começaram a subir. Os cativos começaram a tossir. As primeiras chamas apareceram, tímidas como donzelas, correndo e dançando da lenha para as pernas. Em alguns momentos, as duas estacas ficavam mergulhadas no fogo.
- Ele estava morto - o garoto chorão gritava, enquanto as chamas lambiam suas pernas. - Nós o encontramos morto ... por favor... estávamos com fome ... - As chamas alcançaram suas bolas. Quando os pelos em volta de seu pau começaram a queimar, sua súplica se dissolveu em um longo grito sem palavras.
Asha Greyjoy podia sentir a bile no fundo da garganta. Nas Ilhas de Ferro, vira sacerdotes de seu próprio povo cortar as gargantas de escravos e dar seus corpos para o mar em honra ao Deus Afogado. Brutal, mas isso era pior.
Feche os olhos, disse para si mesma. Feche os olhos. Vire-se. Você não precisa ver isso. Os homens da rainha cantavam algum hino de louvor ao vermelho R'hllor, mas ela não conseguia ouvir as palavras, abafadas pelos gritos. O calor das chamas batia contra seu rosto, mas mesmo assim ela estremeceu. O ar ficava mais pesado com a fumaça e o fedor de carne queimada, e um dos corpos ainda se contorcia contra as correntes incandescentes que o prendiam à estaca.
Depois de um tempo, os gritos pararam.
Sem uma palavra, o Rei Stannis foi embora, de volta à solidão da sua torre de vigia. De volta ao fogo do farol, Asha sabia, para buscar respostas nas chamas. Arnolf Karstark começou a mancar atrás dele, mas Sor Richard Horpe o pegou pelo braço e o levou em direção ao salão da vila. Os observadores começaram a se afastar, cada um para sua própria fogueira e para qualquer ceia escassa que conseguissem encontrar.
Clayton Suggs esgueirou-se ao lado dela.
- A boceta de ferro gostou do espetáculo? - Seu hálito fedia a cerveja e cebolas. Ele tem olhos de porco, Asha pensou. Isso era apropriado: seu escudo e túnica mostravam um porco com asas. Suggs aproximou o rosto tão perto do dela, que ela pôde contar os pontos negros em seu nariz, e disse: - A multidão será ainda maior quando for você se contorcendo na estaca.
Ele não estava errado. Os lobos não a amavam, ela era uma mulher de ferro e devia responder pelos crimes de seu povo, por Fosso Cailin, Bosque Profundo e Praça Torrhen, por séculos de saques na Costa Rochosa, por tudo o que Theon fizera em Winterfell.
- Solte-me, sor. - Todas as vezes que Suggs falava com ela, deixava-a ansiosa por seus machados. Asha era uma dançarina de dedos tão boa quanto qualquer homem das ilhas, e tinha dez dedos para provar. Se eu pudesse dançar com esse aí. Alguns homens tinham rostos que gritavam por uma barba. O rosto de Sor Clayton gritava por um machado entre os olhos. Mas ela estava sem machados aqui, então o melhor que podia fazer era tentar se contorcer para escapar. Isso só fez Sor Clayton agarrá-la com mais força, os dedos enluvados entrando em seu braço como garras de ferro.
- Minha senhora pediu que a soltasse - disse Aly Mormont. - Seria bom escutar, sor. A Senhora Asha não será queimada.
- Ela será - insistiu Suggs. - Já abrigamos essa adoradora do demônio entre nós por muito tempo. - Mesmo assim, soltou o aperto no braço de Asha. Ninguém provocaria a Mulher-Urso sem necessidade.
Esse foi o momento que Justin Massey escolheu para aparecer.
- O rei tem outros planos para seu prêmio cativo - disse, com seu sorriso fácil. Suas bochechas estavam vermelhas de frio.
- O rei? Ou você? - Suggs bufou de desprezo. - Planeje o que quiser, Massey. Ela ainda irá para o fogo, ela e seu sangue real. Há poder no sangue de um rei, a mulher vermelha costumava dizer. Poder para agradar nosso senhor.
- Deixe R'hllor se contentar com os quatro que acabamos de mandar para ele.
- Quatro rústicos de baixo nascimento. Uma oferta de pedinte. Escória como essa nunca parará a neve. Ela pode.
A Mulher- Ursa falou.
- E se você a queimar e a neve continuar a cair, e então? Quem queimará em seguida? Eu?
Asha não pôde segurar a língua.
- Por que não Sor Clayton? Talvez R'hllor goste de um dos seus. Um homem de fé que entoe suas orações enquanto as chamas lambem seu pau.
Sor Justin riu. Suggs achou menos graça.
- Aproveite suas risadinhas, Massey. Se a neve continuar a cair, veremos quem vai rir por último. - Olhou para os homens mortos nas estacas, sorriu e foi se juntar a Sor Godry e os outros homens da rainha.
- Meu campeão - Asha disse para Justin Massey. Ele merecia aquilo, quaisquer que fossem seus motivos. - Obrigada pelo salvamento, sor.
- Isso não lhe trará amigos entre os homens da rainha - falou a Mulher-Ursa. - Perdeu sua fé no vermelho R'hllor?
- Perdi a fé em mais do que isso - Massey falou, sua respiração uma névoa clara no ar - mas ainda acredito na ceia. Se juntarão a mim, minhas senhoras?
Aly Mormont sacudiu a cabeça.
- Não tenho fome.
- Nem eu. Mas faria bem em engolir um pouco de carne de cavalo mesmo assim, ou em breve poderá desejar ter feito isso. Tínhamos oitocentos cavalos quando marchamos de Bosque Profundo. Na noite passada, a contagem foi de sessenta e quatro.
Aquilo não a chocou. Quase todos os grandes corcéis de batalha haviam caído, incluindo o do próprio Massey. A maioria dos palafréns se fora também. Até mesmo os garranos dos nortenhos vacilavam pela falta de forragem. Mas para que precisavam de cavalos? Stannis já não marchava para lugar algum. O sol, a lua e as estrelas haviam partido havia tanto tempo que Asha começava a se perguntar se sonhara com eles.
- Eu comerei.
Aly sacudiu a cabeça.
- Eu não.
- Deixe-me cuidar da Senhora Asha, então - Sor Justin falou para ela. - Tem minha palavra, não permitirei que fuja.
A Mulher-Ursa deu um consentimento relutante, surda à galhofa no tom de voz dele. Separaram-se ali, Aly para sua tenda, ela e Justin Massey para o salão da vila. Não era longe, mas os montes eram profundos, o vento estava forte e os pés de Asha eram blocos de gelo. Seu tornozelo a esfaqueava a cada passo.
Apesar de pequeno e pobre, o salão era a maior construção da vila, então os senhores e capitães o tomaram para si, enquanto Stannis se estabelecera na torre de vigia de pedra às margens do lago. Duas sentinelas flanqueavam a porta, inclinadas em altas lanças. Uma delas levantou a aba da porta engordurada para Massey, e Sor Justin escoltou Asha para o abençoado calor de dentro.
Bancos e mesas de cavaletes corriam por todos os lados do salão, com espaço para cinquenta homens ... embora duas vezes aquele número estivesse se espremendo lá dentro. Uma trincheira de fogo havia sido cavada no meio do chão de terra, com uma fileira de buracos para a fumaça no teto acima. Os lobos sentavam-se em um lado da trincheira, os cavaleiros e senhores sulistas do outro.
Os sulistas pareciam tristes, Asha pensou - magros, com os rostos encovados, alguns pálidos e doentes, outros com as faces vermelhas e polidas pelo vento. Em contraste, os nortenhos pareciam robustos e saudáveis, grandes homens corados com barbas grossas como arbustos, vestidos com pele e ferro. Podiam estar com frio e famintos também, mas a marcha fora muito mais fácil para eles, com seus garranos e suas patas de urso.
Asha tirou as luvas de pele, estremecendo quando flexionou os dedos. Dores subiram por suas pernas quando os pés semi congelados começaram a derreter. Os arrendatários deixaram um bom suprimento de turfa quando fugiram, então o ar estava nebuloso com a fumaça e com cheiro rico e terroso de relva queimando. Ela pendurou o manto em um gancho do lado de dentro da porta, depois de sacudi-lo para tirar a neve.
Sor Justin encontrou lugares no banco e buscou a ceia para ambos - cerveja e pedaços tostados de carne de cavalo, negros por fora e vermelhos por dentro. Asha tomou um gole de cerveja e caiu sobre a carne de cavalo. A porção era menor do que a última que comera, mas sua barriga roncava só com o cheiro.
- Meus agradecimentos, sor - disse, enquanto sangue e gordura escorriam pelo queixo.
- Justin. Insisto. - Massey cortou sua própria carne em pedaços menores, e apanhou um com a ponta da adaga.
Na outra ponta da mesa, Will Foxglove estava dizendo aos homens ao seu redor que Stannis retomaria a marcha para Winterfell em três dias. Ouvira isso da boca de um dos cavalariços que cuidavam dos cavalos do rei.
- Sua Graça vê a vitória em suas chamas - Foxglove falou - uma vitória que será cantada por mil anos, tanto nos castelos dos senhores quanto nos casebres dos camponeses.
Justin Massey ergueu os olhos de sua carne de cavalo.
- A contagem do frio da noite passada chegou a oitenta. - Puxou um pedaço de cartilagem dos dentes e jogou para o cachorro mais próximo. - Se marcharmos, morreremos às centenas.
- Morreremos aos milhares se ficarmos aqui - replicou Sor Humfrey Clifton. - Vá em frente ou morra, digo.
- Vá em frente e morra, eu respondo. E se chegarmos a Winterfell, e então? Como vamos tomar o castelo? Metade de nossos homens está tão fraca que mal consegue colocar um pé na frente do outro. Vai mandá-los escalar as muralhas? Construir torres de cerco?
- Devemos ficar aqui até que o tempo melhore - disse Sor Ormund Wylde, um velho cavaleiro cadavérico. Asha ouvira rumores de que alguns homens em armas estavam apostando em qual dos grandes cavaleiros e senhores seria o próximo a morrer. Sor Ormund aparecia como um claro favorito. E quanto dinheiro foi colocado em mim, me pergunto? Asha pensou. Talvez ainda dê tempo de apostar alguma coisa. - Aqui, ao menos, temos algum abrigo - Wylde estava insistindo - e há peixes nos lagos.
- Peixe de menos para pescadores demais - Lorde Peasebury disse, melancolicamente. Ele tinha boas razões para a tristeza; foram seus homens que Sor Godry acabara de queimar, e alguns naquele salão haviam dito que o próprio Peasebury certamente sabia o que estavam fazendo, e talvez até tivesse participado de seus banquetes.
- Ele não está errado - resmungou Ned da Mata, um dos batedores de Bosque Profundo. Ned Sem-Nariz, era chamado; o congelamento reivindicara a ponta de seu nariz havia dois invernos. Da Mata conhecia a Matadelobos melhor do que qualquer homem vivo. Mesmo o mais orgulhoso senhor do rei aprendera a ouvir quando ele falava. - Conheço os lagos. Vocês estiveram neles como vermes em um cadáver, centenas de vocês. Cortaram tantos buracos no gelo que é inacreditável que não tenham caído dentro deles. Saindo da ilha, há lugares que parecem queijo por onde passaram ratos. - Abanou a cabeça. - Os lagos já eram. Vocês pescaram tudo.
- Mais motivos para marcharmos - insistiu Humfrey Clifton. - Se a morte é nosso destino, vamos morrer com a espada nas mãos.
Era o mesmo argumento da noite passada e da noite antes dessa. Ir em frente e morrer, ficar aqui e morrer, cair e morrer.
- Sinta-se livre para morrer como quiser, Humfrey - disse Justin Massey. - Eu, pessoalmente, prefiro viver para ver outra primavera.
- Alguns poderiam chamar isso de covardia - Lorde Peasebury replicou.
- Melhor um covarde do que um canibal.
O rosto de Peasebury se contorceu em repentina fúria.
- Seu ...
- A morte é parte da guerra, Justin. - Sor Richard Horpe estava em pé ao lado da porta, seu cabelo escuro molhado com neve derretida. - Aqueles que marcharem conosco terão uma parte em toda a pilhagem que conseguirmos de Bolton e seu bastardo, e uma fatia ainda maior de glória imortal. Aqueles fracos demais para marchar devem cuidar de si mesmos. Mas, têm minha palavra, enviaremos comida assim que tomarmos Winterfell.
- Vocês não tomarão Winterfell!
- Sim, tomaremos - veio uma gargalhada da mesa principal, onde Arnolf Karstark sentava-se com seu filho Arthor e três netos. Lorde Arnolf levantou-se, um abutre erguendo-se sobre a presa. Uma mão manchada agarrava o ombro do filho como apoio. - Tomaremos por Ned e por sua filha. Sim, e pelo Jovem Lobo também, que foi tão cruelmente assassinado. Eu e os meus mostraremos o caminho, se for necessário. Já disse isso para Sua Boa Graça, o rei. Marchemos, eu disse, e antes da próxima lua estaremos todos nos banhando no sangue dos Frey e dos Bolton.
Homens começaram a bater os pés no chão e a martelar os punhos contra o tampo da mesa. Quase todos nortenhos, Asha notou. Do outro lado da trincheira de fogo, os senhores sulistas sentavam-se silenciosos em seus bancos.
Justin Massey esperou que o tumulto parasse. Então falou:
- Sua coragem é admirável, Lorde Karstark, mas coragem não vai abrir brechas nas muralhas de Winterfell. Como pretende tomar o castelo, se pode dizer? Com bolas de neve?
Um dos netos de Lorde Arnolf deu a resposta.
- Derrubaremos árvores para fazer aríetes e arrebentar os portões.
- E morreremos.
Outro neto se fez ouvir.
- Faremos escadas e escalaremos as muralhas.
- E morreremos.
Até Arthor Karstark, o filho mais novo de Lorde Arnolf, falou:
- Ergueremos torres de cerco.
- E morreremos, e morreremos, e morreremos. - Sor Justin revirou os olhos. - Que os deuses sejam bons, todos vocês Karstark são loucos?
- Deuses? - disse Richard Horpe. - Você se esquece, Justin. Temos apenas um deus aqui. Não fale de demônios nesta companhia. Apenas o Senhor da Luz pode nos salvar agora. Não concorda? - Colocou a mão no punho da espada, como se enfatizasse, mas seus olhos não deixaram o rosto de Justin Massey.
Sob esse olhar, Sor Justin se encolheu.
- O Senhor da Luz, sim. Minha fé é tão profunda quanto a sua, Richard, você sabe disso.
- É sua coragem que questiono, Justin, não sua fé. Você pregou a derrota a cada passo do caminho desde que cavalgamos de Bosque Profundo. Isso me faz questionar de que lado você está.
Um rubor subiu pelo pescoço de Massey.
- Não ficarei aqui para ser insultado. - Agarrou seu manto úmido da parede com tanta força que Asha ouviu-o rasgar, então passou por Horpe e saiu pela porta. Uma rajada de ar frio soprou pelo salão, levantando cinzas da trincheira de fogo e atiçando um pouco mais suas chamas.
Quebrado rápido assim, pensou Asha. Meu campeão é feito de sebo. Mesmo assim, Sor Justin era um dos poucos que podia fazer alguma objeção se os homens da rainha tentassem queimá-la. Então ela se levantou, vestiu o próprio manto e o seguiu pela nevasca.
Estava perdida antes de percorrer dez metros. Asha podia ver o fogo do farol queimando no topo da torre de vigia, um tênue brilho laranja flutuando no ar. Todo o resto da vila se fora. Estava sozinha em um mundo branco de neve e silêncio, passando por montes de neve tão altos quanto suas coxas.
- Justin? - chamou. Não houve resposta. Em algum lugar à sua esquerda, ouviu um cavalo relinchando. O pobrezinho parece assustado. Talvez saiba que será a ceia de amanhã. Asha apertou o manto contra o corpo.
Tropeçou de volta para a praça da vila sem perceber. As estacas de pinheiro ainda estavam lá, queimadas e carbonizadas, mas não destruídas pelo fogo. As correntes dos mortos haviam esfriado, ela viu, mas ainda prendiam os cadáveres em seu abraço de ferro. Um corvo estava empoleirado sobre um deles, arrancando nacos de carne queimada que se agarravam ao crânio enegrecido. A neve cobrira as cinzas na base da pira e subira pela perna do morto até a altura do tornozelo. Os antigos deuses pretendem enterrá-lo, Asha pensou. Isso não é trabalho deles.
- Dê uma boa olhada, boceta - a voz profunda de Clayton Suggs disse, atrás dela. - Você parecerá tão bonita quanto eles, quando estiver assada. Diga-me, as lulas são capazes de gritar?
Deus dos meus pais, se pode me ouvir em seus salões molhados sob as ondas, dê-me apenas um machado de arremesso pequeno. O Deus Afogado não respondeu. Ele raramente respondia. Esse era o problema dos deuses.
- Viu Sor Justin?
- Aquele tolo empinado? O que quer com ele, boceta? Se precisa de uma foda, sou mais homem do que Massey.
Boceta de novo? Era estranho como homens como Suggs usavam aquela palavra para humilhar as mulheres, quando era a única parte de uma mulher que valorizavam. E Suggs era pior do que Liddle do Meio. Quando ele falou essa palavra, queria dizer isso.
- Seu rei castra homens por estupro - ela o recordou.
Sor Clayton gargalhou.
- O rei está meio cego de encarar as chamas. Mas não tenha medo, boceta, não estuprarei você. Eu teria que matar você depois, e prefiro ver você queimar.
Aquele cavalo novamente.
- Ouviu isso?
- Ouvi o quê?
- Um cavalo. Não, cavalos. Mais do que um. - Ela virou a cabeça, ouvindo. A neve fazia coisas estranhas ao som. Era difícil saber de que direção vinha.
- Isso é algum jogo de lula? Não escuto ... - Suggs fez uma careta. - Maldito inferno. Cavaleiros. - Ele se atrapalhou com seu cinturão, as mãos desajeitadas em suas luvas de pele e couro, até que finalmente conseguiu desembainhar sua espada longa.
Então os cavaleiros já estavam sobre eles.
Emergiram da tempestade como um bando de criaturas, grandes homens em pequenos cavalos, ainda maiores por causa das peles volumosas que usavam. Levavam espadas nos quadris, que cantavam sua suave canção de aço enquanto balançavam nas bainhas. Asha viu um machado de batalha amarrado à sela de um homem e um martelo de guerra nas costas de outro. Usavam escudos também, mas tão escondidos pela neve e pelo gelo que os braços sobre eles não podiam ser decifrados. Com todas as camadas de lã, pele e couro fervido que usava, Asha se sentia nua parada ali. Um berrante, pensou, preciso de um berrante para despertar o acampamento.
- Corra, sua boceta estúpida - Sor Clayton gritou. - Corra para avisar o rei. Lorde Bolton está sobre nós. - Ele podia ser grosseiro, mas não faltava coragem a Suggs. Espada na mão, caminhou pela neve, colocando-se entre os cavaleiros e a torre do rei, o farol brilhando atrás dele como o olho laranja de algum deus estranho. - Quem vem lá? Alto! Alto!
O cavaleiro que vinha na frente parou diante dele. Atrás vinham outros, talvez um grupo inteiro. Asha não teve tempo de contá-los. Centenas mais podiam estar lá fora, na tempestade, vindo logo em seus calcanhares. A tropa inteira de Roose Bolton podia estar descendo sobre eles, escondidos pela escuridão e pela neve. Esses, no entanto ... São muitos para ser batedores e poucos para ser uma vanguarda. E dois estavam completamente de negro. A Patrulha da Noite, percebeu, repentinamente.
- Quem são vocês? - ela perguntou.
- Amigos - uma voz meio familiar respondeu. - Procuramos por vocês em Winterfell, mas encontramos apenas o Papa Corvos Umber batendo tambores e soprando berrantes. Levou algum tempo para acharmos vocês. - O cavaleiro saltou de sua sela, abaixou o capuz e inclinou-se. Sua barba estava tão grossa e tão incrustada de gelo que, por um momento, Asha não o reconheceu. Então soube.
- Trisr - ela disse.
- Minha senhora. - Tristifer Bodey ajoelhou-se. - O Donzel está aqui também. Roggon, Linguacruel, Dedos, Rook... seis de nós, todos os que tinham condições de cavalgar. Cromm morreu de seus ferimentos.
- O que é isso? - Sor Clayton Suggs exigiu saber. - Você é um dos dela? Como conseguiu escapar dos calabouços de Bosque Profundo?
Tris se levantou e limpou a neve dos joelhos.
- Sybelle Glover recebeu uma bela oferta de resgate pela nossa liberdade, e resolveu aceitá-la em nome do rei.
- Que resgate? Quem pagaria por essa escória do mar?
- Eu paguei, sor. - O homem que respondeu veio adiante com seu garrano. Era muito alto, muito magro, com pernas tão longas que era de se admirar que seus pés não arrastassem no chão. - Eu precisava de uma forte escolta para me trazer em segurança até o rei, e a Senhora Sybelle precisava de menos bocas para alimentar. - Um lenço cobria as feições do homem alto, mas sobre sua cabeça estava empoleirado o chapéu mais estranho que Asha já vira desde a última vez que navegara até Tyrosh, uma torre sem bordas de algum tecido macio, como três cilindros enfiados uns sobre os outros. - Fui dado a entender que poderia encontrar o Rei Stannis aqui. É muito urgente que eu fale com ele imediatamente.
- E quem, pelos sete malditos infernos, é você?
O homem alto deslizou graciosamente de seu garrano, tirou seu peculiar chapéu e fez uma mesura.
- Tenho a honra de ser Tycho Nestoris, um humilde servo do Banco de Ferro de Bravos.
De todas as coisas estranhas que podiam sair cavalgando pela noite, a última que Asha Greyjoy jamais esperara era um banqueiro bravosi. Era absurdo demais. Ela teve que rir.
- O Rei Stannis pegou a torre do vigia para si. Sor Clayton terá prazer em mostrá-la para você, tenho certeza.
- Isso seria muito gentil. Tempo é a essência. - O banqueiro a estudou com seus astutos olhos escuros. - Você é a Senhora Asha da Casa Greyjoy, a menos que eu esteja enganado.
- Sou Asha da Casa Greyjoy, sim. As opiniões diferem a respeito de eu ser uma senhora.
O bravosi sorriu.
- Trouxemos um presente para você. - Acenou para os homens atrás dele. - Esperávamos encontrar o rei em Winterfell. Essa mesma nevasca tomou conta do castelo, infelizmente. Sob suas muralhas, encontramos Mors Umber com uma tropa de meninos inexperientes, esperando pela chegada do rei. Ele nos deu isso.
Uma garota e um velho, Asha pensou, quando os dois foram rudemente jogados na neve diante dela. A garota tremia violentamente, mesmo em suas peles. Se não estivesse tão assustada, poderia até mesmo ser bonita, embora a ponta de seu nariz estivesse negra pelo congelamento. O velho ... ninguém jamais pensaria em considerá-lo atraente. Ela vira espantalhos com mais carne. Seu rosto era uma caveira com pele, seu cabelo era branco e sujo. E fedia. Apenas a visão dele enchia Asha de repulsa.
Ele levantou os olhos.
- Irmã. Veja. Desta vez eu a reconheci.
O coração de Asha pulou no peito.
- Theon?
Os lábios dele se afastaram no que poderia ter sido um sorriso. Metade de seus dentes se foram, e metade daqueles que ainda tinha estavam quebrados ou lascados.
- Theon - ele repetiu. - Meu nome é Theon. Você tem que saber seu nome. 

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